REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202501111522
Maria Rita Nascimento Pereira 1
Otaviano José Pereira 2
Resumo
O presente artigo tem como abordagem o tema da formação de professores para atuarem, principalmente, na Educação Básica Pública, para além de uma educação voltada para as propostas neoliberais e mercadológicas. Para tanto, percebemos a necessidade de um investimento teórico-prático mais aprofundado nas relações que se estabelecem entre o ato educativo e a realidade a ser descoberta de maneira profundamente significativa, tanto do educador como do educando. Sendo assim, é de fundamental importância que a formação a ser trabalhada seja fundamentada em um núcleo de pensamento que proporcione aos professores um repensar da sua prática pedagógica, revisando e avaliando sua própria trajetória profissional, preferencialmente fundada em sua história de vida, como vetor da identidade dos sujeitos envolvidos. Fundamentado na dialógica Freiriana. O objetivo do artigo é evidenciar o quanto os fundamentos pedagógicos de Paulo Freire possibilitam uma pedagogia dialógica como expressão real do ser humano em sua integralidade. Nesse caso o diálogo se apresenta como condição de possibilidade do elo profundo entre teoria e prática, como substância de uma formação humana integral e emancipadora, para além de uma educação puramente instrucional. Para a elaboração do artigo em pauta, a metodologia utilizada foi centralmente bibliográfica, o método dialético e baseou-se na análise da categoria diálogo, a partir das principais obras de Paulo Freire, notadamente Pedagogia do Oprimido, obra imprescindível que apresenta a dialógica Freiriana, em detrimento de uma formação inicial e continuada reduzida nos princípios atuais do neoliberalismo. Por fim, trouxemos como principal autor, Paulo Freire, (seguido de seus comentadores,) considerando que o diálogo freiriano, torna-se estratégia da práxis docente, como base substancial formativa dos que atuam nesse nível de ensino. Como salienta Paulo Freire a leitura do mundo é um caminho imprescindível para a leitura da palavra (FREIRE, 1989), como encontro dialógico emancipador tanto do educando como do educador.
Palavras chaves: Paulo Freire. Práxis. Prática pedagógica.
INTRODUÇÃO
No mês em que comemoramos o centenário de nascimento de Paulo Freire, (19.09.1921) objetivamos, com este trabalho, revisitar suas principais categorias. Como é sabido, iniciadas em sua práxis pedagógica na Alfabetização de Adultos no Nordeste Brasileiro nos anos de 1960 (no Movimento de Cultura Popular) e, por conta de sua força pedagógica, posteriormente internalizada em vários continentes. É notório como sobretudo da segunda metade do século findo para cá aconteceu um intenso movimento de pesquisa na área pedagógica e uma pluralidade de metodologias de ensino.
Daí nossa pergunta de pesquisa: qual a real atualidade de suas categorias, para a formação de professores já adentrando a terceira década do presente século? Por que suas categorias ainda persistem, substancializando as discussões pedagógicas num extraordinário movimento de universalização não só no campo de Alfabetização de Adultos? Para respondê-las, ensejamos revisitar tais categorias, ainda que de modo sucinto.
CATEGORIAS PEDAGÓGICAS FREIRIANAS
A primeira categoria a ser trabalhada é o opressor–oprimido. Para Paulo Freire esta categoria coloca em evidência o jogo de poder existente no contexto das ações humanas, dentro e fora da educação, ainda em evidência.
No campo específico da Educação, o opressor, segundo Paulo Freire, é aquele que detém o poder e faz uso do mesmo para manipular as ações dos alunos como oprimidos, por meio de atitudes paternalistas e autoritárias. Essa forma de manipulação faz com que os oprimidos fiquem presos aos desejos e aos anseios do opressor, reproduzindo, assim, uma ‘consciência alienada’ (Freire chama de intransitiva) que o incapacita de agir e enxergar o mundo com a autonomia de sua consciência crítica. Assim sendo, esses permanecem ‘sombra’ do mundo do opressor, sem que se deem conta disso. Em que medida a prática docente esteve livre desse “jogo”? Será que, nas décadas pretéritas, de anúncio e expansão de seu método a formação de professores conseguiu, de fato, absorver tal categoria para avaliação de suas práticas?
Em Freire, (2005, p. 40) essa dualidade opressor-oprimido está bem qualificada quando ele nos esclarece:
O opressor só se solidariza com os oprimidos quando o seu gesto deixa de ser um gesto piegas e sentimental, de caráter individual, e passa ser um ato de amor àqueles. Quando, para ele, os oprimidos deixam de ser uma designação abstrata e passam a ser os homens concretos, injustiçados e roubados. Roubados na sua palavra, por isso no seu trabalho comprado, que significa a sua pessoa vendida.
Essa relação antagônica por si mesma, se reflete na categoria a seguir pelo fato de inviabilizar, já de saída, a humanização dos sujeitos da prática educativa.
A segunda categoria referre-se ao modus operandi da prática opressora do professor, a saber: educação bancária e educação libertadora. A relação entre esses dois conceitos fortalece uma postura de dominação e submissão entre o educador e o educando, não existindo, assim, qualquer possibilidade de construção de conhecimento dialogado no campo da própria educação, com reflexos entre o que acontece dentro e fora do chão da escola.
Esse tipo de conhecimento ofertado pelo professor, tipicamente instrucional e puramente informativo, vai sendo “depositado” de maneira desarticulada e autoritária na cabeça dos alunos, que tendem a recebe-lo de maneira pacífica e sem qualquer elaboração crítica. Paulo Freire, em seu livro, Pedagogia do oprimido (2005, p. 74-75), chamou esse tipo de absorção de conteúdo como “Educação bancária” quando nos explica que
A opressão, que é um controle esmagador, é necrófila. Nutre-se do amor à morte e não do amor à vida. A concepção ‘bancária’, que a ela serve, também o é. No momento mesmo em que se funda num conceito mecânico, estático, especializado da consciência e em que transforma, por isto mesmo, os educandos em recipientes, em quase coisas, não pode esconder sua marca necrófila.
Resultado disso, a educação passa a ser um receituário, o professor torna-se um “depositário” e a cabeça do aluno um “banco” que recebe todas as informações pacificamente.
A terceira categoria é a práxis, destacada como núcleo de pensamento freireano, fundamental na questão da formação de professores, bem como em sua prática pedagógica.
A práxis para Paulo Freire desde o início foi apresentada como conditio sine qua non para a construção de uma educação que viabilizasse a todos os homens tornarem-se sujeitos ativos na prática educativa. Não existe a possibilidade de se falar em teoria dissociada da prática e nem é possível aplicar a prática sem o trabalho da teoria, sem um trabalho condizente à humanização do aluno como protagonista ou sujeito do próprio conhecimento articulado, avaliado e construído desde sua leitura crítica de mundo. Sujeito que vai se construindo numa relação dialética com o mundo, que possibilita um diálogo autêntico entre a teoria e sua prática como instâncias inseparáveis, de modo a proporcionar um pensar contínuo, que faz da denúncia, sua luta diária, deixando assim de ser um sujeito social “pronto”, para estar em contínua construção.
É por essa razão que Freire clama, sempre, pelo que chama (em várias obras) de “leitura de mundo pela leitura da palavra”. Na conjunção dialética entre teoria e prática, a práxis docente se torna uma prática profunda, não isolada do mundo, a partir de um ensino concreto, não só informativo, imerso no que Karel Kosik chama de “totalidade concreta do real”.
Sem a compreensão de que a realidade é totalidade concreta –que se transforma em estrutura significativa para cada fato ou conjunto de fatos – o conhecimento da realidade concreta não passa de mística, ou coisa incognoscível em si. A totalidade concreta não é um método para captar e exaurir todos os aspectos, caracteres, propriedades, relações e processos da realidade; é a teoria da realidade como realidade concreta. (KOSIK, 1976, p. 36)
Dessa maneira, cabe também ao professor, comprometido com este aluno sujeito, uma reflexão permanente da sua prática, a fim de propiciar uma prática condizente com a proposta libertadora, sonhada e construída por Paulo Freire. Para tanto, é preciso dar ênfase também na próxima categoria.
A quarta categoria é a Conscientização, presente em todas as suas obras, como base em sua proposta estratégica desde o início: possibilitar ao educando perceber seu estado de submissão, em vias de regra envolto numa consciência ingênua, mas com condições de possibilidade para alcançar a consciência crítica.
Dessa forma, tomar consciência é dar significado ao mundo, isto é, revelar a ele (aluno) e a. a si mesmo (professor) no diálogo, na condição de se fazer como sujeito entre outros sujeitos. Isto é, no objetivo de protagonizar as “pessoas capazes de modificar o mundo”. Essa condição de modificar o mundo só se solidifica se o homem tiver condição de perceber a sua história (atual) mediatizada com uma outra história já vivida (ontem). Trava-se uma relação dialética entre o passado e o presente, de modo que vai emergindo a “humanidade do próprio homem”, que o torna capaz de dar significado ao seu mundo, dialetizando com outros mundos, que, no início, lhe pareciam estranho.
Em Freire (1980, p. 26) podemos entender, neste aspecto, -o que seja conscientização
(…) A conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica. A conscientização é, neste sentido, um teste de realidade. Quanto mais conscientização, mais se ‘des-vela’ a realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto, frente ao qual nos encontramos para analisá-lo. Por esta mesma razão, a conscientização não consiste em ‘estar frente à realidade’ assumindo uma posição falsamente intelectual. A conscientização não pode existir fora da ‘práxis’, ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens.
Infelizmente, nem sempre as práticas pedagógicas ocorreram dessa maneira; muito pelo contrário, uma vez que muitos educadores não conseguem visualizar a importância que o contexto tem na construção significativa do conhecimento, e acabam permanecendo numa prática mecanizada, solidificando assim, o homem historicamente “engessado” em seu pensamento, sua leitura de mundo, fadado a se tornar permanentemente imparcial em suas relações de sociabilidade. Esse tipo de educação fortalece uma sociedade fechada, isto é, dependente e anti-dialógica. A anti-dialogicidade perpetua o descompromisso humano, a limitação, a ideologia, a alienação, os exercícios nefastos do poder, entre outras mazelas. Esse tipo de consciência, que não faz, pelo menos, sua primeira ruptura, chama-se, segundo Paulo Freire, consciência intransitiva (num primeiro estágio). Além dessa consciência, Paulo Freire nos apresenta mais duas: consciência transitivo-ingênua e transitivo-crítica. Entende-se por consciência transitivo-ingênua (segundo estágio) aquela que possibilita uma visão mais ampla do mundo. No entanto, ainda não viabiliza a sua mudança, já que o homem não consegue entender criticamente sua relação com o mundo. Esse estado é resultado da falta de uma elaboração mais sistematizada e criativa sobre o seu contexto.
O outro estágio de consciência (o terceiro) é a transitivo-crítica, consciência que vem responder às expectativas da pedagogia libertadora proposta por Paulo Freire. Esse tipo de consciência proporciona ao homem uma relação mais humana com o seu mundo. Ela se faz com e pelo diálogo, pelo questionamento e pela criticidade. É uma consciência denunciadora, humanizadora e anti-classista, que possibilita uma intervenção na cultura do povo, seu modo de vida, suas raízes, seus territórios de convivência, suas linguagens.
O DIÁLOGO COMO ESTRATÉGIA BÁSICA DA PEDAGOGIA FREIRIANA.
Tudo o que foi dito até então, perpassa, necessariamente, pela força estratégica do diálogo. “Ninguém educa ninguém. Ninguém se educa sozinho: os homens se educam em comunhão, mediados pelo mundo…” (1987, 29) Paulo Freire com essa conhecida afirmação, apresenta o que há de básico e inarredável na relação professor-aluno. Mas como a questão do diálogo se coloca no pensamento freiriano?
Para Freire, desde suas primeiras investidas pedagógicas na alfabetização, não bastava apenas ensinar a ler e escrever; era necessário desvendar o sentido oculto, profundo ou não aparente das palavras, de modo a descobrir nelas seus contextos culturais, históricos e sociais. Tratava-se de uma estratégia capaz de fazer com que os alunos compreendessem a própria dimensão da vida e da exclusão, na proporção em que as palavras iam sendo cuidadosamente trabalhadas. Na verdade, uma pedagogia do diálogo como porta de entrada para uma leitura de mundo que deixava de ser “estranho” ao alfabetizando.
A dialogicidade, presente no método, supera uma postura verticalizada de relações pedagógicas anteriores, que fortaleciam atitudes e pensamentos autoritários de “quem sabe” (alfabetizador) para “quem não sabe” (alfabetizando). Para que tal aconteça, cumpre provocar verdadeiras inversões de atitudes pedagógicas alimentadas por um processo de conscientização, onde educador e educando abrem o próprio caminho do conhecimento significativo que, para ser como tal, tem de ser enriquecido relações intersubjetivas, superando, assim, o conhecimento vazio de sentido – apenas “doado” pelo professor.
A experiência dialógica, produtora desse conhecimento diferenciado, não se dá de uma hora para outra e de uma só vez, isto é, o ato de ler como produto mecânico. É processual, à medida em que instaura uma permanente discussão e revisão do próprio processo entre os pares, possibilitando, inclusive, um repensar da prática educativa, onde professor e aluno aprendem conjuntamente, e conjuntamente avaliam o aprendizado.
Junta-se também ao que foi dito, a dimensão cultural, de fundo antropológico e ontológico. Trata-se de um modo de aprendizagem que propicia a abertura e o aceite das múltiplas culturas existentes no ambiente escolar e extra-escolar.
Quando afirmamos a dialogicidade como pano de fundo de toda a prática pedagógica freiriana, não estamos apenas nos reportando à sua presença nas relações humanas, de maneira singularizada, desarticulada, mas, propondo atitudes concretas, comunitárias, solidárias, e acima de tudo, de respeito com as ideias diferentes, propiciando uma aproximação entre sujeitos do diálogo que sustenta e viabiliza a própria existência humana como tal. Do ponto de vista pedagógico, de nada adianta o diálogo com os iguais, caso não se perceba a necessidade da interação dialética, ainda que conflitiva, para a construção do conhecimento. O diferente para o educador, numa postura dialógica, a princípio parece ser aquilo que é inatingível, por conta do a priori do outro, diferente de mim (educador) no processo.
O diálogo como estratégia para educador, é uma exigência da natureza humana, que o desperta para uma pedagogia essencialmente problematizadora ou que dela resulta em nova etapa para a formação dos envolvidos na prática educativa. Nessa perspectiva, o papel do educador não é “mostrar o mundo” (passivamente) para o educando, é desvendá-lo com ele, o que lhe é por vezes estranho, mas que lhe pertence como ser diferente diante das diferenças que se complementam. Ademais, o diálogo leva a um modo de pensar e agir que possibilita a superação da consciência intransitiva (muito presente no senso comum), elevando o educando ao patamar de um pensar crítico, que resulta numa formação significativa, não puramente mecânica.
Concluindo, à luz das categorias aqui apresentadas, bem como o lugar pedagógico ocupado pelo diálogo, que perpassa todas elas com base na formação de professores, emerge outro desafio. Num século plenamente tecnocêntrico – que Freire não menosprezou, mas não teve tempo de se debruçar no tema, com a profundidade que lhe é inerente – se a educação não conseguir fazer a mediação dialógica necessária, sempre, entre o aprendizado pedagógico, tecnológico e científico, certamente deixará de cumprir seu papel. Se a distância entre educação e tecnologias for diminuída, com certeza, à luz do pensamento freiriano, estaremos redimensionando um trabalho mais humanizado e a promoção de uma cidadania plena. Paulo Freire, continua presente no século XXI.
REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
________. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo, 1980.
________. Pedagogia do Oprimido. Petrópolis: Paz e Terra, 1987.
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Petrópolis: Paz e Terra, 1976.
1 IFG – Instituto Federal de Goiás – Campus
Itumbiara mnascimentopereira@yahoo.com.br
2 IFTM – Instituto Federal do Triângulo Mineiro
otavianopereira@iftm.edu.br