O PROCESSO HISTÓRICO DAS PENAS

THE HISTORICAL PROCESS OF PENALTIES

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ma10202412301637


Vanessa Nascimento Souza Lobato1


Resumo

A implementação de penas por delinquência, foi socialmente moldada ao longo da História. As práticas punitivas, inicialmente baseadas em suplícios e castigos físicos, foram aos poucos substituídas por métodos mais sofisticados e sutis. Portanto, objetivou-se, por meio de abordagem historiográfica, revisão bibliográfica e categorização dos dados, compreender como se deu a transformação do sistema de penas ao longo da história. E ainda, destacando relevância da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o que essa declaração representou para a evolução das penas, estabelecendo princípios fundamentais de justiça, igualdade e dignidade para todos

Palavras-Chave: Penas. Punições. História

Abstract

The implementation of penalties for delinquency has been socially shaped throughout history. Punitive practices, initially based on torture and physical punishment, were gradually replaced by more sophisticated and subtle methods. Therefore, the aim of this study, through a historiographical approach, bibliographical review and data categorization, was to understand how the system of penalties has been transformed throughout history. Furthermore, it was important to highlight the relevance of the promulgation of the Universal Declaration of Human Rights and what this declaration represented for the evolution of penalties, establishing fundamental principles of justice, equality and dignity for all.

Keywords: Penalties. Punishments. History

INTRODUÇÃO

A evolução do sistema de penas ao longo da história passou por várias transformações, tradições familiares e grupais, a tirania dos reis e imposições clericais, até a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Inicialmente, as prisões eram apenas locais de passagem, mas tornaram-se ferramentas para “cura” para a delinquência e controle das massas. 

DESENVOLVIMENTO

A implementação de penas ao longo da história passou por diversas transformações, desde tempos remotos em que eram regidas por tradições familiares e grupais, até chegar ao ponto em que o poder coercitivo do Estado se aliou aos interesses do capital. 

A partir de tradições milenares, a punição era vista como forma de restaurar a ordem social e moral, sendo aplicada de forma pública e muitas vezes cruel. Com o passar dos séculos, a tirania dos reis, a imposição dos poderes clericais e por fim, a ascensão do sistema capitalista foram moldando as penas de acordo com os interesses de cada época.

Inserido nesse contexto de transformações, o sistema de penas evoluiu conforme a própria estrutura social se modificava. As práticas punitivas, inicialmente baseadas em suplícios e castigos físicos, foram aos poucos substituídas por métodos mais sofisticados e sutis, visando não apenas a repressão do indivíduo, mas também o seu controle e “dominação” social. Nesse viés, o surgimento das prisões foi um marco histórico.

A promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos representou um momento crucial na história das penas, estabelecendo princípios fundamentais de justiça, igualdade e dignidade para todos os seres humanos. No entanto, as práticas punitivas continuaram a ser influenciadas pelo poder do capital, que viu nas penas um meio eficaz de manter a ordem social e político-econômica. A finalidade das penas deixou de ser a punição exemplar do indivíduo, tornando-se também um instrumento de controle das massas e da delinquência.

Desse modo, o objetivo geral deste estudo foi compreender como se deu a transformação do sistema de penas ao longo da história, nesse processo, para alcançar o objetivo, foram adotadas abordagens historiográficas, incluindo revisão bibliográfica e categorização dos dados.

Dando continuidade, apresenta-se a questão que norteou esta pesquisa: Como se deu a transformação do sistema de penas de episódios históricos marcados pelos suplícios até a institucionalização das prisões? 

Ao analisar o processo histórico das penas, é possível observar a complexidade das relações entre poder, justiça e capital. A evolução das práticas punitivas, refletindo não apenas as mudanças sociais e econômicas de cada época, como também os interesses e ideologias que fundamentam o sistema de justiça penal. 

Juízo e penalidade de delitos: primeiras percepções

O processo de juízo e penalidade de delitos, passou por diversas metamorfoses segundo culturas e crenças no tempo e no espaço. Segundo John Gilissen (1995), na antiguidade, as sociedades primitivas tinham que cumprir preceitos verbais anunciados pelos sacerdotes, patriarcas ou líderes grupais, onde os laços de consanguinidade embasavam a hierarquia grupal, na qual os sacerdotes exerciam autoridade por receber e interpretar as regras e costumes dados por divindades.

Desse modo, tanto os preceitos religiosos quanto as tradições grupais, eram as medidas de juízo para os delitos, segundo Wolkmer (2001), os sacerdotes ou líderes religiosos, não raramente detinham poderes unificados nos aspectos políticos, sociais e religiosos, devotando respeito religioso às  regras orais.  

Porém, após o advento da escrita, à medida que o homem foi se sedentarizando e desenvolvendo novas formas de produção, cultura e arte; mudaram também os padrões de conduta, pois tão logo, submetemos valores proclamados evidentes à verificação histórica, “percebemos que aquilo que foi considerado como evidente por alguns num dado momento, em outro momento, não é mais considerado como evidente por outros” (Bobbio, 2004), uma referência às metamorfoses sociais que levaram a superação do direito arcaico.

Ainda a partir da escrita, um dos primeiros e mais importantes códigos legais da antiguidade foi o código de Hamurabi, um conjunto de princípios legais desenvolvidos pelo Rei Hamurabi da Babilônia, por volta do século XVIII a.C  (Silva, 2006).

Observamos neste Código, segundo Silva (2006), as bases de dispositivos que transcenderam aos nossos dias, como o “direito à propriedade e a supremacia das leis em relação aos governantes”; também é possível observar, que as medidas punitivas variam de acordo com as castas sociais à época. E principalmente, o princípio de talião, onde a pena era proporcional à ofensa cometida, “ilustrada pela premissa de olho por olho, dente por dente”.

Já na antiguidade Clássica, os povos gregos contribuíram com a filosofia, a política e a democracia, com destaque para as reformas de Sólon, estadista grego que propôs a ideia de sistema democrático já no mundo antigo, dessa forma, cada Cidade Estado tinha seu próprio código de leis e condutas.  sendo as cidades mais destacadas Atenas e Esparta. 

Ainda entre os gregos, surge a noção de direito natural ou jusnaturalismo, direitos que seriam próprios da natureza humana: 

O Direito Natural clássico dos gregos compreende uma concepção essencialista ou substancialista do Direito Natural: a natureza contém em si a sua própria lei, fonte da ordem, em que se processam os movimentos dos corpos, ou em que se articulam os seus elementos constitutivos essenciais. A ordem da natureza é permanente, constante e imutável. Trata-se da concepção cosmológica da natureza (Ximenes 2007 p. 3)

Em análise, tal concepção é uma visão essencialista, cuja ideia central é que todo o direito do homem emana da natureza, ou seja, de sua condição naturalmente humana. Uma visão cosmológica do governo da natureza sobre os homens, ligando a ordem cósmica natural à parametrização da natureza para as ordenanças jurídicas.

Passando ao período Romano, o último império unificado que deteve domínio sobre o mundo antigo, é possível observar predomínio de um caráter legislativo laico, com surgimento das escolas de juristas e foco na proteção dos direitos e vontade do indivíduo. 

Após a decadência de Roma, o imperador Justiniano compilou os códigos das Cidades Estado romanas e deu origem ao “Corpus Iuris Civilis”, que era a “síntese do que o direito romano havia produzido em seu período mais rico e sofisticado” (BOBBIO, 2023), com contribuições jurídicas que chegaram até nossos dias.

Por conseguinte, a queda de Roma implicou numa grande transição social e Histórica, pois a partir de então, a sociedade foi identificada como sociedade feudal: modelo de organização político-econômico e social, baseada na posse de terras: Os feudos. 

O modo de produção escravista é substituído pelo feudal: ao escravo sucede o servo, que goza de uma liberdade pessoal parcial, da Propriedade parcial dos meios de produção (instrumentos de trabalho, animais)  e de uma certa autonomia (Wolker, 2001, p.172)

Assim, os feudos eram porções de terras, posses do senhor feudal, que dominava relações de servidão para com os camponeses. Os camponeses ou vassalos, vivam na terra e da terra do seu senhor feudal, esta relação de servidão estava arbitrada por códigos próprios de cada feudo (Arruda, Piletti, 1997 ), no entanto foi marcada por grande controle e submissão que em geral, se revelava em pesados impostos pagos com a produção da terra. 

Ao descrever as relações sociais nos feudos, observamos em Arruda e Piletti (1997, p. 109), que por sistema de justiça, “havia dentre os impostos pagos pelos servos a “taxa de justiça””: Cobrada em caso de haver o servo, cometido infração que requeresse julgamento por tribunal. Sendo este, presidido pelo próprio senhor feudal ou por seu representante. 

Ainda no sistema feudal, o caráter laico do código de leis romano foi substituído pelo poder regulamentar da igreja Católica, sob o argumento de ser a igreja única intérprete das leis de Deus. Desse modo, a igreja romana legitimava o status de Sociedade Estamental (uma forma de controle social, na qual a posição do indivíduo está determinada pelo nascimento), sem possibilidade de mobilidade. E ainda, a própria igreja tornou-se rica donatária de terras, submetendo às leis canônicas inclusive os senhores feudais. Pois “O pensamento medieval e escolástico parte de um conceito teológico de natureza” (Ximenes, 2007 p. 3). Assim, a igreja defendia a existência de uma lei superior à vontade humana. 

Em análise, tamanha autoridade da igreja vinha regimentar vida e morte de cada sujeito, pois só se nascia a partir do batismo e só haveria descanso na morte, se sepultado no terreno sagrado dos cemitérios. Nesse período, foi instaurado o Tribunal da Santa inquisição, que conservou como principal modelo de pena os suplícios (SIQUEIRA, 200 p. 1), com a finalidade de punir os chamados hereges, sujeitos considerados contrários às regras e leis eclesiásticas.

Será conduzido ao lugar da execução, em camisão, pés descalços e com a cabeça coberta por um véu negro; será exposto, em um cadafalso, enquanto o meirinho levará para o povo a sentença condenatória e imediatamente executado (Foucalt, 1999, p.12-13).

É interessante destacar, que o rito de execução descrito na citação não enfatiza ou se quer revelar a condição de aprisionamento, isso demonstra que as prisões ainda eram somente locais de detenção de passagem, em que o condenado aguardava o cumprimento da pena. sendo os principais modelos de pena a morte ou suplício.

O suplício de exposição do condenado foi mantido na França até 1831, apesar das críticas violentas — “cena repugnante”, […]ficou a suspeita de que tal rito que dava um “fecho” ao crime mantinha com ele afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassando-o em selvageria, acostumando os espectadores a uma ferocidade […] fazendo o carrasco se parecer com criminoso, os juízes aos assassinos, invertendo no último momento os papeis, fazendo do supliciado um objeto de piedade e de admiração. A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal (Foucault, 1987, p.12-13).

Desse modo, depreende-se que as penas se tornaram cada vez mais crueis, tendo nos suplícios segundo o texto,  a forma de “punição exemplar”, para que a igreja exercesse o controle social pela coação e medo. 

Em análise, Foucault (1987) chamou tais ritos punitivos de “melancólica festa de punição” ou “espetáculo punitivo”, que só entraria em declínio na Europa no século XVIII em transição para o século XIX, quando houve o surgimento dos primeiros presídios ao longo da Europa. 

Mudava-se, tanto, mais do que o local de punição, mas a finalidade da pena, pois anteriormente, tratava-se de castigar exemplarmente para reprimir a ideia de desvios na sociedade de espectadores. Segundo Beccaria (1764), as penas da lei têm como função principal, a função preventiva; “pois se executadas à letra, cada cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, porque tal conhecimento poderá desviá-lo do crime”. Transmutando para   que a prisão carregasse finalidade de castigo em si mesma, o castigo pela privação de liberdade dos homens, pois a certeza de ser punido é que deveria desviar o homem do crime. 

CONCLUSÃO

Ao concluir este artigo, analisa-se que as prisões que podem ser observadas hoje, são frutos da continuidade histórico-social dos atos de punição aos delituosos. E ainda, acrescidos por novas experiências, como a DUDH que atrelou ao homem o direito natural à dignidade. 

Referência

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1Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Educação pela Faculdade Interamericana de Ciências Sociais – (FICS).
e-mail: vanessa.geografia.lobato@gmail.com