REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202412271737
Larissa Alves da Silva de Amorim
RESUMO
O objetivo principal do presente artigo consiste em analisar o benefício da inversão do ônus da prova previsto pelo Código de Defesa do Consumidor, com o intuito de conceder um maior equilíbrio entre o consumidor, que é a parte mais vulnerável e frágil da relação de consumo, e o fornecedor, que possui o maior conhecido técnico, jurídico e econômico. Como é notório, o ônus da prova é previsto pelo Código de Processo Civil e como regra geral, determinou que cabe ao autor comprovar os fatos constitutivos de seu direito e, por outro lado, cabe ao réu o ônus de comprovar os fatos impeditivos, modificativos e instintivos do direito do autor. Assim, essa regra só poderá ser diferente nos casos em que, por força de lei, o ônus poderá ser invertido, como é o caso do artigo 6º, VIII, do CDC, que traz essa possibilidade, mas apenas mediante preenchidos os requisitos: a verossimilhança das alegações e a hipossuficiência. Nesse sentido, o presente artigo busca explorar os princípios que norteiam a inversão do ônus da prova no CDC, seus principais requisitos e o momento em que será concedido o benefício à parte requerente.
Palavras-chaves: Direito do Consumidor. Inversão. Ônus da Prova. Processo Civil.
ABSTRACT
The main objective of this article is to analyze the benefit of reversing the burden of proof provided for by the Consumer Protection Code, with the aim of granting a greater balance between the consumer, who is the most vulnerable and fragile part of the consumer relationship, and the supplier, which has the greatest technical, legal and economic knowledge. As is well known, the burden of proof is provided for by the Code of Civil Procedure and, as a general rule, determined that it is up to the plaintiff to prove the constitutive facts of his right and, on the other hand, it is up to the defendant to prove the impeding, modifying facts and instinctive principles of copyright. Thus, this rule can only be different in cases where, by force of law, the burden can be reversed, as is the case of article 6, VIII, of the CDC, which brings this possibility, but only if the requirements are met: verisimilitude of the allegations and hyposufficiency. In this sense, this article seeks to explore the principles that guide the reversal of the burden of proof in the CDC, its main requirements and the moment in which the benefit will be granted to the requesting party.
Keywords: Consumer Law. Inversion. Burden of Proof. Civil Procedure.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objeto de pesquisa a possibilidade de inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor (CDC) como forma de o legislador conceder à parte que carrega a maior vulnerabilidade na relação de consumo, que é o consumidor, visando, assim, garantir ao consumidor uma demanda mais justa e equilibrada perante o fornecedor, que possui, na maioria dos casos, o mais amplo conhecimento técnico, jurídico e econômico no processo.
Para tanto, a metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica, utilizando-se da análise de livros e artigos científicos para a construção de uma conclusão aprofundado sobre o benefício da inversão do ônus da prova ao consumidor, os principais princípios que norteiam a inversão do ônus no CDC e sobre o melhor momento para decidir sobre a concessão do benefício no processo.
Assim, no primeiro capítulo desenvolve o conceito do onus probandi e a origem da palavra, a fim de esclarecer o significado do ônus da prova e, via de consequência, a inversão desse ônus. Abordei, também, os requisitos necessários para a concessão da inversão do ônus da prova no processo: a verossimilhança das alegações e a hipossuficiência da parte requerente.
Ademais, no segundo capítulo disserta a respeito dos princípios consumeristas que norteiam a inversão do ônus da prova, que é, principalmente, o princípio da vulnerabilidade do consumidor, e como esses princípios são essenciais para garantir os direitos fundamentais e coletivos previstos pela Constituição Federal, para propiciar ao consumidor um processo justo.
Por fim, no terceiro capítulo, discorro sobre o momento mais adequado para a análise da possibilidade de inversão do ônus da prova, e das correntes existentes na jurisprudência e nas doutrinas sobre essa discussão, a fim de chegar à conclusão de que, o melhor momento para tanto, seria no despacho inicial ou na decisão saneadora, visando afastar a decisão surpresa no processo.
1. A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Para entender o que é a inversão do ônus da prova, inicialmente, se faz necessário analisar a origem e aspectos do onus probandi.
A palavra “ônus” é advinda do latim onus e significa encargo ou obrigação atribuída a um sujeito; a palavra “prova” também possui origem do latim e significa “aquilo que atesta a veracidade ou a autenticidade de algo”. Portanto, onus probandi ou ônus da prova, quer dizer aquele que possui o ônus de provar algo.1
Sobre o tema, dispõe o artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor (CDC):
Art. 6°. São direitos básicos do consumidor:
VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências.
É notória a atenção do legislador com a parte mais frágil da relação de consumo, que é o consumidor. Todavia, em que pese a sua prudência em relação à fragilidade do consumidor, impende-se destacar que o benefício da inversão do ônus da prova possui requisitos específicos e não pode ser concedido em todas as demandas que envolvam consumidor e fornecedor.
Isso porque, ainda que a parte se qualifique no conceito de consumidor, a inversão do ônus da prova não é efeito automático e está sujeita a comprovação de verossimilhança das alegações e de hipossuficiência probatória daquele que a arguiu.
Isto é dizer que é necessário que o contexto fático seja plausível, e que a distribuição da prova de maneira estática seja impossível ao requerente.
Nesse contexto, o doutrinador José Miguel Garcia Medina2 afirma que “os requisitos em cada um dos diplomas não se cumulam, nem se sobrepõem. São hipóteses diferentes a autorizar a atribuição, inversão ou transferência do ônus da prova”.
A hipossuficiência não está relacionada a questões financeiras, mas também quanto ao conhecimento técnicos, jurídicos e econômicos. É o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. COMPRA E VENDA DE CAMINHÃO. DEFEITO NOS MOTORES. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC/73. RELAÇÃO DE CONSUMO. INEXISTÊNCIA. TEORIA FINALISTA. MITIGAÇÃO. NÃO ENQUADRAMENTO. VULNERABILIDADE DA PESSOA JURÍDICA CONTRATANTE AFASTADA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. REEXAME DE FATOS E PROVAS. SÚMULA 7/STJ. 1. A Corte de origem dirimiu a matéria submetida à sua apreciação, manifestando-se expressamente acerca dos temas necessários à integral solução da lide. Dessa forma, não se verifica ofensa ao artigo 535 do CPC/73. 2. Nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o Código de Defesa do Consumidor não se aplica no caso em que o produto ou serviço é contratado para implementação de atividade econômica, já que não estaria configurado o destinatário final da relação de consumo (teoria finalista ou subjetiva). Contudo, tem admitido o abrandamento da regra quando ficar demonstrada a condição de hipossuficiência técnica, jurídica ou econômica da pessoa jurídica, autorizando, excepcionalmente, a aplicação das normas do CDC (teoria finalista mitigada). 3. No caso, o Tribunal de origem, com base no acervo fático-probatório dos autos, conclui que a hipótese não comporta exceção, argumentando que “o fato de já atuar no mercado por longo período de tempo, bem como levando-se em consideração a expressividade de sua frota de veículos, não há como prevalecer a presunção de vulnerabilidade da empresa, que possui experiência mercadológica suficiente ao exercício de seus direitos, não se revelando hipossuficiente ao ponto de vista de seus parceiros comerciais”. A modificação de tal entendimento demandaria o revolvimento de suporte fático-probatório dos autos, o que é inviável em sede de recurso especial, a teor da Súmula 7/STJ. 4. A incidência da Súmula 7/STJ também é óbice para o exame do dissídio jurisprudencial, impedindo o conhecimento do recurso pela alínea c do permissivo constitucional. 5. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ – AgInt no AREsp: 1083962 ES 2017/0081332-0, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 11/06/2019, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/06/2019)
No que concerne a verossimilhança, é importante destacar que o requisito advém, principalmente, do princípio da razoabilidade, a fim de que o magistrado utiliza se do bom senso na hora da sua decisão, pois a verossimilhança está ligada, principalmente, à plausividade dos fatos narrados pela parte que arguiu na demanda a inversão do ônus da prova.
Nesse sentido, é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EMPRÉSTIMOS CONSIGNADOS. QUITAÇÃO ANTECIPADA. ABATIMENTO DEMONSTRADO. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE VEROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES. REEXAME DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. A Corte de origem, analisando o acervo fático-probatório dos autos, concluiu que houve abatimento da dívida decorrente da quitação antecipada e que o recorrente não trouxe nenhum elemento que gere dúvida sobre o referido abatimento, não havendo falar em danos materiais e morais indenizáveis. A pretensão de alterar tal entendimento demandaria o reexame de matéria fático-probatória, inviável em sede de recurso especial, nos termos da Súmula 7 do STJ. 2. A aplicação da inversão do ônus da prova, prevista no art. 6º, VIII, do CDC, não é automática, cabendo ao magistrado analisar as condições de verossimilhança das alegações e de hipossuficiência, conforme o conjunto fático-probatório dos autos, cujo reexame é vedado na via estreita do recurso especial (Súmula 7/STJ). 3. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ – AgInt no AREsp: 1468968 RJ 2019/0074639-0, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 07/11/2019, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/12/2019)
Portanto, além dos requisitos voltados para a condição técnica e econômica da parte, deve o magistrado analisar o seu convencimento diante da narrativa da parte, a fim de que decida por favorecer a parte com o benefício da inversão do ônus da prova.
2. PRINCÍPIOS CONSUMERISTAS QUE NORTEIAM A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Primeiramente, como é notório, a defesa do consumidor está entre os direitos e garantias individuais e coletivos da Constituição Federal, o que eleva os consumidores à categoria de titulares de direitos fundamentais, eis que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”3.
Isto é, assim como os demais diplomas legais que existem dentro do ordenamento jurídico brasileiro, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) está adequadamente fundamentado em princípios constitucionais e nos direitos fundamentais.
Assim, em atenção às garantias constitucionais aos consumidores, tem-se o instituto da inversão do ônus da prova, que decorre, principalmente, do princípio da vulnerabilidade do consumidor.
De acordo com Carlos Alberto Bittar4, a inversão do ônus da prova se trata “[…] de ação tendente a instruir, ilegitimamente, o consumidor, a respeito de bens ou serviços oferecidos, condicionando o seu comportamento para a respectiva aquisição ou fruição; daí por que se desloca para o patrocinador o ônus da prova da veracidade e da correção da informação ou da comunicação publicitária.”
A inversão do ônus da prova no CDC é prevista pelo artigo 6º, VIII5 e possui como finalidade a facilitação da defesa do consumidor perante o judiciário, pois, na regra geral trazida pelo Código de Processo Civil (CPC), no artigo 373, I, “o ônus da prova incumbe ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito”.
Todavia, observado o contraditório e a ampla defesa, o Juiz pode inverter o ônus da prova, se reconhecida a vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor diante da capacidade técnica e econômica do fornecedor, razão pela qual a regra geral prevista pelo CPC é flexibilizada pelo instrumento trazido pelo CDC, a fim de que seja criada uma igualdade entre as partes no plano jurídico.
Quando se fala em CDC, é evidente a tentativa do legislador infraconstitucional na busca do equilíbrio entre as partes, visando alcançar um julgamento justo para a lide em questão. Com efeito, no empenho de alcançar essa equidade real entre o consumidor e o fornecedor na demanda, o legislador chamou a atenção do magistrado para a vulnerabilidade do consumidor, que, por presunção, sempre está presente nas relações de consumo.
Segundo o entendimento de Gilson Martins Mendonça6, é imprescindível compreender o objetivo do princípio da vulnerabilidade do consumidor, pois isto é dizer que o lugar por ele ocupado é mais frágil e suscetível, se comparado a posição do fornecedor. No mais, no entendimento do autor, a vulnerabilidade é um conceito material que está intrínseca em toda parte consumidora, independentemente das condições sociais, culturais e econômicas.
Não obstante, o doutrinador Flávio Tartuce7 Entende-se que o legislador possui intenção de atribuir ao consumidor uma condição de vulnerabilidade na relação jurídica de consumo e, diante disso, não haveria como afastar a posição desfavorável do consumidor frente ao fornecedor, ainda mais se forem levadas em pauta o contexto histórico das relações jurídicas e comerciais.
É certo que, ao se falar em vulnerabilidade do consumidor, estamos diante de dois aspectos: técnico e econômico.
Nesse sentido, a autora Edneia Freitas Gomes Bisinotto8 declarou que “[…]o consumidor é o elemento mais fraco na relação de consumo, pois fica à mercê do fornecedor, que detém o poder econômico, ante o pleno domínio técnico e econômico”.
A vulnerabilidade técnica do consumidor parte do entendimento do monopólio do fornecedor. Isto é, em termos de técnica sobre o objeto – produto ou serviço – é evidente que o fornecedor está muito à frente do consumidor, eis que carrega consigo o poder de escolha da maneira de produção e, via de consequência, o consumidor não detém qualquer poder de escolha, além daquilo que já está produzido e é oferecido no mercado.
No que concerne ao aspecto econômico, está ligado à maior capacidade econômica do fornecedor em relação ao consumidor, tendo em vista que, em sua maioria, os fornecedores são pessoas jurídicas, dotadas de ampla condição financeira.
E não é sem razão que o artigo 48 do CDC, em decorrência da fragilidade do consumidor perante o fornecedor, denominou tecnicamente a sua vulnerabilidade. Senão veja-se:
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)
I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;
Como se vê, o CDC possui a precaução em proteger o sujeito considerado mais fraco da relação de consumo, que é o consumidor, e a fim de propiciar uma defesa mais justa e equilibrada dos interesses da parte mais vulnerável da lide, a lei estabeleceu determinados benefícios processuais, como é o caso da inversão do ônus da prova – artigo 6º, VIII, do CDC; a vedação da denunciação da lide como regra geral – artigo 13, parágrafo único, do CDC; a possibilidade de ajuizar a demanda no foro do domicílio do consumidor – artigo 101, I, do CDC; e entre muitos outros que diferem das regras gerais do CPC.
E é em atenção à proteção da vulnerabilidade do consumidor que o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo, inclusive, pela ampliação do conceito de consumidor, como é o caso dos julgados in verbis:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INVERSÃO. ÔNUS DA PROVA. REQUISITOS. INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. PESSOA JURÍDICA. TEORIA FINALISTA. MITIGAÇÃO. VULNERABILIDADE. REEXAME DE PROVAS. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. O Superior Tribunal de Justiça firmou posicionamento no sentido de que a teoria finalista deve ser mitigada nos casos em que a pessoa física ou jurídica, embora não se enquadre nas categorias de fornecedor ou destinatário final do produto, apresenta-se em estado de vulnerabilidade ou hipossuficiência técnica, autorizando a aplicação das normas previstas no Código de Defesa do Consumidor. Precedentes. 3. Na hipótese, rever o entendimento do tribunal de origem, que, com base nas provas carreadas aos autos, concluiu pela caracterização da vulnerabilidade do adquirente e pelo preenchimento dos requisitos para inversão do ônus da prova, demandaria o reexame de fatos e provas, procedimento inviável em recurso especial, a teor do disposto na Súmula nº 7 /STJ. 4. Agravo interno não provido. (STJ – AgInt no AREsp: 1856105 RJ 2021/0073793-9, Data de Julgamento: 02/05/2022, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/05/2022)
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE CAMINHÃO. INCIDÊNCIA DO CDC. TEORIA FINALISTA. NÃO INCIDÊNCIA. UTILIZAÇÃO DO BEM NAS ATIVIDADES EMPRESARIAIS. REEXAME DE PROVAS. PRESCINDIBILIDADE. AGRAVO DESPROVIDO. 1. A jurisprudência desta Corte Superior tem ampliado o conceito de consumidor e adotou o definido pela Teoria Finalista Mista, ou seja, consumidor é todo aquele que possua vulnerabilidade em relação ao fornecedor, seja pessoa física ou jurídica, mesmo que não seja tecnicamente a destinatária final do produto ou serviço, mas se apresenta em situação de fragilidade. 2. Na hipótese dos autos, o produto não foi adquirido para atender a uma necessidade própria da pessoa jurídica, tendo, na verdade, se incorporado ao serviço prestado aos clientes, afastando-se, portanto, a incidência da legislação consumerista. 3. A questão controvertida foi decidida nos estritos limites do quadro fático delineado pelo acórdão recorrido, sendo prescindível o reexame de provas. 4. Agravo interno desprovido. (STJ – AgInt no REsp: 1719344 RO 2018/0012005-4, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 08/05/2018, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/05/2018)
Portanto, resta clarividente a atenção do legislador no que concerne à fragilidade do consumidor, visando garantir os direitos fundamentais coletivos e individuais previstos pela Constituição Federal e, consequentemente, possibilitar ao consumidor, ainda que em situação de vulnerabilidade frente ao fornecedor, uma resolução de conflito justa e baseada nos princípios constitucionais.
3. O MOMENTO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA
Conforme dissertado alhures, o legislador infraconstitucional tentou propiciar ao consumidor, de diversas formas, uma defesa equilibrada e justa, mesmo sendo a parte mais frágil da relação de consumo.
Para tanto, trouxe em lei variados benefícios visando equilibrar o conhecimento técnico, jurídico e econômico entre o consumidor e o fornecedor.
Entretanto, o legislador no CDC foi omisso quanto ao momento para a inversão do ônus da prova e é sobre esse tema que há numerosas discussão tanto na jurisprudência, quanto nas doutrinas, o que gerou três correntes sobre o momento ideal para falar sobre o ônus da prova: no recebimento da petição inicial, na decisão saneadora e na sentença.
A corrente que entende que a inversão do ônus da prova deve ocorrer no recebimento da petição inicial é liderada pela doutrinado Tania Liz Tizzoni Nogueira9, pois “o autor consumidor deverá já na inicial requerer a inversão do ônus e, desta forma a fase processual em que o juiz deverá se manifestar sobre a questão será no ato do primeiro despacho, que não se trata de mero despacho determinante da citação, mas de decisão interlocutória, passível, portanto, de recurso de agravo. Tal proceder irá propiciar a defesa dos direitos do consumidor de forma ampla, de acordo com o espírito do CDC, uma vez que em não sendo concedida a inversão poderá o consumidor agravar a decisão interlocutória, e ser então revista a decisão”.
A segunda corrente é acompanhada por nomes como José Carlos Barbosa Moreira, Teresa Arruda Alvim e Humberto Theodoro Júnior, que acreditam que o momento adequado para tratar sobre a inversão do ônus da prova seria na decisão saneadora, que é quando o magistrado decide que devem ser resolvidas as questões processuais pendentes e determinar a providências probatória, antes de dar prosseguimento ao julgamento.
A terceira corrente, defendida por nomes como Nelson Nery Júnior e Ada Pellegrini Grinover, sustenta que a inversão do ônus da prova deve ser decidida quando for prolatada a sentença, pois “são regras de julgamento, competindo ao juiz inverter o ônus da prova após o término da instrução e por ocasião em que o juiz for proferir a sentença.”10
O Código de Processo Civil, com o intuito de colocar fim à quaisquer dúvidas sobre o momento da análise da inversão do ônus da prova, determinou que deverá ser realizada no saneamento do processo:
Art. 357. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo:
III – definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373;
Entretanto, em que pese haja determinação expressa nesse sentido, muito se vê nos Tribunais a aplicação da terceira corrente com a determinação de inversão do ônus da prova quando proferida a sentença pelo magistrado.
Portanto, analisando o entendimento das três correntes, chega-se à conclusão de que a mais adequada é a análise da possibilidade de inversão do ônus da prova logo após o recebimento da petição inicial ou, ainda, na decisão saneadora do processo, em atenção ao princípio constitucional da vedação a decisão surpresa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão que norteou a presente pesquisa diz respeito à possibilidade de inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor como forma de equilibrar uma demanda que envolva relação de consumo entre o consumidor, que é a parte mais vulnerável do processo, e o fornecedor que, consequentemente, é a parte que possui o maior conhecimento técnico e jurídico, e melhor condição econômica se comparado ao consumidor.
Assim, como se sabe, o artigo 373, I, do Código de Processo Civil prevê as regras do ônus da prova em um processo judicial, de modo que o autor possui o ônus de provar os fatos constitutivos de seu direito, e o réu de comprovar os fatos impeditivos, modificativos e extintivos do direito do autor.
Entretanto, em atenção a condição de fragilidade do consumidor perante o fornecedor, a norma acima mencionada foi flexibilizada pelo Código de Defesa do Consumidor, quando em seu artigo 6º, VIII, trouxe a possibilidade de inverter o ônus da prova da forma prevista no Código de Processo Civil, a critério do juiz e mediante o preenchimento dos requisitos legais para tanto.
Nesse sentido, se o magistrado entender que houve a verossimilhança das alegações do requerente da inversão do ônus, bem como que há a sua hipossuficiência – que abrange a técnica, informação, jurídica, financeira e entre muitas outras –, o ônus da prova poderá ser invertido e, assim, o réu deverá, além de comprovar os fatos impeditivos, modificativos e extintivos do direito do autor, provar, também, os fatos constitutivos do seu direito.
De acordo com a regra trazida pelo Código de Processo Civil, no seu artigo 357, III, o juiz deverá decidir pela inversão do ônus da prova, se for o caso, quando realizar o saneamento do processo. Todavia, conforme demonstrado, mesmo com a previsão expressa em lei, existem Tribunais que optam pela decisão no despacho inicial, ou, ainda, quando proferida a sentença.
Por fim, o desenvolvimento do presente estudo proporciona o entendimento da benesse da inversão do ônus e qual a intenção do legislador infraconstitucional em criá-la e, consoante ao demonstrado, a possibilidade de inversão do ônus da prova possui, principalmente, o objetivo de propiciar uma defesa equitativa ao consumidor e, via de consequência, garantir a efetividade dos direitos individuais e coletivos previstos pelos artigos 5º, XXXII e 170, V, da Constituição Federal.
1NOGUEIRA, Tania Lis Tizzoni. Direitos Básicos do Consumidor: A Facilitação da Defesa dos Consumidores e a Inversão do Ônus da Prova. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 10, p. 53, abr./jun. 1994.
2MEDINA, José Miguel Garcia. Direito Processual Civil Moderno. 2 ed. São Paulo: RT, 2016.
3Art. 5º XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;
4BITTAR, Carlos Alberto. Direitos do consumidor: Código de Defesa do Consumidor. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
5Art. 6º CDC. São direitos básicos do consumidor: VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;
6MENDONÇA, Gilson Martins. O princípio da vulnerabilidade e as técnicas de neuromarketing: profundando o consumo como vontade irrefletida. ScientiaIuris,v. 18, n. 01, p. 135. Julho de 2014.
7TARTUCE, Flávio. Impactos do novo CPC no Direito Civil. São Paulo: Método,2015.
8BISINOTTO, Edneia Freitas Gomes. Breves considerações sobre o Código de Defesa do Consumidor. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 104, set 2012. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11906>. Acesso em: 09 dez. 2022.
9NOGUEIRA, Tania Lis Tizzoni. Direitos Básicos do Consumidor: A Facilitação da Defesa dos Consumidores e a Inversão do Ônus da Prova. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 10, p. 53, abr./jun. 1994.
10SOUZA, Miriam de Almeida. A Política legislativa do Consumidor no Direito Comparado. Belo Horizonte: Edições Ciência Jurídica, 1996
REFERÊNCIAS
BESSA, Leonardo Roscoe; LEITE, Ricardo Rocha. A inversão do ônus da prova e a Teoria da Distribuição Dinâmica: semelhanças e incompatibilidades. Revista Brasileira de Políticas Públicas. Volume 6. Nº 3. Distrito Federal, 2016.
BISINOTTO, Edneia Freitas Gomes. Breves considerações sobre o Código de Defesa do Consumidor. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 104, set 2012. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11906>. Acesso em: 09 dez. 2022.
BITTAR, Carlos Alberto. Direitos do consumidor: Código de Defesa do Consumidor. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Brasília, DF, Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm>. Acesso em: 10 dez. 2022.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Brasília, DF, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 10 dez. 2022.
MAIMONE, Flávio Caetano de Paula. Inversão do ônus da prova é uma facilitação da defesa do consumidor. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2021-jul-21/garantias-consumo-inversao-onus-prova-facilitacao-defesa-consumidor>. Acesso em: 09 dez. 2022.
MEDINA, José Miguel Garcia. Direito Processual Civil Moderno. 2 ed. São Paulo: RT, 2016.
MENDONÇA, Gilson Martins. O princípio da vulnerabilidade e as técnicas de neuromarketing: profundando o consumo como vontade irrefletida. ScientiaIuris, v. 18, n. 01, p. 135.
NOGUEIRA, Tania Lis Tizzoni. Direitos Básicos do Consumidor: A Facilitação da Defesa dos Consumidores e a Inversão do Ônus da Prova. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 10, p. 53.
RIZZI, Ana Carolina. A inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: < https://www.faef.br/userfiles/files/28%20-%20A%20INVERSAO%20DO%20ONUS%20DA%20PROVA%20NO%20CODIGO%20DE%20DEFESA%20DO.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2022.
SOARES, Leandro Sader. A inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: < https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/9015/A-inversao-do-onus-da-prova-no-Codigo-de-Defesa-do-Consumidor>. Acesso em: 10 dez. 2022.
SOUZA, Miriam de Almeida. A Política legislativa do Consumidor no Direito Comparado. Belo Horizonte: Edições Ciência Jurídica, 1996
TARTUCE, Flávio. Impactos do novo CPC no Direito Civil. São Paulo: Método, 2015.