SÍNDROME DE BOERHAAVE E CHOQUE SÉPTICO REFRATÁRIO POR MEDIASTINITE: RELATO DE CASO E REVISÃO DE LITERATURA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202412242359


Jamilly Rebouças Demosthenes Marques1; Messias Froes da Silva Junior2; Déborah Gomes Bellei1; Geovane Souza Pereira1; Giovanna Lamarão Lima1; Juscimar Carneiro Nunes3; Wilson de Oliveira Filho4.


RESUMO

A síndrome de Boerhaave é uma condição clínica rara e potencialmente fatal, que consiste na ruptura do esôfago após esforço, usualmente ocasionado por aumento súbito da pressão intraesofágica combinado com pressão intratorácica negativa. A manifestação clínica depende da localização da perfuração, e a tríade clássica de Mackler pode não estar presente, acarretando diagnóstico tardio e pior desfecho. Frequentemente, a perfuração pode causar extravasamento de conteúdo gástrico para a cavidade mediastinal, provocando mediastinite química, infecção bacteriana e necrose mediastinal, ou ainda para a cavidade pleural. O presente relato descreve um caso de síndrome de Boerhaave complicada. Paciente idoso, etilista e tabagista, admitido na unidade hospitalar apresentando vômitos incoercíveis, evoluiu abruptamente com dor abdomino-torácica, desconforto respiratório e hipotensão. Ao exame físico apresentava sinais de choque circulatório e abdome agudo. Exames complementares evidenciaram laceração extensa de mucosa esofágica, pneumomediastino e derrame pleural, sendo indicada laparotomia exploradora. O paciente foi submetido à tratamento cirúrgico precoce e transferido para unidade de terapia intensiva apresentando quadro de choque séptico refratário. Evoluiu com melhora progressiva e reversão do choque refratário no 4º dia de pós-operatório, recebendo alta hospitalar no 15° dia de internação. No presente relato de caso, o manejo cirúrgico precoce associado ao suporte intensivo adequado nas primeiras 24 horas, contribuíram para o sucesso do tratamento, apesar da alta taxa de mortalidade relacionada à síndrome.

Palavras-chave: Perfuração Esofágica. Mediastinite. Cuidados Críticos.

INTRODUÇÃO

Descrita pela primeira vez em 1724, por Herman Boerhaave, a síndrome de Boerhaave é uma condição clínica rara, com altas taxas de morbimortalidade, e fatal na ausência de tratamento adequado(VIDARSDOTTI, 2010), que consiste na ruptura espontânea do esôfago após esforço, usualmente ocasionado por aumento súbito da pressão intraesofágica combinado com pressão intratorácica negativa, como por exemplo, durante episódios eméticos (MOTA, 2007).

A manifestação clínica é variável, dependendo da localização da perfuração: cervical, torácica ou abdominal (McGOVERN, 1991; WILSON, 1971) e a tríade clássica de Mackler (vômitos, dor torácica e enfisema subcutâneo) pode não estar presente, o que muitas vezes leva ao diagnóstico tardio, resultando em pior desfecho (GODINHO, 2012). Frequentemente, a perfuração esofágica envolve a face póstero-lateral esquerda do esôfago intratorácico distal, e pode se estender por vários centímetros, resultando em extravasamento de conteúdo gástrico para a cavidade mediastinal, ocasionando mediastinite química, infecção bacteriana e necrose mediastinal; a ruptura da pleura subjacente pode resultar em derrame pleural (SAHA, 2007).

O presente estudo tem o objetivo de descrever um caso de ruptura esofágica espontânea pós-emética complicada com mediastinite química necrosante, e revisar os aspectos clínicos-cirúrgicos mais atuais disponíveis na literatura vigente sobre a síndrome.

CASO CLÍNICO

Paciente A.R.D.S., 64 anos, com história de etilismo e tabagismo crônico, sem outras comorbidades conhecidas, foi inicialmente admitido na unidade hospitalar apresentando queixa de náuseas e vômitos incoercíveis com início no dia anterior, que evoluiu para quadro agudo de dor abdominal e torácica, além de desconforto respiratório, sendo posteriormente encaminhado para sala de emergência para estabilização devido a hipotensão, alteração eletrocardiográfica (infradesnivelamento de segmento ST em parede inferior) e piora do padrão respiratório. A gasometria arterial evidenciava acidose metabólica compensada.

Ao exame físico, o paciente encontrava-se taquidispneico, com sinais de má perfusão (pele fria e tempo de enchimento capilar lentificado), abdome tenso, difusamente doloroso à palpação, principalmente em quadrantes superiores, com sinais de irritação peritoneal. Realizado avaliação complementar com ultrassonografia à beira leito, na qual foi identificado apenas padrão B pulmonar, broncograma dinâmico à direita, e ausência de líquido nos espaços hepatorrenal, esplenorrenal, e pélvico.

Foi aventada hipótese de abdome agudo perfurativo por úlcera péptica, pancreatite aguda, isquemia mesentérica, e síndrome coronariana aguda, dessa forma, realizada propedêutica complementar com eletrocardiograma seriado, tomografia de abdome e tórax, e exames laboratoriais.

A tomografia evidenciou pneumomediastino, enfisema subcutâneo cervical, consolidação em base pulmonar direita e derrame pleural, além de ausência de pneumoperitôneo. O ECG seriado juntamente com as enzimas cardíacas normais descartaram hipótese de síndrome coronariana aguda. No mesmo dia da admissão, foi realizada ainda endoscopia digestiva alta de emergência, onde foi descrita lesão lacerante extensa de mucosa, de aproximadamente 3 cm de extensão, até a transição esôfago-gástrica, e fazendo comunicação com a traqueia, sendo indicado abordagem cirúrgica de urgência.

O paciente foi submetido à laparotomia com esofagorrafia em dois planos, confecção de válvula antirrefluxo parcial Dor, para confecção de um patch cirúrgico, promovendo um reforço ao reparo do esôfago; toracotomia póstero-lateral direita com desbridamento de área desvitalizada de mediastino posterior e irrigação da cavidade pleural com drenagem fechada de tórax (DFT) bilateral.

No pós-operatório imediato foi transferido para unidade de terapia intensiva (UTI) para seguimento clínico. Admitido em leito de UTI em estado grave, sedado, intubado, hemodinamicamente instável, em uso de noradrenalina 0,65 mcg/kg/min, com necessidade de adição de vasopressina 0,04 UI/min. Escores admissionais: APACHE II: 11 pontos (7% de mortalidade) e SOFA: 7 pontos (21,5% de mortalidade). Recebeu tratamento para choque séptico refratário por mediastinite necrosante secundária à síndrome de Boerhaave.

Evoluiu com melhora progressiva, apresentando reversão do quadro de choque séptico refratário no 4º DPO (dia de pós-operatório); realizado desmame ventilatório, procedido com extubação no 5º DPO com sucesso, e retirado DFT esquerdo. No 7º DPO foi observado reexpansão pulmonar e retirado DFT direito, no entanto na tomografia de controle, no dia seguinte, observado regressão do pneumotórax em ambos hemitórax, sendo realizada nova drenagem bilateral com cateter Pigtail. Manteve melhora clínica significativa, recebendo alta da UTI no 13° DPO e alta hospitalar no 15° DPO.

DISCUSSÃO E REVISÃO DE LITERATURA

A síndrome de Boerhaave é uma condição clínica rara, potencialmente fataI e emergencial, devido a sua evolução desfavorável, quando não diagnosticada e tratada precocemente(AZEVEDO FILHO et al, 2009; BRINSTER, 2004). A ruptura esofágica espontânea é causada por um aumento súbito da pressão intra-esofágica, levando a uma ruptura transmural completa através do esôfago. A ruptura ocorre mais comumente na parede póstero-lateral esquerda do terço distal do esôfago com extensão para a cavidade pleural esquerda (BRINSTER, 2004; TURNER, 2023).

Os sintomas consistem em vômitos, dor torácica baixa e enfisema subcutâneo. O médico assistente deve suspeitar da síndrome de Boerhaave quando um paciente apresenta dor torácica retroesternal com ou sem enfisema subcutâneo quando associado à ingestão pesada de álcool e vômitos graves ou repetidos. (LANGER, 2018). Sua apresentação clínica, em muitos casos inespecífica e até um terço dos paciente pode não apresentar sintomas, que dificulta o diagnóstico, tendo em vista que deve ser realizado diagnóstico diferencial dentre todas as causas de dor toracoabdominal, portanto, a utilização de métodos de imagem tem grande sensibilidade para detecção da doença, notadamente a radiografia convencional, o esofagograma, a tomografia computadorizada de tórax e a endoscopia digestiva alta(BARCELOS, 2020).

Atualmente, as opções terapêuticas para a síndrome de boerhaave, incluem, a abordagem cirúrgica, a endoscópica e a conservadora (WANG, 2021). A via cirúrgica é a mais frequentemente utilizada, e consiste no reparo da lesão primária e dos tecidos subjacentes afetados, podendo ser necessária drenagem de tórax. A terapia endoscópica consiste na utilização de stents esofágicos, eficaz apenas em pacientes diagnosticados precocemente, estáveis e com poucas complicações. Atualmente, novas abordagens menos invasivas, como a terapia endoscópicas à vacuo, também têm se mostrado promissoras no tratamento de perfurações esofágicas como alternativa à cirurgia tradicional (WANNHOFF, 2024). Já a abordagem conservadora trata-se da interrupção da ingesta oral, administração de fluidos, nutrição enteral ou parenteral, antibioticoterapia e uso de beta-bloqueadores, além da drenagem de abscessos ou efusõesconforme necessário (FIRME, 2018), porém tal qual a terapia endoscópica, essa abordagem está reservada para pacientes clinicamente estáveis, com diagnóstico precoce, e com conteúdo esofágico bloqueado no mediastino ou loculado na cavidade pleural(SHAFFER, 1992).

Estudos posteriores evidenciaram que o reparo cirúrgico primário, com ou sem reforço, é a opção de tratamento mais bem-sucedida no manejo da perfuração esofágica e reduz a mortalidade em 50% a 70% em comparação com outras terapias intervencionistas(BRINSTER, 2004).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caso relatado acima teve desfecho favorável, o que está diretamente relacionado a abordagem adequada e precoce, dentro de um período aproximado de 24 horas, a partir do início do quadro clínico, com manejo cirúrgico precoce até a internação em unidade de terapia intensiva, apesar de tratar-se de paciente idoso e das graves complicações, consequentes da síndrome, durante a internação.

Concluímos que o diagnóstico precoce e o tratamento cirúrgico adequado são essenciais para um bom resultado em pacientes com ruptura esofágica. Enfatizamos ainda a importância dos cuidados intensivos, particularmente nas fases iniciais de sua gestão.

FIGURAS

Figura 1. Intraoperatório de esofagorrafia e drenagem de tórax.

Figura 2. Tomografia de controle no 13º DPO de esofagorrafia e drenagem de tórax.

Figura 3. Radiografia de controle no 1º DPO.

Figura 4. Radiografia de controle no 4º e 6º DPO.

Figura 5. Radiografia de controle no 5º e 9º DPO.

REFERÊNCIAS

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    1Médico Residente do programa de Medicina Intensiva do Hospital Universitário Getúlio Vargas da Universidade Federal do Amazonas. Manaus-Amazonas, Brasil.
    2Médico Cirurgião Torácico professor Mestrando da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Amazonas. Manaus-Amazonas, Brasil.
    3Médico Anestesiologista professor Doutor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Amazonas. Manaus-Amazonas, Brasil.
    4Médico Intensivista supervisor do programa de Medicina Intensiva do Hospital Universitário Getúlio Vargas da Universidade Federal do Amazonas. Manaus-Amazonas, Brasil.