OS SABERES DE EXPERIÊNCIA: INTERSECÇÕES ENTRE O PROFESSOR E A PRÁXIS DO EDUCADOR DO AEE

EXPERIENTIAL KNOWLEDGE: INTERSECTIONS BETWEEN TEACHERS AND THE PRAXIS OF EDUCATORS IN SPECIALIZED EDUCATIONAL SUPPORT (AEE)

SABERES DE EXPERIENCIA: INTERSECCIONES ENTRE EL PROFESORADO Y LA PRAXIS DEL EDUCADOR EN LA ATENCIÓN EDUCATIVA ESPECIALIZADA (AEE)

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202412100114


Estêvão Barbosa dos Santos1,
Marion Machado Cunha2


RESUMO

Este artigo, derivado da dissertação de mestrado intitulada “Os saberes de experiências na educação inclusiva escolar: a práxis do educador em cena pela história de vida no Atendimento Educacional Especializado”, aborda os saberes de experiência no contexto do Atendimento Educacional Especializado (AEE), utilizando uma abordagem qualitativa fundamentada na história de vida dos educadores. O objetivo é analisar como as vivências docentes contribuem para a construção de práticas pedagógicas inclusivas, críticas e emancipadoras. A investigação apoia-se em referenciais teóricos como Walter Benjamin (1987), Paulo Freire (1996), Maurice Tardif (2014) e István Mészáros (2002), articulando-os com as narrativas dos participantes. Os resultados indicam que os saberes de experiência emergem da interação entre a prática pedagógica e a reflexão crítica sobre as condições impostas pelo sistema educacional neoliberal, evidenciando-se como fundamentais na construção de uma práxis educativa comprometida com a inclusão e a transformação social. Conclui-se que esses saberes devem ser reconhecidos e valorizados como parte essencial na formação docente e na luta contra as exclusões sociais e educacionais, promovendo uma educação efetivamente inclusiva e historicamente contextualizada.

Palavras-chave: Saberes de experiência; Educação inclusiva; Atendimento Educacional Especializado; Práxis docente.

ABSTRACT

This article, derived from the master’s dissertation titled “The Knowledge of Experiences in Inclusive School Education: The Educator’s Praxis Through Life Stories in Specialized Educational Support (AEE),” explores the knowledge of experience within the context of Specialized Educational Support (AEE) through a qualitative approach based on educators’ life histories. The study aims to analyze how teaching experiences contribute to the construction of inclusive, critical, and emancipatory pedagogical practices. The investigation draws on theoretical frameworks such as Walter Benjamin (1987), Paulo Freire (1996), Maurice Tardif (2014), and István Mészáros (2002), integrating them with participants’ narratives. Findings indicate that knowledge of experience emerges from the interaction between pedagogical practice and critical reflection on the conditions imposed by the neoliberal educational system, highlighting its importance in constructing an educational praxis committed to inclusion and social transformation. It concludes that this knowledge should be recognized and valued as an essential component in teacher education and the fight against social and educational exclusions, fostering an effectively inclusive and historically contextualized education.

Keywords: Knowledge of experience; Inclusive education; Specialized Educational Support; Teaching praxis.

RESUMEN

Este artículo, derivado de la disertación de maestría titulada “Los Saberes de Experiencias en la Educación Inclusiva Escolar: La Praxis del Educador en Escena a Través de la Historia de Vida en la Atención Educativa Especializada (AEE),” examina los saberes de experiencia en el contexto de la Atención Educativa Especializada (AEE) utilizando un enfoque cualitativo basado en las historias de vida de los educadores. El objetivo es analizar cómo las vivencias docentes contribuyen a la construcción de prácticas pedagógicas inclusivas, críticas y emancipadoras. La investigación se sustenta en referentes teóricos como Walter Benjamin (1987), Paulo Freire (1996), Maurice Tardif (2014) e István Mészáros (2002), articulándolos con las narrativas de los participantes. Los resultados indican que los saberes de experiencia emergen de la interacción entre la práctica pedagógica y la reflexión crítica sobre las condiciones impuestas por el sistema educativo neoliberal, destacándose como fundamentales para construir una praxis educativa comprometida con la inclusión y la transformación social. Se concluye que estos saberes deben ser reconocidos y valorados como componentes esenciales en la formación docente y en la lucha contra las exclusiones sociales y educativas, promoviendo una educación efectivamente inclusiva y contextualizada históricamente.

Palabras clave: Saberes de experiencia; Educación inclusiva; Atención Educativa Especializada; Praxis docente.

Este artigo explora os desafios enfrentados por professores educadores no Atendimento Educacional Especializado (AEE), com foco nas relações entre teoria e prática na educação especial. No contexto de uma educação inclusiva, analisam-se as interações entre os saberes teóricos adquiridos na formação acadêmica e os saberes construídos a partir da experiência docente, enfatizando a práxis como elemento central na elaboração de práticas pedagógicas transformadoras. Além disso, o texto problematiza as implicações do ideário neoliberal na educação especial, destacando a importância de um olhar crítico para a inclusão escolar.

A prática educativa nesse âmbito, destaca-se pela sua singularidade, impondo aos professores a necessidade de uma reflexão crítica acerca da convergência entre os saberes adquiridos por meio da experiência profissional e os conhecimentos teóricos obtidos durante a formação acadêmica. Tal processo reflexivo é fundamental para a elaboração de uma prática pedagógica inclusiva, eficaz e alinhada aos princípios norteadores da educação especial, convocando um olhar atento para as nuances da inclusão sob a égide do neoliberalismo. A reflexão sobre as práticas pedagógicas, permeadas por experiências ricas e diversas, convida a um reconhecimento da complexidade da inclusão, em que cada vivência se configura como aprendizado essencial na construção de um ambiente educacional acolhedor e diversificado (Saviani, 1996).

A discrepância entre os conhecimentos teóricos e as realidades práticas constitui como um dos principais desafios para os educadores do AEE. Essa dicotomia exige um esforço contínuo na revisão das estratégias pedagógicas, com o objetivo de alinhá-las às necessidades específicas dos estudantes atendidos, garantindo uma prática mais eficaz e inclusiva.

Para refletir sobre os saberes advindos da experiência, recorremos à obra “Experiência e Pobreza” de Walter Benjamin (1987), que nos fornece uma poderosa metáfora para esta discussão. Benjamin, descreve a herança não como uma acumulação de bens, mas como o reconhecimento do valor do trabalho e do esforço humano. Essa concepção encontra eco significativo no contexto da educação inclusiva, onde o verdadeiro “tesouro” não reside em metodologias ou estratégias pedagógicas pré-definidas, mas sim, no engajamento contínuo e na reflexão dos educadores sobre sua prática com os estudantes.

Neste contexto, para entender os saberes de experiência no AEE, enfatizamos a necessidade de uma práxis que integre teoria e vivência de forma crítica e transformadora. A prática educativa especializada, vista sob essa perspectiva, não se limita à aplicação de técnicas, mas se afirma como um campo de luta e possibilidade, no qual o educador se engaja na construção de uma educação verdadeiramente inclusiva e emancipatória.

Dessa forma, é possível compreender que a verdadeira experiência está no fazer e no trabalho enquanto atividade da produção da vida material: a experiência é essencial para a apreciação e compreensão do trabalho para além do valor, tempo de trabalho.

Com base em Walter Benjamin (1987), percebemos que os saberes de experiência transcendem a simples acumulação de eventos ou conhecimento, não sendo uma progressão linear, mas um encontro transformador com a própria existência. Ele critica o que chama de “experiência mascarada”, a fachada inexpressiva do adulto que esconde um envolvimento genuíno com a vida. O autor também argumenta que a experiência constitui um modo de conhecimento da produção da vida, de narrativas de uma sabedoria vivida, que transcende conceitos ou fórmulas simples.

A experiência não reside na aprendizagem mecânica, mas em encontros vividos e vivenciados. Quando alguém conta uma história profunda, chocante ou deprimente, das façanhas da experiência, ou em outras palavras, que algo lhe aconteça ou lhe toque, a partir do tempo de vida apreendido. Pode lhe tocar ou não, mas as chances são maiores quando é contextualizado com o que lhe passa ou lhe toca.

Benjamin (1987), também, afirma que a experiência é um modo de conhecimento que se baseia na perspectiva do vivido pensado, sentido no movimento objetivo e objetivo de existir. Bondía (2002), por sua vez, defende que a experiência é uma forma de relação com o mundo que se abre à alteridade e à novidade.

Nesta direção, a experiência se constitui na organização de um conhecimento representativo, que se transmite de geração em geração, através da narração oral ou escrita. A experiência é algo que se vive, sente e se compartilha, não algo que se aprende de forma abstrata ou teórica. Para Bondía (2002), a experiência é uma forma de relação com o mundo, com os outros e consigo mesmo, que implica uma transformação do sujeito que a vive.

De forma geral, a experiência é algo que nos afeta, interpela e convida a pensar e agir de maneira diferente. Os saberes de experiência ocorrem de forma dialógica, criativa e transformadora, valorizando a narração, a relação e a prática como formas de conhecimento. Esses saberes não se entregam facilmente e não oferecem respostas prontas ou fáceis, mas propõem desafios e perguntas que estimulam o pensamento crítico e a busca pessoal.

Os saberes de experiência são uma forma de conhecimento construída na relação entre o sujeito e o mundo, envolvendo afeto, memória, imaginação e linguagem. É na intersecção entre a experiência vivida e a reflexão sobre ela que encontramos a possibilidade de transformação e aprendizado (Bondía, 2002).

Nossos achados indicam que os conhecimentos adquiridos pelos professores de AEE são construídos a partir da interação com estudantes, colegas, famílias, comunidade e das experiências pessoais desde a infância. Esses conhecimentos são fundamentais para o planejamento e a execução das atividades pedagógicas, bem como para as decisões e práticas nos espaços escolares. Além disso, são influenciados pelo contexto social, político e econômico, cujas relações são estruturadas, mas também estruturantes do sujeito que, ao fazer, transforma.

Da estrutura, referimo-nos ao mercado capitalista que dita o lugar social, de um modo de produzir para a atuação do valor expropriado do trabalho.

Do objeto de pesquisa, portanto, é fundamental apreender os processos contraditórios e que se produzem nas experiências quanto as definições para o professor enquanto sujeito para a escola de arqueações neoliberais e a do educador que se historiciza pela práxis.

Além disso, devemos criar/lutar por espaços de formação permanente pela práxis, pela atividade como constituição das relações mundo-homem (Freire, 1967), de formação de coletivo de experiências para crivarmos a educação especial na perspectiva de superar os limites que se impõem a vida dos sujeitos do mundo do trabalho.

 Assim essa reflexão sobre a natureza da experiência e seu papel na educação é fundamental para compreendermos a complexidade da inclusão escolar. A experiência não se limita ao que simplesmente ocorre externamente, mas também inclui o que nos toca internamente, envolvendo nossas emoções, percepções e conexões com o mundo ao nosso redor assim:

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça (Bondía, 2002. p. 21).

A citação de Bondía (2002) traz uma reflexão sobre o conceito de experiência, especialmente no contexto da educação inclusiva e da prática pedagógica no Atendimento Educacional Especializado (AEE). Ao considerar a experiência como aquilo que “nos passa, o que nos acontece, o que nos toca”. O autor destaca a dimensão pessoal e transformadora das experiências, contrastando com a passividade de simplesmente observar eventos que “se passam”. Esta reflexão é particularmente relevante ao discutir a prática pedagógica inclusiva, que desafia os educadores a não apenas transmitir conhecimentos, mas a engajar-se profundamente com os estudantes tocando suas vidas em processo.

Ao enfatizar que “quase nada nos acontece”, Bondía (2002) critica a estruturação dos ambientes educacionais que limitam os processos de experiências que se produzem e se metamorfoseiam nas vivências escolares e não escolares. Os limites se produzem no atual estágio particular do capital em sua égide neoliberal em razão da lógica neoliberal na educação, que prioriza métricas de eficiência e resultados em detrimento das experiências qualitativas e do desenvolvimento humano integral.

Portanto, partindo da reflexão de Bondía (2002), no contexto do AEE, torna-se evidente a necessidade de uma práxis educativa que se assente em narrativas, como situou Benjamin (1987), que transcenda a reprodução de informações protocolares e de caráter fast food.  

Os saberes que, em vez disso, incite, provoque e conecte o sujeito à sua historicidade no tempo e no espaço de sua produção existencial e consciência de sua posição em mundo de profundas contradições: da emergência de saberes de experiência, forjados nas relações dialógicas entre educadores e educandos. Isso requer uma mudança radical pela práxis, deslocando o foco das exigências curriculares padronizadas e de formações fast food’s para o historicizar os sujeitos em processo nas lutas contra as exclusões, tomando o referente a inclusão escolar, mesmo de ideário neoliberal, imprimindo a posição das experiências em construção dialógica.

Ao promover uma educação pela práxis que verdadeiramente nos conecta, trata-se de engajar-se com a realidade em disputa para organizar o que é significativo pela experiência na formação humana e na construção de uma sociedade de transformações. Nesse contexto, a escola sob influência do neoliberalismo visa os estudantes para se tornarem trabalhadores produtivos em uma economia globalizada, que valoriza habilidades técnicas e competências específicas em detrimento do desenvolvimento integral dos indivíduos. Na sociedade de capital flexível, a ênfase está na eficiência, na padronização e na avaliação baseada em testes que negligencia a riqueza da experiência humana (Antunes, 2009).

Da especificidade da educação escolar, os estudantes são submetidos a uma série de atividades e tarefas sem considerar como essa arqueação da escola atuam em organização pessoal apenas de teor mercadológica e na reprodução das relações sociais dominantes, pela repetição e restringido a capacidade do sujeito em agir e transformar a realidade na qual e para qual se constituiu.

A escola para o neoliberal se institui por um espaço de esvaziamento das potências históricas e transformadoras do sujeito trabalhador. 

Nesta mesma direção, Tardif (2014), referindo ao sujeito professor, considera que os saberes docentes são algo pessoal e contextualizado. Para o autor, esses saberes não podem ser reduzidos a fórmulas ou técnicas universais; eles são intrinsecamente humanos. Nesta direção Tardif afirma que:

Além disso, o saber não é uma coisa que flutua no espaço: o saber dos professores é o saber deles e está relacionado com a pessoa e a identidade deles, com a sua experiência de vida e com a sua história profissional, com as suas relações com os alunos em sala de aula e com os outros atores escolares na escola, etc (2014, p.11).

Portanto, Tardif (2014), ressalta a complexidade dos saberes docentes e sua conexão intrínseca com a história de vida pessoal e profissional dos professores. Que, não sendo individual, não há culpa ou responsabilidade individualizada, mas dentro do modo de produção capitalista o objetivo principal e reduzir o papel do professor a um transmissor de conteúdo.

Em síntese, os saberes docentes são intrinsecamente ligados à identidade e à experiência pessoal dos professores. A escola neoliberal e excludente pretende minar esses saberes ao priorizar resultados quantificáveis.

Ao apreender os processos antagônicos, os saberes de experiência são aqueles que emergem da vivência do movimento professor-educador, e que permitem situar pela práxis a realidade educacional em que trabalha em que sua atividade da produção da vida se objetiva e se materializa, da negação do adaptar-se ao transformar, do improviso pela eficácia ao inacabamento em processo transformador pelo sujeito historicizado, da escola modulada a escola em disputa (Frigotto, 2009).

No entanto, os saberes de experiência AEE também estão sujeitos às contradições entre o ideal e o real, entre o prescrito, o vivido e o praticado, que se manifestam especialmente no contexto atual da sociedade capitalista de globalização de mercado, em que a escola está inserida em um mercado competitivo e que valoriza mais os resultados quantitativos pela demanda produtiva pela exploração quantitativa do tempo de trabalho e, necessariamente, de vida. De uma realidade em que o individualismo se opõe ao solidário, consumo de mercadoria a organização da dignidade da vida.

Nesse cenário, a inclusão escolar real expõe o lugar das exclusões reais, mas, ao mesmo tempo, deslocadas pela força ideológica e as relações neoliberais.  Quanto aos estudantes com deficiência cabe destacar que:

O ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens, constitui o trabalho educativo que é próprio do educador, afirma que sendo o processo educativo um fenômeno complexo, os saberes nele envolvidos também o são (Saviani, 1996, p.147).

Saviani (1996), defende que o educador tem a tarefa de produzir, em cada indivíduo, a humanidade que é fruto da história e da cultura coletiva dos homens. Para isso, ele precisa conhecer os saberes que são necessários para a formação humana, que são complexos e variados. Esses saberes incluem os conhecimentos científicos, filosóficos, artísticos, morais, políticos etc., que são produzidos pela humanidade ao longo do tempo. “De fato, é muito mais pertinente conceber o ensino como a mobilização de vários saberes que formam uma espécie de reservatório no qual o professor se abastece para responder a exigências específicas de sua situação concreta de ensino” (Gauthier, 2013, p. 28). Neste contexto, o ensino é uma atividade complexa e contextualizada com o qual o sujeito de saberes plurais. Portanto:

Ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar, ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem ensina, ensina alguma coisa a alguém (Freire 2002, p. 25).

Esta concepção valoriza a interação, a criatividade e a autonomia dos sujeitos envolvidos no processo educativo. Para Freire (2002), ensinar não é uma transferência de conteúdo, mas uma relação dialógica entre quem ensina e quem aprende, na qual se transformam e se constituem como sujeitos históricos e sociais. Nessa perspectiva, o ensino não pode ser visto como uma ação unilateral, mas como uma construção coletiva e contextualizada.

Nesse sentido, os saberes de experiência tornam-se essenciais na formação docente. Esses saberes se referem às vivências pessoais e profissionais dos professores, que são incorporados e mobilizados na prática educativa. Os saberes de experiência são construídos ao longo da trajetória profissional do docente, por meio do contato com as situações reais de sala de aula, das reflexões sobre suas práticas e dos diálogos estabelecidos com outros profissionais da educação.

Para melhor delinear os saberes de experiência, um dos questionamentos feitos às nossas participantes foi sobre o processo de formação (inicial e continuada). Algumas narrativas das participantes da pesquisa ratificam os saberes de experiência no constituir da história de vida e do fazer docente:

Eu acredito que ambas caminham juntas. Porque assim, hoje, não sou aquela recém-formada 15 anos atrás. E acredito que daqui uns anos porque a gente vai buscando mais, então acredito que uma complementa a outra. [..] E daí tem situações que a gente pensa assim, tá, mas como que eu vou ajudar essa criança? Autista e Todd junto. [..] Foi muito carente. A minha formação com relação a educação especial, digamos que foi o quê? Em 5%. A gente quase não ouviu falar. Não foi feito estágio, voltado para a educação especial. Então assim, foi bem superficial mesmo, com relação a isso.  Aí quando eu vim para cá, eu falei, não, pera aí, a gente precisa (Entrevista, com Elisa 2023, grifos nossos). Ninguém sai preparado da faculdade pra entrar numa sala de AEE, nem preparado o suficiente pra alfabetizar. Você sabe disso… você consegue isso através da experiência[..]A experiência é o caminho, não existe nem um trabalho, um trabalho bom, ou que eu possa melhorar sem a experiência (Entrevista com Flávia, 2023, grifo nossos).

Essas três entrevistas são reveladoras sobre os saberes de experiência e as mediações no fazer docente no AEE. Ao serem analisadas conjuntamente, evidenciam as fragilidades formativas relacionadas aos fazeres na educação especial.

A alegoria citada por Michael Löwy (2013), referenciada por Behring (2016), sobre Karl Marx contra o Barão de Munchausen, ilustra de maneira emblemática a luta constante contra as condições adversas impostas pela areia movediça do neoliberalismo e da ideologia das competências no contexto educacional, particularmente no Atendimento Educacional Especializado (AEE). A imagem do Barão de Munchausen tentando se salvar, puxando-se pelos próprios cabelos, reflete o esforço hercúleo e, em certa medida, das lutas dos educadores para reconciliar os saberes experienciados e os conhecimentos teóricos em uma prática pedagógica inclusiva, sob as pressões do capitalismo contemporâneo.

As narrativas das entrevistadas, Elisa e Flávia revelam a complexidade e profundidade dos desafios enfrentados pelos educadores no Atendimento Educacional Especializado (AEE).

Integrando essas perspectivas com a alegoria do Barão de Munchausen, é possível perceber a luta dos educadores do (AEE) como um esforço para se elevar acima das limitações impostas por um sistema educacional que muitas vezes valoriza a competência teórica em detrimento da experiência prática e da adaptação às necessidades individuais dos estudantes. A tentativa de “puxar-se pelos cabelos”, fora da areia movediça simboliza o desafio de transcender as barreiras do neoliberalismo educacional, que favorece a eficiência, a competência e a uniformidade em vez de reconhecer e valorizar a diversidade de experiências e saberes que os educadores trazem para o processo de ensino-aprendizagem.

Assim, essas narrativas revelam uma política de educação especial cujo diálogo entre teoria e prática, entre saberes experienciados e conhecimentos teóricos, na construção de práticas pedagógicas inclusivas estão subsumidos às pressões do neoliberalismo e da ideologia das competências:

Esse saber é social porque é partilhado por todo um grupo de agentes, os professores que possuem uma formação comum (embora mais ou menos variável conforme os níveis, ciclos e graus de ensino), trabalham numa mesma organização e estão sujeitos, por causa da estrutura coletiva de seu trabalho cotidiano, a condicionamentos e recursos comparáveis, entre os quais programas, matérias a serem ensinadas, regras do estabelecimento, etc. Desse ponto de vista, as representações ou práticas de um professor específico, por mais originais que sejam, ganham sentido somente quando colocadas em destaque em relação essa situação coletiva de trabalho (Tardif, 2014, p.12).

Neste sentido, ao considerar o saber, é socialmente partilhado tanto na esfera das representações singulares quanto na coletiva. No entanto, tal realidade é marcada por um conjunto de normativas, expectativas e recursos que tanto possibilitam quanto restringem suas ações educativas. Isso evidencia a importância de compreender a educação, não apenas como um ato isolado do educador, mas como um fenômeno intrinsecamente ligado às políticas educacionais e às condições materiais da escola.

A inserção em uma “mesma organização” e a submissão a “condicionamentos e recursos comparáveis”, conforme descrito por Tardif (2014), sinalizam para a padronização das práticas pedagógicas que, sob a égide do neoliberalismo, podem levar a uma homogeneização da educação. Este cenário apresenta desafios significativos para a realização de uma educação inclusiva genuína, a qual requer uma atenção particular às necessidades e particularidades de cada estudante, especialmente aqueles atendidos pelo AEE.

Assim, ao refletir sobre a prática pedagógica no contexto do AEE, é crucial reconhecer e problematizar as influências do neoliberalismo nas políticas educacionais. Esta análise crítica é fundamental para que possamos buscar caminhos para uma educação que verdadeiramente valorize o saber docente como um saber social, coletivo e, sobretudo, comprometido com a inclusão e a transformação social.

As práticas pedagógicas, imersas num contexto coletivo e dinâmico, refletem não apenas a síntese das experiências e saberes teóricos dos educadores, mas também as influências e tensões provenientes de variadas forças políticas, econômicas, de classe e ideológicas que moldam o cenário educacional. Essa interação complexa destaca a inseparabilidade da pedagogia da realidade social mais ampla na qual o neoliberalismo, com sua tendência à mercantilização da educação, desempenha um papel crítico. Este sistema econômico frequentemente marginaliza aqueles estudantes que não atendem aos critérios de eficiência e produtividade valorizados pelo mercado, desafiando a noção de escola como um espaço de formação crítica e emancipatória (Saviani, 1996).

Nesse esforço, os educadores são chamados a tecer uma rede de colaboração que possibilite uma educação que reconheça e valorize a diversidade de experiências e saberes, desafiando as estruturas de poder que perpetuam desigualdades. O caminho para uma prática educativa emancipatória reside na capacidade de vislumbrar além dos limites impostos, cultivando um ensino que seja simultaneamente reflexivo e revolucionário, capaz de romper com as amarras do determinismo neoliberal e pavimentar o caminho para uma sociedade justa e equitativa.

Concluímos esta seção com a compreensão de que os saberes de experiência dos educadores, enraizados profundamente nas suas vivências cotidianas e interações humanas, são significativos para a elaboração de práticas pedagógicas inclusivas e eficazes. Os diálogos entre teoria e prática revelam-se como fundamentais na construção de uma educação que responde às necessidades diversificadas dos estudantes, desafiando as estruturas neoliberais que permeiam o ambiente educacional atual. Como a práxis, ou seja, a reflexão e ação dos educadores sobre o mundo para transformá-lo, pode ser enriquecida pelos saberes acumulados através da experiência?

Ao refletirmos sobre essa questão, percebemos que a educação se torna um espaço de resistência e potencialização, em que os saberes de experiência se entrelaçam com o conhecimento teórico para desafiar as limitações impostas pelo sistema.

OS SABERES DE EXPERIÊNCIAS PELA PRÁXIS        

Ao mergulharmos na essência da práxis, exploramos como os saberes adquiridos na prática educativa e a teoria que sustenta o Atendimento Educacional Especializado (AEE) se entrelaçam. Esta análise visa discutir os mecanismos pelos quais a práxis, enraizada na e pela historicidade, como um processo intencional, voltado à transformação social. Reconhecendo a riqueza das experiências dos educadores. O foco se delineia em descrever e apreender as práticas pedagógicas que respeitem e valorizem a diversidade humana, enfatizando a necessidade de um diálogo contínuo entre a experiência vivida e o conhecimento teórico.

Desses balizadores, e por meio de narrativas das participantes, especialmente, a prática de fundamento na atividade do mundo do trabalho escolar, os desafios encontrados no Atendimento Educacional Especializado (AEE) são vivenciados e refletidos pelo educador. As contribuições das participantes podem servir para exemplificar como os saberes são instituídos pela experiência direta no campo educacional e integrados e mobilizados pela práxis, oferecendo insights valiosos sobre a intersecção entre a teoria e a prática, bem como sobre o compromisso do educador com a inclusão efetiva:

Olha, acho que assim, quando a gente está estudando ali na teoria, é importante porque você aprende ali né, um conhecimento tudo mais, mas o que realmente vai… você vai falar assim é, ‘eu estou compreendendo o que é trabalhar com educação inclusiva é na prática’. […] É na prática que faz toda a diferença, sabe? É o convívio, é a experiência, não é você lendo um livro, você estudando, não. Você pode até ouvir eu falar aqui, mas quando você se deparar lá com o aluno, é outra realidade (Entrevista com Alice, 2023).

Em síntese, os saberes de experiências pelas práxis representam, expressão, movimentos e processos das relações sociais que se instituem na educação. A valorização dos saberes dos sujeitos da atividade do mundo escolar, centralmente a dos educadores, não apenas enriquece a experiência educacional, mas também contribui para a construção de uma pedagogia sob uma base de luta, resistência e da urgência das transformações necessárias. Ao reconhecer os saberes da experiência, a educação se potencializa em direção a práxis como um pilar central da promoção do sujeito dialógico e de historicidade. Eles oferecem conexões entre a realidade e a consciência, que constituem o sujeito histórico em processo, como ser de ação para orientar a ação, avaliar os resultados e propor soluções.

Vale colocar em relevo que a capacidade de produzir algo novo, original ou diferente, que tenha valor pode ser favorecida pela experiência, no entanto, pode ser limitada por ela, se a experiência se tornar um hábito, uma rotina ou uma repetição. A criatividade requer abertura, curiosidade e flexibilidade para explorar novos caminhos, arriscar-se e aprender com os “erros.”

A prática no processo de formação humana e sob uma proposição pedagógica escolar, enraizada na experiência e no conhecimento da vivência, oferece perspectiva para a compreensão e no exame crítico não somente da posição do indivíduo, mas, sobretudo, da sua condição histórica coletiva e como sua existência singular se produz no movimento histórico. A experiência é frequentemente subestimada nas discussões sobre inclusão escolar.

Neste sentido quais são os critérios para definir o que é uma experiência válida e relevante? Podemos qualificar os saberes de experiências pela práxis e em seus antagonismos com o professor que atua sob o regramento do capital flexível e política neoliberal? Poderão ser descritos esses saberes sob a perspectiva emancipatória?

O trecho destacado revela aspectos da realidade vivida na posição de individuo professor e do sujeito educador e que se movem em direções antagônicas, incluindo as motivações pessoais, os desafios enfrentados e as adaptações necessárias na abordagem educacional.

No AEE, é porque eu trabalhava no Estado, né? e, em sala regular, já faz 13 anos que eu sou professora. Aí eu, você sabe, sempre tem os alunos especiais que fazem parte da… E aí eu comecei a me identificar. Eu fazia um trabalho que eu via que era um pouco a mais do que geralmente os professores faziam. E eu sempre me identificava com esse público. Aí eu fiz a pós na área, mas não atuava, dava aula na sala regular, fiz a pós, tal. E eu fui trabalhar em uma escola no ensino médio, lá eu conheci um assessor pedagógico… que se tornou assessor logo no ano seguinte. E apareceu um caso lá pra eles na assessoria, de uma aluna. Que ela precisava de um atendimento domiciliar porque ela não podia ir para escola por questões de agressividade, ela era do orfanato ela até chegou estudar nesta escola está aluna… E eles me chamaram lá. Aí veio o pessoal da assistência social, conversou comigo. E falou que eu tinha o perfil para fazer esse atendimento, pois eu tinha a pós na área tudo se encaixava. No começo eu fiquei meio assim, ela era deficiente intelectual com vários outros transtornos e muito agressiva. E aí eu comecei, me perguntaram onde podia ser, na verdade teria que ser na casa dela. Mas como os pais trabalhavam fora, aí, montaram uma sala para mim no CRAS e eu fiquei dois anos fazendo este atendimento. Então começo ali eu fiz esse atendimento dela por dois anos. Aí depois eu fiz uma prova no estado, teve uma banca, eu fiz uma apresentação nessa banca. E eu fiquei em primeiro lugar nessa apresentação. Teve várias pessoas (Entrevista com Alice, 2023).

A transformação de professor para educador do AEE envolve um intrincado processo de reconfiguração da práxis educativa pelo educador que é profundamente influenciado pelo contexto socioeconômico e pelas políticas educacionais neoliberais. Essa transição é ilustrada nas palavras de Alice, uma educadora do AEE, cuja experiência pessoal reflete tanto os desafios quanto as potencialidades dessa jornada. Alice relata o início de sua carreira na educação especial não como um plano inicial, mas como resultado de uma série de eventos: “No AEE, é porque eu trabalhava no Estado neh… E aí eu comecei a me identificar. Eu fazia um trabalho que eu via que era um pouco a mais do que geralmente os professores faziam”.

Essa narrativa evidencia o caráter frequentemente contingente da entrada no campo da educação especial, destacando a importância das experiências e percepções individuais que atuam na organização e estruturação do profissional, além de oferecer um vislumbre da posição sobre a complexidade que a educação inclusiva vai se instituindo em forma e conteúdo a partir da educação especial.

Além disso, reflete sobre as condições estruturais e políticas que, se de um lado, se impõe como determinações pelas relações sociais dominantes sobre o lugar do professor, mas, por outro, também ganha terreno histórico de um sujeito se historicizando pela posição da atividade como movimento da experiência e o saber, que se imbricam, se combinam, atuam na e pela atividade: de uma realidade vivenciada nos antagonismos entre o professor e o educador (Frigotto. 2016).

O comprometimento emocional e ético com os estudantes, destacado por Freire (1989), como essencial para uma educação transformadora, é evidenciado na abordagem de Alice, que busca constantemente melhorar o ambiente de aprendizagem dos seus estudantes, apesar dos desafios estruturais.

A experiência de Alice exemplifica não apenas sua jornada pessoal, mas também os desafios da luta de classes que ressoam e se produzem em escolas em disputas sob a cena histórica do ideário da inclusão e de uma escola pública como contenção da pobreza e a posição que o sujeito educador toma como referência aos sujeitos para além da ficção ilusória do neoliberalismo. Seguindo a análise, nos voltemos para nossa participante Débora, quando ela também vivifica seu processo formativo:

Aí, fui estudando, aí fui fazer formação. E o município, a gente tem a formação, entendeu? Você, a partir do momento que você entrou no município, você tem a formação. Por exemplo, de 15 em 15 dias, a gente tem formação com o pessoal no AEE. Mas, aí, assim, eu fui ler muito, você tem que entender a legislação, porque tem muita lei. [..] Não, eu preciso estudar, eu preciso aprender, eu preciso… E, às vezes, a formação só fornecida pelo município não é o suficiente. Às vezes, você tem que fazer muito cursinho fora. Eu fiz muito cursinho fora, tá? (Entrevista com Débora, 2023).

A individualização dos processos formativos, nesse caso, do indivíduo em uma realidade na qual sua posição tem uma função de reprodução das forças dominante porque imputa ao indivíduo uma falsa totalidade de sua existência, figura em si mesmo, expressão duas combinações: a ideologia da competência e a dificuldade que muitos professores enfrentam para se qualificar e se atualizar em sua área de atuação. O depoimento revela que a formação continuada oferecida pelo município é um reflexo da insuficiência de formação teórico e prática para a complexidade de uma “pedagogia inclusivista”.  Assim, denominamos de pedagogia inclusivista o esforço individualizado com uma das propriedades da ideologia da competência na prática das relações do trabalho do professor, que o figura na posição individuação para reproduzir a escola de ideário neoliberal. 

Uma pedagogia inclusivista cujas propriedades se evidencia no papel que o professor tem de cumprir pelas determinações do mercado e na dinâmica que esse papel tem de atender em toda a modelação das políticas educacionais e arqueação forçada pela concepção da eficácia e produtividade da escola. Isso se demonstra uma intensificação e precarização do professor à luz da política neoliberal, de uma insuficiência diante dos que fazeres da atividade docente e formação permanente.

Essas causalidades estão intimamente imbricadas com um modo de produção, o capitalista, que, ao mesmo tempo, espolia o trabalhador em seu tempo de vida, e dissimula as relações reais, sustentadas na responsabilização do trabalhador, individualizado. Uma combinação sutil, mas produto da reestruturação do trabalho no capital flexível (Antunes, 2000). O controle da vida está condicionado pela dominância produtiva sustentada pela mercadoria, e dela, a mercadoria força de trabalho, de um controle do tempo de trabalho com o possível tempo livre. Neste sentido, o docente está sempre em plena disposição o tempo das determinações regulatórios que se põem como determinação pedagógica do professor. Situemos essa relação na entrevista de Flávia:

Você assiste um filme e você pensa, meu Deus, eu posso fazer isso com esse aluno? Eu posso interagir assim? (Entrevista com Flávia, 2023).

Com base no relato de Flávia, percebe-se que, mesmo em seu momento de descanso e/ou lazer, o professor está organicamente aprisionado às exigências produtivas das novas reorganizações do trabalho docente, expressando um sentimento de responsabilização individual quanto os seus fazeres com o estudante, e, ainda, manifestando-se insuficiente com seu tempo de trabalho.

Neste sentido, é correto afirmar que o empenho do capital mobilizou inclusive o tempo livre de estar com a família, lazer, para se ressentir e se sentir incompetente diante das inúmeras incertezas do fazer docente.

As condições de trabalho do professor no e pelo AEE em Sinop são construídos a partir de três fontes principais: ” I- Ter feito a opção na ficha de contagem de pontos para sala de AEE; II – Ter Especialização em Educação Especial; III – Ter formação continuada do Atendimento Educacional Especializado – AEE e/ou áreas afins da Educação Inclusiva, como exigido pelo Decreto Nº 305 (Sinop, 2022). A experiência profissional do professor adquire uma determinação formal para o exercício da sua função.

 A experiência profissional se torna movimentada sobre uma posição formal de acordo com necessidades atribuídas pelas políticas educacionais, de articulação municipal, estadual e nacional. O AEE, quanto ao conhecimento prático sobre as estratégias e os recursos didáticos pauta-se uma lógica cuja forma oculta o conteúdo real das contradições e desenvolvimento dos sujeitos históricos. Para entendimento mais verticalizado dessas combinações que atuam e orquestram o professor como trabalhador em expropriação para além do tempo de trabalho, vale recorrer a Apple (2001), quando problematiza a crise do capitalismo e seus reflexos no movimento da vida social:                  

Daqui inferirmos de que não é apenas através de uma determinada abstração como a economia que podemos encontrar a génese dos tempos difíceis que vivemos. Pelo contrário, as palavras-chave são luta e modelação, que nos remetem para questões estruturais. Os nossos problemas são sistémicos, construindo-se uns nos outros. Cada aspecto do processo social no Estado e na política, na vida cultural, nos modos de produzir, distribuir e consumir serve para afectar as relações com (e entre) os outros (2001, p. 41).

As investidas na vida social das determinações econômicas e sua impossibilidade de viabilização social e coletiva em razão de funcionalidade e leis produtivas e determinações para a reprodução da capital refletem em variáreis questões de amalgamento e interseções na vida pessoal em todas as instâncias do existir humano.  Assim a experiência social vai se produzindo como efeito e como causa, em uma simultaneidade, interagindo e incorporando, sob e com essas determinações, na mesma medida, em que a lógica da estrutura econômica dão sinais de profundas crises e imprecisões, diante das recorrentes crises, dada a natureza sedenta da força de acumulação do capital:

As escolas, enquanto instituições culturais e económicas, “reflectirão” tais mudanças no processo de trabalho, na cultura e na legitimidade. Em parte, devido a isto, as escolas têm estado e continuarão a estar expostas ao mesmo género de críticas que se têm vindo a verificar, actualmente, em relação a outras instituições situadas nas esferas política, cultural e económica. Não é em vão que o foco crucial da crítica radical em relação às instituições, nesta última década, se tenha centrado na escola. Ainda ao longo desse mesmo período, tem-se tornado cada vez mais evidente que as instituições educativas não são os mecanismos de democracia e de igualdade que muitos de nós gostaríamos que fossem. Em muitos aspectos esta posição crítica tem sido salutar, dado que tem instigado a nossa sensibilidade para o papel importante que as escolas – e o conhecimento explícito e oculto nelas inserido – exercem na reprodução de uma ordem social estratificada que persiste acentuadamente desigual […] (Apple, 2001, p. 49).

Podemos seguramente afirmar, de acordo com Apple (2001), a forma histórica do capital atua vigorosamente nas instituições escolares, portanto, na posição dos sujeitos para conter a pura reprodução em oposição à historicidade à medida da intensificação que essas relações se desenvolvem da crise do capital. A crítica se apresenta “salutar”, diríamos, fundante para sensibilidade histórica para uma consciência de empoderamento social e coletivo.

Assim, na especificidade dos saberes de experiência do docente de AEE, as chaves de leitura da realidade não podem ser isoladas ou independentes do conhecimento teórico. Pelo contrário, eles se relacionam de forma dialética e complementar com os saberes científicos, filosóficos e pedagógicos que sustentam a educação especial. Esses conhecimentos, baseados em estudos sistemáticos, rigorosos e fundamentados sobre um determinado objeto ou fenômeno, fornecem conceitos, princípios, leis e modelos que explicam ou interpretam a realidade educacional. Desenvolvidos ao longo do processo de constituição das bases para a atividade escolar, eles se articulam com as vivências pessoais e objetivas dos educadores.

Os saberes docentes consistem em uma das propriedades do saber de experiencia, como processo historicizado da vida, que se articula, combina, conflitua, se antagoniza, se comprime e se estende, se repete e se transforma. Dessa totalidade dos saberes de experiência, os saberes docentes envolvem, também, diferentes dimensões, incluindo o conhecimento disciplinar, pedagógico, curricular, didático, relacional e ético. Esses saberes são dinâmicos, reflexivos e aplicados no contexto em que os professores trabalham. São fundamentais para a práxis na e para a educação, uma práxis educativa que se manifesta na e pela existência do educador no espaço escolar (Bondía, 2002).

Os saberes de experiência para o AEE, em princípio, estão amalgamados às realidades concretas e efetivas para além de uma concepção universalista, situados nas vivências de estudantes na particularidade da educação especial.

Nessa medida, torna-se necessário reconhecer a pluralidade das vivências que compõem o tecido social e que são negligenciadas por uma organização e reprodução social e econômica orientadas para manutenção das desigualdades e das opressões que marcam a divisão social, do fazer humano. É sobre esses horizontes que Herrera (2009), sobre a ruptura com o “[…] universalismo abstrato, que tem no mínimo ético um ponto de partida e não de chegada” (p.58). O universalismo é insuficiente e limitado, pois não leva em conta as diferenças e as especificidades de cada contexto histórico e social.

Assim, os saberes tornam-se “produto cultural que persegue determinados objetivos no marco dos processos ‘hegemônicos’ da divisão social, sexual, étnica e territorial do fazer humano” (Herrera, 2009, p. 58). Portanto, não é algo neutro, os sentidos, as representações, os saberes não são homogêneos ou estáticos, mas sim um produto histórico e cultural que se constrói e se transforma a partir das relações entre os sujeitos e os grupos sociais. A esse processo, entendemos como luta hegemônica, ou seja, as disputas e os conflitos para determinar os sentidos, representação e as posições dos sujeitos, tanto associados às concepções quanto às práticas sociais que organizam a vida coletiva. Nesse sentido, a realidade é objeto de intensas disputas e revisões, tensões, conflitos e contradições, porque explícita as diversas formas de divisão e de desigualdade, que se manifestam nas diferenças de classes sociais.

Isto posto, o papel dos professores torna-se necessário, pois eles podem contribuir para tomadas de posições de lutas hegemônicas, que aponta para as relações de força no movimento das classes sociais. A hegemonia, para Gramsci (2002), consiste na capacidade de uma classe exercer o consenso quanto à sua existência. Desse consenso, a organicidade entre a existência, as práticas, as concepções e os novos referentes de uma consciência crítica e emancipatória.

Desses fundamentos, entendemos que os saberes de experiência representam propriedades históricas e sociais que explicitam organicidade da práxis, ou seja, “[…] a partir do vivido e do sabido, discuti-los, criticá-los, ampliá-los, não só para mudar a visão de mundo, mas transformá-lo” (Fávero, 2010, p. 99).

As ações, reflexões e ações dos professores, portanto, consistem em conexões e combinações entre os saberes de vivências, que orientam as concepções e as práticas, as bases epistemológicas e metodológicas, organizadoras dos saberes docentes para os desenvolvimentos das atividades profissionais docentes. Os saberes de experiências dos professores (de vivências amplas e de docência como restrita ao trabalho docente) traduzem-se em combinações e em conexões na e para a prática educativa e pedagógica. Tardif explicita uma problematização de complexidade dos sujeitos professores e seus os saberes quanto aos papeis e os pesos dos sabres dos professores:

Qual é o papel e o peso dos saberes dos professores em relação aos outros conhecimentos que marcam a atividade educativa e o mundo escolar, como os conhecimentos científicos e universitários que servem de base às matérias escolares, os conhecimentos culturais, os conhecimentos incorporados nos programas escolares, etc.? (2014, p. 9).

O professor, é apreendido, como um sujeito de vivência que se apreende e aprende com as suas experiências, contudo, contido pelas forças operantes da reprodução do capital e sob égide neoliberal. Na dinâmica das práticas do educador, contrariadas pela práxis, os saberes encontram-se em constante movimento e são compostos: a) os que se edificam pelo conjunto de leituras de mundo e da vida e valores (concepções e conhecimentos socioculturais), tanto os produzidos pela prática humana individual, de caráter singular, quanto os incorporados, herdados ou recriados das práticas sociais e culturais no terreno histórico em sua existência ocorre; b) Os saberes docentes são constituídos e organizados por conhecimentos teóricos e práticos sistemáticos e direcionados para os fazeres docentes e orientam o conjunto de suas atividades intencionais como planejar, desenvolver e avaliar suas atividades educacionais e pedagógicas.

Esses saberes são dinâmicos, situados e contextualizados, e se modificam conforme as demandas e as circunstâncias que o professor enfrenta. Os saberes de experiência são também pessoais e singulares, pois refletem a história de vida, a formação, os valores, as crenças e as emoções do professor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste artigo, foi possível observar como os desafios enfrentados pelos educadores no contexto do Atendimento Educacional Especializado (AEE) revelam a complexidade das relações entre teoria e prática na educação especial. A inclusão escolar, apesar de ser um princípio norteador, encontra barreiras estruturais, formativas e ideológicas que limitam sua concretização, principalmente sob a égide de um sistema educacional influenciado por pressupostos neoliberais.

Os saberes de experiência emergem como elementos centrais para a práxis pedagógica, configurando-se em uma forma de resistência e transformação diante das adversidades impostas pelas demandas de eficiência e produtividade que permeiam as políticas educacionais. Esses saberes, construídos na interseção entre a vivência prática e a reflexão crítica, são fundamentais para uma educação inclusiva comprometida com a emancipação dos sujeitos e a superação das exclusões sociais e educacionais.

Ao problematizar as influências do neoliberalismo no AEE, este artigo ressalta a urgência de políticas formativas que valorizem a historicidade e a complexidade dos sujeitos, oferecendo subsídios para que os educadores possam construir práticas pedagógicas significativas e inclusivas. Conclui-se, portanto, que a práxis docente, sustentada pelos saberes de experiência, deve ser reconhecida como um movimento contínuo de reflexão e ação, indispensável para uma educação para luta e transformação da sociedade.

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1Mestre em Educação Inclusiva pela Universidade Estadual do Mato Grosso (PROFEI/UNEMAT) e Professor da Prefeitura Municipal de Sinop/MT. estevao.barbosa@unemat.br
https://orcid.org/0009-0006-6263-0368 http://lattes.cnpq.br/4328813115490861

2Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e Professor do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação Inclusiva da Universidade Estadual de Ponta Grossa (PROFEI/UNEMAT). marion@unemat.br
https://orcid.org/0000-0003-2305-6712
http://lattes.cnpq.br/3219438851193034