TRANSPARÊNCIA GOVERNAMENTAL E PROTEÇÃO DE DADOS: UMA ANÁLISE INTEGRADA SOB A PERSPECTIVA DA LGPD

GOVERNMENT TRANSPARENCY AND DATA PROTECTION: AN INTEGRATED ANALYSIS FROM THE PERSPECTIVE OF THE LGPD

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202411302127


Adson Higo Menezes Corrêa1
Ellis Regina Batista Leal Oliveira2
Delner do Carmo Azevedo3


Resumo

O artigo explora a relação entre transparência governamental e proteção de dados no Brasil, com enfoque na interação entre a Lei de Acesso à Informação (LAI) e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Esses marcos regulatórios são fundamentais para a consolidação democrática, ao promoverem o equilíbrio entre o direito à privacidade e o acesso à informação pública. A análise contextualiza as origens históricas desses direitos, enfatizando que ambos são indispensáveis para a confiança nas instituições públicas e para o fortalecimento da cidadania. O estudo destaca desafios decorrentes da digitalização acelerada e de crises, como a pandemia de COVID-19, que expôs conflitos entre a transparência e a proteção de dados. Exemplos incluem a divulgação de informações de beneficiários de programas sociais, evidenciando tensões entre as exigências da LAI e os princípios da LGPD. Além disso, o texto aborda o uso indevido da LGPD para restringir o acesso a informações públicas, mesmo em situações que não envolvem dados pessoais. Como solução, o artigo propõe a capacitação de agentes públicos, a integração normativa entre LAI, LGPD e outras legislações, além do fortalecimento de mecanismos de controle social. Conclui-se que a governança democrática requer esforços contínuos para harmonizar privacidade e transparência. Esse equilíbrio é essencial para assegurar o respeito aos direitos fundamentais e à dignidade humana, sobretudo em um contexto de crescente vigilância digital. A pesquisa ressalta, ainda, que a coexistência de privacidade e transparência, quando devidamente implementada, reforça a legitimidade das instituições públicas e contribui para a construção de uma democracia robusta e inclusiva.

Palavras- chave: Transparência governamental. Proteção de dados. Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Lei de Acesso à Informação (LAI). Democracia digital.

Abstract 

The protection of personal data has become a globally relevant issue, driven by the development of legal frameworks ensuring privacy and security. This article examines the intersection between the right to access public information and the protection of personal data, particularly in the Brazilian democratic context. Initially, it explores the historical evolution of data protection, highlighting international milestones such as the European Convention 108 and the influence of these frameworks on Brazilian legislation, including the General Data Protection Law (LGPD) and the Access to Information Law (LAI). The analysis underscores the challenges of balancing transparency and privacy, focusing on the pandemic period, during which the implementation of the LGPD influenced public administration and access to critical data. It also evaluates the rise in denials of access to public information, with unjustified appeals to the LGPD in cases that did not involve personal data.Furthermore, the study investigates the integration of LGPD principles into public governance, addressing its impact on transparency and accountability mechanisms. Cases such as the disclosure of personal data from emergency aid recipients during the COVID-19 pandemic are discussed, emphasizing the tension between individual rights and public interest. The article concludes by advocating for harmonized approaches to data protection and public transparency, underlining the importance of clear guidelines, robust governance practices, and adherence to constitutional principles. The findings demonstrate the significance of safeguarding both privacy and access to public information as complementary pillars of democratic governance in the digital age.

Keywords: Government transparency. Data protection. General Data Protection Law (LGPD). Access to Information Law (LAI). Digital democracy.

INTRODUÇÃO

A proteção de dados pessoais e o acesso à informação pública são fundamentais para o fortalecimento de qualquer democracia moderna. Ambos os direitos representam conquistas históricas que, embora distintas, precisam coexistir de maneira equilibrada para garantir a transparência dos atos governamentais sem comprometer a privacidade dos cidadãos (MARTINS, 2012). No Brasil, a consolidação desses direitos foi marcada pela promulgação de leis como a Lei de Acesso à Informação (LAI) e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Essas normativas refletem uma resposta ao clamor por maior responsabilização, por um lado, e pela preservação dos direitos individuais em um contexto de digitalização acelerada, por outro.

No entanto, a interação entre a transparência pública e a proteção de dados pessoais se tornou ainda mais complexa em situações de crise, como a pandemia de COVID-19. Nesse período, surgiu a necessidade de conciliar a divulgação de dados essenciais para a saúde pública com a preservação das liberdades individuais. Casos como a exposição de informações pessoais de beneficiários de programas de auxílio emergencial ilustraram o desafio de aplicar, simultaneamente, os princípios da LGPD e as disposições da LAI.

Este artigo busca traçar um panorama histórico e analítico sobre o direito de acesso à informação e a proteção de dados no Brasil, abordando suas origens filosóficas, marcos normativos e a interseção desses direitos no contexto democrático brasileiro. A discussão também abordou os desafios enfrentados pela administração pública, destacando o impacto da LGPD no cenário de crise sanitária e os dilemas éticos e legais que acompanham a crescente digitalização e vigilância tecnológica. Por fim, contribuições teóricas de autores como Habermas, Agamben e Frateschi são integradas à análise, proporcionando uma visão crítica sobre o equilíbrio entre a privacidade e a transparência em democracias contemporâneas.

2. O DIREITO DE ACESSO À INFORMAÇÃO E SUA ORIGEM HISTÓRICA

A proteção de dados pessoais tornou-se um tema de importância global crescente, acompanhando a evolução de normas e práticas destinadas a assegurar a privacidade e a segurança dos indivíduos. Inicialmente regulamentado por legislações dispersas e setoriais, o tratamento de dados pessoais passou a receber maior atenção com a criação de normativas mais robustas e abrangentes. Uma análise dos marcos regulatórios internacionais revela tanto os avanços na proteção de dados quanto os desafios contínuos enfrentados pelas diversas jurisdições.  

Nesse contexto, o direito de acesso à informação pública emerge como um elemento essencial das democracias modernas, intimamente relacionado ao direito à liberdade de expressão. Neste ponto, Paula Martins (2012) destaca que:

[…] a democracia, mais do que um sistema de regras, é uma construção cotidiana para a qual o acesso à informação é um direito instrumental indispensável. Sem a oportunidade de conhecer a fundo seus representantes, de tomar nota de suas decisões, de seus atos administrativos, a população estabelece laços frágeis com o sistema democrático. A crença nas instituições públicas depende de sua transparência. Regimes fechados, em que seus líderes se sentem donos da informação, tendem a excluir a sociedade do cenário político, criando um clima de ceticismo, descrédito e indiferença à estrutura do Estado. A transparência na gestão, aliada a outros instrumentos que reforcem o direito e a possibilidade real de fiscalização da máquina pública, é o antídoto para esse cenário […].

Esse direito, assegurado em diferentes países, abrange aspectos como o direito de solicitar e receber informações de interesse público e de caráter pessoal. Além disso, promove uma cultura de transparência na administração pública, essencial para o fortalecimento das instituições democráticas e a ampliação da participação cidadã.

Historicamente, o direito de acesso à informação tem suas origens no artigo 15 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que estabeleceu a obrigação dos agentes públicos de prestar contas à sociedade. Esse princípio inicial de accountability foi uma resposta à necessidade de responsabilizar o poder público, promovendo a relação de confiança entre o Estado e os cidadãos. Tal abordagem se tornou fundamental para o desenvolvimento das democracias contemporâneas (MARTINS, 2012).  

No âmbito internacional, a Europa desempenhou um papel pioneiro na implementação de legislações voltadas à proteção de dados pessoais. Desde a década de 1970, países como Alemanha e França lideraram esse movimento, motivados por um contexto histórico de intervenções estatais. Esses esforços culminaram na Convenção 108 do Conselho da Europa, de 1981, que se tornou o primeiro instrumento internacional vinculante sobre proteção de dados. Posteriormente, com os avanços tecnológicos, a convenção foi revisada, resultando na Convenção 108, adotada em 2018. Outrossim, Martins aponta que: 

Todos esses tratados promulgam garantias de liberdade de expressão e pensamento aos cidadãos que impõem barreiras à atuação do Estado, impedindo-o de cercear ou indevidamente restringir essas liberdades. Esses documentos internacionais também impõem ao Estado a obrigação positiva de assegurar aos cidadãos o acesso à informação. Nesse sentido, o Estado deveria não somente fornecer informações quando solicitado, mas também ter a iniciativa de produzir e divulgar as informações de interesse público que estão em seu poder. (MARTINS, 2012)

Nesses contextos, o acesso à informação desempenha um papel central na reparação de violações de direitos humanos, permitindo à sociedade compreender e refletir sobre seu passado. Além disso, esse direito possibilita o resgate da memória histórica e fortalece o direito à verdade, elementos fundamentais para a consolidação de um Estado democrático de direito.  

2.1 A RELAÇÃO ENTRE O DIREITO DE ACESSO À INFORMAÇÃO E A PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS NO CONTEXTO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO

A trajetória política do Brasil foi marcada por períodos de regimes autoritários e ditatoriais, os quais enfraqueceram o desenvolvimento de uma cultura democrática e de transparência governamental. Esse histórico gerou uma democracia jovem e em constante construção, frequentemente suscetível a fragilidades, entre elas a centralização de informações e a manutenção do sigilo público. Durante anos, essa postura de opacidade comprometeu o acesso à informação, um elemento essencial para o exercício pleno da cidadania e o fortalecimento das instituições democráticas (MARTINS, 2012).  

De acordo com Mattos (2008), “todos os períodos governamentais da história brasileira têm sido marcados por atentados contra a liberdade de expressão e tentativas de controlar a distribuição de informações e a produção de conteúdos”. Esse controle da informação foi utilizado por governos autoritários como ferramenta para manter o poder e limitar a participação da sociedade nos processos decisórios. Essa restrição não apenas enfraqueceu a relação entre Estado e sociedade, mas também contribuiu para um cenário em que a cidadania não pôde se desenvolver plenamente.  

No cenário global do século XX, disputas intensas em torno da democratização da informação levaram ao surgimento de novos modelos democráticos, como os de caráter participativo, popular e desenvolvimentista, conforme destacado por Boaventura de Sousa Santos (2002). Tais modelos buscam ampliar a participação social e garantir maior transparência nas relações entre o Estado e os cidadãos. Segundo Santos, “a democracia implica ruptura com tradições estabelecidas e, portanto, a tentativa de instituição de novas determinações, novas normas e novas leis” (SANTOS, 2002, p. 51).  

A restauração da democracia no Brasil, na década de 1980, após um longo período de ditadura militar, foi um marco crucial para o fortalecimento do Estado democrático de direito. Esse processo foi alicerçado em três elementos fundamentais: a relação entre procedimento e prática social, o aumento da participação social e a representação da diversidade cultural e social. Sob essas novas bases democráticas, o acesso à informação e a transparência tornaram-se elementos essenciais para assegurar a participação efetiva dos cidadãos nas decisões públicas. Nesse sentido, Habermas (1997, p. 93) observa que “a base para a realização dos direitos democráticos é formada pelo fluxo comunicativo e pela influência da sociedade civil, que, ao interagir com a esfera pública, transforma essas interações em poder político”.  

A promulgação da Constituição Federal de 1988 consolidou esses avanços, representando um marco jurídico fundamental. O artigo 5º da Constituição garantiu aos cidadãos o direito de receber informações de interesse particular, coletivo ou geral, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja indispensável à segurança da sociedade ou do Estado. Esse marco foi essencial para romper com o paradigma de opacidade que caracterizava governos anteriores e para promover o direito à informação como ferramenta de controle social e de fortalecimento da cidadania (MARTINS, 2012). 

Conforme destacam Bataglia e Farranha (2017), a consolidação da democracia no Brasil dependeu diretamente da garantia do direito de acesso à informação pública. Para esses autores, a transparência nas ações governamentais é essencial para que a sociedade possa fiscalizar, questionar e contribuir com o desenvolvimento de políticas públicas. Assim, o acesso à informação pública passou a ser compreendido como um direito fundamental, estreitamente ligado à liberdade de expressão e à participação na vida política. 

3. A PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS COMO DIREITO FUNDAMENTAL

A abertura de dados públicos proporcionou avanços significativos em diversas áreas. No Brasil, a Lei de Acesso à Informação (LAI), promulgada em 2011, foi um marco nesse processo, ao regulamentar o direito de acesso às informações públicas e estabelecer prazos e procedimentos claros para que órgãos governamentais disponibilizassem dados à sociedade. A LAI é um exemplo concreto do progresso brasileiro em termos de transparência e democratização do acesso à informação.  Nesse sentido, Carolina Montolli (2020) aponta que a Lei 12.527/11:

[…]  tem  como  principal  diretriz  a  observância  da  publicidade  como preceito  geral  e  sigilo  como  exceção,  ou  seja,  a  administração  pública  deve  divulgar  as informações  de  interesse  coletivo  ou  geral,  restringindo,  somente,  aquelas cuja  segurança  da sociedade ou do Estado assim a justifiquem. Nesse contexto, a LAI define os graus de sigilo da informação, estabelecendo prazos máximos para restrição de acesso, vigorando a partir da data da produção da informação, considerando, ainda, a gravidade do risco à segurança nacional e utilizando o critério menos restritivo possível.

No entanto, o avanço na abertura de dados públicos trouxe consigo o desafio de proteger a privacidade dos indivíduos, especialmente em um contexto de crescente digitalização. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), sancionada em 2018, foi criada para equilibrar o direito ao acesso à informação e a necessidade de proteger os dados pessoais dos cidadãos. A LGPD estabelece que o tratamento de dados pessoais deve seguir princípios como transparência, finalidade e segurança, garantindo que os dados sejam utilizados de forma legítima e proporcional (MONTOLLI, 2020).  

Outro marco importante foi a promulgação da Emenda Constitucional nº 115/2022, que incluiu a proteção de dados pessoais no rol de direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal. 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: 

(…)

LXXIX – é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais. (BRASIL, 1988)

Esse reconhecimento reflete um compromisso com a segurança jurídica e a dignidade dos cidadãos, além de alinhar o Brasil aos padrões internacionais de proteção de dados. A inclusão desse direito no artigo 5º da Constituição confere um status de proteção superior à privacidade e à autodeterminação informativa, essenciais para garantir a dignidade humana em um mundo digital.  

A evolução da jurisprudência brasileira tem reforçado a proteção de dados pessoais como um direito fundamental, consolidando-o como um desdobramento dos princípios da dignidade da pessoa humana e da privacidade. Em decisão emblemática, o Supremo Tribunal Federal, no referendo da medida cautelar na ADI nº 6.387/DF, sob relatoria da Ministra Rosa Weber (07 de maio de 2020), reconheceu esse direito e destacou:

Decorrências dos direitos da personalidade, o respeito à privacidade e à autodeterminação informativa foram positivados, no art. 2º, I e II, da Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), como fundamentos específicos da disciplina da proteção de dados pessoais.

Na medida em que relacionados à identificação – efetiva ou potencial – de pessoa natural, o tratamento e a manipulação de dados pessoais hão de observar os limites delineados pelo âmbito de proteção das cláusulas constitucionais assecuratórias da liberdade individual (art. 5º, caput), da privacidade e do livre desenvolvimento da personalidade (art. 5º, X e XII), sob pena de lesão a esses direitos. O compartilhamento, com ente público, de dados pessoais custodiados por concessionária de serviço público há de assegurar mecanismos de proteção e segurança desses dados.” (BRASIL, STF, ADI nº 6.387/DF, Relatora: Min. Rosa Weber, julgado em 7 de maio de 2020).

Esse entendimento foi consolidado com a promulgação da Emenda Constitucional nº 115/2022, que formalizou a proteção de dados pessoais como um direito fundamental, fortalecendo o arcabouço jurídico e proporcionando maior segurança para sua aplicação.

Além disso, a integração da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) com outras legislações correlatas, como a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) e o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), é fundamental para assegurar uma proteção abrangente e eficaz. Esse diálogo normativo permite equilibrar a privacidade com a transparência, garantindo que ambos os direitos coexistem de forma harmônica. Essa abordagem também reflete o compromisso do Brasil com o constitucionalismo multinível, considerando tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo país.

Portanto, a incorporação do direito à proteção de dados pessoais na Constituição Federal representa um avanço significativo. Contudo, tal mudança exige esforços contínuos para harmonizar esse direito com outras normas e princípios fundamentais. O reconhecimento da proteção de dados como um direito constitucional reafirma o compromisso com padrões elevados de privacidade e promove uma governança responsável, essencial em uma era digital repleta de desafios e oportunidades. 

4. LGPD E TRANSPARÊNCIA PÚBLICA: DESAFIOS NA PROTEÇÃO DE DADOS E NO ACESSO À INFORMAÇÃO

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) trouxe mudanças significativas para o tratamento de dados pessoais pela administração pública, impondo maior rigor no cumprimento de normas que, anteriormente, não eram prioritárias em áreas como transparência e prestação de contas. Esse impacto foi especialmente notável na aplicação da Lei de Acesso à Informação (LAI), especialmente em relação à divulgação de dados pessoais em portais de transparência. 

A administração pública, nesse contexto, passou a ter a responsabilidade de equilibrar a disseminação de informações de interesse público com a proteção de dados pessoais, respeitando princípios como específicas, necessidade e adequação. A base legal para o tratamento de dados pela administração pública está fundamentada no artigo 7º, inciso III, da LGPD, que permite esse tratamento para a execução de políticas públicas. Contudo, essa prerrogativa exige a adoção de mecanismos eficazes de proteção de dados e boas práticas de governança, a fim de evitar abusos ou lacunas na proteção. Nesse sentido, Mafei e Queiroz (2019, p. 19), partindo da construção teórica das normativas europeias, destacam que a proteção de dados pessoais constitui um direito independente em relação aos direitos fundamentais:

Ao contrário do direito à privacidade, o direito à proteção de dados não faz, em princípio, um filtro substantivo sobre a qualidade do dado para decidir se ele está ou não em seu escopo: se é dado pessoal, interessa ao direito da proteção de dados pessoais, ainda que não sejam sensíveis à privacidade do titular. Quando muito, poderá ter uma proteção incrementada (na qualidade de ‘dado pessoal sensível’), embora nem mesmo essa informação seja necessariamente sensível à privacidade do sujeito (como raça ou nacionalidade). Por isso, mesmo a informação pública (e dificilmente caracterizável como informação protegida pelo direito à privacidade) interessa ao direito à proteção de dados, se relacionar-se com um indivíduo identificado ou identificável e para armazenamento em banco de dados ou cadastros, sujeito a tratamento automatizado ou não.

Essa visão reforça a necessidade de uma abordagem abrangente para proteção de dados, inclusive no contexto da administração pública, onde a coleta e o tratamento de informações envolvem frequentemente dados de cidadãos identificados ou identificáveis.

Um estudo conduzido pela Fiquem Sabendo (FS), em parceria com o Insper, analisou o impacto da LGPD nos pedidos de acesso à informação feitos pelo governo federal. A pesquisa comprometeu-se a 2.747 parcerias que mencionaram a LGPD, das quais 1.744 foram incluídas na análise. Em muitos casos, foi constatado que a LGPD foi usada de forma indevida para complicações negativas de acesso a dados que não envolviam informações pessoais. Cerca de 10% dos pedidos negados na amostra comprovada não continham dados pessoais, mas foram recusados ​​sob o pretexto de violação à LGPD (FIQUEM SABENDO, 2023).

Esses resultados evidenciam que, embora a LGPD tenha sido criada para proteger a privacidade dos cidadãos, sua aplicação tem dificultado o exercício da transparência pública. Tal cenário reforça a necessidade de uma aplicação equilibrada da LGPD, que tanto o direito ao acesso à informação quanto à proteção de dados pessoais. Diretrizes claras e efetivas são fundamentais para garantir que a LGPD não se torne um obstáculo à transparência, mas sim um elemento complementar a ela.

Além disso, a interação entre os direitos dos titulares de dados pessoais e o direito à transparência pública exige um equilíbrio cuidadoso. A administração pública deve garantir que esses direitos coexistem de forma harmoniosa, respeitando a privacidade dos cidadãos sem comprometer o acesso às informações de interesse público. A evolução das normas de proteção de dados reflete uma conscientização crescente sobre a importância da privacidade, destacando a necessidade de práticas rigorosas e de regulação eficazes para lidar com os desafios da era digital.

5. O IMPACTO DA LGPD NO ACESSO À INFORMAÇÃO DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19

A pandemia de COVID-19 trouxe à tona debates significativos sobre a transparência na divulgação de dados e o cumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Um caso emblemático foi a divulgação de dados pessoais dos beneficiários do auxílio emergencial, incluindo informações como nome completo e CPF. Esse episódio gerou controvérsias sobre a compatibilidade dessa prática com os princípios de minimização e anonimização de dados estabelecidos pela LGPD.

A Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) permite o acesso a informações privadas desde que fundamentadas em disposições específicas. Contudo, tanto a LGPD quanto outras normativas, como a Lei nº 8.080/1990, que regulamenta o direito à saúde, não podem ser usadas para restringir o acesso a dados de interesse público. A LGPD, por sua vez, permite o tratamento de dados pessoais quando necessário e adequado, em conformidade com os princípios de razoabilidade e proporcionalidade.

Dados do Portal da Transparência mostram que, entre março de 2020 e julho de 2022, o Ministério da Saúde recebeu 11.987 pedidos de acesso relacionados à pandemia, fornecendo alta demanda por informações oficiais. Durante o primeiro ano da pandemia, foram registrados 4.898 pedidos, com uma taxa de negativas de 8,43%. No ano seguinte, embora o número de desvantagens tenha diminuído para 4.392, a taxa de negativas subiu para 10,63%. Esse aumento reflete desafios na operacionalização do acesso à informação, agravados pela complexidade dos dados sensíveis durante uma crise (PORTAL DA TRANSPARÊNCIA, 2022).

A necessidade de adequação às normas de proteção de dados influencia diretamente as negativas de acesso. Por exemplo, houve um aumento significativo nos casos em que a justificativa foi a necessidade de tratamento adicional dos dados, passando de 11,11% antes da pandemia para 44,14% durante o período crítico. Esses dados evidenciam a dificuldade em equilibrar o cumprimento da LGPD com a necessidade de manter a transparência em momentos de crise (PORTAL DA TRANSPARÊNCIA, 2022).

Além das questões de transparência e proteção de dados, a pandemia destacou a importância de uma comunicação clara entre os órgãos governamentais e o público. A falta de informações precisas sobre o uso de dados pessoais em iniciativas como o auxílio emergencial gerou desconfiança. Nesse cenário, é importante refletir sobre a preocupação levantada por Giorgio Agamben (2020), que confirma um novo momento de restrição de liberdades individuais sob a justificativa de enfrentamento de emergências. Segundo o autor:

Em muitas partes, vai se formular agora a hipótese de que, na realidade, nós estamos vivendo o fim de um mundo, o das democracias burguesas, fundadas nos direitos, nos parlamentos e na divisão de poderes, que está dando lugar a um novo o despotismo, que, no que diz respeito à perversidade dos controles e à cessação de toda atividade política, será pior do que os totalitarismos que conhecemos até agora. […] E o controle que é exercido por meio das câmeras de vídeo e agora, como foi proposto, por meio dos telefones celulares excede em muito toda a forma de controle exercida sob regimes totalitários como o fascismo ou o nazismo.

Yara Frateschi (2020), ao explicar o argumento de Agamben, destaca que, com o esgotamento das justificativas de restrição das liberdades individuais por motivos como terrorismo, o coronavírus assumiu esse papel, criando um “círculo perverso vicioso” em que os indivíduos, ao clamam por segurança, aceitam a troca de liberdade por proteção, fortalecendo o Estado de Exceção.

Por fim, a pandemia evidenciou a necessidade de integrar a proteção de dados pessoais ao desenvolvimento de tecnologias emergentes, como aplicativos de rastreamento de contato e coleta de dados de saúde. A implementação dessas ferramentas deve seguir os princípios da LGPD desde sua concepção, minimizando riscos e garantindo conformidade com a legislação. Além disso, destaca-se a relevância de capacitar os profissionais envolvidos na gestão de dados, garantindo que estejam preparados para lidar com situações emergenciais e aplicar as normas de forma eficaz.

CONCLUSÃO

A interação entre o direito de acesso à informação e a proteção de dados pessoais no Brasil exemplifica um esforço contínuo para conciliar valores fundamentais como a transparência e a privacidade. Desde o surgimento da Lei de Acesso à Informação (LAI), em 2011, e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), em 2018, o país tem demonstrado avanços significativos no fortalecimento de sua governança democrática. Esses marcos normativos refletem uma tentativa de alinhar o Brasil aos padrões internacionais e garantir que a proteção de dados seja vista não apenas como um direito isolado, mas como um elemento central para a dignidade humana em um mundo cada vez mais digitalizado.

Contudo, a aplicação prática desses direitos continua a enfrentar desafios importantes, especialmente em momentos de crise, como a pandemia de COVID-19. A divulgação de informações confidenciais, muitas vezes ocultas, e o aumento de justificativas imprecisas para negar o acesso à informação pública sob o pretexto da LGPD evidenciam lacunas na governança e na capacitação dos agentes públicos. Essa realidade destaca a necessidade urgente de políticas claras, treinamento especializado e maior integração entre as normativas existentes, como a LAI, a LGPD e o Marco Civil da Internet.

O cenário internacional também oferece lições valiosas. Países europeus, pioneiros na proteção de dados, demonstraram que uma governança eficaz não deve colocar privacidade e transparência em oposição, mas sim buscar sua harmonização. No Brasil, isso requer o fortalecimento dos mecanismos de controle social, a capacitação dos servidores públicos e a promoção de um diálogo contínuo entre governo e sociedade civil.

Por fim, em uma era marcada pela vigilância digital e pelo aumento do fluxo de dados pessoais, a responsabilidade do Estado em proteger os direitos dos cidadãos é cada vez mais central. O reconhecimento da proteção de dados como um direito constitucional, consolidado pela Emenda Constitucional nº 115/2022, representa um passo crucial, mas insuficiente por si só. É necessário continuar investindo em uma governança transparente e responsável, garantindo que o direito de acesso à informação e a proteção de dados coexistem como pilares complementares de uma democracia robusta e inclusiva. Somente assim será construído um futuro possível no qual a privacidade e a transparência não sejam vistas como opostas, mas como partes essenciais de um todo democrático.

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1 Discente do Curso Superior de Direito no Centro Universitário São Lucas – Porto Velho/RO. e-mail: adson.mourao@gmail.com
2 Discente do Curso Superior de Direito no Centro Universitário São Lucas – Porto Velho/RO. e-mail: ellisrleal@gmail.com
3 Docente do Curso superior de Direito no Centro Universitário São Lucas – Porto Velho/RO. e-mail: delnercazevedo@gmail.com