A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO POSICIONAMENTO ANTAGÔNICO ENTRE JEREMY WALDRON E LUÍS ROBERTO BARROSO

CONSTITUTIONAL JURISDICTION: CONSIDERATIONS ON THE ANTAGONISTIC STANCE BETWEEN JEREMY WALDRON AND LUÍS ROBERTO BARROSO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102412011113


Mateus De Souza Silvério1
Cristiano Thadeu E Silva Elias2


RESUMO

O presente artigo aborda o posicionamento antagônico de Jeremy Waldron e Luís Roberto Barroso acerca do revisionismo (ativismo) judicial, analisando-os através, basicamente, de dois artigos publicados pelos autores, O cerne da posição contrária ao revisionismo judicial e A razão sem voto: O Supremo Tribunal Federal e o voto da maioria respectivamente, buscando se posicionar acerca da legitimidade no exercício do controle de constitucionalidade pelas cortes judiciais em detrimento do poder legislativo. Para isso, o artigo utiliza-se de uma abordagem analítica mediante a utilização do método bibliográfico, de modo a evidenciar a posição dos dois autores para que se chegue à conclusão.

PALAVRAS-CHAVE: Ativismo Judicial; Controle de Constitucionalidade; Legitimidade; Democracia; Poder Judiciário e Poder Legislativo.

ABSTRACT

The present article addresses the antagonistic stance of Jeremy Waldron and Luís Roberto Barroso regarding judicial revisionism (activism), analyzing them through, essentially, two articles published by the authors: “The core of the case against judicial review” and “Reason without Vote: The Federal Supreme Court and the Majority Vote” respectively. The aim is to take a position on the legitimacy of judicial courts exercising constitutional control over legislative power. To achieve this, the article employs an analytical approach using the bibliographic method to highlight the authors’ positions, leading to a conclusion.

Key-words: Judicial Activism; Constitutional Review; Legitimacy; Democracy; Judiciary and Legislative Power.

1.     INTRODUÇÃO

Tema amplamente debatido na academia e cerne de diversas teorias do direito moderno, o exercício do controle de constitucionalidade pelo poder judiciário é matéria polêmica e de muita controvérsia, ainda mais sendo notório o levante do poder judiciário na defesa dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, de modo a transformar o poder legislativo em mero coadjuvante.

Um dos principais opositores do crescente protagonismo do judiciário no exercício do revisionismo judicial é o filósofo neozelandês Jeremy Waldron, defensor de um revisionismo judicial meramente procedimental, limitando o poder judiciário à análise do processo legislativo de criação das leis, não compactuando da revisão do poder judiciário quanto ao conteúdo da lei promulgada. Esse entendimento é exposto no primeiro capítulo de seu livro A dignidade da legislação e em seu artigo, intitulado, O cerne da posição contrária ao revisionismo judicial, objeto de análise no segundo título deste artigo.

No terceiro capítulo deste artigo, o autor traz o artigo A razão sem voto: O Supremo Tribunal Federal e o voto da maioria uma fundamentação do Eminente Ministro Luís Roberto Barroso, o qual se opõe à tese de Jeremy Waldron, trazendo de forma cirúrgica a defesa da legitimidade do poder judiciário na garantia dos direitos da minoria e na manutenção da ordem democrática.

Com isso, após esmiuçadas as duas posições antagônicas, passa o autor às suas considerações finais, de modo a evidenciar seu posicionamento acerca do exercício pelo judiciário do controle de constitucionalidade.

2.     A CRÍTICA DE JEREMY WALDRON AO REVISIONISMO JUDICIAL

Jeremy Waldron (1953) é um dos críticos mais ferrenhos acerca do protagonismo exercido pelos Tribunais Superiores em detrimento da atividade legislativa e, em sua obra, A dignidade da legislação o referido autor afirma que a balbúrdia do Poder Legislativo não é sinônimo de patologia política, podendo fazer muito mais pela liberdade e criando ótimas leis do que o berço esplêndido da calmaria onde se encontram os juízes.3

Waldron afirma que as leis criadas pelo legislativo possuem uma característica tão superficial e arbitrária que não podem ser equiparadas a palavra direito, apesar de tê-las nas margens (periferia) do trabalho diário dos advogados e dos magistrados no âmbito do direito. Para ele, a “legislação carece de parte da dignidade4 visto que o sistema consuetudinário, ao contrário das leis, se desenvolve através de uma linhagem fundamentada, diferenciando-as:

“Um juiz quando legisla no direito consuetudinário (se é isso que ele faz) tem, pelo menos, a gentileza de fingir que está descobrindo o que a lei era o tempo todo: ele não se apresenta explicitamente como um legislador. (…)

A legislatura, por contraste, tem a imprudência de dizer: ‘Esqueçam o que a lei foi o tempo todo. É assim que ela vai ser agora.’ E supõe que a lei foi mudada – mudada, como digo, descaradamente – em virtude de nada mais decoroso do que o reconhecimento pela comunidade da intenção deliberada do corpo legislador de fazer exatamente isso.”5


3 WALDRON, Jeremy. A indignidade da legislação. In. A dignidade da legislação. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 41.

4 Ibidem, p. 12.

5 Ibidem, p. 13-14.

Segundo o autor, seria essa mudança deliberativa da legislatura que H. L. A. Hart considerava a diferença entre o direito e a moral. Enquanto as regras jurídicas poderiam ser alteradas ou revogadas pelo legislador quando bem entenderem, a moral continha um bloqueio de alteração, não se permitindo fazê-la de modo deliberado, pois estavam enraizadas sociologicamente no íntimo de determinada sociedade assim como as tradições e as práticas culturais, no que Hart denomina de padrão de conduta e pressupõe a existência do direito:

“Em qualquer grupo numeroso, as normas gerais, os padrões de conduta e os princípios – não orientações específicas transmitidas separadamente a cada indivíduo – constituem necessariamente o principal instrumento de controle social. Se não fosse possível transmitir, sem nenhuma orientação adicional, padrões gerais de conduta compreensíveis para multidões de indivíduos – padrões que exigem deles certos comportamentos em determinadas circunstâncias –, não existiria nada do que hoje entendemos por direito.” 6

Todavia, afirma o autor que mesmo os positivistas mais modernos que recorrem ao pensamento de regra de reconhecimento de Hart orientam-se, ao contrário do que se espera do positivista, não pela legislatura e sim pelo reconhecimento do tribunal da validade do resultado de outro tribunal, fazendo desaparecer a legislatura deliberada no âmbito do positivismo jurídico.

Hart, nesse sentido, atribui algumas virtudes aos magistrados que os legitimam ao exercício de interpretação das leis, excluindo o caráter mecânico e, aquilo que é alvo de crítica de Waldron, o caráter arbitrário das decisões. Para Hart, essas virtudes seriam:

“…a imparcialidade e a neutralidade ao analisar as alternativas; a consideração pelos interesses de todos os afetados; e a preocupação de oferecer algum princípio geral aceitável como base racionalmente ponderada para a decisão.”7

Observe que é essa característica de neutralidade e intelectualidade que, segundo Jeremy Waldron, dá à jurisprudência o ar de legitimidade ao criar


6 HART, H. L. A. O conceito de direito. Tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 161.

7 Ibidem, p. 264.

determinadas normas de direito, tratando como perigosa a concentração dessas alterações na legislação pelo Poder Judiciário que assim o faz sob o argumento de que o Poder Legislativo seria uma fonte do direito humana diretamente política, passíveis de negociatas e de frequentes contestações. Entende ele que não há intenção legislativa, visto que se tratando o corpo legislativo de um corpo heterogêneo, não uniforme e tampouco individual, não se pode retirar das atas legislativas quaisquer intenções interpretativas que não sejam apenas aquelas “convencionalmente associada à linguagem da decretação”8, sendo essa a razão pela qual afirma existir um desconforto jurisprudencial acerca da legislação em consonância com a ideia iluminista “de que quanto maior a assembleia legislativa, mais baixo o nível de sabedoria e conhecimento dos legisladores.”9

Ao entender não ser possível retirar as intenções da criação de determinada legislação, a tese defendida por Waldron me parece ser insuficiente, pois mesmo John Hart Ely, crítico do exercício do controle de constitucionalidade pelo judiciário, admite, em casos peculiares, ser possível mediante uma análise profunda a real intenção (motivação) do legislador na criação de determinada lei.

“Entretanto, essa questão tem-se mostrado difícil de definir e de captar; por isso, talvez valha a pena rever alguns dos casos decididos. Tiraremos daí duas conclusões, necessárias e suficientes para convencer os céticos: em primeiro lugar, que existem casos concretos em que uma motivação inconstitucional, mesmo da parte do Legislativo, pode ser constatada com toda plausibilidade;” 10

Impende destacar que Ely se posiciona contrário a utilização da motivação legislativa para o exercício do controle de constitucionalidade pelo judiciário, considerando uma tragédia eventual expansão da consideração de tal argumento11, no entanto, mesmo assim, não considera que a motivação inexista na criação de determinada lei, admitindo inclusive, como acima transcrito, sua verificação.


8 WALDRON, Jeremy. A indignidade da legislação. In. A dignidade da legislação. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 31.

9 Ibidem, p. 37.

10 ELY, John Hart. Democracia e desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. Tradução Juliana Lemos. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p. 186.

11 Ibidem, p. 195.

Retornando à Jeremy Waldron, esse potencializa ainda mais sua crítica ao revisionismo judicial, entendido aqui como ativismo judicial, no artigo intitulado O cerne da posição contrária à revisão judicial, de modo a sustentar a vulnerabilidade da revisão judicial através de dois argumentos centrais, sendo, o primeiro, de que a revisão judicial retira o foco da matéria controvertida, conduzindo à sociedade em geral para o debate de questões secundárias, tais como, precedentes, textos e interpretações. Segundo, mais comum no argumento contrário à revisão, de que não teria o poder judiciário legitimidade política para revisar legislações promulgadas pelo Poder Legislativo democraticamente eleito.

Preocupando-se em delimitar sua crítica, Waldron bem pontua que para o seu artigo a expressão revisão judicial refere-se tão somente às revisões judiciais promovidas pelo Poder Judiciário contra leis ordinárias promulgadas pelo Poder Legislativo, não se adentrando ao objeto desse estudo atos administrativos, resoluções ou até mesmo ações do Poder Executivo. Desse modo, diferencia o autor a revisão judicial em revisão judicial forte e revisão judicial fraca. Por revisão judicial forte se entende a possibilidade da Suprema Corte não aplicar determinada legislação adequada ao tema em análise ou, até mesmo, invalidar a legislação. Já na revisão judicial fraca, as cortes supremas poderiam examinar a conformidade da legislação com os direitos individuais, mas não deixar de aplicá-las.12

Uma segunda distinção em seu artigo faz referência aos direitos individuais e seu lugar no âmbito do sistema constitucional, afirmando que apesar de defesas filosóficas argumentarem que o poder judiciário teria mais aptidão para resolver tais situações sobre direitos, na realidade esse argumento se subordina à uma questão estrutural, ou seja, de que as cortes constitucionais teriam legitimidade na defesa das regras constitucionais:

“Though philosophical defenses of the practice are often couched in terms of the judiciary’s particular adeptness at dealing with propositions about rights, in reality that argument is subordinated to a defense of the structural role the courts must play in upholding the rules of the Constitution.”13 (2006, p. 1357- 1358)


12 WALDRON, Jeremy. The core of the case against judicial review. The Yale Law Journal, New Heaven, EUA, v. 115, n. 116, p. 1354-1355.

13 Ibidem, p. 1357-1358.

Waldron ainda distingue a revisão judicial entre a revisão realizada a posteriori, tal como se faz na corte constitucional estadunidense, e a ex ante que daria à corte constitucional a última palavra antes da promulgação de determinada legislação, ou seja, agiria como uma espécie de analista em abstrato do projeto de lei. A quarta e última distinção evidenciada é a de que a revisão judicial pode ser realizada por cortes judiciais comuns ou por cortes especializadas.

De modo a focar seu argumento e distinguir casos em que a objeção ao revisionismo judicial é latente (casos centrais) daquele em que não o são (casos não centrais) Waldron traça no decorrer de seu artigo 4 (quatro) pressupostos com que pretende trabalhar seu argumento, sendo eles: [I] uma sociedade democraticamente madura, com instituições democráticas em bom funcionamento, tal como um legislativo guiado pela cultura democrática, responsável em suas deliberações e pautado na igualdade política, presumindo que o próprio legislativo corrija quaisquer desvirtuamentos desse sentido igualitário; [II] instituições judiciais consolidadas e politicamente independentes, de modo que não sofram quaisquer interferências político-eleitoreiras, presumindo o autor estar diante de cortes que não agem de ofício e tampouco tenham função consultiva, lidam com matérias binárias e fazem referência e levam em consideração suas próprias decisões anteriores; [III] que exista um forte compromisso da sociedade com os direitos individuais e da minoria para que não se esbarre no contraponto da tirania da maioria; e [IV] que apesar de existirem divergências sobre direitos, tais divergências se dá de forma razoável e em boa-fé, permitindo levar os direitos à sério mesmo em situações centrais conflitantes de divisores de água14.

Assim, traz a forma de seu argumento, afirmando que “no decision-procedure will be perfect15 considerando dois tipos de razões para formular e avaliar um processo decisório, quais sejam, as razões relacionadas ao processo, que nada mais são do que a obrigação de determinada pessoa decida sobre determinada questão controvertida, e as razões relacionadas ao resultado, definidas como as razões produzidas no processo decisório que garantam um resultado apropriado.


14 Ibidem, p. 1360.

15 Ibidem, p. 1372.

Nesse sentido, tem-se que as razões relacionadas ao resultado nem sempre satisfazem as expectativas, sendo inconclusivas e não corroborando em nada para a defesa de uma revisão judicial, enquanto, pelo contrário, as razões relacionadas ao processo identificam unilateralmente a legitimidade do Poder Legislativo de propor e alterar determinada legislação, saindo esse último vitorioso da disputa.

Ao analisar as posições favoráveis à revisão judicial, afirma que seus defensores, em muito limitam sua argumentação em três vantagens relacionadas as razões de resultado. Desta forma combatendo cada uma delas, inicia o autor pela suposta vantagem de que a corte constitucional estaria adstrita à casos específicos, o que prontamente rechaça afirmando que quando determinado caso chega à suprema corte constitucional seu caráter especial já se degenerou, tornando-o generalizado quando da proliferação da decisão. Outro ponto argumentativo aos pró revisionismo seria que a corte constitucional pauta sua decisão sempre em consonância e obediência à uma carta de direitos, tendo o autor combatido tal argumento afirmando que “the text of a Bill of Rights may distort judicial reasoning16. Por fim rebate o argumento da racionalidade e da fundamentação em uma decisão jurídica, defendido por Hart, dizendo que a própria fundamentação da decisão estará atrelada à uma Carta de Direitos que poderá ser antiquada e não mais representar uma deliberação racional, moral e política.

Ao argumento de Waldron sobre a não racionalidade da argumentação das decisões, Morais e Ghiggi também tratam da matéria no artigo intitulado A vitória pírrica da democracia constitucional, afirmando que no Supremo Tribunal Federal brasileiro a fundamentação “tornou-se verdadeira ‘demonstração de erudição’, com citações da doutrina e jurisprudência do apreço de cada Ministro” não podendo ser verificada a racionalidade da decisão e sua importância para casos futuros17, posicionamento, o qual, não compactuo, pois além de generalizar a atuação dos Ministros da Suprema Corte, ao que me parece, não houve uma análise profunda dos votos tratados como paradigmas para o referido artigo, podendo citar como exemplo, o voto do Excelentíssimo Ministro Luís Roberto Barroso quando do julgamento do HC 126.292/SP.


16 Ibidem, p. 1382.

17 MORAIS, F. S. D., & GHIGGI, F. G.. (2019). A vitória pírrica da democracia constitucional. Revista De Investigações Constitucionais, 6(1), 135–164. Disponível em: https://doi.org/10.5380/rinc.v6i1.56004. Acessado aos 3 de dez. de 2023. p. 156.

No referido julgamento em que se decidiu pelo cumprimento antecipado da pena após condenação proferida por órgão colegiado de segunda instância é clara a racionalidade na argumentação do referido Ministro ao prolatar seu voto, evidenciando

3 (três) consequências negativas a respeito da não execução da pena antes do trânsito em julgado, sendo: [I] a interposição de infindáveis recursos; [II] a seletividade do sistema prisional, visto que réus financeiramente mais abastados dificilmente são privados de liberdade, pois utilizam-se de grandes bancas da advocacia para a interposição de sucessivos e protelatórios recursos o que obsta o cumprimento da pena; e [III] o descrédito da justiça perante à sociedade.18

Ressalte-se que o fato de entender que a decisão foi racionalmente fundamentada não me faz compactuar com o entendimento do Excelentíssimo Ministro no caso citado, havendo argumentos sérios e racionais que defendem também o contrário do que decidido naquele caso.

Waldron, passa então a defender as razões relacionadas ao processo como um argumento importantíssimo para sua tese contrária a revisão judicial. Em suma, a legitimidade para propor, revogar ou alterar quaisquer leis é do Poder Legislativo, defendendo que para isso, tem-se a necessidade de recorrer ao primeiro pressuposto evidenciado neste artigo, ou seja, de termos um Poder Legislativo democraticamente razoável norteado pela igualdade política, o que me parece bastante utópico diante das conjunturas do poder legislativo global.

Por fim, conclui que seus pressupostos sob os quais fundamenta sua tese não são irrealistas, do qual, como já dito acima, discordo, bem como que nem em todos os casos a revisão judicial legislativa é inapropriada, admitindo-a quando não verificada a regularidade do processo legislativo, ou seja, quando o processo legislativo carecer de vício formal, afirmando que as divergências sobre os direitos não são desarrazoáveis, podendo as pessoas discordarem e mesmo assim levarem os direitos a sério.


18 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 126.292. Min. Rel. Marco Aurélio. Relator para o acórdão:

Min. Rel. Luís Roberto Barroso. Primeira Turma. Julgado em 09/08/2016.

Segundo Rafael Alem Mello Ferreira, seria esse o exercício do controle de constitucionalidade exigido dos tribunais constitucionais, visto que abrangeria tão somente a tutela do seu procedimento, impossibilitando decisões acerca do conteúdo deliberado em assembleia e, assim, assegurando os princípios norteadores de uma democracia.

“Ocorre que, em uma sociedade que pressupõe os destinatários autores, não se pode conformar nenhuma forma de arbítrio por parte do Judiciário. A criação de normas ou a concretização de projetos para o futuro da sociedade não pode ser dirigida por um tribunal. Se isso ocorrer não estaremos diante da guarda da Constituição, e sim da usurpação da Constituição pelo tribunal. O seu papel não é, portanto, de produzir conteúdo, mas de tutelar o procedimento.”19

No mesmo sentido, Jürgen Habermas defende que o tribunal constitucional deve se atentar para que o processo de normatização ocorra em consonância com a política deliberativa, adotando menos um caráter metodológico procedimental e mais um caráter politólogo, assumindo posição contrária ao revisionismo judicial de caráter arbitrário mediante a utilização de uma jurisprudência de valores.20

3.     LUÍS ROBERTO BARROSO E A DEFESA DA VANGUARDA JUDICIAL NA CONDUÇÃO DA CONSTRUÇÃO DE DIREITOS

Na contramão do pensamento de Waldron, o Ministro Luís Roberto Barroso destaca a importância e a legitimidade “concorrente” do Colendo Supremo Tribunal Federal na vanguarda legislativa com o asseguramento dos direitos e garantias fundamentais constitucionais através de decisões fundamentadas na defesa desses direitos.21


19 FERREIRA, Rafael Alem Mello. O projeto inacabado de uma teoria da decisão judicial: de Habermas à Streck, na luta por decisões democráticas. Belo Horizonte: Dialética, 2019. p. 351.

20 HABERMAS, Jürgen. Justiça e legislação: sobre o papel e a legitimidade da jurisdição constitucional. In: Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. 2. ed. V. I. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 344.

21 BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: O Supremo Tribunal Federal e o voto da maioria. Revista Brasileira de Políticas Públicas. V. 5, 2015, p. 25-52.

Esse é um posicionamento também adotado pelo filósofo alemão Robert Alexy, o qual afirma que da mesma forma que uma maioria formada no poder legislativo não poderia advogar para si mesma na realização de um exercício de autocontrole, tem-se no poder judiciário a única forma racional de um controle da jurisdição constitucional.

“Se a maioria parlamentar não deve controlar a si mesma, o que significaria ser juiz em causa própria, sobra apenas a alternativa de alguma forma de jurisdição constitucional. O fato de um tribunal constitucional não apenas argumentar, mas também decidir, nada tem de irracional. De forma geral, vale a ideia de que a razão prática pode ser realizada apenas no âmbito de um sistema jurídico que vincule, de forma racional, argumentação e decisão. À luz dessa reflexão, a institucionalização de uma jurisdição constitucional cujas decisões sejam passíveis e carentes de fundamentação e crítica em um discurso racional no âmbito dos direitos fundamentais é algo inteiramente racional.”22

Barroso narra nas partes iniciais de seu artigo A razão sem voto uma breve história da relação entre o direito e o regime autoritário militar brasileiro, de modo que naquele momento havia-se dois extremos sem nenhum norte normativo, de um lado o pensamento constitucional tradicional, mantenedor do autoritarismo instaurado no Brasil, e de outro uma guinada da academia ao estudo da teoria crítica marxista que condenava a autoridade constitucional do regime militar, todavia, não via no direito fonte de avanço social.23 Com o fim da ditatura militar, viu-se na promulgação da Constituição Federal de 1988 uma nova fonte de simples promessas, muitas delas já contidas nas constituições antecessoras, inclusive na de 1967, época da ditadura militar, fazendo da lei maior uma forma de sustentação da classe dominante, cheia de promessas vazias sem nenhuma congruência com a realidade brasileira daquele momento. Segundo Barroso, somente após os idos dos anos 2000 que o Supremo Tribunal Federal assume, de forma progressiva, sua responsabilidade interpretativa da Constituição de 1988.24

No mundo, somente após a segunda guerra mundial altera-se o quadro do Estado legislativo de direito para o Estado constitucional de direito, o que define o neoconstitucionalismo, trazendo em seu bojo uma constitucionalização do direito, mediante a expansão dos direitos e das normas constitucionais, as quais se sobrepõe as normas infraconstitucionais e mais, as norteiam através da força normativa da constituição, para atingir seus direitos fundamentais. Desta forma, segundo o autor, o Poder Judiciário amplia suas prerrogativas, deixando de lado seu caráter puramente técnico na aplicação das leis para preservar e até mesmo ampliar os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, com base no princípio da dignidade da pessoa humana.25


22 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2017. P. 574.

23 BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: O Supremo Tribunal Federal e o voto da maioria. Revista Brasileira de Políticas Públicas. V. 5, 2015, p. 25-52. p. 26.

24 Ibidem, p. 27.

Para que essas transformações tenham ocorrido, houve uma ruptura no pensamento jurídico clássico e liberal, pautado nas relações entre os particulares, sendo o direito objeto de um formalismo lógico, próprio do ideal kelseniano, em que ao juiz caberia analisar o fato e tão somente aplicar a lei. Ocorre que tal premissa não se sustenta, acabando por haver diversas lacunas, competindo à discricionariedade e à ponderação do magistrado a aplicação da norma construída de modo argumentativo.26

E é sobre essa problemática da discricionariedade que Robert Alexy tenta em sua Teoria da Argumentação Jurídica limitar o campo da subjetividade do julgador através da própria ponderação de princípios, tidos para ele como uma forma de otimização do direito, e de uma argumentação racional. Nesse sentido, Alexy:

“Também algumas considerações do Tribunal Constitucional Federal em uma decisão recente evidenciam como desejável uma clareza do que deve ser entendido por argumentação racional. O Tribunal constata, primeiro, que em relação ao art. 20, § 3.º, da Lei Fundamental, ‘o Direito… não se identifica com o conjunto de leis escritas’. O juiz não está, portanto, ‘constrangido pela Lei Fundamental a aplicar ao caso concreto as indicações do legislador dentro dos limites do sentido literal possível’. A tarefa da aplicação do Direito pode ‘exigir, em especial, evidenciar e realizar valorações em decisões mediante um ato de conhecimento valorativo em que não faltam elementos volitivos. Tais valorações são imanentes à ordem jurídica constitucional, mas não chegaram a ser expressas nos textos das leis ou o foram apenas parcialmente. O juiz deve atuar sem arbitrariedade; sua decisão deve ser fundamentada em uma argumentação racional.”27


25 Ibidem, p. 27-28.

26 Ibidem, p. 31-32.

27 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 35.

Essa superação do direito positivista-lógico ascende uma nova forma de pensamento jurídico pós-positivista, mais público e menos liberal, que consiste na superação da diferença imposta entre Direito e Moral, reaproximando-os. Assim, reintroduz-se o caráter normativo dos princípios e desenvolve-se uma nova teoria dos direitos fundamentais, com base na dignidade da pessoa humana.

A sociedade contemporânea, segundo Barroso, é marcada pela heterogeneidade em um mundo fragmentado, onde paradoxalmente coexistem a fome, o terrorismo e a pobreza junto a uma redução da mortalidade infantil com o aumento da expectativa de vida. Diversos são os desafios nessa sociedade plural, com o aparecimento cada vez mais de casos que não tenham nenhum amparo legislativo, ou seja, hard cases, citando o autor alguns exemplos, dentre os quais destaco se poderia ou não a mulher utilizar-se do esperma de seu marido já falecido para sua fertilização.28

Exemplos de casos como esse acabam acarretando um desaparecimento do limite entre legislação e jurisdição, pois para solucionar um caso difícil (hard case) deve o magistrado construir lógica e de forma argumentativa sua decisão, mediante o uso da ponderação, de modo que ela só venha a ter legitimidade se convencido o auditório sobre sua justeza e correção. Isso não quer dizer que está o magistrado imbuído de uma discricionariedade judicial clássica, aonde, segundo Kelsen, a escolha do magistrado em um caso difícil, sem amparo legislativo, estaria sujeita a um ato político, ou seja, sem nenhuma fundamentação. Muito pelo contrário, conforme afirma o autor, a discricionariedade judicial estaria subordinada a valores morais e éticos constitucionalmente pré-estabelecidos que levariam o magistrado, mediante o uso da ponderação, a decidir conforme os princípios constitucionais norteadores. Estaria, portanto, o magistrado obrigado a decidir, de forma correta e íntegra, não podendo contrariar a si mesmo (seus próprios precedentes) ou ignorar o sistema jurídico vigente.29

Por essa razão é que Barroso defende que o Poder Judiciário está embebido da função garantidora da ordem constitucional, envolvendo dois tipos de atuação, a contramajoritária e a representativa. Observe que o exercício da função


28 BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: O Supremo Tribunal Federal e o voto da maioria. Revista Brasileira de Políticas Públicas. V. 5, 2015, p. 25-52. p. 30-31.

29 Ibidem, p. 32-33.

contramajoritária é demonstrado quando o judiciário declara inconstitucional atos normativos emanados pelo Presidente da República ou pelo Congresso Nacional, os quais foram democraticamente eleitos pela maioria, sendo dever do judiciário exercer tal função, pois cabe a ele a proteção dos direitos e garantias fundamentais, inclusive da minoria, bem como a proteção do estado democrático. Observe que a noção de maioria poderia perfeitamente deturpar a democracia com a opressão de minorias e a instauração de governos autoritários em uma espécie de tirania da maioria.30

Já em relação a representatividade judiciária Barroso compactua da noção de representação argumentativa de Robert Alexy que afirma ser necessário não somente a existência de argumentos plausíveis, mas também que parte suficiente da sociedade respeite e aceite tais argumentos como corretos31.

Observe que ao defender a representatividade do judiciário, o autor afirma que houve nos últimos anos um enfraquecimento do Poder Legislativo na aproximação com seus eleitores, dando esses maior ênfase ao Poder Executivo e ao Judiciário. A referida alegação, com exclusão da parte tocante ao judiciário, foi nomeada por Bernard Manin como a democracia de público em que se tem verificado ultimamente uma crise de representatividade político-partidária, com o afastamento ideológico, econômico e sociocultural dos eleitores com os partidos políticos, emergindo daí figuras políticas contraditórias e de palco32.

Desta forma, destaca Barroso que o modelo atual não pode ser comparado a uma supremacia do poder judiciário, pois apesar do poder judiciário ser o intérprete final da lei, este não é o dono da Constituição, somente exercendo sua jurisdição constitucional após a devida provocação pelos interessados, inclusive com a possibilidade de participação de entidades representativas da população, concluindo ele que cada vez mais se exige do Poder Judiciário o desempenho de sua função contramajoritária e representativa, atendendo aos anseios sociais não solucionados pelo processo político majoritário, todavia, ao julgador, cabe decidir interpretando o sentimento social, sempre norteado pelos princípios constitucionais, normas, precedentes e por valores civilizatórios.33


30 Ibidem, p. 36.

31 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução Luís Afonso Heck. 4. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015. p. 165.

32 MANIN, Bernard. As metamorfoses do governo representativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais. 1995, p. 5-34.

4.     CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observe que o exercício do controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário e as críticas ao ativismo judicial não somente no Brasil como em todo o mundo são matérias predominantes na academia, de modo que sua problemática foi criadora das mais diversas teorias a respeito do controle da arbitrariedade do julgador e até mesmo a limitação dos tribunais constitucionais.

Apesar de criticada por diversos e notáveis autores, dentre eles Jeremy Waldron, John Hart Ely, Rafael Alem Melo Ferreira e Jürgen Habermas, como acima exposto, entendo que a vanguarda do poder judiciário na defesa dos direitos fundamentais e da garantia da ordem democrática é medida de vital importância à própria democracia e não ao contrário. Ressalte-se que através desse protagonismo que diversas decisões foram tomadas pelo Colendo Supremo Tribunal Federal na defesa da garantia dos direitos de uma minoria esquecida pelo Poder Legislativo, como se tem no exemplo do julgamento da ADPF 132 em que se equiparou a união de pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis34.

Ademais a legitimidade do judiciário pode ser verificada não somente pela sua representação argumentativa como defendido por Alexy e Barroso, mas também na própria confiança da sociedade em levar seus problemas aos olhos do julgador com o objetivo da resolução de seu conflito, respeitando a decisão prolatada pelos julgadores mesmo que contrária aos seus interesses. O poder judiciário, portanto, seria a última barreira entre o direito alegado pela parte e sua validação.

De outra forma, observe que o poder judiciário não age de ofício e sim após provocação, sendo que uma vez provocado não caberia ele isentar-se de decidir acerca da matéria posta sob o crivo de sua análise, ou seja, ao ser indagado sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma determinada lei, ou da extensão de determinados direitos fundamentais àquela determinada minoria que não esteja sendo constitucionalmente abrangida, seria inconcebível que o poder judiciário se eximisse de sua obrigação institucional, garantidora da ordem democrática.


33 BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: O Supremo Tribunal Federal e o voto da maioria. Revista Brasileira de Políticas Públicas. V. 5, 2015, p. 25-52. p. 46-47

34 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132. Min. Rel. Ayres Brito. Plenário do STF. Julgado em 05/05/2011.

acerca da matéria posta sob o crivo de sua análise, ou seja, ao ser indagado sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma determinada lei, ou da extensão de determinados direitos fundamentais àquela determinada minoria que não esteja sendo constitucionalmente abrangida, seria inconcebível que o poder judiciário se eximisse de sua obrigação institucional, garantidora da ordem democrática.

5.     BIBLIOGRAFIA

ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução Luís Afonso Heck. 4. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015.

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1 Mestrando em constitucionalismo e democracia na Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM), Pós-graduado em direito empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGVLaw), Graduado em direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM), Graduado em administração pela Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS), pesquisador e advogado. E-mail: msouzasilverio@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7099802559750824.

2 Professor Titular de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM. Doutor em Direito Penal da Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Direito do Estado da Universidade de São Paulo – USP. Editor Titular da Ratio Juris (Pouso Alegre. Online). Membro da Associação Brasileira dos Constitucionalistas – Instituto Pimenta Bueno. Advogado.