O CONCEITO DE LOGOS NA TEOLOGIA JOANINA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202411301802


Adaías Souza Belo


Introdução

Este artigo busca explorar o conceito de logos na teologia de João, analisando seu papel como fundamento cristológico e chave interpretativa do evangelho. O termo grego logos — traduzido como “Verbo” ou “Palavra” —, tal como utilizado e reelaborado por João, apresenta Jesus Cristo como a revelação divina plena, mediando a criação e a redenção, isto é, a partir de uma manifestação humana do verbo, algo que exploraremos no decorrer do presente texto. De modo mais preciso, é imprescindível destacar que o conceito de logos é um dos elementos mais ricos e complexos da teologia joanina, sendo introduzido logo no prólogo do Evangelho: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (Jo 1:1). Essa passagem destaca Jesus como a manifestação do próprio Deus e relaciona-o com a criação, uma conexão que remonta a Gênesis 1, onde Deus cria por meio de sua palavra, e que, para além disso, segundo João, estabelece uma dimensão existencial humana.

A afirmativa de João não é simples em sua proposição, tampouco em suas consequências, que estabelecem interface tanto com importantes discussões cristológicas quanto com  o uso do termo logos em contextos de discussão distintos, tais como os das tradições filosóficas do mundo greco-romano, com representantes tais como o pensamento estóico e o pensamento platônico, para citar alguns, que concebiam o Logos como razão transcendente ou princípio ordenador do universo1, um princípio que coaduna toda uma constelação conceitual, a saber: verdade, essência, justiça, ordem, beleza etc.

A partir de uma abordagem exegética e teológica, examinaremos, antes de tudo, como o autor do Evangelho de João utiliza o termo para conectar a tradição judaica e a filosofia helenística, revelando uma síntese única na figura do Cristo encarnado. Feito isso, passaremos a uma investigação das implicações hermenêuticas desse conceito na teologia cristã e sua relevância para o pensamento contemporâneo. Dito de outro modo, neste artigo, exploraremos como João interpreta e ressignifica o conceito de logos, fazendo dele o centro da sua cristologia, considerando que a abordagem joanina não apenas introduz uma teologia da Palavra, mas também fornece uma estrutura hermenêutica para compreender a pessoa de Cristo como revelação encarnada.

2.  Referencial teórico

1. O Contexto Judaico e Helênico do logos 

O termo logos tem raízes tanto na tradição judaica quanto na filosofia grega, e, no escopo do presente texto, importa-nos investigar a pluralidade de significados da ponte produzida pela concepção de logos que se tornou fundamental para a discussão cristológica. No pensamento hebraico, a “Palavra de Deus” é ativa e criativa, como demonstrado em Gênesis, onde Deus cria o mundo por meio de sua fala. Nos escritos sapienciais, como Provérbios e Sabedoria, a Palavra e a Sabedoria são personificadas como agentes da criação e mediação entre Deus e a humanidade. Quer dizer, a palavra como meio de revelação e execução de Deus, quanto a isso, afirma Oscar Cullmann: “Há no Antigo Testamento, toda uma série de passagens nas quais a ‘Palavra de Deus’, se não está personificada é, ao menos, considerada como uma entidade independente e que passa a ser objeto de reflexão teológica em razão do enorme poder de sua ação” (2008, p. 335).

Logos identificado à “palavra divina” desempenha, portanto, papel fundamental para compreender as atividades e modo de revelação daquilo que é divino, nesse sentido, ainda aponta Cullmann: “ […] o logos é um ser mitológico, intermediário entre Deus e o homem. Não é tido só por criador do mundo é, em primeiro lugar, o portador da revelação e a este título, Salvador[…]”, e isso no que se refere a seu estatuto, além de que “pode também, transitoriamente, revestir-se da forma humana, porém, sempre dentro de um quadro mítico e doceta; jamais no quadro histórico de uma verdadeira encarnação” (2008, p. 331). Este último elemento apontado por Cullman é justo a pedra de toque do duplo horizonte de nosso trabalho, isto é, tanto da particularidade da proposta cristológica Joanina quanto sua interface com a tradição helenística.

Antes de adentrar propriamente a proposta Joanina, faz-se necessário compreender alguns elementos centrais concernentes à concepção de logos no contexto helenístico. Certamente, por se tratar de um extenso e rico período de reflexões que se organizam em torno de tal concepção, revisitaremos apenas as elaborações que servem de subsídio para abordarmos a particularidade da proposta Joanina. No contexto grego, o logos é um conceito filosófico central.

Para Heráclito, o logos é o princípio racional que governa todas as coisas: “[…]a ordem e o padrão podem ser percebidos em meio ao fluxo e ao refluxo eternos e incessantes das coisas no logos – o princípio eterno de ordem no universo” (LADD, 2009, p. 357) Assim, no pensamento de Heráclito, o logos é um ordenamento próprio, executor e mantenedor, acerca da verdade do mundo, que deve ser considerado em seu estatuto próprio para o pensamento filosófico naquilo que se manifesta enquanto um compromisso com Sophia – verdade/sabedoria. Importante, ressaltar, nesse sentido, que devido ao caráter impermanente do logos tal como concebido por Heráclito, sua dimensão enquanto “palavra” manifesta-se, como se pode notar em uma breve pesquisa aos textos do filósofo, muito mais atrelada à dimensão poética que racional, no sentido das teorias de estabilização da linguagem e seu compromisso quase descritivo da verdade, tal como desenvolvida no pensamento parmenidiano e, posteriormente, manifesto nos princípios lógicos de Aristóteles.

Assim, como observado no exemplo de Heráclito, o logos apresente variações em relação à diversas dimensões das reflexões metafísicas, justo por seu caráter estruturante, que se estenderá da antiguidade clássica ao helenismo. Nos estóicos, por exemplo, o logos é visto como a razão cósmica que permeia o universo, por isso a possibilidade de sua estabilização via discursividade filosófica compreendida enquanto discurso racional. No pensamento platônico, a ideia de uma razão transcendental que ordena o cosmos prepara o terreno para a recepção do logos na teologia cristã.

2. O logos na Cristologia de João 

João, ao usar o termo logos, faz uma síntese entre essas duas tradições. Ele não apenas incorpora a ideia judaica de que Deus age por meio de sua Palavra, mas também utiliza o conceito grego de um princípio racional divino. No entanto, ele vai além de ambas as tradições ao afirmar que o logos se fez carne e habitou entre nós (Jo 1:14).

O Evangelho de João coloca o logos como fundamento da cristologia. A afirmação de que o Verbo era Deus (Jo 1:1) destaca a unidade essencial entre Cristo e o Pai, enquanto a declaração de que o Verbo estava “com Deus” aponta para uma distinção pessoal. Esse equilíbrio entre unidade e distinção é central para a compreensão cristã da Trindade.

Além disso, o logos joanino não é apenas um mediador da criação, mas também da redenção. João apresenta Jesus como a luz que ilumina todo homem (Jo 1:9) e como aquele que traz vida eterna àqueles que o recebem. Assim, o logos é ao mesmo tempo a Palavra criadora e a Palavra salvadora. Ele não apenas revela a vontade de Deus, mas é ele próprio a revelação plena e definitiva de Deus.

3. O logos e a Encarnação: O Verbo Se Fez Carne 

A declaração “o Verbo se fez carne” (Jo 1:14) é um dos pilares teológicos do Evangelho de João. A encarnação do logos representa a entrada definitiva de Deus na história humana. Aqui, João oferece uma visão radicalmente nova: o princípio eterno e divino não permaneceu abstrato ou distante, mas assumiu a condição humana em sua totalidade.

A encarnação é fundamental para a teologia joanina porque revela que a comunhão com Deus não se dá por meio de abstrações filosóficas ou rituais religiosos, mas pela pessoa de Jesus Cristo. Assim, o logos não é apenas uma ideia ou força, mas uma pessoa com quem é possível estabelecer um relacionamento.

3. Metodologia

O caráter acadêmico-científico desse projeto conduziu o presente estudo seguindo critérios da hermenêutica, isto é, análise e interpretação de textos de literatura primária e secundária, no caso: textos bíblicos e seus comentadores a partir de temas. A coleta de dados seguiu dois procedimentos principais, quais sejam (i) a interpretação de trechos selecionados das obras segundo um método de análise conceitual que tem por foco a precisão argumentativa e (ii) produção de textos conforme critérios de clareza e consistência lógica da argumentação.

4. Resultados e discussão

O conceito de logos tem implicações profundas para a interpretação bíblica e na teologia cristã. Em primeiro lugar, ele estabelece Cristo como a chave hermenêutica para a leitura de toda a Escritura. A Bíblia, segundo a perspectiva Joanina, só pode ser plenamente compreendida à luz da pessoa e obra de Jesus.

Em segundo lugar, o logos enfatiza a centralidade da revelação divina na história. Deus não é apenas um princípio eterno e distante, mas um Deus que se revela de forma concreta na pessoa de Cristo. Essa revelação traz um chamado ético e espiritual: a comunhão com Deus é mediada pelo relacionamento com Jesus e implica transformação de vida.

Por fim, o conceito de logos destaca a tensão dialética entre transcendência e imanência. Deus é ao mesmo tempo o Verbo eterno e o Verbo encarnado. Essa tensão aponta para o mistério da fé cristã, que exige a articulação entre o que é eterno e o que é histórico, entre o já e o ainda não.

6. Conclusão

O conceito de logos na teologia joanina é uma das mais ricas expressões da cristologia do Novo Testamento. João apresenta Jesus como o Verbo eterno de Deus, mediador tanto da criação quanto da redenção. Essa visão sintetiza tradições judaicas e helênicas, mas vai além delas ao afirmar que o logos se fez carne e habitou entre nós.

A hermenêutica cristocêntrica de João desafia leitores e teólogos a compreenderem a Bíblia à luz da pessoa de Jesus. Além disso, ela oferece uma resposta teológica profunda às questões sobre a revelação divina e a relação entre o eterno e o temporal. Em um contexto contemporâneo, onde a busca por sentido e verdade continua, o conceito de logos permanece relevante, apontando para a centralidade de Cristo como a Palavra viva e eficaz.

Palavras-chave: Logos, cristologia, João.


1Quanto a isso: “Tudo aquilo que seja consoante (synphonein) ao logos eu o considero como sendo verdadeiro (alethé) e aquilo que não lhe é consoante, eu o rejeito como erro (ouk alethé)”. (PLATÃO, 1979, 100a). “O mundo e as coisas do mundo nascem como a única matéria substrato qualificada, através do logos imanente que, em si mesmo, é uno, mas capaz de se diferenciar em coisas infinitas. O logos é como o sêmen de todas as coisas, é como o sêmen que contém muitos siemens”. (REALE, 2003, p. 257).

Referências

BARTH, Karl. Church Dogmatics the Doctrine of the Word of God, Volume 1, Part1: The Word of God as the Criterion of Dogmatics; The Revelation of God. Edimburgo, T&T Clarck, 2004.

BEUTLER, Johannes. Evangelho segundo João: comentário. Tradução: Johan Konings, SJ, São Paulo: Ed. Loyola, 2015.

CAVALCANTE, Schuback.  Heráclito: a origem do pensamento ocidental: lógica: a doutrina heraclítica do lógos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.

__________________________. Os pensadores originários. Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Rio de Janeiro: Vozes, 1993.

CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento.  São Paulo, Ed. Hagnos, 2008.

  FERGUSON, Everett. Backgrounds of Early Christianity. Michigan, Eerdmans, 2003.

  JOÃO, Evangelho segundo. Bíblia Sagrada

  LADD, G. E. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2009

  MOLTANN, Jürgen. The Way of Jesus Christ: Christology in Messianic Dimensions. New York, Harper Collins, 1990.

 PLATÃO. Dialogos (Banquete, Fédon, Sofista, Político). 2. ed. Trad. J. C. de Souza, J. Paleikat e J. C. Costa. Sao Paulo: Abril Cultural, 1979. (Colecao Os Pensadores).

REALE, G. História da Filosofia. Tradução: I. Storniolo. São Paulo: Paulus, 2003.