OS CONFLITOS ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À MORADIA E A PRESERVAÇÃO AMBIENTAL DA BACIA HIDROGRÁFICA DO TARUMÃ-AÇU

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202411271903


Matheus Enrique Brito Dacio1


RESUMO 

A moradia em flutuantes é historicamente usada por ribeirinhos da Amazônia, o que a torna uma tradição e estilo de vida regional para muitos. No Amazonas, ganhou força com o declínio do ciclo da borracha, culminando na formação de uma cidade flutuante que contabilizava cerca de 12 mil habitantes na década de 1960. Com o seu crescimento desordenado e desencadeador de vários problemas socioambientais, em 1967 a cidade foi desmontada e seus moradores direcionados a outros bairros na periferia de Manaus. Nos últimos anos a construção de flutuantes tornou a ganhar força, dessa vez com objetivos recreativos e econômicos, se tornando uma das principais opções de lazer para moradores e turistas da cidade de Manaus, entretanto, com o crescimento exacerbado da comunidade de flutuantes, cresce também o impacto ambiental numa das principais bacias hidrográficas de Manaus, por isso, levando em consideração a existência de ribeirinhos residentes em flutuantes e que o Direito à Moradia e ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado são garantias fundamentais previstas na Constituição Federal, este artigo busca estudar a colisão desses direitos e a aplicação no caso concreto.  

Palavras-chave: Artigo científico. Direito fundamental. Moradia. Meio ambiente equilibrado. Flutuantes. Comunidade. Amazonas. Bacias hidrográficas.   

ABSTRACT 

Floating housing is historically used by riverside dwellers in the Amazon, which makes it a regional tradition and lifestyle for many. In the Amazonas, it gained strength with the decline of the rubber cycle, culminating in the formation of a floating city that had around 12 thousand inhabitants in the 1960s. With its disorderly growth and triggering several socio-environmental problems, in 1967 the city was dismantled and its residents directed to other neighborhoods on the outskirts of Manaus. In recent years, the construction of floating boats has gained strength again, this time for recreational and economic purposes, becoming one of the main leisure options for residents and tourists in the city of Manaus, however, with the exacerbated growth of the floating community, it is also growing the environmental impact in one of the main river basins of Manaus, therefore, taking into account the existence of riverside residents living on floating sites and that the Right to Housing and an Ecologically Balanced Environment are fundamental guarantees provided for in the Federal Constitution, This article seeks to study the collision of these rights and their application in the specific case. 

Keywords: Scientific article. Fundamental right. Housing. Balanced environment. Floating. Community. Amazon. River basins. 

1. INTRODUÇÃO  

No Brasil, a Constituição Federativa de 1988 estabelece um alicerce normativo que garante e valoriza os direitos fundamentais, como o direito à moradia digna, presente em seu artigo 6º, e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, presente em seu artigo 225. Embora a garantia desses direitos sejam indispensáveis para a promoção da dignidade humana a curto e longo prazo, estes frequentemente entram em colisão, especialmente em regiões de grande importância ambiental, como é o caso da bacia amazônica. 

Essa colisão de direitos ganha uma notória relevância quando no contexto amazônico, por ser uma área de crescente déficit habitacional, o que contribui para a expansão de áreas urbanizadas, além do costume regional de apreciar embarcações flutuantes – que podem servir como moradia ou ainda recreação – por moradores locais e turistas nas margens dos rios, especialmente a bacia do Tarumã Açu, que tem uma concentração significante de flutuantes, desafiando assim os limites de sustentabilidade ambiental.  

As várzeas dos rios na região amazônica tornam-se espaço de moradia e subsídio para subsistência dos moradores locais por meio do plantio e da criação de animais (Fraxe; Pereira; Withoski; 2007). De forma semelhante e mais detalhada, Lira e Chaves (2016) afirmam que a maior parte dessa população ribeirinha explora dessa área para sua sobrevivência, pois depende da pesca e plantio, entretanto essa exploração pode ser considerada como uso sustentável do ambiente.  

As embarcações, embora sua maior parcela seja composta por empreendimentos destinados à recreação (restaurantes e balneários), muitos também são usadas como moradia por ribeirinhos que ainda mantém o estilo de vida como a sua origem, sobrevivendo da pesca e do plantio. Entretanto, para além do prazer de manter o estilo de vida pesqueiro, outro principal motivo de ainda haver residentes nessas embarcações é a falta de opção causada pelo já falado déficit habitacional, que historicamente acabou por marginalizar essa parte da população que até hoje sofre com descasos e omissões.  

Em dados recentes foi indicado um agravamento desse déficit, mostrando a precariedade das condições habitacionais em comunidades vulneráveis e a ausência de políticas públicas capazes de solucionar o problema. Outrora, o descaso do poder público consoante com a falta de políticas de habitação e preservação ambiental contribui para o aumento do desgaste do ecossistema da região. 

A discussão mais recente acerca desse desgaste ecológico na região da bacia hidrográfica do Tarumã-Açu pleiteia a retirada de todas as embarcações da área com a justificativa de serem poluentes e lesivos ao meio ecológico em que estão inseridos, colocando em risco empreendimentos e moradias, trazendo assim um conflito entre os direitos à moradia e ao meio ambiente equilibrado. Em situações como essa, o Judiciário Brasileiro tem desempenhado um papel fundamental ao procurar o equilíbrio entre os direitos em conflito, aplicando jurisprudências que norteiam decisões concretas.  

Esse trabalho busca explorar os fundamentos constitucionais dos direitos à moradia e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, os impactos do déficit habitacional amazônico na dignidade de sua população, a omissão do poder público, a colisão de direitos fundamentais e as contribuições da jurisprudência em casos concretos, propondo diretrizes que integrem inclusão social e conservação ambiental. 

2. FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DOS DIREITOS À MORADIA E AO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO 

A Constituição Federal de 1988 é extensamente reconhecida por ser um marco na consolidação de direitos fundamentais no Brasil. Dentre os vários de que poderíamos citar, destacamos o direito à moradia digna e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Esses direitos, elencados respectivamente nos artigos 6º e 225, representam nos dias atuais pilares essenciais para a promoção da dignidade humana e o resguardo do meio ambiente para o bem coletivo, assegurando um compromisso com o indivíduo e com as gerações futuras. 

O direito à moradia digna, presente no rol de direitos sociais, garante a todos um espaço seguro, com privacidade e condições adequadas de vida em que possam exercer sua individualidade. Já o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, presente no rol de direitos de terceira geração, reflete a preocupação com a sustentabilidade e o compromisso com a agenda ambiental para a preservação de recursos naturais.  

Ambos os direitos estão fortemente ligados ao princípio da dignidade da pessoa humana, sendo este um dos alicerces da Constituição Federal, entretanto entram em colisão quando colocados em cenários de urbanização desordenada e proteção ambiental. 

2.1 Direito fundamental à moradia

A Constituição Federativa do Brasil, em dias atuais, considera a moradia o asilo inviolável do indivíduo, o que não surpreende por ser desde os primórdios uma necessidade para proteção de sua individualidade. Procurar um abrigo sempre foi instintivo e primordial ao ser humano, seja em montanhas, cavernas ou até no gelo, tudo para garantir a sua segurança e a de seus semelhantes. 

Apesar de sua extrema importância sendo realçada desde o século XVI, com a afamada frase de Edward Coke que afirma “a casa de um homem é o seu castelo” (my home my castle), apenas em 14 de Fevereiro de 2000 que a moradia entrou no rol de direitos fundamentais na Constituição Federativa do Brasil, através da Emenda Constitucional nº 26, proposta pelo então senador Mauro Miranda, ao passo que o artigo 6º da Constituição Federal (BRASIL, 1988) passa a dispor da seguinte redação: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Entretanto, apesar de ser louvável a decisão de elencar a moradia como um direito social fundamental, de modo prático, uma moradia dentro dos padrões de dignidade ainda é o sonho de muitos brasileiros que possuem uma realidade que diverge do que vemos teoricamente. 

2.2 Direito fundamental ao meio ambiente equilibrado 

Com a crescente conscientização quanto aos impactos ambientais negativos advindos da industrialização e urbanização global, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado ganhou notória força em âmbito internacional a partir da segunda metade do século XX. As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas pelo início do movimento ambientalista, com o surgimento de movimentos sociais que pregavam a conscientização ambiental e a criação de organizações não governamentais, que já alertavam para o nível de degradação do meio ambiente. 

A Conferência de Estocolmo (1972) foi um grande marco na luta ambiental, sendo esta a primeira conferência internacional que reuniu representantes de diversos países com a finalidade de tratar exclusivamente da problemática ambiental em contraposição ao desenvolvimento econômico. Na Declaração de Estocolmo é salientado, dentre vários tópicos, a responsabilidade dos países na preservação ambiental para que se garanta o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não só a curto, mas em longo prazo, priorizando também as gerações futuras. 

Devido a grande influência exercida pela Conferência de Estocolmo, diversos países passaram a rever sua legislação em consonância com uma agenda ambiental, inclusive o Brasil, que tamanha foi a pressão social, interna e externa, que institucionalizou esse direito no artigo 225 de sua Constituição Federal de 1988, definindo responsabilidades específicas para a proteção ambiental, ganhando o reconhecimento de um direito fundamental. 

3. A COLISÃO ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS 

Como pontuado, é um grande avanço para o Brasil cumprir uma agenda ambiental na elaboração de suas leis, ressaltando o direito ao meio ambiente equilibrado como um direito fundamental garantido constitucionalmente, entretanto, no que diz respeito às residências flutuantes presentes no Amazonas há um conflito entre os direitos fundamentais à moradia e o direito ao meio ambiente, visto muitas dessas residências não possuírem um sistema de saneamento básico, acabando por contribuir com o desgaste ambiental em uma das principais bacias hidrográficas do Amazonas, o Tarumã-Açu. 

Desta forma, um grande debate quanto a remoção dessas embarcações está sendo feito desde o ano de 2004, entretanto o problema de déficit habitacional do estado perdura por muitos anos, sendo um problema histórico que assola a população amazonense, dando continuidade a diversos problemas estruturais e sociais, como a moradia em flutuantes. 

3.1 O déficit habitacional amazônico no contexto histórico 

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Amazonas ainda se vê um número alarmante no que diz respeito ao seu déficit habitacional, sendo correspondente a 177.239 domicílios, o que representa cerca de 14,5% do total de moradias que não possuem dignidade habitacional. Se trata de indivíduos que vivem abaixo da linha da pobreza, habitando moradias que muitas vezes não possuem saneamento básico, água encanada ou energia elétrica.   

Nesse rol de indivíduos que vivem em situação de déficit habitacional, estão os ribeirinhos, que encontraram em suas casas flutuantes, desde meados da década de 1920, o abrigo ideal a época para a realidade em que viviam. Na década de 1950, devido ao fluxo migratório do interior do Estado, o número de habitações flutuantes cresceu consideravelmente, chegando a doze mil pessoas na década seguinte.   

O crescimento dessa modalidade de habitação ocorreu de forma tão descontrolada, que na década de 1960, Manaus passou a contar com uma “cidade flutuante”, ou ainda como foi nomeada na revista de fotografias Isto é Amazônia (1964), “novo bairro flutuante” localizado na entrada da cidade. 

Relata-se que a cidade flutuante contava não apenas com residências, mas também com comércios, oficinas, igrejas e serviços, sendo posicionada de forma conveniente nas proximidades do Mercado Municipal de Manaus, local propício aos varejistas e atravessadores que ali encontraram facilidades para a realização de suas atividades econômicas (Serra; Cruz, 1964). 

O modelo da cidade flutuante (ou bairro flutuante) foi tão curioso, que em 1966 alunos da Escola de Sociologia e Política da Pontifícia Católica do Rio de Janeiro, realizaram uma pesquisa socioeconômica a pedido do governo do Estado. Na ocasião, a casa flutuante é retratada de forma curiosa e admirada no referido trabalho (Codeama, 1996, p.4): 

“O fenômeno dos Flutuantes em Manaus constitui caso raro no mundo, de uma população numerosa vivendo permanentemente em casa boiando sobre a água. O flutuante […] – tapiri […] de madeira e coberto de palha, construído sobre três troncos de árvore flutuando na água, foi a solução natural encontrada pelo caboclo amazonense, na luta pela adaptação ao meio. O Rio Negro, tal como os outros tributários do Rio-Mar obedece a um regime de enchentes periódicas, apresentando um desnível anual com uma amplitude média de 10 metros e meio”. 

Acerca da descrição desse complexo, caracterizado como uma cidade, em trabalho mais recente Leno José Barata Souza nos traz: “conjunto de casas de madeira, construídas sobre o tronco de árvores capazes de torna-las flutuantes sobre as águas do Rio Negro e igarapés de Manaus entre os anos de 1920, quando o ‘fausto’ da borracha chegou ao fim, e 1967, em meio à politica de ‘integração’ nacional dos governos militares.” (Souza, L., 2010, p.14). 

Diante suas características estruturais, era notória a impossibilidade da implementação de um sistema de saneamento básico, água encanada e potável e um sistema de energia elétrica de forma segura, tanto para seus residentes, quanto para o ecossistema em que se localizava o complexo. E para além das questões estruturais quanto a moradia e meio ambiente, também é de se notar que ao passo em que o complexo era visto de forma curiosa, também não fugia os olhares críticos, principalmente do poder público e dos moradores da cidade, que com a passar dos anos passaram a se incomodar com a aparência que o complexo dava à fachada da cidade, senão vejamos a descrição de Leno Souza em mesma obra: 

(…) 2.500 ‘barracos’ na frente da cidade, portão de entrada por onde se deveria chegar ao Porto e, no “Novo Amazonas”, política propagandista da época, a “cidade flutuante”, com suas tábuas, seus caibros, suas palhas de buçu, seus imensos toros de açacu, serpenteando na forma de becos e vielas suspensos sobre a água, representava, também por isso, o velho, o bárbaro que enfearia o rosto da “cidade sorriso”, costumeiramente recuperada em uma hidrografia clássica e saudosista. (ibidem, p.330-331). 

Desta forma, a cidade flutuante acabou por perder seu atrativo, dando espaço a um descontentamento generalizado. Foi então que ainda na década de 1960, foi dado início a um processo de dissolução do complexo de casas flutuantes, tendo uma intervenção comandada pelo Governo Estadual sob a administração de Arthur Cezar Ferreira Reis, onde começaram a serem aplicadas algumas medidas de planejamento urbano, em que consistia na realocação dos habitantes do complexo flutuante em conjuntos habitacionais, dos bairros de “Flôres” e da “Raiz”, muito embora não tenham sido preparados efetivamente àqueles habitantes da cidade para os quais foram destinados e que deveriam acomodar (Salazar, 1985). 

Nesse processo de realocação dos habitantes, um pouco mais de 3% daqueles que viviam naquela “favela fluvial” foram contemplados com abrigo nos novos conjuntos habitacionais, como nos diz João Pinheiro Salazar. 

Conseguir uma moradia dentre as construídas, além de ser um processo marcado por relações de influência junto a funcionários públicos (Souza, L., 2010), também o foi por restrições.  

Por fim, uma baixa parcela de habitantes teve acesso às moradias construídas, e os poucos que tiveram se sentiram frustrados com a falta de saneamento, falta de eletricidade, logística de ruim acesso ao restante da cidade e falta de água encanada, preferindo muitas vezes ocupar bairros existentes ou recentemente criados, sendo estigmatizados e socialmente marginalizados, de modo recorrente, associados à imagem de favelas (Salazar, 1985). 

Desta feita, a cidade flutuante foi desmanchada por completo, resolvendo um problema tido como estético, entretanto a população continuou enfrentando sérios problemas habitacionais, situação essa que perdura até os dias atuais. 

3.2. O excessivo aumento de novas construções flutuantes e o alegado impacto ambiental 

Segundo dados divulgados pela Prefeitura de Manaus, nos últimos 20 anos, o número de casas flutuantes teve uma alta de 1.000%, sendo em 2004 contabilizadas 74 casas flutuantes contra atualmente 900 flutuantes em 2024. Esse alto crescimento se deve, principalmente, ao turismo e lazer, contando com restaurantes, bares, garagens e piers que tomaram um grande espaço na agenda de turistas e habitantes de Manaus. Dessa contagem de flutuantes, estima-se pela Prefeitura de Manaus que 660 sejam para recreação e comércio, 190 para moradias e 50 são piers. 

Não há de se negar que a preocupação com o ecossistema do Rio Negro e a poluição que se alega ser derivada dos flutuantes é legítima, inclusive ressalta-se o direito ao Meio Ambiente Equilibrado, consagrado como direito fundamental na Constituição Federal do Brasil, entretanto este direito assim como todos os outros são direcionados por princípios constitucionais, dentre eles o principio da dignidade humana, que está diretamente ligado ao direito à moradia e ao direito ao meio ambiente equilibrado, pois um ambiente adequado e digno é crucial para uma vida digna, mas um não deve se sobrepor ao outro.  

4. A APLICAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIAS NO CASO CONCRETO 

No contexto da colisão entre os direitos à moradia e ao meio ambiente equilibrado, o papel do poder Judiciário é crucial para equilibrar esses interesses que muitas vezes são tidos como antagônicos. A jurisprudência brasileira tem se afirmado no sentido de buscar soluções que conciliem a proteção ambiental com os direitos sociais, aplicando princípios conhecidos como a proporcionalidade, a função social da propriedade e a prioridade da dignidade humana. Casos como decisões em Ações Diretas de Inconstitucionalidade e ações civis públicas envolvendo áreas de preservação e ocupações consolidadas, nos mostram que os tribunais têm tratado a questão de forma progressiva e contextualizada, e é o que vemos que vem acontecendo desde o ano de 2004 no Amazonas, especificamente na cidade de Manaus quando da ação de desocupação de flutuantes à margem do Rio Tarumã Açú, que retrata a colisão de interesses em que de um lado estão proprietários de embarcações e de outro o poder público em uma alegada tentativa de preservação ambiental. 

4.1 Ministério Público x Flutuantes 

Com o grande aumento dessas construções, em 2001 o Ministério Público do Amazonas ajuizou ação civil pública sob o nº 0056323-55.2010.8.04.0012 em desfavor do município de Manaus e 74 flutuantes os quais entendia ser responsáveis pela degradação dos mananciais da capital.  

Em determinação da Justiça, foi proferida decisão que elencou medidas ao município de Manaus para a retirada forçada dos mais de 900 flutuantes e seu respectivo desmonte, sob pena de multa milionária, conforme o trecho (fls. 34853486) do processo: 

(…) Diante disto, como medidas necessárias à satisfação do teor do capítulo da sentença, OFÍCIO ao Comando Geral da Polícia Militar a fim de que seja disponibilizado força policial necessária para a retirada e o desmonte dos flutuantes dos tipos 1 a 3 com já classificados nos autos; AUTORIZO o Município a dar a melhor destinação aos bens e resíduos resultantes do desmonte dos flutuantes, MANTENHO a multa com o curso dos dias-multa, mas OBSTO, por ora, a fase executiva desta multa, desde que o MUNICÍPIO DE MANAUS atenda ao seguinte: 

I) COMUNIQUE mediante imprensa local e com dois outdoor ́s (próximos a Marina do Davi e a Praia Dourada) que haverá o desmonte forçado de os flutuantes dentro da ordem de classificação do tipo 1 a 3, dada pela decisão de fls. 2199/2205, com a autorização da destinação do bens e materiais para destruição, descarte ambientalmente adequado ou doação, a critério do Município, juntamente a seu órgão ambiental competente. 

II) VERIFIQUE os flutuantes que estiverem tombados no rio, desabitados ou abandonados para que sejam os primeiros a serem desmontados dentro da classificação do tipo 1 a 3, como já apontado nos autos. 

III) Após a comunicação determinada, AGUARDE-SE 10 dias úteis para início da operação de retirada e desmonte, dentro ordem da classificação já apontada nos autos 

IV) Até 31 de março de 2024, INFORME e COMPROVE a este Juízo o início do plano de ação de retirada e de desmonte com a destruição, a doação ou o descarte devido, sob pena de início da fase de cumprimento de sentença das multa de R$ 15.000.000,00 nos moldes requeridos pelo Ministério Público, quando se analisará a majoração da multa inclusive. 

A procuradora do município de Manaus informou à justiça que a prefeitura notificou 913 flutuantes, sendo 195 residenciais, 251 garagens de embarcações, 415 comerciais e 53 piers. 

No entanto, a execução integral da decisão esbarra em questões financeiras e logísticas, visto que em setembro de 2023 a prefeitura de Manaus ter orçado a tarefa passada pela Justiça no valor de R$16 milhões, alegando que o município não tinha receita para essa finalidade. Para além da causa financeira, outra situação alegada pela prefeitura é o período de vazante que tornava comum o aparecimento de grandes bancos de areia na região, o que poderia causar encalhamentos das embarcações. 

Embora a retirada estivesse sendo classificada em fases, sendo a primeira dela marcada pela retirada de flutuantes abandonados, em seguida a retirada de flutuantes destinados ao lazer e comércio e por último a retirada dos flutuantes com finalidade residencial, o cumprimento da sentença vinha causando temor aos proprietários de flutuantes em Manaus, inclusive em terceiros visto o seu efeito erga omnes, em razão do justo receio de ter, em qualquer momento, seu patrimônio retirado e desmontado pelo poder judiciário, independente de haver licença junto ao órgão competente (IPAAM).  

Em novo desdobramento, no dia 24 de Junho de 2024, a desembargadora Joana dos Santos Meireles, do Tribunal de Justiça do Amazonas, suspendeu a remoção de 74 flutuantes devido à falta de citação. A decisão ocorreu em resposta ao Agravo de Instrumento interposto pela Defensoria Pública do Estado que alegou que dos 74 flutuantes, apenas 56 deles tiveram seus proprietários localizados e citados. Desta forma, a julgadora entendendo que a existência de um grave risco de lesão irreparável a direitos fundamentais, como o da ampla defesa, e prejuízos públicos em razão de alguns flutuantes funcionarem como escolas, postos de saúde e órgãos públicos, decidiu pela suspensão da lide, conforme vemos (fls. 36-43): 

O perigo de o Agravante vir a sofrer lesão grave e de difícil reparação é evidente, caso os efeitos da decisão agravada não sejam imediatamente suspensos, uma vez que, o prosseguimento do cumprimento de sentença da ação civil pública n. 0056323-55.2010.8.04.0012, poderá ocasionar a retirada e destruição de mais de 900 (novecentos) flutuantes situados nas margens do Rio Negro e Tarumã-açu, decisão que se mostra irreversível e que poderá trazer prejuízos particulares, mas sobretudo públicos, ante a existência de flutuantes que sediam escolas, postos de saúde, órgãos públicos e constituem residência para famílias ribeirinhas. Assim é que a retirada destes flutuantes, alguns que se encontram há mais de 17 (dezessete anos) na localidade, poderá trazer prejuízos incomensuráveis.
Entendo que a execução de julgado, que data mais de 13 (treze) anos desde a petição inicial, pode aguardar o seu cumprimento, privilegiando a análise exaustiva acerca da questão judicial trazida a este juízo recursal, cujo argumento inicial demonstra possível violação a direito fundamental de primeira geração (contraditório, ampla defesa e devido processo legal).  

Ainda na mesma decisão, a ilustre julgadora ressalta o excelente trabalho da Defensoria Pública do Estado do Amazonas, que assiste os terceiros prejudicados que a buscaram para um apoio institucional, dentre os quais a Presidente da Associação de Moradores da Marina do Davi, Sra. Sara Guedes da Costa, que na oportunidade representava aproximadamente 80 (oitenta) famílias as quais não foram citadas para participar da ação civil pública. Assinalou ainda que somente o número dessas famílias residentes às margens do Tarumã-Açu já superam o número de pessoas citadas na ação civil pública, oportunamente apontando que as partes indicadas no polo passivo da ação residem em flutuantes localizados na Manaus Moderna, Bairro Educandos, fundeados na Baía do Rio Negro, entendendo assim que os efeitos do cumprimento da decisão estavam afetando para além da localidade prevista inicialmente, bem como partes que não foram citadas, desta forma alertando para uma possível violação aos limites e objetivos propostos na lide, resultando numa violação ao devido processo legal e a supressão do direito à ampla defesa e contraditório de inúmeras famílias. 

4.1.1. Efeito erga omnes 

Em livre tradução, o termo erga omnes tem como significado “contra todos”, que quando aplicado em decisões jurídicas amplia os seus efeitos para além das partes do processo, atingindo todos os indivíduos, inclusive os que não faziam parte do caso.  

O termo é conhecido e muito usado no campo jurídico, como exemplo a Lei da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Lei 9.868/1999), que estabelece que as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal estão sob efeito erga omnes, ou seja, as declarações de constitucionalidade ou inconstitucionalidade tem efeito vinculante para a Administração Pública e o Poder Judiciário em todos os níveis. 

Na prática, dentre muitas maneiras que uma decisão erga omnes pode prejudicar terceiros, vemos algumas que possivelmente se aplicaria ao caso da retirada de flutuantes das margens do Tarumã-Açu, dentre elas estão: 

a) Falta de participação no processo, visto que terceiros que não são ouvidos no processo podem ser afetados por uma decisão sem ter a oportunidade de apresentar sua defesa e argumentos, o que pode ferir os direitos de inúmeros indivíduos; 

b) A interferência em direitos adquiridos, pois o efeito pode alterar ou restringir direitos previamente adquiridos por terceiros. Um exemplo disso é uma declaração de inconstitucionalidade de uma determinada Lei que pode acabar invalidando contratos baseados naquela norma, mesmo que ambas as partes tenham agido de boa fé;  

c) Um impacto econômico ou social inesperado, visto a decisão englobar um grande número de pessoas e setores, causando impactos econômicos e sociais que não foram brevemente analisados; 

d) Dificuldade em prever as consequências advindas da decisão, visto seu efeito ser de longo e imprevisível alcance, criando incertezas para terceiros que precisarão se adaptar a uma nova interpretação jurídica e de regras que antes faziam parte de seu cotidiano. 

Desta forma, se tratando de uma ação civil pública, muito se especula quanto ao seu efeito trazer consequências a terceiros, apesar de já haver indícios ao vermos que os moradores estão sendo surpreendidos por não estarem citados no processo, afetando não só os flutuantes da área da bacia do Tarumã-Açu como toda a área adjacente, desta forma sendo esperado prejuízos irreversíveis aos proprietários e moradores. 

4.2 A legislação brasileira e sua aplicação no contexto da habitação sustentável 

É de conhecimento geral que o problema do déficit habitacional assola boa parte do globo, trazendo consigo em efeito cascata inúmeros problemas como infraestrutura, saúde e acesso à educação, aprofundando desigualdades. 

O Brasil cumpre uma agenda ambiental e social na elaboração de suas leis, que por meio de dispositivos, como o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) que promove o desenvolvimento urbano sustentável, garantindo o pleno cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbana; e o Novo Código Florestal (Lei 12.651/2012) que tem como objetivo estabelecer o equilíbrio entre a proteção ambiental e o desenvolvimento social e econômico no Brasil, ambos estabelecem diretrizes para integrar habitação e preservação ambiental. Entretanto, a aplicação efetiva dessa normas enfrentam barreiras práticas e estruturais, especialmente no contexto amazônico. 

No âmbito amazônico, uma das principais barreiras para a aplicação das normas pretendidas é o elevado índice de déficit habitacional. Segundo dados do IBGE, 14,5% da população do Amazonas habitam casas precárias ou habitam casas com superlotação ou gastam ainda cerca de 40% do seu salário para pagar aluguel, além da falta de planejamento urbano e a ausência de infraestrutura sustentável. 

Desta forma, nota-se que há uma preocupação e o comprometimento do Poder Legislativo brasileiro em discutir e aprovar leis que abarcam as pautas de moradia digna e sustentável para todos os indivíduos, no entanto não há condições para a sua aplicação. 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A presente pesquisa abordou a complexa relação entre o direito fundamental à moradia e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, dois princípios constitucionais que constantemente entram em conflito na área da bacia hidrográfica do Tarumã-Açu por seus interesses não serem devidamente equilibrados. A análise demonstra que para tratar dessa colisão de direitos é necessária uma abordagem interpretativa e conciliatória, que leve em consideração o princípio da dignidade humana, a função social da propriedade e os imperativos de sustentabilidade. 

Observou-se que o direito à moradia é essencial para garantir condições mínimas de dignidade de vida, enquanto que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é indispensável para a continuidade da vida humana. Nesse contexto, o estudo analisou a legislação, jurisprudências e doutrinas relevantes, buscando critérios utilizados pelo Judiciário na tentativa de resolução dos conflitos. Esses critérios, em sua maioria, envolvem o uso de princípios como a razoabilidade e a proporcionalidade que são fundamentais para buscar o equilíbrio quando há colisão entre direitos fundamentais como os estudados. 

Conclui-se que a conciliação entre esses direitos fundamentais, além de exigir o engajamento da sociedade na preservação do meio ambiente, também necessita de políticas públicas eficazes que ressarçam de forma justa os moradores de flutuantes, que historicamente vivem na margem parcial do déficit habitacional do Amazonas, garantindo seu remanejo para uma moradia digna, ou ainda a incorporação dos flutuantes em políticas habitacionais eficazes, respeitando a cultura ribeirinha. Ademais, é imprescindível que as ações governamentais sejam orientadas por uma agenda ambiental, com uma visão de desenvolvimento sustentável, investimento em infraestrutura que atenda às necessidades dessa parte populacional amazônica. 

Assim, embora todo o caso discutido, o trabalho contribui para o entendimento de que os direitos retratados não são opostos, mas sim complementares e interdependentes, pois ao serem aplicados de forma justa e efetiva, promovem a dignidade e a qualidade de vida não só para a atual geração, como também para as futuras.   

REFERÊNCIAS 

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a constituição na atualidade. 13. Ed. São Paulo: Saraiva, 2020. 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/constituiçao.htm.  Acesso em: 16 out. 2024. 

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1Graduando do Curso de Direito do Centro Universitário Fametro. E-mail: matheus_dacio@hotmail.com. ORCID: 0009-0002-4500-9570.