THE CRIMINAL COMPLIANCE AS AN INSTRUMENT OF CORPORATE GOVERNANCE
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202411262252
Paulo Alves Rochel Filho1
RESUMO
A pesquisa analisa a importância da adoção de uma política de compliance criminal aplicada à governança corporativa, como instrumento de prevenção contra a prática de delitos e direcionado à mitigação de riscos. Neste contexto, procedeu-se à análise crítica da efetividade de seu emprego na autorregulação e sua contribuição ao aperfeiçoamento da governança corporativa. Procedeu-se a breve investigação das origens do instituto até os dias atuais, incluindo histórico legislativo no exterior e no Brasil, de forma a demonstrar a evolução do sistema regulatório e da legislação penal em relação ao meio corporativo. Neste particular, observou-se o emprego de normas penais no campo administrativo e o delineamento de novos modelos de imputação direcionados ao ambiente corporativo e aos atores de governança. Foram abordados e delineados os conceitos de governança corporativa, compliance, riscos e, especificamente, do compliance criminal. Analisou-se a necessidade e validade da implementação de programas de compliance criminal como modelo de prevenção e redução de riscos corporativos, bem como no estabelecimento de responsabilidade em relação à prática de ilícitos criminais. Para tanto, foi realizado levantamento bibliográfico e pesquisa em fontes doutrinárias e na legislação, bem como buscou-se o posicionamento de organismos de referência acerca do assunto. Ao final, apresenta-se uma análise crítica da validade do emprego do compliance criminal como instrumento de autorregulação e de conformidade e sua contribuição à melhoria da governança corporativa.
Palavras-chave: Compliance Criminal; Governança Corporativa; Riscos; Responsabilidade.
ABSTRACT
The research analyzes the importance of adopting a criminal compliance policy applied to corporate governance, as an instrument for preventing the practice of crimes and mitigating risks. In this context, a critical analysis of the effectiveness of its use in self-regulation and its contribution to the improvement of corporate governance was carried out. A brief investigation of the institute’s origins up to the present day was carried out, including its legislative history abroad and in Brazil, in order to demonstrate the evolution of the regulatory system and criminal legislation concerning the corporate environment. In this regard, the use of criminal rules in the administrative field and the design of new models of attribution aimed at the corporate environment and governance actors were observed. The concepts of corporate governance, compliance, risks and, specifically, criminal compliance were approached and outlined. The need and validity of implementing criminal compliance programs as a model for preventing and reducing corporate risks were analyzed, as well as establishing responsibility in relation to the practice of criminal offenses. Therefore, a bibliographical research in doctrinal sources and in legislation were carried out, and the position of reference institutions on the subject was sought. At the end, a critical analysis of the validity of using criminal compliance as an instrument of self-regulation and compliance and its contribution to improving corporate governance is presented.
Keywords: Criminal Compliance; Corporate Governance; Risks; Liability.
1. INTRODUÇÃO
Com o crescimento das relações comerciais e a expansão da economia globalizada, inúmeros países passaram a instituir formas de controle e conformidade cada vez mais rígidas aplicadas à governança corporativa, seja no relacionamento entre empresas privadas, bem como estas com o poder público.
É possível afirmar que, se no século XX houve o embate entre as sociedades e os modelos de geração e distribuição de riquezas, com ideologias políticas e econômicas bastante diversas, o mundo atual passa por grandes mudanças, impactado pela revolução tecnológica e velocidade das comunicações, encurtando as distâncias entre os países, com a formação de grandes blocos econômicos e a queda de barreiras comerciais, trazendo profundas alterações nos sistemas produtivos.
As empresas na chamada sociedade globalizada proliferam suas relações e, com isso, também veem crescer sua responsabilidade diante dos aparatos regulatório, administrativo, ambiental, tributário, aduaneiro e criminal cada vez mais rigorosos.
Por sua vez, paralelamente ao crescimento comercial e evolução tecnológica, a criminalidade busca maneiras de imiscuir-se nas relações corporativas e também se sofistica, organiza e se torna difusa, fazendo com que haja a necessidade de atualização dos instrumentos de política criminal.
O meio corporativo de nossos dias, além de se preocupar com a lógica da geração de lucros, se viu obrigado ao esforço de melhoria constante de sua governança em conformidade à legislação, criando e definindo normas internas que possam dar maior transparência e segurança nas informações prestadas ao mercado e aos órgãos reguladores, ao mesmo tempo em que busca proteger seus dirigentes.
O momento histórico recente do país, com grandes mudanças políticas e sociais, acabou por provocar inovações na legislação de maneira a estabelecer novas formas de responsabilidade, demandando mecanismos de controle e melhoramento da governança corporativa, tanto pública quanto privada.
A atividade empresarial no nível corporativo tem passado por grandes transformações. No âmbito local, as oscilações econômicas e políticas, a complexidade da legislação, a crescente e morosa judicialização, os escândalos de corrupção e fraudes, somam-se a questões multinacionais, tais como a disrupção tecnológica, os altos e baixos das economias e, mais recentemente, a pandemia pelo Coronavírus. Essas e mais tantas outras circunstâncias requisitam maior zelo e cuidado no processo de tomada de decisões e exigem contínuo acuro da governança.
O aumento da importância da governança corporativa é preconizado pelo chamado Livro Verde, que tratou da responsabilidade social das empresas, apresentado pela Comissão das Comunidades Europeias em Bruxelas no ano de 2001.
A responsabilidade de uma empresa ultrapassa a esfera da própria empresa e estende-se à comunidade local, envolvendo, para além dos trabalhadores e acionistas, um vasto espectro de outras partes interessadas: parceiros comerciais e fornecedores, clientes, autoridades públicas e ONG que exercem a sua atividade junto das comunidades locais ou no domínio do ambiente. Num mundo de investimentos multinacionais e de cadeias de produção globais, a responsabilidade social das empresas terá também de estender-se para além das fronteiras da Europa. A rápida globalização fomentou a discussão sobre o papel e o desenvolvimento de uma governação à escala planetária, para a qual contribui a definição de práticas voluntárias de responsabilidade social das empresas (COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS, 2001, p. 12).
Estes influxos fazem com que o compliance ganhe maior atenção das companhias em razão direta da responsabilização administrativa, civil e criminal das corporações e seus dirigentes. O endurecimento da legislação e a atuação mais efetiva das agências reguladoras e do sistema de justiça criminal acabaram por impactar os sistemas de controle interno das empresas.
Neste cenário é que se vêm delineando os parâmetros do compliance, atuando preventivamente na fiscalização do cumprimento e conformidade ao aparato normativo, além de promover a cultura organizacional de forma a minimizar riscos inerentes à própria atividade empresarial.
A utilização de práticas de compliance atentas à legislação penal tem importância fundamental para a governança corporativa, principalmente porque deve assegurar a legalidade de sua atuação, funcionando como instrumento de controle, proteção e prevenção de condutas delituosas, evitando ou mitigando riscos e a responsabilização pessoal de sócios e administradores.
O estabelecimento de uma verdadeira política de compliance criminal visa ao incremento das práticas de governança de empresas do setor público ou privado, buscando a eliminação ou, senão, a redução do risco de práticas lesivas com repercussão na esfera penal, notadamente pelo envolvimento em casos de corrupção, desvios, fraudes e lavagem de dinheiro.
É importante aprofundar a compreensão do compliance criminal, apresentando seu conceito e analisando seus elementos constitutivos, bem como os objetivos a serem buscados ao se implementar o instituto.
2. GOVERNANÇA CORPORATIVA
Como foi visto, o contínuo aumento da complexidade das relações produtivas e comerciais, a concorrência globalizada, as mudanças nos hábitos de consumo com o advento da internet, o endurecimento da legislação e do aparato regulatório, além de tantos outros fatores, causaram profundas mudanças na governança corporativa.
O processo de tomada de decisões exige aprimoramento contínuo, não somente para assegurar a sobrevivência das empresas e seu crescimento, mas também de modo a protegê las e a todos que com estas se relacionam das mais diversas formas e níveis, os chamados shareholders e stakeholders – investidores, acionistas, sócios, dirigentes, gestores, colaboradores, clientes, fornecedores, patrocinadores, concorrentes, sindicatos, órgãos e agências governamentais, dentre outros.
A compreensão da governança corporativa ganha maior amplitude, cuidando de um conjunto de instrumentos e regramentos balizadores e orientadores do processo de tomada de decisão, visando ao sucesso do empreendimento e também atuando como aparato protetivo dos tomadores de decisão e seus dirigentes, além de resguardar a imagem e a marca das empresas.
A definição apresentada pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (2009) evidencia que o papel da governança, que ao lado de promover o acesso ao capital e longevidade dos negócios, deve também assegurar a implementação de instrumentos de controle e monitoramento atentos à responsabilidade social, conforme se verifica:
Sistema pelo qual as sociedades são dirigidas e monitoradas, envolvendo relacionamentos entre Acionistas e/ou Cotistas, Conselho de Administração, Diretoria, Auditoria independente e Conselho Fiscal, apontando que as boas práticas de governança corporativa têm a finalidade de aumentar o valor da sociedade, facilitar seu acesso ao capital e contribuir para a sua perenidade (INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA, 2009, p. 19).
Para o atingimento de suas finalidades e assegurar sua efetividade, o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (2009) recomenda que a governança deva assentar-se sobre quatro princípios básicos, sendo a transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa.
A transparência é tida como o acesso e disponibilização de informações claras e oportunas às partes interessadas, constituindo elemento importante no estabelecimento de confiança e na geração de valor. Tais informações não se referem apenas a indicadores e temas econômico-financeiros, mas devem igualmente constar avaliações sobre fatores intangíveis que repercutem na missão e no propósito organizacionais.
A equidade, remetendo ao tratamento imparcial e igualitário, busca assegurar o equilíbrio justo entre sócios, acionistas e demais partes interessadas, protegendo investidores minoritários e vedando práticas discriminatórias.
O dever de prestação de contas se reveste de suma importância, uma vez que os desvios de conduta normalmente têm expressão financeira. Sua obrigatoriedade é prática comum nas metodologias de implementação de planejamento estratégico, análise de riscos e gerenciamento por projetos, sendo requisito essencial a ser exigido dos sócios, administradores e gestores.
A responsabilidade corporativa diz respeito a todos aqueles que participam da atividade de governança e alerta para que seus agentes estejam atentos e diligentes à atuação escorreita, tanto do ponto de vista individual quanto da corporação como um todo.
Esta mesma perspectiva foi trazida nas Recomendações da CVM sobre Governança Corporativa (COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS, 2002, p. 01), que afirmou ser a ―governança corporativa o conjunto de práticas que tem por finalidade otimizar o desempenho de uma companhia ao proteger todas as partes interessadas, tais como investidores, empregados e credores, facilitando o acesso ao capital‖.
No mesmo sentido entende Nilson Teixeira (2004, p. 20 apud BLOK, 2018, p. 248), para quem ―o conceito de governança corporativa é muito abrangente e busca lidar com problemas relacionados a conflitos de objetivos tanto entre gestores e acionistas como entre acionistas controladores e os demais‖.
3. COMPLIANCE
O conceito de compliance não se apresenta de forma definitiva, tampouco pacífica. Diversos autores no Brasil e no exterior contemplam variadas abordagens e definições, muitas das quais se aproximam e se relacionam com a governança corporativa.
Leques (2019) , ao buscar as origens do termo, encontrou na língua latina o vocábulo complere, que remete a atuar de acordo com regras ou normas. Etimologicamente considera se que o termo ― “compliance” deriva da língua inglesa, advindo do verbo ― “to comply“, que significa ―cumprir, executar, satisfazer, realizar o que foi imposto‖. Modernamente plasmado no jargão corporativo, passou a designar a obrigação de conduta ética e legal às empresas, seus dirigentes e colaboradores, observando os regulamentos e leis que lhes são aplicáveis.
A expressão passou a ser largamente empregada na esfera corporativa, no sentido de alinhamento da empresa aos regramentos internos e à legislação. Embora seja natural que sua adoção remete aos crimes de corrupção, fraudes e lavagem de dinheiro, é preciso também considerar questões aduaneiras, ambientais, concorrenciais, fiscais, regulatórias, sociais, tributárias, trabalhistas e outras.
Pode-se dizer, lato sensu, que o compliance é aplicável a qualquer forma e tipo de organização, independentemente de se tratar de empresa de pequeno porte ou de uma grande corporação, seja do setor público ou privado, tendo como objetivo estabelecer práticas convergentes ao cumprimento da legislação e de normativos internos. No sentido estrito, busca evitar a prática de ilícitos em seu âmbito de atuação, bem como identificar e estabelecer responsabilidades.
Conforme mencionado por Blok (2018, p. 25), a origem histórica do compliance aplicado à governança corporativa teria se dado em 1913 com a criação do Banco Central dos Estados Unidos (Board of Governors of Federal Reserve), cujas funções remetem à segurança e estabilidade do sistema financeiro norte-americano, avançando em 1934 com ações de proteção ao mercado de títulos e valores mobiliários (Securities Act).
Ao término da Segunda Guerra Mundial, são criados o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), tendo como parte de suas atribuições a manutenção da segurança do sistema monetário internacional. Na década de 1980, a preocupação com a proteção e segurança ganha novo impulso com o Primeiro Acordo de Capital da Basiléia, que trouxe regramentos padronizados, inserindo princípios para a supervisão e controle interno às instituições financeiras, tendo sido ratificado por mais de uma centena de países.
Não se pode deixar de mencionar a Lei Sarbanes-Oxley, assim batizada em homenagem aos seus autores, o senador Paul Sarbanes e o deputado Michael Oxley, cuja edição foi motivada por escândalos e crises financeiras no mercado dos Estados Unidos, procurando evitar a má gestão na destinação de ativos financeiros, fortalecendo elementos de governança e compliance com a obrigatoriedade de incorporação de melhores práticas de contabilidade e auditoria independente.
Assis (2018, p. 21) relata que o Brasil seguiu a tendência mundial, sendo que em 1998 foi promulgada a Lei nº 9.613 sobre lavagem de dinheiro e prevenção de utilização do sistema financeiro nacional para fins ilícitos. Ao mesmo tempo foi criado o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), sendo que a Lei nº 13.974/2020 alterou sua denominação para Unidade de Inteligência Financeira (UIF), transferindo-o da estrutura do Ministério da Economia para o Banco Central.
A Resolução nº 3.464/2006 do Banco Central, divulgando e formalizando deliberação do Conselho Monetário Nacional, passa a dispor sobre a necessidade de implementação de mecanismos de gerenciamento de risco de mercado para instituições financeiras, sendo que a Lei nº 12.683 de 2012 incrementa e torna mais eficientes as investigações e processos judiciais sobre crimes de lavagem de dinheiro.
Um marco importante na investigação e repressão à lavagem de capitais e desvios de recursos públicos foi a Operação Lava Jato. Iniciada em 2014, a atuação de órgãos de controle e de justiça levou a julgamento empresas e empresários importantes no cenário nacional, trazendo grande impacto na criação e melhoria de programas de compliance pelas empresas. A Câmara de Comércio Americana (AMCHAM) realizou pesquisa como parte de seu III Seminário de Compliance em julho de 2016, ouvindo 180 (cento e oitenta) gestores de companhias de diferentes portes e segmentos de atuação e obteve dados interessantes. Segundo restou apurado, a Operação Lava Jato trouxe reflexos nos programas de compliance para 60% das empresas, sendo que 69% dos empresários consideraram seus aparatos de conformidade frágeis e excessivamente pulverizados nos processos de governança. Apenas 31% consideraram terem programas maduros e efetivos (LAVA…, 2016).
4. COMPLIANCE E A GOVERNANÇA CORPORATIVA
De fato, atualmente se constata um grande incremento na concepção e implantação de programas de compliance corporativo e empresarial. Se é de primeira ordem sua função preventiva, procurando evitar que a organização como pessoa jurídica e as pessoas físicas de seus tomadores de decisão, dirigentes, gestores e tantos quanto mais com esta se relacionem, sofram prejuízos e penalidades, há ainda vários outros fatores que estimulam sua prática.
Na verdade, a responsabilização de empresas e seus dirigentes no país vem acompanhando a tendência mundial. A Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404) ainda nos idos de 1976 já impingiu ao acionista controlador a obrigação de atuar com responsabilidade social, impondo-lhe o dever de lealdade (art. 116, parágrafo único), bem como enfatizava a responsabilidade do administrador (art. 155).
A Lei nº 7.492/1986, Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional, ampliou o direito penal brasileiro, ainda que se aplique às instituições financeiras, assim consideradas as pessoas jurídicas de direito privado ou público que atuem na captação, intermediação, aplicação de recursos financeiros ou atue no mercado de valores mobiliários, estendendo a responsabilidade criminal no âmbito das corporações. Neste sentido, vale trazer à literalidade de seu art. 25 (com sua redação alterada pela Lei nº 9.080/95), que trata da aplicação e do procedimento criminal:
Art. 25. São penalmente responsáveis, nos termos desta lei, o controlador e os administradores de instituição financeira, assim considerados os diretores, gerentes (Vetado).
§ 1º Equiparam-se aos administradores de instituição financeira (Vetado) o interventor, o liqüidante ou o síndico.
§ 2º Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou co-autoria, o coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços.
A Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613, de 03 de março de 1998) erigiu-se como conquista importante na responsabilização de pessoas físicas nas questões envolvendo desvios e ocultação de capitais. O repertório anticorrupção ainda ganhou reforço com a Lei nº 12.846/2013. Inovando a legislação anterior ao dispor sobre a responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, trouxe diversas modificações. Inclusive, estabeleceu franco incentivo à utilização de programas de compliance ao mencionar que, quando da aplicação de sanções, será considerada ―a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e conduta no âmbito da pessoa jurídica‖ (art. 7º, VIII).
O sistema normativo e o detalhamento de normas regulamentadoras editadas pelo Banco Central, Comissão de Valores Mobiliários e, então, pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras, articulando-se em cooperação com outros órgãos, igualmente contribuiu para que a governança corporativa buscasse aperfeiçoar a autorregulação e compliance.
Portanto, a concepção e implementação de programas de compliance se encontra totalmente imbricada à governança, uma vez que esta integração se dá no estabelecimento de procedimentos e ferramentas que visem à obediência à legislação e aos princípios éticos. Este escopo geral acaba por permear a estrutura corporativa, seja de empresas privadas ou entes públicos, com unidades organizacionais próprias e profissionais especializados, na tentativa de estabelecer ações preventivas e repressivas aos indesejados desvios de conduta empresarial.
Ao buscar mesclar instrumentos de compliance à governança corporativa, verifica-se desde logo a necessidade de identificação e gestão dos riscos que ameacem a lisura da atuação empresarial. Desta forma, o risco pode ser considerado como qualquer atividade permanente ou circunstância transitória, de caráter interno ou externo, que impacte negativamente o desempenho das organizações.
O gerenciamento de riscos tem disciplina preconizada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas, consubstanciada no normativo ISO 31000, cuidando-se de tema complexo, porém essencial à governança, uma vez que considera toda gama de atividades, incluindo a definição de estratégias, o processo de tomada de decisões, ações operacionais, concepção e gerenciamento de projetos, produtos, serviços e ativos.
Referida normatização dedica capítulo próprio para tratar da responsabilização no gerenciamento dos riscos, de forma a contribuir para assegurar a eficácia dos controles estabelecidos, identificando quem tem responsabilidade e autoridade para gerenciar os riscos em todos os níveis da organização, estabelecendo processos e indicadores de desempenho. A gestão de riscos adequada deve ser capaz de reconhecer ameaças, eliminando, neutralizando ou reduzindo as possibilidades de perdas financeiras. Nesta medida, evidencia-se a necessidade de relacionar sua metodologia às atividades de compliance. Aspecto importante da índole protetiva do compliance associado ao gerenciamento de riscos é a salvaguarda da honra empresarial, do bom nome da empresa e da marca que a representa. Um programa de integridade efetivo e bem informado pelo mapeamento dos riscos é fator de segurança perante o mercado e investidores, contribuindo para a captação de recursos e a realização de investimentos.
Edmo Colnaghi Neves (2018, p. 21) oferece, de forma exemplificativa, motivos para aplicação de um programa de compliance, à luz da análise de riscos:
Existem vários bons motivos para se implementar, desenvolver e manter um programa de compliance efetivo. O primeiro deles é a diminuição dos riscos de a empresa e seus funcionários cometerem violações da legislação, evitando que posteriormente venham sofrer penalidades das autoridades, as quais podem acarretar pesadas multas, penas de prisão, proibição de contratar com o Poder Público por vários anos e até a extinção da empresa, em casos mais graves.
5. COMPLIANCE CRIMINAL
O estabelecimento de um arcabouço jurídico-penal suportado por um sistema articulado e integrado de órgãos na tentativa de coibir a corrupção e a lavagem de dinheiro, a par de proteger o erário e a integridade da administração pública, reflete positivamente também no conjunto de instituições privadas, tendo em vista que a maior responsabilização penal faz com que sejam aperfeiçoados os elementos de compliance e autorregulação.
Todavia, o emprego do direito penal para coadjuvar os esforços da legislação na moralidade da administração pública está longe de ser tema pacificado pela doutrina. As distinções entre o direito penal e o direito administrativo até recentemente eram baseadas principalmente na valoração dos bens jurídicos que a norma visava a proteger, sendo que ao primeiro cabia a tutela daqueles axiologicamente considerados mais relevantes, enquanto o segundo sancionava as condutas ofensivas à administração pública.
Oportuna neste sentido a menção de René Ariel Dotti (1988, p. 337 apud BENEDETTI, 2014, p. 23):
[…] o princípio da intervenção mínima limita a incidência das normas incriminadoras, aplicando-se apenas em relação aos bens jurídicos fundamentais, deixando para os demais ramos do ordenamento jurídico, a variada gama de ilicitudes, a limitar a insegurança perpetuada pela perene inflação legislativa
Forçoso reconhecer, contudo, que a política criminal tem voltado atenção à responsabilização da pessoa jurídica e de seus administradores, buscando novos modelos de responsabilidade penal, diante das limitações da atuação do poder público e do direito administrativo como ferramenta preventiva e mesmo repressiva, bem como das dificuldades em imprimir maior eficácia à atuação do sistema regulatório baseado em sanções administrativas.
O emprego do direito penal como elemento de coerção em matéria administrativa tem sido objeto de grandes debates doutrinários. A busca de formas de responsabilização de pessoas jurídicas, a ampliação das hipóteses de reconhecimento da responsabilidade objetiva, a maior consideração à figura do garantidor e a aplicação da teoria do domínio do fato potencializam a intervenção do direito penal e seu espectro de atuação na tentativa do estabelecimento de uma política criminal mais abrangente. A previsão de crimes corporativos carrega intrínseco desejo de que a norma evidencie seu efeito preventivo, sendo a imposição de pena um imperativo repressivo reclamado pela sociedade.
Ao lado da complexidade legislativa e regulamentar que disciplina os mais diversos segmentos da atividade corporativa, com a profusão de leis e regulamentos que caracterizam o sistema jurídico e administrativo brasileiro, há ainda a possibilidade da prática inadvertida ou não intencional de crime, como ocorre nas hipóteses de erro de tipo e de erro de proibição, figuras penais que afetam a compreensão acerca dos elementos do tipo penal ou da ilicitude do fato.
Afigura-se importante o refinamento dos dispositivos de compliance de maneira geral, e ainda de forma especial naquilo que se refere à prática delitiva na conjuntura das corporações. Oportuno trazer à colação a menção de Carla Rahal Benedetti (2014, p. 16):
Como uma proposta nova de minimização dos riscos da sociedade moderna e contemporânea, o instituto do Criminal Compliance pode e deve ser utilizado, tanto como ferramenta de controle, proteção e prevenção de possíveis práticas criminosas nas empresas quanto uma valiosa ferramenta de transferência de responsabilidade penal nos crimes econômicos e nos meios eletrônicos, evitando-se, assim, a responsabilidade penal objetiva e a responsabilidade penal da pessoa jurídica, como consequente mantença da ordem jurídica e social.
Portanto, é patente a necessidade de que a governança corporativa disponha de um conjunto de normas e mecanismos internos de controle capazes de mitigar, ao máximo possível, desvios de conduta ofensivos à lei penal.
Com efeito, a melhor concepção de um sistema de competências, escorado por um código de conduta ou de ética que traduz efetivamente o ethos da pessoa jurídica, possibilita a definição e o estabelecimento de eventual responsabilidade criminal dentro da estrutura corporativa (conselho de administração, conselho fiscal, presidência, diretorias, gerências, auditoria, comitês e outros), favorecendo a individualização da conduta e aplicação da pena. O compliance criminal assim disposto, diante da ocorrência de crime no âmbito corporativo, tem a capacidade de melhor estabelecer responsabilidades para fins penais, trazendo também reflexos em outras áreas, tais como indenizações, seguros, direitos trabalhistas, questões contratuais, além da aplicação de multas.
Acerca do código de conduta, o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (2009, p. 66-67) relaciona diversas recomendações a partir do ponto de vista subjetivo, considerando sócios, membros dos conselhos de administração e fiscal, diretores, gestores fornecedores e demais partes interessadas.
Dentre os temas que recomenda devam estar previstos no código de posturas internas, indica a conformidade legal e em especial às obrigações tributárias, atenção às partes relacionadas, disposição sobre o uso de ativos, elisão e resolução de conflitos de interesses, prevenção e atuação contra fraudes, questões judiciais e arbitragem, pagamentos ou recebimentos suspeitos, doações, presentes e favores, atuação política, assédio moral e sexual, nepotismo, assuntos ambientais e relações com a comunidade.
Conforme se depreende do exposto, a assim chamada sociedade de risco, diante da hipertrofia do direito penal punitivo e a possibilidade sempre presente da prática de infração, evidencia o compliance criminal como instrumento válido a ser empregado em aderência à governança corporativa para a mitigação dos riscos corporativos em favor das pessoas físicas que nela laboram e da própria empresa.
O emprego do compliance criminal será preventivo, porque tem como vocação se antecipar à potencial prática delitiva, com emprego de análise dos processos internos, mapeamento dos riscos, estabelecimento de competências e formas de atuação de seus dirigentes e prepostos, com monitoramento atento de suas relações contratuais e fluxos financeiros.
Deve-se buscar a definição de atribuições dentro da hierarquia e competências organizacionais, especificando procedimentos e individualizando condutas, implementando formas de controle e monitoramento, de maneira a mitigar os riscos e, ante sua ocorrência, estabelecer com mais clareza e precisão eventuais responsabilidades.
Nada obstante, o compliance criminal possui grande valor no momento pós fato, diante da eventual prática de crime no seio da corporação, uma vez que o adequado conhecimento dos processos e uma clara distribuição de competências contribuirá para a melhor determinação das responsabilidades e, assim, para a redução de riscos financeiros e morais. A transparência da governança nestas situações se erige como fator de possível redução de danos à credibilidade da empresa, visto que melhor circunscreve as responsabilidades e possibilita a adoção oportuna de contingências adequadas.
Se o compliance criminal possui efetivamente caráter preventivo, é igualmente importante notar que, ao definir condutas e estabelecer responsabilidades corporativas, torna-se também elemento justo de determinação e transferência de responsabilidade penal, já que contribui na determinação do autor da conduta criticada.
6. CONCLUSÕES
O mundo moderno e as novas relações comerciais trouxeram grandes impactos à governança das empresas. Aspectos como a tecnologia e comunicações, logística e transportes, a formação de blocos econômicos, ao lado do incremento dos sistemas de fiscalização, controle e justiça, aumentam em muito a necessidade de aperfeiçoamento dos modelos de governança.
A evolução constante da sociedade e das relações comerciais, de outro lado, também modifica a atuação da criminalidade, em especial na prática de corrupção e lavagem de dinheiro, quer em empresas públicas ou privadas. A seu turno, o Estado responde com o endurecimento da legislação e o fortalecimento da atuação dos órgãos de controle e do sistema de justiça criminal.
Embora uma das principais finalidades da governança corporativa fosse tradicionalmente o estabelecimento de mecanismos de controle para a proteção dos interesses dos acionistas contra eventuais desvios de conduta de administradores e gestores, sua compreensão se aprofunda pelas implicações criminais da atuação de seus agentes, além da extensão que se lhe dá a responsabilidade social, que considera aspectos corporativos, empresariais, ambientais, relações de trabalho, envolvimento com a comunidade, melhoria da qualidade de vida, dentre outros.
Até então tida como instrumento funcional de gestão, a governança corporativa passa a ser empregada não apenas na tomada de decisão para otimização do desempenho e com intuito de lucro, assumindo compromisso de atentar aos diversos aspectos que se referem à responsabilidade social, além de empenhar-se na busca constante da conformidade legal e regulamentar.
Seguindo a inclinação mundial, a legislação brasileira tornou-se mais rigorosa e os organismos de controle foram apurados e tornaram-se mais articulados, havendo maior emprego de normas penais incriminadoras em relação à atividade empresarial e corporativa, o que faz aumentarem ainda mais as responsabilidades de administradores e tomadores de decisão.
O direito penal passou a ser usado de forma ampliada, na tentativa do Estado de conter a criminalidade no ambiente corporativo público e privado. A responsabilização das empresas dirige-se em especial às pessoas naturais que as compõem nos níveis de governança. À vista disso, surge a necessidade de estabelecer um sistema protetivo que, ao atuar em favor do Estado, busque evitar a prática delitiva e, no interesse imediato da empresa, evite prejuízos financeiros e zele pela integridade de seus tomadores de decisão e dirigentes.
Todos aqueles envolvidos nos processos de governança e que podem, em tese, ser potencialmente responsabilizados criminalmente, necessitam de instrumentos aplicados sistematicamente ao processo de tomada de decisões que aumentem o grau de segurança jurídica de sua atuação, assim constituindo-se o compliance criminal como instrumento essencial à governança corporativa.
Neste contexto, o compliance criminal tem a missão estabelecer regras internas e atribuições, na tentativa de prevenir a ocorrência de delito no âmbito corporativo e, diante de sua prática, dispor de contingências para mitigação de suas consequências, delimitando a conduta e individualizando responsabilidades.
A implementação de um programa de compliance criminal aplicado à governança corporativa constitui instrumento válido de prevenção contra a prática de delitos e de mitigação de riscos corporativos, uma vez que deve propugnar pela atuação em conformidade à legislação, impactando a cultura organizacional e estabelecendo maior rigor à gestão.
O compliance criminal possui índole preventiva, na medida em que publiciza normas e condutas internas, estabelece responsabilidades, monitora e fiscaliza seu cumprimento. Sua importância também se avulta após o fato, ante a prática de crime, uma vez que pode melhor definir as condutas, mensurar responsabilidades e indicar sua autoria.
Com efeito, diante da eventual prática de crime corporativo, o compliance criminal assume grande importância, vez que contribuirá decisivamente na correta atribuição de responsabilidades e individualização das condutas, circunscrevendo e delimitando os danos e prejuízos decorrentes da prática delitiva.
Verifica-se, portanto, que um programa de compliance bem estruturado e atento à análise de riscos, aliado à governança corporativa, pode constituir-se em sistema protetivo e de contingências válido, ao estabelecer um conjunto de processos e procedimentos articulados para subsidiar o processo de tomada de decisões, de forma a conduzir, gerir, monitorar e aperfeiçoar as atividades empresariais, baseados na ética, cultura organizacional, melhores práticas, regramentos administrativos e na legislação, buscando uma atuação segura e em conformidade ao aparato normativo.
O compliance criminal, associado a outros elementos de governança, é instrumento válido e eficaz para a prevenção e apuração de fatos típicos penais no âmbito interno e externo das empresas, sendo efetivo na individualização de condutas a serem observadas e eventualmente apuradas no âmbito administrativo ou na esfera do direito penal.
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1Advogado, Graduado em Direito, especializando em Direito Corporativo e Governança Empresarial, e-mail paulorocheladv@gmail.com