REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202411232157
Mateus da Silva dos Reis1
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar o posicionamento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça quanto ao disposto no artigo 385 de Código de Processo Penal, que prevê a possibilidade de o juiz, nos crimes de ação pública incondicionada, proferir sentença condenatória em desfavor do réu, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela sua absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada. Para isso, inicialmente, o estudo explora a origem histórica do CPP, criado em 1941 durante o Estado Novo, um período autoritário, e destaca as implicações desse dispositivo em relação à imparcialidade judicial e à presunção de inocência. Revisando doutrina e jurisprudência, o trabalho avalia as posições divergentes sobre a constitucionalidade do artigo 385, incluindo a crítica de que ele subverte a separação de funções entre acusação, defesa e julgamento, comprometendo a imparcialidade judicial. Em contrapartida, defende-se a possibilidade de sua aplicação em situações excepcionais, desde que devidamente fundamentada com provas robustas. O método utilizado foi o de pesquisas jurisprudenciais e bibliográficas, especialmente as doutrinas especializadas em direito processual penal. A pesquisa conclui que, embora o artigo 385 seja compatível em circunstâncias específicas, ele demanda revisão à luz dos princípios do Estado Democrático de Direito, para garantir a proteção dos direitos fundamentais e a integridade do processo penal.
Palavras-chave: Sistema Processual. Acusatório. Inquisitório. STJ.
ABSTRACT
This paper aims to analyze the jurisprudential stance of the Superior Court of Justice regarding Article 385 of the Code of Criminal Procedure, which allows judges, in cases of unconditional public action crimes, to issue a convicting sentence even if the Public Prosecutor’s Office has advocated for acquittal, as well as to recognize aggravating factors that were not previously alleged. The study begins by exploring the historical origins of the CPP, established in 1941 during the authoritarian Estado Novo period, and highlights the implications of this provision concerning judicial impartiality and the presumption of innocence. By reviewing legal doctrine and case law, the paper assesses divergent views on the constitutionality of Article 385, including criticism that it undermines the separation of powers between accusation, defense, and judgment, thereby compromising judicial impartiality. Conversely, the paper supports the possibility of its application in exceptional circumstances, provided that it is adequately substantiated by robust evidence. The methodology employed includes jurisprudential and bibliographic research, particularly specialized doctrines in criminal procedural law. The research concludes that while Article 385 may be compatible in specific circumstances, it requires revision in light of the principles of the Democratic Rule of Law to ensure the protection of fundamental rights and the integrity of the criminal process.
Keywords: Procedural System, Accusatory, Inquisitorial, STJ.
1 INTRODUÇÃO
O CPP brasileiro foi criado em 1941, durante o regime do Estado Novo (1937-1945), época em que a centralização do poder, inspirada em regimes fascistas, impôs mudanças profundas nas leis. Sob o governo de Getúlio Vargas, buscava-se reforçar a autoridade do Estado e aumentar o controle sobre o Judiciário. O artigo 385 exemplifica esse controle, ao autorizar o juiz a condenar o réu mesmo que o Ministério Público (MP) tenha opinado pela absolvição. Essa disposição contrariaria os princípios de imparcialidade e separação das funções de acusar e julgar, centrais ao sistema acusatório.
Este artigo tem como objetivo analisar criticamente – à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – o artigo 385 do Código de Processo Penal (CPP) brasileiro, que permite ao juiz condenar o réu mesmo quando o Ministério Público opina pela absolvição, observando se os fundamentos invocados pela Corte em alguma medida revelam inobservância ao sistema acusatório e os direitos fundamentais assegurados pela Constituição de 1988, especialmente o direito ao contraditório, ampla defesa e presunção de inocência. A relevância do tema decorre da necessidade de compreender se essa norma, remanescente de um contexto histórico autoritário, é compatível com o atual regime democrático e com os princípios constitucionais que regem o devido processo legal.
O estudo está ancorado em uma análise histórica e jurídica. Primeiramente, é apresentada a origem do CPP, criado em 1941, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, um período marcado pela centralização do poder e supressão de liberdades individuais. Em seguida, discute-se a evolução dos sistemas processuais penais, com ênfase no sistema inquisitorial e acusatório, destacando as implicações da aplicação do artigo 385 dentro dessa transição. Para isso, são revisadas as posições de doutrinadores como Renato Brasileiro, Aury Lopes Júnior e Guilherme Nucci, além da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que reflete as divergências na interpretação da norma.
Parte-se da hipótese de que o referido dispositivo, ao permitir que o juiz condene sem pedido formal do titular da ação penal, subverte a separação das funções de acusar, defender e julgar, comprometendo a imparcialidade do processo.
Assim, este estudo visa contribuir para o debate sobre a constitucionalidade do artigo 385 do CPP, propondo uma análise crítica e ponderada das consequências de sua aplicação no sistema jurídico brasileiro atual.
2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA CRIAÇÃO DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
O Código de Processo Penal (CPP) brasileiro, promulgado em 1941, surgiu em um contexto político marcado pela ascensão de Getúlio Vargas ao poder e pela consolidação do Estado Novo, um regime de caráter autoritário que vigorou de 1937 a 1945. Segundo Neto (2013), nesse período “a polícia do Estado Novo estava autorizada a agir da forma que lhe conviesse para cercear os opositores, catalogados sob a categoria comum de subversivos e inimigos do regime”.
O Estado Novo, inspirado em regimes autoritários europeus, como o fascismo italiano, foi caracterizado pela centralização do poder, supressão das liberdades democráticas e fortalecimento do controle estatal sobre as instituições. Nesse contexto, a criação do Código de Processo Penal de 1941 se insere como parte de um esforço mais amplo de Vargas para reformar o sistema jurídico e garantir maior controle sobre o aparato judicial.
Na obra Getúlio: Do Governo Provisório à Ditadura do Estado Novo (1930-1945), Lira Neto (2013) afirma que:
Com Francisco Campos à frente do Ministério da Justiça, os códigos de Processo Civil e Penal passaram por revisões históricas, que aprofundaram as medidas de segurança e o rigor da ação repressiva do Estado. Foram reduzidos consideravelmente os direitos individuais, sob o pretexto de “neutralizar os indesejáveis” e eliminar as “garantias” que, em tese, beneficiavam os malfeitores. No caso do Código Penal, o modelo que serviu de inspiração à reforma brasileira foi o Código Rocco, da Itália fascista. (Neto, 2013, p. 331)
A revisão histórica realizada nos códigos de Processo Civil e Penal, portanto, surgiu de um único objetivo: garantir a intervenção do poder público nos processos judiciais, aumentando a autonomia dos juízes, por vezes, e assegurando uma atuação mais ativa do Ministério Público e das autoridades policiais. Nesse cenário, o artigo 385 do atual Código de Processo Penal, que permite o juiz condenar o réu mesmo quando o Ministério Público opine pela sua absolvição, é um exemplo claro dessa lógica. A intenção era ampliar o controle estatal sobre o Judiciário, em linha com a ideologia autoritária vigente.
Portanto, o Código de Processo Penal de 1941 foi criado em um contexto de centralização do poder e de controle estatal, refletindo o espírito autoritário do Estado Novo. O artigo 385, ao permitir uma condenação sem a atuação do Ministério Público, exemplifica o desequilíbrio entre os poderes que marcou aquele período e que continua vigente até os dias atuais, em total contradição com os princípios da Constituição de 1988, que preza pela separação dos poderes e pela garantia dos direitos individuais.
3 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS E AS SUA IMPLICAÇÕES COM O ARTIGO 385 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Segundo Lopes Júnior (2022), “o direito penal não tem realidade concreta fora do processo penal, sendo as regras do processo que realizam diretamente o poder penal do Estado”.
Por essa razão, Maier (2016 apud Lopes Júnior, 2022) sustenta a tese de que “é no direito processual penal que as manipulações do poder político são mais frequentes e destacadas, até pela natureza da tensão existente (poder de penar versus direito de liberdade)”.
Diante dessa perspectiva, verifica-se que o processo penal é moldado conforme as exigências e necessidades do Estado, tendo como pano de fundo o atual contexto em que está inserido. Lopes Júnior destaca esse fenômeno na obra de Ernst Beling:
Na história do direito se alternaram as mais duras opressões com as mais amplas liberdades. É natural que, nas épocas em que o Estado se viu seriamente ameaçado pela criminalidade, o direito penal tenha estabelecido penas severas e o processo tivesse de ser também inflexível. (Beling, 2018 apud Lopes Júnior, 2022).
Desse modo, a opção por um dos sistemas processuais, acusatório ou inquisitivo, reflete essa conjuntura no ordenamento jurídico. O sistema processual penal escolhido por um Estado diz muito sobre seus valores e anseios. Além disso, as garantias processuais e a forma como o Estado lida com os processos penais demonstram o quanto o país valoriza direitos como o devido processo legal e a dignidade humana.
3.1. Sistema Processual Inquisitivo
O sistema inquisitivo é um modelo processual penal típico de Estados cuja forma de governo é organizada em ditadura. Ao tratar dos sistemas processuais penais existentes, Brasileiro (2020, p. 40) leciona que o sistema processual inquisitório “tem como característica principal o fato de as funções de acusar, defender e julgar encontrarem-se concentradas em uma única pessoa, que assume assim as vestes de um juiz acusador, chamado de juiz inquisidor”.
Para Boff (1993 apud Lopes Júnior, 2022), na prática a atuação do magistrado ocorre da seguinte forma:
Frente a um fato típico, o julgador atua de ofício, sem necessidade de prévia invocação, e recolhe (também de ofício) o material que vai constituir seu convencimento. O processado é a melhor fonte de conhecimento e, como se fosse uma testemunha, é chamado a declarar a verdade sob pena de coação. O juiz é livre para intervir, recolher e selecionar o material necessário para julgar, de modo que não existem mais defeitos pela inatividade das partes e tampouco existe uma vinculação legal do juiz. (Boff, 1993 apud Lopes Júnior, 2022).
O modelo remonta a um contexto histórico específico, mais notadamente no período de ascensão dos imperadores romanos e ao longo dos séculos XI e XII, no seio da Igreja Católica espanhola.
3.2. Sistema Processual Acusatório
Como contraposto ao sistema inquisitório, o sistema processual penal acusatório é caracterizado pela presença de partes distintas com funções bem delimitadas, ou seja, contrapõem-se a acusação e a defesa em igualdade de condições, e o juiz promove a prestação jurisdicional de maneira equidistante e imparcial (Lima, 2020, p. 42).
Tal sistema, conforme se verifica, melhor atende aos direitos e garantias fundamentais traçadas na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, como o direito ao contraditório e a ampla defesa, presunção de inocência, devido processo legal, inércia da jurisdição, imparcialidade do juiz etc.
Em que pese o art. 3-A do Código de Processo Penal disponha sobra a sua estrutura acusatória, vedando a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição probatória do órgão acusador, ainda há margem para atuação de ofício pelo juiz. Porém, segundo o Supremo Tribunal Federal, ao julgar as ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, essa atuação de ofício se dará somente em casos específicos a fim de esclarecer dúvida sobre ponto relevante para o julgamento.
3.3. As Implicações entre o Sistema Processual Acusatório e o Artigo 385 do Código de Processo Penal Brasileiro
Conforme visto anteriormente, no sistema acusatório, as funções de acusar, defender e julgar são claramente separadas para garantir a imparcialidade do julgamento. Entretando, em que pese a ordenamento jurídico brasileiro tenha adotado essa estrutura acusatória, conforme o disposto no art. 3-A do CPP, o artigo 385 do mesmo diploma normativo quebra essa separação ao permitir que o juiz assuma uma postura ativa na condenação, colocando em risco a imparcialidade. Isso porque ao decidir condenar o réu mesmo diante de um pedido de absolvição do Ministério Público, o juiz pode ser influenciado por suas próprias percepções, o que compromete a objetividade e a imparcialidade necessária para um julgamento justo (LOPES JÚNIOR, 2023).
Além disso, o artigo 385 do CPP põe em risco a garantia fundamental de presunção de inocência, tendo em vista que a ausência de uma acusação formal e robusta subverte este princípio, colocando um peso desproporcional sobre o réu. Em outras palavras, o dispositivo legal supracitado pode levar a condenações injustas, já que o juiz pode considerar suficiente um conjunto probatório que o MP, por algum motivo, julgou insuficiente para requerer a condenação do réu.
O pedido de absolvição do Ministério Público, conforme ensina Lopes Júnior (2023, p. 426), “equivale ao não exercício da pretensão acusatória, isto é, o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém”. Dessa forma, é nítida a desconformidade do artigo 385 do Código de Processo Penal com ordenamento jurídico, pois se o juiz condena o acusado sem que haja pedido do legítimo titular da ação penal exercerá poder punitivo sem que haja a requerida invocação.
Comungando do mesmo entendimento, Brasileiro (2023, p. 44) destaca que o artigo 385 do CPP introduz insegurança jurídica, pois as partes não podem prever com clareza o desfecho do processo. Sustenta, ainda, que a previsibilidade é essencial para a segurança jurídica. O artigo 385 mina essa previsibilidade, tornando o resultado do processo menos transparente e mais suscetível a decisões arbitrárias.
Em posição diametralmente oposta, Nucci (2020, p. 1322) adota uma postura diferente. Ele reconhece que o artigo 385 do CPP permite uma exceção ao princípio acusatório, de modo que o juiz pode, de maneira excepcional, proferir uma condenação, mesmo quando o Ministério Público opine pela absolvição, desde que existem provas robustas para justificar essa condenação. A ideia é que o papel do juiz é assegurar a realização da justiça e, se houver evidências claras de culpa, o juiz não está necessariamente vinculado à manifestação do Ministério Público (Nucci, 2020).
No entanto, ele destaca que essa possibilidade deve ser usada com cautela e de forma bem fundamentada, para evitar que o juiz atue como acusador, preservando assim os princípios constitucionais do devido processo legal e da imparcialidade.
do mesmo modo que está o promotor livre para pedir a absolvição, demonstrando o seu convencimento, fruto da sua independência funcional, outra não poderia ser a postura do magistrado. Afinal, no processo penal, cuidamos da ação penal pública nos prismas da obrigatoriedade e da indisponibilidade, não podendo o órgão acusatório dela abrir mão, de modo que também não está fadado o juiz a absolver o réu, se as provas apontam em sentido diverso. Ademais, pelo princípio do impulso oficial, desde o recebimento da peça inicial acusatória, está o magistrado obrigado a conduzir o feito ao seu deslinde, proferindo-se decisão de mérito. E tudo isso a comprovar que o direito de punir do Estado não é regido pela oportunidade, mas pela necessidade de se produzir a acusação e, consequentemente, a condenação, desde que haja provas a sustentá-la. (Nucci, 2020, p. 1322).
Ocorre que o juiz não pode se valer do argumento de que está assegurando a realização da justiça para violar direitos e garantias fundamentais. Reconhecer a exceção ao artigo 385 do CPP defendida por Nucci é sepultar sistema acusatório, pois não havendo atuação ativa do Ministério Público no sentido de pleitear a condenação do réu não pode o juiz avocar para si tal função sob pena que quebra do princípio da imparcialidade e inércia da jurisdição. Se assim o fosse, em última instância quem estaria exercendo a pretensão acusatória seria o juiz, que reconheceria a culpabilidade do réu segundo suas próprias convicções sem que houvesse provocação para isso.
Além disso, a simples exigência de que exista provas robustas para justificar a condenação do réu somada ao plus de argumentação jurídica não é suficiente para amparar a exceção ao artigo 385 do CPP, tendo em vista que a medida não anula o fato da jurisdição não ter sido provocada para tal fim.
Deus Filho (2024), refutando Lopes Júnior, sustenta que o simples pedido de absolvição do réu não traduz o não exercício da pretensão acusatória, tendo em vista que ao oferecer a denúncia o parquet exerceu tal pretensão. Ele acrescenta que:
se fosse vedado ao magistrado proferir sentença penal condenatória, à despeito da manifestação ministerial em sentido contrário, seria forçoso concluir que o Parquet, ainda que por vias indiretas, estaria julgando o caso penal, violando desta forma, a cláusula de reserva de jurisdição. (Deus Filho, 2024).
Porém, se o juiz entende que há evidências claras de culpa e mesmo assim o órgão acusador opina pela absolvição, a postura mais correta do juiz seria submeter o caso à revisão ministerial, de maneira semelhante à hipótese prevista no artigo 28 do Código de Processo Penal, que trata do arquivamento do inquérito policial.
Assim, a medida preservaria a imparcialidade e afastaria eventual “vinculação” do juiz à manifestação do órgão ministerial. Porém, como inexiste disposição legal que estabeleça a hipótese mencionada, também não é admissível a figura do juiz acusador. Nicolitt destaca a inexistência dessa “vinculação”:
não se deve imaginar que a opinião do Ministério Público vincula o juiz. Na verdade, a questão se coloca no fato de que não é aceitável, por ser incompatível com o sistema acusatório, o acolhimento da pretensão quando o próprio Parquet a reconhece infundada ou não provada. (Nicolitt, 2020 apud Deus Filho, 2024).
Em um sistema acusatório, é fundamental que as funções de acusação e julgamento permaneçam claramente separadas. Quando o magistrado insiste em condenar o réu, mesmo na ausência de um pedido formal do Ministério Público, ultrapassa os limites de sua função e compromete a própria essência de um julgamento justo e imparcial. A figura do juiz deve ser aquela que observa, analisa e decide conforme o pedido acusatório, e não alguém que toma para si a iniciativa de condenar independentemente dos elementos trazidos pela acusação. Agir de forma contrária seria esvaziar o papel do Ministério Público e fragilizar os pilares do sistema de garantias, desrespeitando o devido processo legal e os direitos fundamentais do acusado.
4 A JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E A NECESSIDADE DO DEBATE SOBRE A REFORMA DO CPP
O julgamento de processos que versam sobre direito penal é de competência da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, formada pela 5ª Turma e a 6ª Turma. Nesse quadro, a análise da posição jurisprudencial quanto ao disposto no artigo 385 do Código de Processo Penal observa o posicionamento de ambas as turmas.
4.1. Posição da 5ª Turma do STJ
Com fundamento nos artigos 3º-A do Código de Processo Penal e 129, inciso I, da Constituição Federal, em 06/09/2022 a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça acordou no julgamento do AgRG no AREsp nº 1.940.726/RO, que o sistema processual penal brasileiro adota a estrutura acusatória e que, portanto, diante de um pedido de absolvição engendrado pelo órgão ministerial o juiz não pode condenar o réu. Assim dispôs a ementa:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PENAL. PROCESSUAL PENAL. INTIMAÇÃO DO ADVOGADO CONSTITUÍDO. REGULARIDADE DO ATO PROCESSUAL. ART. 337-A, III, DO CÓDIGO PENAL. DELITO DE NATUREZA MATERIAL. MERA INADIMPLÊNCIA TRIBUTÁRIA. NÃO CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE SONEGAÇÃO. DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA ACESSÓRIA. NÃO CARACTERIZAÇÃO DO CRIME DO ART. 337-A DO CP. MONOPÓLIO DA AÇÃO PENAL PÚBLICA. TITULARIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PEDIDO MINISTERIAL DE ABSOLVIÇÃO. NECESSÁRIO ACOLHIMENTO. ART. 3º-A do CPP. OFENSA AO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. […] 4. Nos termos do art. 129, I, da Constituição Federal, incumbe ao Ministério Público o monopólio da titularidade da ação penal pública. 5. Tendo o Ministério Público, titular da ação penal pública, pedido a absolvição do réu, não cabe ao juízo a quo julgar procedente a acusação, sob pena de violação do princípio acusatório, previsto no art. 3º-A do CPP, que impõe estrita separação entre as funções de acusar e julgar. 6. Agravo regimental desprovido. Ordem concedida de ofício para anular o processo após as alegações finais apresentadas pelas partes. (AgRG no AREsp n. 1.940.726/RO, 5ª Turma, Rel. p/ Acórdão Min. João Otávio de Noronha, DJe de 04/10/2022).
Tem-se, portanto, um julgamento que além de observar a autoridade do Ministério Público enquanto titular da ação penal pública, nos termos da Constituição Federal de 1988, também se encontra em sintonia com a doutrina de Aury Lopes Júnior e Renato Brasileiro, conforme visto anteriormente. Diante dessa perspectiva, observa-se que as razões invocadas pela 5ª Turma revelam nada mais nada menos que o reconhecimento de que o artigo 385 é um resquício do sistema inquisitivo.
Entretanto, cabe ressaltar que tal posicionamento não é pacífico no Superior Tribunal de Justiça.
4.2. Posição da 6ª Turma do STJ
Em 14/02/2023, a 6ª Turma no julgamento do REsp 2.022.413-PA defendeu a legalidade do art. 385 do Código de Processo Penal. A Turma destacou que o de que o artigo 385 do CPP não foi tacitamente derrogado pela Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime), que introduziu o artigo 3º-A no CPP, que reafirma a estrutura acusatória do processo penal brasileiro.
Em linhas gerais, a posição da 6ª Turma vai ao encontro da lição ponderada de Guilherme Nucci, apresentada anteriormente, uma vez que defende exceção do artigo 385 do CPP, no sentido de que: havendo um pedido de absolvição pelo órgão ministerial, deverá o julgador demonstrar os motivos fáticos e jurídicos pelos quais entende ser necessário para condenar o réu, além de demonstrar o equívoco do Ministério Público. Segue o trecho da ementa:
RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. DESCAMINHO E TRÁFICO DE DROGAS. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL E VIOLAÇÃO DOS ARTS. 619, DO CPP C/C OS 1.022 E 489, § 1º, IV E V, AMBOS DO CPC/2015 E ART. 93, IX, DA CF; 144, § 4º, DA CF; 129, CAPUT, DA CF E ART. 385, DO CPP; 40, I, DA LEI 11.343/2006; 156 E 386, V E VII, AMBOS DO CPP; E 33, § 4º, DA LEI 11.343/20026. […] (3) DECISÃO CONDENATÓRIA A DESPEITO DO PEDIDO ABSOLUTÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM ALEGAÇÕES FINAIS. POSSIBILIDADE. COMPATIBILIDADE COM O SISTEMA ACUSATÓRIO. ARTS. 3º-A DO CPP E 2º, § 1º, DA LINDB. NÃO VIOLAÇÃO. AUSÊNCIA DE DERROGAÇÃO TÁCITA DO ART. 385 DO CPP. JURISPRUDÊNCIA DA SEXTA TURMA. (4) OFENSA AO ART. 144, § 4º, DA CF. […] 8. Conforme dispõe o art. 385 do Código de Processo Penal, é possível que o juiz condene o réu ainda que o Ministério Público peça a absolvição do acusado em alegações finais. Esse dispositivo legal está em consonância com o sistema acusatório adotado no Brasil e não foi tacitamente derrogado pelo advento da Lei n. 13.964/2019, que introduziu o art. 3º-A no Código de Processo Penal. […] Vale dizer, uma vez formulado pedido de absolvição pelo dominus litis, caberá ao julgador, na sentença, apresentar os motivos fáticos e jurídicos pelos quais entende ser cabível a condenação e refutar não apenas os fundamentos suscitados pela defesa, mas também aqueles invocados pelo Parquet em suas alegações finais, a fim de demonstrar o equívoco da manifestação ministerial. Isso porque, tal como ocorre com os seus poderes instrutórios, a faculdade de o julgador condenar o acusado em contrariedade ao pedido de absolvição do Parquet também só pode ser exercida de forma excepcional, devidamente fundamentada à luz das circunstâncias do caso concreto. Assim, diante de todas essas considerações, não há falar em violação dos arts. 3°-A do CPP […] e 2°, § 1°, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro […], porquanto o art. 385 do CPP não é incompatível com o sistema acusatório entre nós adotado e não foi tacitamente derrogado pelo advento da Lei n. 13.964/2019, responsável por introduzir o art. 3º-A no Código de Processo Penal. (REsp n. 1.921.670/PR, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 26/9/2023, DJe de 29/9/2023.)
Contudo, cumpre consignar que o respeitável entendimento, ao admitir a exceção do artigo 385 do CPP, reconhece a possibilidade de os juízes assumirem a posição de acusador, de modo que passam a atuar não mais como juízes, mas como justiceiros, ferindo o princípio da imparcialidade e da presunção de inocência.
Conforme julgamento das ADIs 6.298, 6.300 e 6.305, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que no processo penal brasileiro vigora o sistema acusatório, vedando, portanto, as iniciativas do juiz. Assim, não pode o juiz condenar ou reconhecer agravantes quando o Ministério Público, titular da ação penal pública, não fizer requerimento nesse sentido, sob pena de violação do artigo 3º-A do CPP (sistema acusatório), dos princípios da imparcialidade do juiz, inércia da jurisdição, contraditório e ampla defesa, devido processo legal.
4.3. Debate sobre a reforma do Código de Processo Penal
A análise da necessidade de reforma do Código de Processo Penal (CPP) em relação ao artigo 385 evidencia uma divergência fundamental entre o sistema processual penal acusatório, adotado no Brasil, e a permissão, contida nesse dispositivo, para que o juiz possa condenar um réu mesmo diante do pedido de absolvição pelo Ministério Público. Essa permissão, ao conferir ao juiz uma postura ativa na condenação, coloca em risco a estrutura acusatória do processo penal brasileiro, o que demanda uma revisão criteriosa.
O sistema acusatório, conforme definido pelo art. 3º-A do CPP e pela Constituição Federal de 1988, pressupõe a separação clara entre as funções de acusar, defender e julgar, buscando garantir um julgamento imparcial. Assim, a atuação do juiz deve ser estritamente jurisdicional, sem interferir na função acusatória, a qual cabe exclusivamente ao Ministério Público. Contudo, o artigo 385 do CPP representa uma exceção a essa estrutura, permitindo que o juiz condene o réu por iniciativa própria, mesmo quando o órgão acusador tenha opinado pela absolvição. Essa postura pode comprometer tanto a imparcialidade do juiz quanto a presunção de inocência, princípios fundamentais em um processo penal justo.
Os doutrinadores e juristas divergem quanto à interpretação e aplicação do artigo 385. Lopes Júnior, por exemplo, argumenta que essa norma representa um resquício do sistema inquisitivo e enfraquece garantias fundamentais, uma vez que o juiz, ao atuar como acusador, ultrapassa sua função e compromete o direito à defesa e ao contraditório. Já Nucci defende que, desde que existam provas robustas, o juiz poderia exercer essa competência de maneira excepcional e fundamentada, visando à realização da justiça. Apesar disso, reconhece a necessidade de cautela para não violar os princípios constitucionais de imparcialidade e devido processo.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) também apresenta posições distintas. Enquanto a 5ª Turma reconhece que o juiz não pode condenar o réu diante do pedido de absolvição pelo Ministério Público, a 6ª Turma entende que o art. 385 do CPP é compatível com o sistema acusatório, desde que a decisão seja excepcional e devidamente fundamentada. Essa falta de consenso reforça a necessidade de reforma do CPP para eliminar ambiguidades que enfraquecem a segurança jurídica e permitem interpretações que podem comprometer a imparcialidade e a previsibilidade do processo penal.
Com a adoção do sistema acusatório pelo Brasil, uma reforma que contemple a revogação ou alteração do art. 385 do CPP tornaria o processo penal brasileiro mais compatível com os direitos e garantias fundamentais. A reforma deve assegurar que o juiz apenas julgue os pedidos formulados pelo Ministério Público, respeitando o papel de cada ator processual e garantindo que o julgamento ocorra dentro dos limites da acusação. Isso contribuiria para fortalecer a imparcialidade judicial e proteger os direitos do réu, como a presunção de inocência, promovendo, assim, um processo penal mais justo e constitucionalmente adequado.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As discussões apresentadas ao longo deste trabalho demonstram a complexidade que envolve o artigo 385 do Código de Processo Penal, inserido em um contexto histórico de centralização do poder e autoritarismo. Essa disposição normativa, embora ainda vigente, contrasta diretamente com os princípios constitucionais de um Estado Democrático de Direito, que preza pela imparcialidade e separação das funções de acusação, defesa e julgamento, pilares do sistema processual penal acusatório adotado pela Constituição de 1988.
No debate doutrinário, destacam-se as críticas que apontam para os riscos que o artigo 385 impõe à imparcialidade do juiz e à presunção de inocência, com autores como Aury Lopes Júnior e Renato Brasileiro defendendo sua incompatibilidade com o sistema acusatório. Ao mesmo tempo, vozes como Guilherme Nucci e decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça reconhecem a legitimidade do dispositivo em situações excepcionais, desde que devidamente fundamentadas e à luz de provas robustas.
Conclui-se que o artigo 385 do Código de Processo Penal brasileiro reflete uma tensão histórica entre o sistema inquisitório, vigente à época de sua criação, e os princípios constitucionais acusatórios que hoje embasam o direito processual penal no Brasil.
A origem do CPP em um período autoritário, caracterizado pela centralização do poder e repressão estatal, influenciou a inclusão de dispositivos que permitem ao juiz uma atuação mais proativa, como o artigo 385, que faculta a condenação do réu independentemente do pedido de absolvição do Ministério Público. Contudo, com o advento da Constituição de 1988, que consagra o sistema acusatório e valoriza a separação das funções de acusação, defesa e julgamento, o artigo 385 tem sido alvo de críticas.
Portanto, embora o artigo 385 permaneça vigente, seu futuro e aplicação efetiva dependem de um equilíbrio entre os ideais constitucionais acusatórios e a realidade prática do processo penal brasileiro. A discussão em torno do dispositivo continua sendo um importante ponto de reflexão sobre o papel do juiz e os limites da atuação estatal no contexto do sistema penal brasileiro atual.
A divergência jurisprudencial entre as 5ª e 6ª Turmas do STJ reflete a dificuldade em harmonizar o artigo 385 com o sistema acusatório vigente, sendo necessário ponderar os limites e garantias estabelecidos pela Constituição de 1988. Assim, é inegável que o dispositivo, fruto de um período histórico autoritário, deve ser revisado ou reinterpretado à luz dos princípios constitucionais atuais, a fim de assegurar que a justiça penal seja realizada de maneira equilibrada, imparcial e previsível, garantindo, acima de tudo, a proteção dos direitos fundamentais dos acusados e a integridade do sistema judicial brasileiro.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm Acesso em: 04 abr. 2024.
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6ª Turma). Recurso Especial nº 2.022.413-PA. […] Decisão condenatória a despeito do pedido absolutório do Ministério Público em alegações finais. Possibilidade. Compatibilidade com o sistema acusatório. Arts. 3º-A do CPP e 2º, § 1º, da LINDB. Não violação. Ausência de derrogação tática do art. 385 do CPP. Arts. 316 do CP e 386, I, do CPP […]. Relator Min. Sebastião Reis Júnior, Rel. para acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 14/2/2023. Disponível em https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202200356440&dt_publicacao=07%2F03%2F2023 Acesso em 07 mar. 2024.
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1Graduando do Curso de Direito do Centro Universitário Fametro. E-mail: mateusreisam@gmail.com. ORCID: 0009-0001-9263-796X