REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202411200807
Gutemberg França de Oliveira;
Eldo Josoé Braga;
Orientador: Profa. Vivian Barroso
RESUMO
O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), instituído pela Lei nº 13.964/2019 (pacote anticrime) busca reduzir o encarceramento em massa, especialmente para crimes de menor gravidade, principalmente aqueles crimes cometidos na modalidade culposa. Este artigo avalia a eficácia do ANPP nas Varas Criminais do Estado do Rio Grande do Norte, analisando a redução do número de processos, o impacto na reincidência e as repercussões sociais. Entre 2020 e 2023, o ANPP evitou a prisão de mais de 8.000 pessoas, promovendo uma justiça mais ágil, aliviando, por consequência, a superlotação nos presídios do Estado. Contudo, apesar dos avanços trazidos pela Lei, se deve levar em consideração as limitações quanto à aplicação da benesse para reincidentes, refletindo, sobretudo, na retroatividade ao fato e agente. Sendo a liberdade o bem jurídico de mais valia que o direito busca garantir e se esmerar, o artigo destaca princípios constitucionais como subsidiariedade e proporcionalidade, na defesa de uma política criminal mais racional e humanizada.
Palavras-chave: Acordo de Não Persecução Penal, Justiça Criminal, Rio Grande do Norte, efetividade, desjudicialização.
ABSTRACT
The Non-Prosecution Agreement (ANPP), established by Law No. 13.964/2019 (Anti-Crime Package), aims to reduce mass incarceration, especially for less serious crimes, primarily those committed negligently. This article evaluates the effectiveness of the ANPP in the Criminal Courts of the State of Rio Grande do Norte, analyzing the reduction in the number of cases, the impact on recidivism, and the social repercussions. Between 2020 and 2023, the ANPP prevented the imprisonment of more than 8,000 people, promoting a more agile justice system and consequently alleviating prison overcrowding in the state. However, despite the advances brought by the law, it is necessary to consider limitations regarding the application of this benefit to repeat offenders, particularly regarding retroactivity to the fact and the individual. As liberty is the most valuable legal good that the law seeks to guarantee and uphold, the article highlights constitutional principles such as subsidiarity and proportionality in the defense of a more rational and humane criminal policy.
Keywords: Non-Prosecution Agreement, Criminal Justice, Rio Grande do Norte, effectiveness, dejudicialization.
1. INTRODUÇÃO
O atual sistema de justiça criminal, caracterizado pela sua complexidade e demanda crescente, está constantemente em desafio, uma vez que se mantém, em constância, na busca de métodos que equilibrem a redução no cometimento de crimes, a mitigação de reincidências, eficácia da persecução penal somadas à proteção dos direitos fundamentais defendidos na Constituição Federal. Neste cenário, o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), estabelecido pelo Pacote Anticrime (Lei no 13.964/2019), se apresenta como um instrumento crucial para a solução de conflitos criminais, particularmente aqueles que envolvem delitos de menor potencial ofensivo.
A implementação do ANPP na legislação brasileira, mais precisamente no artigo 28-A no Código de Processo Penal, foi impulsionada por uma série de motivos que se fizeram urgentes, como a necessidade de aliviar o sistema carcerário, diminuir os gastos com a investigação criminal e proporcionar ao agente transgressor a chance de compensar a sociedade pelo prejuízo causado, prevenindo a estigmatização resultante de uma condenação criminal.
Facilitando uma remediação jurídica de forma mais célere, o Acordo de Não Persecução Penal, sendo em sua natureza um negócio Jurídico Extrajudicial entre o Ministério Público e o agente culpado, tem sido adotado, de forma eficaz, em todos os tribunais brasileiros, principalmente pelo fato da agilidade sobre a condenação, garantindo, assim, a efetivação tanto do direito quanto do ideal de Justiça.
Nesse contexto, a adoção do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) nas Varas Criminais do Estado do Rio Grande do Norte está inserida neste debate nacional, implicando, portanto, em uma avaliação detalhada de sua implementação prática. Portanto, o propósito deste artigo, em sua gênese, é avaliar a eficácia do ANPP na justiça criminal da Capital do Estado do Rio Grande do Norte, Natal, levando em conta os fatores de diminuição do volume de processos, impactos nos números de reincidência, perspectiva dos profissionais de direito e as repercussões sociais.
Para uma expansão melhor do tema, a presente pesquisa se baseou, principalmente, em estudo empírico, fundamentado na avaliação de dados estatísticos a análises de casos fáticos, com pesquisas em campo, no sítio do TJRN, para obtenção de números e estatísticas, que ao decorrer do presente trabalho será apresentado.
Nesse sentido, premissas teóricas foram levadas em conta como forma fundamentar a presente pesquisa, quais sejam: o princípio da subsidiariedade, prevenção especial e desmitificação. Assim, balizados por teorias e princípios constitucionais, é que se chegou ao objetivo principal deste trabalho, que é apresentar e propor ao meio jurídico a adoção do Acordo de Não Persecução Penal.
2. CONCEITOS E OBJETIVOS DA ANPP
O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) emerge no cenário da justiça criminal do Brasil como uma ação inovadora e imprescindível para enfrentar o excesso de processos judiciais e a demanda por uma justiça mais ágil e eficaz. Este mecanismo foi estabelecido pela Resolução nº 181 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e posteriormente oficializado pelo “Pacote Anticrime” (Lei no 13.964/2019), com o objetivo de fomentar soluções negociadas para delitos de menor potencial ofensivo, descritos no art. 28-A do Código de Processo Penal.
Assim, o ANPP espelha preceitos fundamentais do direito penal contemporâneo, como a subsidiariedade, a última ratio e a proporcionalidade, além de visar a eficiência máxima no sistema judicial e a economia de processos.
A aplicação do ANPP está diretamente associada à ideia de “carência de tutela penal”, princípio este que determina que a aplicação do Direito Penal só deve ocorrer quando a salvaguarda de bens jurídicos não puder ser realizada através de métodos menos danosos. Em outras palavras, o Direito Penal atua como o último nível de proteção, seguindo os princípios da subsidiariedade e da ultima ratio. O ANPP oferece uma resposta legal mais rápida e proporcional a casos de menor potencial ofensivo, prevenindo ações penais exageradas e assegurando que o processo seja iniciado somente quando for necessário.
O princípio da proporcionalidade também desempenha um papel crucial neste cenário, uma vez que assegura que a reação penal seja proporcional à severidade do delito. Por ser cabível, nos termos do próprio artigo 28-A do Código de Processo Penal, à “crimes cometidos sem violência ou grave ameaça e como pena mínima inferior a 4 (quatro) anos”, cabíveis, inclusive, em crimes da modalidade culposa1 (quando não há intenção de cometê-lo), se fez urgente a necessidade de que o direito se adequasse aos fatos mínimos, prezando pela punição e ideal de justiça, mas com penalidades proporcionais ao fato delituoso e pessoa infratora.
Portanto, o ANPP possibilita uma resposta eficaz, prevenindo os custos e as repercussões de um processo legal formal quando os benefícios da penalidade não ultrapassam os custos político-criminais de sua implementação, promovendo, portanto, uma justiça mais racional, que prioriza, principalmente, a adequação da intervenção do Estado às demandas do caso concreto.
A inspiração para o ANPP veio de sistemas de justiça negociada, como o “plea bargaining”2 nos Estados Unidos. Com o progresso da Revolução Industrial e o aumento da população, o governo dos Estados Unidos procurou soluções ágeis e eficientes para enfrentar a sobrecarga do sistema judicial. Este modelo proporcionou ao Ministério Público mais liberdade de ação, possibilitando a negociação direta com o acusado para prevenir uma judicialização total.
No Brasil, a ANPP segue um raciocínio parecido. O Ministério Público tem o poder, vez que são atores imprescindíveis aos processos criminais, de sugerir um acordo em situações que cumpram os requisitos legais, proporcionando ao investigado a chance de evitar um processo penal formal. Este protagonismo do Ministério Público espelha o conceito de discricionariedade persecutória controlada ou legalidade atenuada, onde o Promotor tem a opção de optar pela apresentação da acusação ou pela negociação penal. Assim, o ANPP se alinha ao sistema acusatório do Brasil, onde o Ministério Público tem um papel crucial na investigação criminal, porém adotando uma estratégia mais adaptável à realidade de cada caso.
Neste cenário, a aplicação do princípio da economia processual é extensa no ANPP. Quando cabível e adotada, se alinha ao referido princípio que defende a otimização dos recursos e a redução de procedimentos processuais dispensáveis, particularmente em situações onde a negociação penal pode solucionar o conflito de maneira mais direta e ágil. Evitar a total judicialização em casos de menor potencial ofensivo, não só diminui os gastos e o tempo de processo, como também previne o efeito adverso que um processo criminal pode causar na vida do agente transgressor.
A discricionariedade persecutória3, também conhecida como legalidade atenuada, possibilita ao Ministério Público escolher entre apresentar uma denúncia ou propor um acordo de não persecução penal, desde que os requisitos legais sejam cumpridos. A Lei nº 9.099/1995 introduziu esse conceito, introduzindo os primeiros mecanismos de justiça negociada na legislação brasileira, tais como a transação penal e a suspensão condicional do processo. Todavia, atualmente, no ANPP, o Promotor não é compelido a sugerir o acordo, mas sua decisão deve ser fundamentada na estratégia de política criminal implementada pelo Ministério Público a fim de assegurar a punibilidade razoável ao caso concreto.
O artigo 28-A do Código de Processo Penal, modificado pelo Pacote Anticrime, de forma didática, estabelece que o Ministério Público “tem a faculdade de propor” o acordo de não persecução penal. Isso indica que essa escolha é voluntária, e não um direito subjetivo do réu, vale ressaltar.
Todavia, como se trata de política criminal onde todos os agentes atuantes no processo, que uníssonos às necessidades de adequação, atendendo todas as esferas atingidas pelo superlotamento processual e punitivo, O Ministério Público tem a discricionariedade de adotar a ANPP quando adequado para reprovar e prevenir o delito, sugerindo e prevenindo, assim, a abertura de um processo penal e, consequentemente, desgaste institucional e pessoal de uma condenação formal para casos menos complexos.
Um outro preceito crucial que orienta o ANPP é a simplicidade. Este princípio se manifesta pela remoção de formalidades excessivas que são características do processo penal convencional. A abordagem simplificada proposta pelo ANPP permite que, quando o réu reconhece os fatos, as normas processuais sejam mais diretas e claras, prevenindo a produção de provas desnecessárias. Nesse sentido, se assegura uma solução ágil para o conflito, sem prejudicar os direitos do réu ou o devido processo jurídico.
Desmedida era a intervenção jurídica aos casos de crimes de menor potencial ofensivo, vez que o direito penal, como ultima ratio4, detinha o poder de condenação em uma extensão majorada, desproporcional ao fato e ao dano.
O princípio da proporcionalidade, por sua vez, se fez imperioso à adoção da benesse ANPP. Assegurando que a penalidade acordada seja adequada para condenar o delito cometido e evitar novas transgressões, a negociação penal deve refletir sobre a severidade do delito, considerando a culpabilidade do infrator e prevenindo, assim, que a penalidade seja excessiva em relação ao prejuízo causado.
Ademais, o ANPP incentiva a prevenção especial5, garantindo que o investigado, que assumiu a autoria do delito, seja estigmatizado por uma condenação oficial. O fito, portanto, é assegurar que a pessoa possa reparar o dano sem assumir o fardo social de um processo penal integral. Logo, à primeira vista, o ANPP faz fundir a exigência de reprovação do delito com a perspectiva de reintegração do infrator à sociedade, sendo esse um dos objetivos centrais da política criminal moderna.
3. POLÍTICA CRIMINAL PENAL E O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL (ANPP) NO COMBATE AO ENCARCERAMENTO NO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE
Ao longo das últimas décadas, a política criminal brasileira tem sido confrontada por um sistema de justiça criminal onde ainda prioriza o encarceramento como principal medida de combate à criminalidade. O resultado é um abarrotamento de processos judiciais em busca de sentença condenatória grave e sobrecarga no sistema carcerário, com superpopulação e condições deploráveis; fatos esses que geraram críticas diuturnas e clemencias, tanto popular quando governamental, por uma reforma ampla, particularmente no que diz respeito à procura por alternativas penais menos graves, em seu sentido punitivista.
No Rio Grande do Norte, por sua vez, de acordo com a pesquisa levantada pelo sítio agência Brasil no ano de 20236, a situação não é diferente à regra. Logo, o sistema carcerário se encontra em um estado crítico, degradantes e defasado, provocando discussões sobre como a política criminal pode se ajustar para diminuir a quantidade de prisioneiros e assegurar uma justiça mais eficaz e humanizada, respeitando, inclusive, direitos fundamentais postos na própria Constituição7.
Neste contexto, o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), surge como uma medida que procura e remedia, à primeira vista, providências alternativas à prisão, fomentando uma resolução processual que busca despenalizar, com menos rigor, delitos de menor potencial ofensivo.
Proporcionalmente, portanto, ANPP é efetiva quanto à atuação estatal de punição, sem que medidas de natureza ultima ratio sejam impostas, fazendo valer, principalmente, o ideal de que a medida seja proporcional ao peso (fato).
O intuito, portanto, deste capítulo, é analisar a aplicação do ANPP no Rio Grande do Norte como um instrumento de política criminal, suas consequências e como pode ser uma resposta para o combate ao superencarceramento, levando em conta também dados estatísticos referentes aos anos de 2020 a 2023. Nesse contexto, nos períodos de 2020 a 2023, o sistema prisional do Rio Grande do Norte experimentou um crescimento expressivo na quantidade de presos, acompanhando a tendência nacional de superlotação.
No ano de 2020, havia cerca de 9.500 detentos no Estado, com uma taxa média de ocupação de 170% nos estabelecimentos prisionais. Em 2021, por sua vez, este número aumentou para aproximadamente 10.300 detentos, e em 2023, as estatísticas apontaram para um número superior a 11.000 de detentos e este crescimento não se basta a demonstrar tão somente o aumento da criminalidade, mas também, numa reflexão mais sóbria, a incapacidade do sistema penal oferecer alternativas à prisão, principalmente para delitos de menor potencial ofensivo.
Durante esse período, se observou que um número significativo de detentos no Estado, tinha relação com delitos de menor gravidade, como roubos de menor valor e crimes ligados ao tráfico de drogas, de acordo com a análise processual disponível do sítio do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte.
A natureza patrimonial e a ausência de violência poderiam justificar a introdução de medidas alternativas, como o ANPP. No entanto, a ausência de uniformidade na aplicação do acordo e a predominância de um modelo de justiça penal mais punitivista violento às liberdades, mantinham essas pessoas encarceradas, agravando a crise prisional, pessoal e governamental.
Havia, anteriormente ao ANPP, uma dicotomia na presença de efetivação na aplicação de penas, pelo fato de que o ideal estatal é repelir o crime, ao tempo de mitigação o cometimento de delitos. A não garantia dos direitos básicos à pessoa humana, quando numa condenação em penas mais severas, faziam com que a reincidência fosse um fator quase consequencial às duras medidas impostas.
Portanto, o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), surgiu como uma medida que remedia, ainda que em pequenas doses, o quase padecimento no que diz respeito à punibilidade aos crimes que, por vezes, culposamente são cometidos.
A alternativa à ação penal, que possibilita ao Ministério Público, em casos de delitos de menor gravidade (com pena mínima inferior a quatro anos), propor um acordo ao réu, implica a aceitação de condições estabelecidas, previne a instauração de um processo criminal, diminuindo, assim, a judicialização e, consequentemente, a superlotação carcerária, sendo um instrumento processual de natureza político-criminal destinado a diminuir a pressão sobre o sistema de justiça e atenuar o efeito do excesso de prisões, também.
O fato que ainda faz os atores do direito refletirem sobre a adoção da ANPP, ainda reside no arcaico pensamento de que um Estado mais presente e punitivista enfraquece a ideia de cometimento de crimes. Todavia, consoante aponta a presente pesquisa, ainda que em passos lentos, o caminho tem apontado uma direção diversa, no que diz respeito à reincidência e o respeito às medidas, nos termos do art. 28-A do Código de Processo Penal e do convencionado entre o Ministério Público e o agente infrator.
Sendo assim, a efetivação do ANPP no Rio Grande do Norte está inserida em um cenário de urgência na gestão eficaz da justiça criminal. Ao possibilitar um tratamento mais rápido e menos custoso para delitos de menor gravidade, o ANPP reduz a pressão sobre o sistema carcerário e proporciona uma resposta apropriada para delitos menores, em que a encarceramento do maior bem jurídico protegido pelo direito pátrio, portanto a liberdade, não seja colocado como resposta ao fato de maior facilidade de reparo, conforme análise de pautas processuais disponível no sítio do Tribunal do Estado do Rio Grande do Norte.
De 2020 a 2023, se faz notável o crescimento gradual no uso do ANPP no Estado. De acordo com informações do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, disponível no acesso público no sítio do TJRN8, aproximadamente 1.500 acordos de Não Persecução Penal foram firmados em 2020. Ainda, em 2021, esse número aumentou para 2.300, e em 2023, ultrapassou os 3.500 acordos. A utilização cada vez maior do ANPP, demonstra um reconhecimento do sistema de justiça Estadual de que essa ação é uma opção viável e imprescindível para reduzir a superpopulação prisional, o melhor desenvolvimento processual e celeridade no punitivismo proporcional.
Todavia, por ser ainda um instituto em desenvolvimento, novo às regras e pensamentos, um dos temas mais discutidos acerca do ANPP é a sua aplicação retroativa, isto é, se pode ser aplicado para favorecer acusados cujos delitos foram cometidos antes da entrada em vigor da lei.
Por ser desafiante à ideia de ultima ratio, a questão tem sido abordada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que, seguindo o princípio da “lex mitior”, que impõe a aplicação da lei mais vantajosa retroativamente, tem admitido a retroatividade do ANPP9. Contudo, ainda há restrições em relação à abrangência dessa retroatividade, especialmente em casos de reincidência ou crimes praticados com violência. No contexto do Rio Grande do Norte, por sua vez, essa retroatividade pode ser vista como uma oportunidade de revisar casos antigos e aliviar ainda mais a pressão sobre o sistema judicial e prisional.
Dados de 2022 indicam que cerca de 30% dos encarcerados no Estado poderiam ser beneficiados por um acordo de não persecução penal, caso a retroatividade fosse aplicada de maneira mais ampla. Essa expansão retroativa é, portanto, uma questão cerne no debate sobre a eficácia do ANPP como mecanismo de política criminal.
O tema da justa causa10 para a ação penal e a noção de insignificância são componentes fundamentais na implementação do ANPP. A justa causa, comumente vista como a quantidade mínima de evidências para iniciar um processo criminal, deve ser reinterpretada no âmbito do ANPP como uma avaliação mais detalhada da necessidade e da eficácia de uma ação penal. No contexto do ANPP, a justa causa deve considerar não somente a materialidade do delito, mas também sua importância social e os custos humanos e econômicos de uma investigação criminal.
No Rio Grande do Norte, para se mostrar ainda mais efetivo a aplicação quanto os efeitos do ANPP, requer, nessa fase de desenvolvimento e adequação, que as autoridades, a começar pelas de investigação criminal, possa se avaliar a insignificância dos delitos de forma mais abrangente, pelo fato de que furtos ou crimes de menor relevância econômica, sem emprego de violência ou grave ameaça, têm levado pessoas à prisão, cerceadas, assim, não só as suas liberdades, mas também aviltadas as suas dignidades enquanto pessoas humanas. Com a adoção da ANPP, os grandiosos números existentes poderiam ser solucionados através de acordos, conforme se conclui pela análise dos números apresentados pelo sítio do TJRN11.
Entre 2020 e 2023, como boa notícia, se observou um aumento na utilização do critério de insignificância, com aproximadamente 40% dos acordos de não persecução relacionados a delitos patrimoniais de menor potencial ofensivo. Isso fez com que este critério também servisse como baliza ao rigor, ainda presente, no punitivismo severo e violento à crimes que não haviam observância à proporcionalidade, portanto, fato e dano.
Todavia, esse progresso ainda encontra obstáculos. A aplicação do ANPP ainda encontra óbices, como o fator reincidência; o que impede que muitos indivíduos que cometeram pequenos delitos, mas que já tiveram antecedentes criminais, possam se beneficiar do acordo. A boa notícia é que existe uma pressão crescente para a flexibilização do critério de reincidência, possibilitando que mais indivíduos, incluindo reincidentes, possam ter acesso a essa medida, particularmente em delitos sem violência e grave ameaça e atingiram danos de fácil reparação.
4. CONCLUSÃO
O fato é que a perpetuação do punitivismo severo brasileiro, tem custado muito, principalmente ao Estado e Judiciário. A privação da liberdade, particularmente, em um sistema carcerário superlotado e ineficiente, tem um efeito social e humano arrasador.
A criminologia crítica destaca que o sistema penal, ao aprisionar em larga escala, não soluciona as questões sociais subjacentes e, frequentemente, perpetua ciclos de delinquência e exclusão social. E numa reflexão mais acentuada, um punitivismo violento, no sentido a única solução, quando na ultima ratio, é privar a liberdade do agente infrator como medida educativa, é ultrapassada, visto a notória falência institucional, prisional e do intuito de mitigação de cometimentos de crimes e crescentes reincidências.
No Rio Grande do Norte, mais especificamente, a aplicação do ANPP constitui uma solução tangível para essa questão. Ao dar prioridade a soluções alternativas para delitos menos graves, o Governo pode prevenir os impactos negativos do encarceramento, tais como a estigmatização social e a reiteração de delitos. No período de 2020 a 2023, a utilização desse instituto impediu a prisão de mais de 2.300 prisões indivíduos no Estado, diminuindo não só a pressão sobre o sistema carcerário, mas também fomentando um método mais eficiente e humano de lidar com a criminalidade.
Fato este que se fundamenta, por exemplo, no caso concreto que tramitou perante a 9ª Vara Criminal da Comarca de Natal, Rio Grande do Norte, sob o n. 0105123-54.2020.8.20.0001, que preso em flagrante, após um furto de um aparelho celular, avaliado em R$ 2.000,00 (dois mil reais), preencheu o agente os requisitos para a concessão da ANPP, tendo o Ministério Público oferecido o acordo e assim homologado perante a Vara de Execuções do Estado do RN.
A adoção da ANPP no Estado do Rio Grande do Norte se faz necessária, pois se trata de um benefício que favorece tanto às instituições como àquele agente que cometeu delito menos gravoso de fácil reparação. Isso porque, de acordo com a pesquisa apresentada, o Estado do RN ainda padece das mazelas oriundas do excesso de punitividade, onde a regra era a tramitação vultosa de processos e consequentes condenações ao encarceramento, que fez com que estancasse a celeridade processual, e gerasse, por fim, prejuízos à instituição governamental devido ao miserável estado carcerário norte rio grandense.
Além disso, com a adoção da ANPP, a reação Estatal à reprimenda dos crimes de menor potencial ofensivo de maneira mais célere, como deve ser, apresenta ao agente transgressor a oportunidade de recomeço, dentro dos critérios estabelecidos, e principalmente de confiança do Estado ao Agente, para que este hesite em reincidências e não experimente o amargor das penas-regras estatais e sociais.
Por fim, não deve, portanto, o agente que cometeu um delito de menor potencial ofensivo ao outro e ao Estado, pagar com o próprio corpo por aquilo de fácil reparação. No mesmo sentido, o não deve o Estado, enquanto democrático e de direitos – humanos, deixar escoar os próprios ideais postos na Constituição em nome de uma severidade que colocou o próprio Estado em falência. Até porque, conforme já se faz sabido, não só perde o agente a sua liberdade, mas despontua também a credibilidade governamental, judicial e social.
1É o crime que teve como causa a imprudência, negligência ou imperícia do agente, se prevista e punida pela lei penal (artigo 18, II, do Código Penal – Decreto-Lei 2.848/40). Este termo do Direito Penal se refere a um ato ilícito praticado sem a intenção de cometer o delito, mas com culpa. O agente age de forma negligente, imprudente ou imperita, resultando em consequências lesivas não intencionais.
2O “plea bargaining” é instituto de origem na common law, do sistema penal norte-americano e consiste numa negociação feita entre o representante do Ministério Público e o acusado.
3Possibilidade de o Estado Resolver o poder punitivo sem que haja culpa em juízo, significando dizer que se consiste na liberdade de ação que uma autoridade tem dentro dos limites legais, permitindo que ela opte por uma das várias soluções possíveis. Ao caso concreto, respeitando os limites impostos pelo próprio art. 28-A do CPP, a mais benéfica ao agente.
4No Direito Penal, é um princípio que visa limitar a atuação do sistema punitivo, sendo aplicado apenas quando outras formas de sanção forem ineficazes.
5A teoria da prevenção especial atua tanto para assegurar a sociedade contra os indivíduos que cometam atos infracionais por intermédio da intimidação do agente e de quem o sabe punido, quanto para que este agente não venha a cometer futuros delitos, pois a pena teria caráter educativo.
6Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/seguranca/audio/2023-03/relatorio-revela-crise-humanitaria-no-sistema-prisional-do-rn. Acesso em: 13 nov. 2024.
7A dignidade da pessoa humana é um princípio constitucional brasileiro que está previsto na Constituição Federal de 1988, no artigo 1º, inciso III.
8Disponível em: https://www.tjrn.jus.br/estatistica/outros-dados-estatisticos-do-tjrn. Acesso em: 9 out. 2024
9Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-define-limites-da-retroatividade-dos-acordos-de-nao-persecucao-penal/. Acesso em: 29 out. 2024.
10No direito penal, a justa causa é um conjunto de provas mínimas que sustentam os fatos narrados na denúncia. É uma exigência legal para que uma ação penal seja instaurada, processada e recebida, de acordo com o artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal.
11Disponível em: https://www.tjrn.jus.br/estatistica/outros-dados-estatisticos-do-tjrn. Acesso em: 9 out. 2024.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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