IRONIA E REPRESENTAÇÕES DE EDUCAÇÃO NA OBRA DE GRACILIANO RAMOS: UMA ANÁLISE INTERSECCIONAL

Irony and Representations of Education in the Works of Graciliano Ramos: An Intersectional Analysis

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102411141806


Maria Fulgência Silva Bomfim1


Resumo

Este artigo examina o papel da ironia nas representações de educação na obra do escritor brasileiro Graciliano Ramos, com foco especial nas interações literárias com personagens negros. A ironia emerge como uma ferramenta eficiente e impactante para abordar situações delicadas e complexas relacionadas ao sistema educacional e às relações raciais na sociedade brasileira. Graciliano utiliza a ironia para expor as contradições, injustiças e estereótipos presentes no contexto educacional, enquanto desafia narrativas dominantes sobre raça, classe social, gênero e poder. Por meio da ironia, o autor subverte expectativas, critica a hipocrisia e convida o leitor a refletir criticamente sobre as estruturas de opressão e privilégio. Este estudo destaca a importância da ironia como uma ferramenta literária poderosa para desmascarar o absurdo das normas sociais e promover uma análise mais profunda das questões sociais e políticas presentes nas obras de Graciliano Ramos.

Palavras-chave: Graciliano Ramos, Ironia, Representações, Educação, Relações raciais

Abstract:

This article examines the role of irony in representations of education in the works of Brazilian writer Graciliano Ramos, with a special focus on literary interactions with black characters. Irony emerges as an efficient and impactful tool to address delicate and complex situations related to the educational system and racial relations in Brazilian society. Graciliano uses irony to expose the contradictions, injustices, and stereotypes present in the educational context, while challenging dominant narratives about race, social class, gender, and power. Through irony, the author subverts expectations, critiques hypocrisy, and invites the reader to critically reflect on structures of oppression and privilege. This study highlights the importance of irony as a powerful literary tool to unmask the absurdity of social norms and promote a deeper analysis of social and political issues in Graciliano Ramos’s works.

Keywords: Graciliano Ramos, Irony, Representations, Education, Racial relations.

Introdução

Graciliano Ramos, um dos mais proeminentes escritores brasileiros do século XX, é celebrado pela incisiva representação da sociedade brasileira e observação aguçada de suas complexidades. Entre os inúmeros temas explorados em suas obras, a educação emerge como um motivo central, refletindo tanto as aspirações quanto as deficiências do sistema educacional brasileiro. Em particular, as representações de educação de Ramos intersectam-se com questões mais amplas da sociedade, incluindo raça, classe e dinâmicas de poder.

Este artigo busca examinar o papel da ironia na representação da educação por Ramos, com um foco específico em suas interações com personagens negros. A ironia serve como uma ferramenta poderosa no arsenal literário de Ramos, permitindo-lhe navegar por situações delicadas e complexas enquanto critica normas sociais e desafia narrativas dominantes. 

Ao analisar passagens-chave e interações das obras de Ramos, este estudo visa elucidar como a ironia opera como um mecanismo para desvendar contradições, expor injustiças e convidar os leitores a refletir criticamente sobre as complexidades da sociedade brasileira.

Através da apreciação do uso da ironia por Ramos nas representações da educação, este artigo contribui para uma compreensão mais profunda da interação entre literatura, sociedade e dinâmicas de poder no Brasil. Com essa abordagem se destaca a importância da literatura como uma lente através da qual se pode explorar e interrogar a natureza multifacetada dos sistemas educacionais e suas implicações mais amplas para a justiça social e a equidade.

Ao tempo em que as obras de Graciliano Ramos retratam a complexidade da sociedade brasileira, também nos convidam a uma profunda reflexão sobre as intersecções entre literatura, história e sociedade. Em seus escritos, a representação da educação não é apenas um tema isolado, mas sim um reflexo das tensões e contradições que permeiam a realidade brasileira. 

Examinando suas obras sob a ótica das contribuições de Antonio Candido e Roger Chartier, pode-se compreender como Graciliano Ramos utiliza a ironia como uma ferramenta literária poderosa para explorar as nuances da educação, especialmente no que se refere às questões raciais e às estruturas de poder.

Assim como Antonio Candido propôs a fusão entre texto e contexto para uma interpretação mais completa e dialética, as obras de Graciliano Ramos nos convidam a mergulhar nas intricadas relações entre literatura e sociedade. Da mesma forma, a perspectiva de Roger Chartier sobre as “lutas de representação” nos ajuda a compreender como as representações da educação nas obras de Ramos são construídas e disputadas, refletindo as dinâmicas de poder e as ideologias dominantes.

Neste contexto, a ironia emerge como uma ferramenta eficaz nas mãos de Graciliano Ramos, permitindo-lhe abordar de maneira sutil e perspicaz as contradições e injustiças presentes na educação e na sociedade brasileira como um todo. Ao desafiar normas sociais e expor estereótipos, a ironia de Ramos nos convida a uma reflexão crítica sobre as estruturas de poder, os privilégios e as desigualdades que moldam a experiência educacional e social no Brasil.

Assim, as representações de educação nas obras de Graciliano Ramos, à luz das contribuições de Antonio Candido e Roger Chartier, possibilitam apreciar sua maestria literária, e também enxergar sua obra como um instrumento poderoso para a compreensão e transformação da realidade brasileira.

O início

Examinando a obra de Graciliano Ramos no mestrado tive a oportunidade de verificar que a mesma foi produzida num contexto histórico em que a educação aparece como uma marca importante nos discursos que pretendiam levar o Brasil ao rol dos países civilizados. Nas primeiras décadas do século XX, a bandeira da educação foi erguida por diversos grupos que, a despeito das divergências de ideias, viam a educação escolar como meio para a divulgação de certo ideário cívico e promoção do desenvolvimento brasileiro. Associando o Brasil a imagens de atraso, ignorância, preguiça, doenças, analfabetismo e

“falta de cultura”, buscava-se resolver os problemas nevrálgicos que o país atravessava pela via de uma educação nacional, pública e voltada para a formação da cidadania e a promoção do patriotismo. Essa visão passou a justificar ações interventoras de educadores que se atribuíam a missão de escolarizar os altos rincões do Brasil, sobre os segmentos predefinidos como “sem educação” (Carvalho, 1997, p. 119). 

Na obra de Graciliano Ramos diferentes gêneros – crônica, ficção e memória – se comunicam numa interpenetração que pode ser constatada na migração de frases, personagens e temas de uma narrativa a outra. Às vezes algo que é apontado numa crônica é desenvolvido no romance, onde, pressuponho, o escritor joga com mais liberdade de criação; outras vezes, aquilo que aparece ficcionalizado é assumido publicamente pelo escritor no texto ensaístico; e coisas, personagens, fatos e episódios abordados nos romances e crônicas são retomados nos livros de memórias. 

O exame de imagens de educação na obra de Graciliano Ramos, tem em vista a sua dupla inscrição social: homem público que esteve bem próximo dos debates em torno das questões educacionais e escritor cuja opção estética expressa a preocupação com as mazelas da sociedade e a “parte má das coisas”, imprimindo um caráter de denúncia à escrita literária, revelando sua insatisfação diante da realidade. 

Nas representações de negros observa-se um tom essencialmente crítico que ressalta as “lutas de representação” que envolvem ideias e práticas no âmbito educacional. Uma crítica marcada por ironias, caricaturas, ambiguidades e paradoxos em imagens de educação encontradas tanto nas crônicas quanto nos romances e memórias. 

Considerações teórico-metodológicas

Entendendo que a literatura em geral é mais que pura expressão artística, nesse trabalho evidencio o diálogo entre a obra ficcional e o contexto em que a mesma foi produzida, segundo a proposta de Antonio Candido de fundir “texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra” (Candido, 1980). 

Essa perspectiva é fundamental para uma análise completa e profunda da literatura. Candido defendia uma abordagem que considera não apenas o texto, mas também o contexto histórico, social, político e cultural no qual ele está inserido. Sua abordagem busca compreender não apenas a obra em sua forma isolada, mas também suas relações com o mundo que a cerca e como ela reflete, questiona ou critica esse contexto.

Para integrar texto e contexto de maneira dialeticamente íntegra, a interpretação da obra literária deve ser enriquecida pela compreensão das condições sociais e históricas que a influenciaram e foram influenciadas por ela. Isso implica não apenas analisar os elementos formais do texto, como estilo, linguagem e estrutura, mas também considerar as questões sociais e ideológicas presentes na obra e como elas se relacionam com o momento histórico em que foi produzida.

Essa abordagem permite uma leitura mais complexa e enriquecedora da literatura, destacando sua relevância não apenas como uma expressão artística individual, mas também como um reflexo e agente de mudança na sociedade. Ao entender o texto dentro de seu contexto, os leitores podem apreciar melhor as múltiplas camadas de significado e as nuances das obras literárias, além de ganhar insights sobre questões sociais, culturais e políticas de diferentes períodos históricos.

Isso permite o estudo da literatura na perspectiva de representação e interpretação de processos históricos e socioculturais. A literatura, portanto, abarca as condições políticas, socioculturais, econômicas e ideológicas, compondo um testemunho que, aparentemente, não tem ligações com a história institucional. O que pode contribuir para dar uma maior liberdade ao escritor no tratamento de questões que preocupam a sociedade em certos momentos.

Os estudiosos da obra de Graciliano Ramos já demonstraram sobejamente o seu envolvimento em aspectos da política, da sociedade e da cultura cuja importância é verificável na ficção através de desdobramentos teóricos/ideológicos de imagens históricas ficcionalizadas. 

Imagem, aqui, está sendo tomada como texto polissêmico, na trilha de Roger Chartier (1998), enquanto representação, o que abrange tanto o domínio dos objetos materiais quanto o de esquemas mentais e práticas que, em sentido amplo, atuam como meios de expressão e interpretação da cultura, não apenas refletindo a realidade social e política, mas instituindo-a e/ou transformando-a.

Roger Chartier, um renomado historiador e teórico da história, contribuiu significativamente para a compreensão das práticas culturais e das representações simbólicas ao longo do tempo. Em sua abordagem, ele destaca a importância da imagem como um texto polissêmico, ou seja, como uma representação que pode ter múltiplos significados e interpretações, dependendo do contexto em que é vista e das experiências individuais de quem a observa.

Para Chartier, a imagem não é apenas um objeto estático, mas sim um texto que carrega consigo uma série de significados que podem ser interpretados de diferentes maneiras. Assim como um texto escrito, a imagem possui uma linguagem própria, com códigos visuais e simbólicos que podem ser decifrados e analisados.

Ao considerar a imagem como um texto polissêmico, Chartier nos convida a explorar suas diversas camadas de significado e suas possíveis interpretações. Isso implica reconhecer que a mesma imagem pode ser vista de maneiras diferentes por pessoas diferentes, dependendo de seus conhecimentos prévios, suas experiências pessoais e o contexto cultural em que estão inseridas.

Além disso, Chartier ressalta a importância de analisar a relação entre a imagem e seu contexto histórico e cultural. A maneira como uma imagem é produzida, distribuída e recebida está intimamente ligada às práticas culturais e sociais de uma determinada época. Portanto, para compreender plenamente o significado de uma imagem, é necessário considerar não apenas seus aspectos visuais, mas também o contexto histórico e cultural em que foi criada e circulou.

Dessa forma, a abordagem de Chartier nos ajuda a entender a imagem não apenas como uma representação visual, mas como um texto rico em significados e possibilidades de interpretação, cujo estudo pode lançar luz sobre aspectos importantes da cultura e da sociedade em que foi produzida.

Segundo Chartier, é através de “lutas de representação” que indivíduos ou grupos procuram impor concepções de mundo e valores estruturados em conflitos e classificações, construídos para perceber e organizar o mundo social. 

Nessa perspectiva Roger Chartier destaca os conflitos e confrontos que ocorrem no âmbito das representações simbólicas e das formas de conhecimento. Segundo ele, essas lutas não se limitam apenas à esfera política ou econômica, mas também permeiam o campo cultural e simbólico, onde diferentes indivíduos ou grupos procuram impor suas concepções de mundo e seus valores através de sistemas de classificação e interpretação.

Essas lutas de representação são fundamentais para a construção e a manutenção das identidades individuais e coletivas, bem como para a legitimação ou contestação de determinadas formas de poder. Elas se manifestam em diferentes contextos, como na arte, na literatura, na religião, na ciência e em outras esferas da vida social, onde as representações simbólicas desempenham um papel crucial na organização e na compreensão do mundo.

No cerne dessas lutas está a disputa pelo controle dos significados e das narrativas que moldam a percepção e a interpretação da realidade. Grupos dominantes buscam impor suas visões de mundo e seus valores como universais e legítimos, enquanto grupos subalternos frequentemente resistem a essas imposições e procuram reivindicar suas próprias formas de representação e de expressão cultural.

Essas dinâmicas de poder e de resistência estão intrinsecamente ligadas aos processos de classificação e categorização que são fundamentais para a organização do conhecimento e da vida social. Através da imposição de certas classificações e hierarquias, grupos dominantes podem reforçar sua posição de poder e marginalizar aqueles que não se encaixam nos seus sistemas de valores e de normas.

Assim, a noção de “lutas de representação” de Chartier nos convida a olhar para além das aparências e a considerar os significados subjacentes às representações simbólicas e culturais. Ela nos ajuda a compreender como as formas de conhecimento e de poder são construídas, contestadas e negociadas através das representações do mundo social.

 Antonio Candido e Roger Chartier são dois importantes teóricos que contribuíram significativamente para o campo dos estudos literários e culturais, cada um em sua respectiva área de atuação. Embora suas abordagens tenham origens e enfoques distintos, é possível identificar algumas aproximações entre suas ideias, especialmente no que diz respeito à relação entre texto, contexto e representação.

Tanto Candido quanto Chartier reconhecem a importância do contexto histórico e social na compreensão das obras literárias e culturais. Candido propõe uma interpretação dialeticamente íntegra, que considera não apenas o texto em si, mas também seu contexto social e histórico. Da mesma forma, Chartier destaca a importância de analisar as práticas culturais dentro de seus contextos específicos, reconhecendo que as representações simbólicas são moldadas pelas condições sociais e culturais em que surgem.

Tanto Candido quanto Chartier adotam uma abordagem interdisciplinar em seus estudos, incorporando insights da história, da sociologia, da antropologia e de outras disciplinas para enriquecer sua análise. Candido, por exemplo, dialoga com a sociologia e a teoria literária em sua análise das relações entre literatura e sociedade. Da mesma forma, Chartier utiliza conceitos e métodos da história cultural e da antropologia cultural para investigar as práticas culturais e as representações simbólicas.

Candido e Chartier reconhecem a polissemia das obras literárias e culturais, assim como a multiplicidade de significados que podem emergir de uma análise cuidadosa. Tanto Candido quanto Chartier estão interessados nas dinâmicas de poder que permeiam as representações culturais. Candido analisa as formas como a literatura pode ser utilizada para reproduzir ou contestar as hierarquias sociais e culturais, enquanto Chartier investiga as lutas de representação que ocorrem no âmbito das práticas culturais e das formas de conhecimento.

Em suma, embora Antonio Candido e Roger Chartier possuam abordagens distintas em seus estudos, é possível identificar algumas aproximações entre suas ideias, especialmente no que diz respeito à relação entre texto, contexto e representação, bem como à importância de uma análise cuidadosa e contextualizada das obras literárias e culturais.

 Sendo assim, busquei perceber, nos elementos substanciais que Graciliano Ramos seleciona dos contextos pré-existentes para compor o texto ficcional, as representações de negros que se inserem num conjunto complexo e paradoxal, descritivo das precariedades vivenciadas pelo ensino escolarizado no Brasil, constatando e denunciando as assimetrias nas relações entre alfabetizados e analfabetos, entre brancos e pretos. 

É possível inferir que Graciliano Ramos ao interagir com as imagens de educação produzidas e veiculadas pelos proponentes e implementadores de medidas educacionais voltadas para nordestinos, sertanejos, negros, mulheres, trabalhadores e pobres, selecionou-as e combinou-as em sua obra, ressaltando conflitos, competições e valores perceptíveis nas “lutas de representação”, através de imagens da educação formal e informal, pois, como afirmou Antonio Gramsci, em Concepção Dialética da História:

A relação pedagógica não pode ser limitada às relações especificamente escolásticas, através das quais as novas gerações entram em contato com as antigas e absorvem as suas experiências e os seus valores historicamente necessários, amadurecendo e desenvolvendo uma personalidade própria e culturalmente superior. Esta relação existe em toda sociedade no seu conjunto e em todo indivíduo, com relação aos outros indivíduos, bem como entre camadas de intelectuais e não intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos de exército. Toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica, que se verifica, não apenas no interior de uma nação entre as diversas forças que a compõem, mas em todo o campo internacional e mundial (1978).

Antonio Gramsci  ressalta a importância da relação pedagógica não apenas dentro do ambiente escolar, mas em toda a sociedade. Ele argumenta que essa relação existe em todos os níveis sociais, entre diferentes grupos e classes, e até mesmo entre nações. Para Gramsci, toda relação de hegemonia é essencialmente uma relação pedagógica, na qual as ideias, valores e experiências são transmitidos e absorvidos, moldando a cultura e a personalidade das pessoas. 

Isso ocorre não apenas entre os governantes e governados, mas também entre elites e seguidores, entre intelectuais e não intelectuais, e entre vanguardas e corpos de exército. Assim, Gramsci destaca a dimensão educativa presente em todas as esferas da vida social, enfatizando seu papel na construção de uma cultura e identidade coletiva.

Assim sendo, Graciliano Ramos, ao interagir com as imagens de educação presentes em sua sociedade e cultura, selecionou e combinou essas representações em suas obras literárias. Considerando as “lutas de representação” destacadas por Roger Chartier, Ramos certamente incorporou essas imagens e as utilizou para ressaltar os conflitos, competições e valores presentes na sociedade brasileira.

Ao retratar a educação formal e informal em suas obras, Graciliano Ramos expõe as disparidades sociais, econômicas e raciais que permeiam o sistema educacional e a sociedade como um todo. Ele destaca as tensões entre diferentes grupos sociais e as lutas pelo poder e pela hegemonia cultural. Ramos também aborda as contradições entre as políticas educacionais propostas pelas elites e as experiências reais dos nordestinos, sertanejos, negros, mulheres, trabalhadores e pobres.

Portanto, ao escolher e combinar essas imagens de educação em suas obras, Graciliano Ramos oferece uma análise crítica da sociedade brasileira, expondo as complexidades e desigualdades presentes no sistema educacional e nas relações sociais em geral. Suas obras refletem as “lutas de representação” em curso na sociedade brasileira de sua época e continuam a ser relevantes para a compreensão das dinâmicas sociais e culturais do Brasil contemporâneo.

Os negros na obra de Graciliano Ramos

Examinando a obra de Graciliano Ramos, especificamente nos volumes Angústia (2004), Linhas Tortas, Viventes das Alagoas (1975), Infância (1995) e Memórias do cárcere (1976) foi possível encontrar representações de negros em um significativo repertório de personagens, conforme apresentação a seguir.

Mapeamento preliminar de personagens negros na obra de Graciliano Ramos

Em Infância o narrador reapresenta personagens de Angústia, pessoas comuns com as quais conviveu. Os últimos rebentos da preta Quitéria, Maria Moleca e o moleque José, analfabeto, que, no entanto, conhecia a vida, deu-lhe “várias lições” e o fez ver o horror que atingia os negros; José da Luz, policial cafuzo, “ótimo professor”; a mulata Maria do Ó, professora normalista que excedia nos castigos físicos, invertendo a ordem social com Adelaide, a prima do narrador e vingando-se dos antepassados; o anônimo professor mestiço, que “era um tipo mesquinho, de voz fina, modos ambíguos, e passava os dias alisando o pixaim com uma escola de cabelos duros” e tinha um irmão, claro e simpático, que vivia a reclamar: “– Tenho o meu lugar definido na sociedade”.

Através dos personagens apresentados em Infância, Graciliano Ramos oferece uma visão multifacetada da sociedade brasileira da época, explorando questões de raça, classe e poder. Cada personagem representa diferentes aspectos das relações sociais e das dinâmicas de poder que permeiam o contexto em que vivem.

  • Os últimos rebentos da preta Quitéria (Maria Moleca e o moleque José): Esses personagens representam a população negra marginalizada, que sofre com as injustiças sociais e a opressão racial. O moleque José, apesar de ser analfabeto, possui um profundo conhecimento da vida e consegue transmitir ao narrador as injustiças e o horror enfrentados pelos negros. Esses personagens destacam a luta diária pela sobrevivência e a resistência frente à adversidade.
  • José da Luz, o policial cafuzo: Representa a ascensão social de um indivíduo negro em um contexto de estrutura racista. Apesar de ocupar uma posição de poder como policial, José da Luz também enfrenta discriminação e preconceito. Sua figura complexa evidencia as contradições e as limitações impostas pela sociedade em relação aos negros. – Maria do Ó, a mulata professora normalista: Sua figura subverte as expectativas sociais ao exceder nos castigos físicos, invertendo a ordem social e vingando-se dos antepassados. Ela representa uma quebra de estereótipos ao ocupar uma posição de autoridade e poder, mas ao mesmo tempo revela as formas como a opressão pode ser internalizada e reproduzida.
  • O professor mestiço e seu irmão claro: Esses personagens destacam as complexidades das relações raciais e de classe na sociedade brasileira. Enquanto o professor mestiço representa a marginalização e a luta por reconhecimento social, seu irmão claro simboliza a aceitação dentro das normas estabelecidas pela sociedade. A reclamação do irmão claro sobre seu lugar definido na sociedade sugere uma resignação frente às estruturas de poder estabelecidas.

Em suma, os personagens de Infância de Graciliano Ramos oferecem uma reflexão profunda sobre as dinâmicas sociais e as injustiças enfrentadas pela população negra e marginalizada no Brasil, ao mesmo tempo em que exploram as complexidades das relações raciais e de classe na sociedade da época.

Em Angústia (2004), o mestre Vitório, que havia sido escravo do avô de Luís da Silva, cujos músculos eram do velho Trajano e mesmo após o fim da escravidão, prestava deferência ao velho bêbado; a preta Quitéria também alienada dos músculos e do ventre, permanecia na fazenda por não ter aonde ir; Quitéria e outras semelhantes “povoaram a catinga de mulatos fortes e brabos que pertenciam a Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva” (Idem, p. 178).

Nesta obra, Graciliano Ramos retrata personagens que refletem as profundas cicatrizes deixadas pela escravidão e pelas relações de poder desiguais que persistem mesmo após o fim formal da instituição. O mestre Vitório e a preta Quitéria são exemplos vívidos dessas realidades.

  • Mestre Vitório: Como ex-escravo do avô de Luís da Silva, Vitório carrega consigo as marcas físicas e psicológicas da escravidão. Mesmo após o término desse sistema, ele ainda presta deferência ao velho bêbado, demonstrando uma subserviência arraigada em sua história de subjugação. Sua lealdade ao antigo senhor é um reflexo da complexidade das relações entre senhores e escravos, que muitas vezes persistiam além da abolição oficial da escravidão.
  • Preta Quitéria: Assim como Vitório, Quitéria é uma personagem que permanece presa ao passado escravista, mesmo após o fim da escravidão. Alienada de sua própria autonomia e sem perspectivas de futuro, ela permanece na fazenda por falta de opção, revelando a falta de mobilidade social e econômica enfrentada pela população negra liberta. A referência a Quitéria e outras semelhantes que povoaram a catinga de mulatos fortes e brabos sugere a perpetuação das desigualdades sociais e raciais no contexto pósabolição, onde muitos libertos eram marginalizados e explorados em condições semelhantes à escravidão.

Esses personagens ilustram as continuidades e descontinuidades históricas que moldam as relações sociais e raciais no Brasil, mesmo após a abolição da escravatura. Eles evidenciam como as estruturas de poder e opressão persistem e se transformam ao longo do tempo, deixando marcas profundas na sociedade e na vida das pessoas.

No volume Viventes das Alagoas (1975), a crônica “Um homem notável”, além da relação entre um homem analfabeto com uma “secretária formada pela escola normal” (situação semelhante ao que vemos em São Bernardo, embora sem o mesmo fim trágico), Graciliano Ramos aborda, também, embora por via indireta, a questão racial. O narrador já inicia a crônica apontando tensões antigas: “Residia no interior e tinha duas qualidades que lhe adoçaram a vida, e eximiram de inquietações: era branco e analfabeto” [10].

 Na crônica “Um homem notável”, presente no volume Viventes das Alagoas, Graciliano Ramos aborda diversas questões sociais, incluindo a relação entre analfabetismo e privilégios raciais. O narrador destaca as características do protagonista, que são branco e analfabeto, sugerindo que essas qualidades lhe conferem certos privilégios e tranquilidades em meio às tensões sociais existentes.

Ao mencionar que o protagonista é branco e analfabeto, o narrador revela as assimetrias sociais e raciais presentes na sociedade em que vivem. A brancura da pele do protagonista é apresentada como uma vantagem social, conferindo-lhe uma posição de privilégio em relação aos negros, que historicamente enfrentaram e ainda enfrentam discriminação e marginalização. Além disso, a condição de analfabetismo do protagonista pode ser interpretada como uma manifestação das desigualdades educacionais que afetam principalmente as populações mais pobres e marginalizadas, muitas vezes associadas à população negra.

A crônica também destaca a relação entre o protagonista, um homem analfabeto, e uma “secretária formada pela escola normal”. Essa dinâmica de poder sugere uma inversão de papéis tradicionais, onde o homem branco e analfabeto ocupa uma posição de autoridade sobre uma mulher educada e instruída. Essa relação pode ser interpretada como uma reflexão sobre as mudanças sociais e de gênero que estavam ocorrendo na época em que a crônica foi escrita, assim como sobre as complexidades das relações de poder e hierarquias sociais.

Assim, através da caracterização do protagonista e da dinâmica de poder presente na relação com a secretária, Graciliano Ramos aborda de forma indireta a questão racial e as desigualdades sociais presentes na sociedade brasileira, evidenciando as tensões e contradições que marcam as relações entre diferentes grupos sociais.

Nessas duas qualidades do homem notável, são evidenciadas marcações históricas importantes na sociedade brasileira. Situado na fronteira de grupos opostos, o personagem efetuava uma leitura pragmática da realidade, utilizando a seu favor tanto o capital financeiro, quanto o cultural e o social:

Se não fosse branco, nivelar-se-ia à canalha da roça, mais ou menos cabocla, mais ou menos preta, sentir-se-ia pequeno, disposto à obediência. Se não fosse analfabeto, consumir-se-ia em exercícios inúteis à lavoura do algodão e da mamona, leria romances e telegramas da Europa, alargaria pelo mundo, à toa, pensamentos improdutivos (Idem).

Com certeza, as duas qualidades destacadas no homem notável, sua brancura e seu analfabetismo, são carregadas de significados históricos e sociais importantes na sociedade brasileira. Elas situam o personagem em uma posição privilegiada, onde ele pode efetuar uma leitura pragmática da realidade, tirando proveito tanto de seu capital financeiro quanto de sua posição social.

  • Brancura: No contexto histórico do Brasil, a brancura da pele tem sido historicamente associada a privilégios e a uma posição social mais elevada. Desde os tempos da colonização, houve uma valorização da brancura como símbolo de status e superioridade, com os colonizadores europeus ocupando posições de poder e subjugando as populações indígenas e negras. Essa hierarquia racial persistiu ao longo dos séculos e continua a afetar as relações sociais e as oportunidades disponíveis para diferentes grupos raciais no Brasil contemporâneo.
  • Analfabetismo: O analfabetismo, por sua vez, reflete as desigualdades educacionais que têm sido uma característica marcante da sociedade brasileira. Historicamente, o acesso à educação formal tem sido restrito para as populações mais pobres e marginalizadas, muitas vezes associadas à população negra. O analfabetismo perpetua um ciclo de exclusão social e econômica, limitando as oportunidades de emprego, renda e participação política para aqueles que não têm acesso à educação.

 Ao utilizar a seu favor tanto o capital financeiro quanto o capital social e cultural associado à sua brancura e analfabetismo, o homem notável demonstra uma compreensão pragmática das dinâmicas de poder e das desigualdades sociais presentes na sociedade brasileira. Ele se beneficia das estruturas sociais e raciais existentes, explorando as vantagens que sua posição lhe proporciona, ao mesmo tempo em que contribui para a manutenção dessas desigualdades através de suas ações e decisões. Essa caracterização do personagem oferece uma reflexão sobre as complexidades das relações de poder e das hierarquias sociais no Brasil, destacando as estratégias utilizadas por indivíduos para se adaptarem e prosperarem em um ambiente marcado pela desigualdade.

Utilizando-se do condicional, o cronista levanta, por oposição, situações de submissão que têm origem histórica. A exemplo da mediação social da clivagem de cor imposta aos afrodescendentes. E pode-se depreender que o analfabetismo, somado a outras condições de subalternidade – pobre, preto, sertanejo, criança – aumenta proporcionalmente o peso da hierarquia.

Desta forma, o cronista lança um olhar crítico sobre as situações de submissão e desigualdade que têm origem histórica na sociedade brasileira. A clivagem de cor imposta aos afrodescendentes é um exemplo disso. A frase “se” seguida de uma condição hipotética destaca como essa submissão é condicionada por fatores históricos e estruturais, como a discriminação racial e a hierarquia social.

Por exemplo, “se” um indivíduo é pobre, preto, sertanejo e analfabeto, sua posição na hierarquia social é ainda mais prejudicada. Essa construção condicional ressalta como a interseção de múltiplas formas de subalternidade aumenta o peso da hierarquia e das desigualdades sociais. Essas condições, muitas vezes interligadas, são resultado de processos históricos de marginalização e opressão que moldaram a sociedade brasileira ao longo do tempo.

Através do uso do condicional “se”, o cronista convida o leitor a refletir sobre as condições de vida e as experiências dos grupos marginalizados na sociedade brasileira, destacando como as estruturas de poder e as relações sociais são moldadas por fatores históricos, culturais e econômicos. Essa técnica literária ajuda a enfatizar a complexidade e a interconexão das diversas formas de opressão e subalternidade que afetam esses grupos, contribuindo para uma análise mais profunda das desigualdades sociais e das injustiças presentes na sociedade.

Graciliano Ramos estava atento para esses aspectos, como pode-se perceber em sua obra e na ação que levou crianças pobres para a escola, durante a sua gestão como diretor de Instrução Pública em Alagoas. As nuances das desigualdades sociais e das questões educacionais, são perceptíveis em sua obra literária e em suas ações como diretor de Instrução Pública em Alagoas.

Na sua obra, Graciliano frequentemente aborda temas relacionados à pobreza, à marginalização social e à falta de acesso à educação. Personagens como Fabiano em Vidas Secas e Luís da Silva em São Bernardo são exemplos vívidos das condições precárias enfrentadas pelas pessoas mais desfavorecidas na sociedade brasileira. Graciliano retrata de maneira realista e comovente as lutas e as dificuldades desses indivíduos, evidenciando as injustiças sociais e as barreiras enfrentadas para a obtenção de uma educação adequada.

Além disso, sua experiência como diretor de Instrução Pública em Alagoas demonstra seu compromisso com a promoção da educação e o combate ao analfabetismo.

Durante sua gestão, Graciliano implementou diversas políticas e programas educacionais destinados a ampliar o acesso à educação básica, especialmente para crianças pobres e marginalizadas. Sua preocupação com essas questões se reflete não apenas em sua obra literária, mas também em suas ações práticas como gestor público.

Essas experiências pessoais e profissionais contribuíram para moldar a visão de Graciliano sobre as desigualdades sociais e a importância da educação como ferramenta de transformação social. Sua obra e sua atuação como diretor de Instrução Pública refletem seu compromisso com a justiça social e seu desejo de construir uma sociedade mais igualitária e inclusiva, onde todas as crianças tenham acesso a oportunidades educacionais adequadas, independentemente de sua origem social ou econômica.

O homem notável, embora analfabeto, era leitor atento e pragmático do texto social: 

Mas como dispunha de olhos azuis, pele clara e cabelos de gringo, viu com desprezo as figuras chatas, encarapinhadas, foscas e oblíquas dos arredores, convenceu-se de que possuía requisitos para dominá-las e arrogou-se direitos muito superiores aos delas. E como não esbanjava tempo nas cogitações distantes que os livros sugerem, observou solícito as coisas próximas e necessárias, as que se podiam juntar e levar ao mercado (Idem).

Essa leitura de viés extremamente pragmático, gerava aprendizados que o homem notável usava a seu favor, garantindo um ganho pessoal econômico considerável e mantendo a estrutura de dominação em relação aos outros. 

O trecho destacado mostra como o homem notável, apesar de sua condição de analfabetismo formal, é capaz de fazer uma leitura atenta e pragmática do contexto social ao seu redor. Suas características físicas, como os olhos azuis, a pele clara e os cabelos de gringo, conferem-lhe uma vantagem percebida sobre os outros habitantes locais, que são descritos de forma pejorativa como figuras chatas, encarapinhadas, foscas e oblíquas.

Essa descrição revela uma visão preconceituosa e hierárquica do homem notável em relação aos seus vizinhos, baseada em critérios de aparência e origem étnica. Ele se considera superior aos outros devido a essas características físicas, o que o leva a desprezar aqueles que não compartilham das mesmas características. Essa atitude reflete as desigualdades sociais e raciais presentes na sociedade brasileira, onde a cor da pele e a origem étnica ainda influenciam significativamente as oportunidades e o tratamento recebido pelos indivíduos.

Além disso, o homem notável demonstra uma mentalidade pragmática e voltada para o lucro, ao priorizar as atividades práticas e econômicas em detrimento das “cogitações distantes que os livros sugerem”. Ele se concentra nas questões imediatas e utilitárias, buscando lucrar com as atividades que podem ser realizadas no mercado. Essa postura reflete uma mentalidade individualista e utilitarista, característica de uma sociedade em que o sucesso é muitas vezes medido pelo poder econômico e pela capacidade de acumular riqueza.

Portanto, esse trecho evidencia não apenas a capacidade do homem notável de fazer uma leitura astuta do contexto social, mas também suas atitudes preconceituosas e sua busca pelo lucro pessoal, destacando as complexas dinâmicas de poder e as desigualdades presentes na sociedade retratada por Graciliano Ramos.

Situação semelhante vamos encontrar nas crônicas “Desafio” e “Inácio da Catingueira e Romano”, nas quais a clivagem branco/preto e a tensão entre alfabetizado/analfabeto e cultura livresca/cultura popular são evidenciadas no lendário episódio da famosa dupla de cantadores:

No interior da Paraíba viveram há mais de meio século dois cantadores famosos, ouvidos com admiração e respeito em cidades e vilas: Inácio da Catingueira, preto, e Romano, branco, de boa família, cheio de fumaças. O negro, isento de leituras, repentista por graça de Deus, exprimia-se com simplicidade, na língua comum do lugar. O branco exibia conhecimentos: andara uns meses na escola e, em razão da palmatória e dos cascudos, saíra arrumando algarismos, decifrando por alto o mistério dos jornais e das cartas. Possuía um vocabulário de que não alcançava direito a significação e lhe prejudicava certamente o estro, mas isto o elevava no conceito público. Nos torneiros consideráveis reunia palavras esquisitas, de pronúncia difícil, e atrapalhava o adversário. Processo desleal [11] (VA, “D”, p. 71-4).

Neste trecho, Graciliano Ramos aborda as dinâmicas sociais e culturais que permeiam a prática do repente, uma forma de improvisação poética tradicionalmente praticada no Nordeste do Brasil. Através dos personagens de Inácio da Catingueira, um negro analfabeto, e Romano, um branco com algum nível de educação formal, Graciliano destaca as diferentes formas de conhecimento e expressão presentes na sociedade. – Inácio da Catingueira: O personagem negro, analfabeto e repentista por graça de Deus, representa a autenticidade e a simplicidade do repente. Ele se expressa com naturalidade na língua comum do lugar, demonstrando uma habilidade inata para a poesia improvisada. Sua arte é valorizada pela sua autenticidade e pela conexão com as raízes culturais locais. – Romano: O personagem branco de boa família, possui algum nível de educação formal, tendo frequentado a escola por alguns meses. Ele exibe conhecimentos adquiridos através da educação formal, incluindo alguma habilidade em decifrar textos escritos. No entanto, sua educação formal não o torna necessariamente um melhor cantador repentista. Ele é prejudicado pelo seu vocabulário excessivamente formal e pela falta de autenticidade em sua expressão poética, o que o distancia da linguagem e do sentimento do povo.

Através desses personagens, Graciliano critica a valorização superficial da educação formal em detrimento da autenticidade e da conexão com as raízes culturais. Romano, apesar de sua educação formal, é visto como menos competente como cantador repentista do que Inácio, cuja arte é enraizada na experiência e na tradição do povo. A utilização de palavras esquisitas e de pronúncia difícil nos torneios de cantoria é vista como um processo desleal, pois distorce a essência da arte do repente, que deveria ser uma expressão genuína da cultura popular.

E o cronista arrematou afirmando que 

Nas cantigas de violeiros, como em outras cantigas, na Paraíba e em toda parte, saem-se bem as pessoas que dizem a última palavra. Quem não fala muito, aos berros, é incapaz. Os descendentes de Inácio da Catingueira cantam em voz baixa, para um número pequeno de criaturas (Idem).

Cantar em voz baixa significa que o cantor somente seria ouvido pelos que estavam próximos, pelos que faziam parte de sua comunidade, e tinham a mesma visão global da realidade. 

Neste trecho, Graciliano Ramos continua a explorar as dinâmicas sociais e culturais relacionadas à prática do repente, destacando a importância da performance vocal e da habilidade retórica na arte da cantoria. Através da observação de que “quem não fala muito, aos berros, é incapaz”, Graciliano ressalta a valorização da eloquência e da habilidade de argumentação na sociedade retratada.

  • Ênfase na última palavra: A ideia de que “quem diz a última palavra” se sai bem sugere que na prática da cantoria, assim como em outros contextos sociais, a capacidade de encerrar uma disputa verbal com uma frase impactante ou memorável é altamente valorizada. Isso ressalta a importância do timing e da perspicácia na arte do repente, onde o cantador deve ser capaz de improvisar de forma rápida e eficaz para conquistar o público e vencer seus adversários.
  • Performance vocal e modéstia: Ao mencionar que “os descendentes de Inácio da Catingueira cantam em voz baixa, para um número pequeno de criaturas”, Graciliano destaca a modéstia e a simplicidade dos cantadores que seguem a tradição do mestre Inácio. Esses cantadores valorizam mais a autenticidade e a conexão com suas raízes culturais do que a busca por reconhecimento público ou pela última palavra. Sua abordagem mais discreta e reservada pode ser vista como uma resistência à tendência de valorizar o espetáculo e a eloquência em detrimento da essência da arte do repente.

Em resumo, este trecho destaca a importância da eloquência e da capacidade de improvisação na prática da cantoria, ao mesmo tempo em que ressalta a modéstia e a autenticidade dos cantadores que seguem a tradição do mestre Inácio da Catingueira. Essas observações evidenciam as dinâmicas sociais e culturais presentes na sociedade retratada por Graciliano Ramos, evidenciando as diferentes abordagens e valores que permeiam a arte da cantoria no Nordeste do Brasil.

A crônica “Inácio da Catingueira e Romano” remete novamente ao desafio entre os dois cantadores, ressaltando o mesmo episódio em que Romano introduziu a mitologia romana na cantiga, esmagando o “inimigo com uma razoável quantidade de burrices, tudo sem nexo, à toa”, a que Inácio não podia responder, pois era analfabeto. E assim foi considerado derrotado, pelo público:

Muita gente aceita isso. Nauseada, mas aceita, para mostrar sabedoria, quando todos deviam gritar honestamente que, tratando-se de ‘martelo’, Netuno e Minerva não têm cabimento. Inácio da Catingueira, que homem! Foi uma das figuras mais interessantes da literatura brasileira, apesar de não saber ler. Como os seus olhos brindados de negro viam as coisas! É certo que temos outros sabidos demais. Mas há uma sabedoria alambicada que nos torna ridículos [12] (VA, “ICR” p. 120-2).

Mais uma vez a apreciação de Graciliano Ramos sobre o episódio lendário dos cantadores nordestinos expressa a crítica a uma generalizada concepção de cultura como ornamento, floreio e pedantismo beletrista ou como um bem a ser apropriado para a promoção social. 

Neste trecho, Graciliano Ramos faz uma crítica à sociedade que aceita passivamente conceitos absurdos ou injustos, apenas para parecer sábia ou culta aos olhos dos outros. Ele expressa sua indignação com a aceitação cega de noções sem sentido, como atribuir a deuses como Netuno e Minerva o conceito de “martelo”, quando na realidade essas divindades não têm relação alguma com essa ferramenta.

Ao elogiar Inácio da Catingueira como uma figura interessante da literatura brasileira, mesmo sendo analfabeto, Graciliano destaca a capacidade do personagem de enxergar o mundo com clareza e perspicácia, apesar de sua falta de instrução formal. Os “olhos brindados de negro” de Inácio simbolizam sua visão aguçada e sua compreensão profunda da realidade, que muitas vezes supera a dos supostos sábios e cultos.

A crítica de Graciliano se estende aos “sabidos demais” da sociedade, aqueles que se consideram intelectualmente superiores e que muitas vezes exibem uma sabedoria artificial ou superficial. Ele argumenta que essa pretensa sabedoria, baseada em erudição acadêmica ou em uma retórica vazia, pode ser tão ridícula quanto as noções absurdas que são aceitas sem questionamento.

Dessa forma, Graciliano Ramos chama a atenção para a importância da clareza de visão e da honestidade intelectual, destacando que a verdadeira sabedoria muitas vezes reside na capacidade de enxergar além das convenções sociais e das ideias preconcebidas, como fazia Inácio da Catingueira, apesar de sua falta de educação formal.

A visão clara da realidade demonstrada por Inácio em oposição a Romano, bêbado de si mesmo, é a deixa para falar de um estudante de gramática que, embora alardeasse um conhecimento que não tinha, não era contestado pelos leitores:

O ano passado vi o livro dum sujeito notável que declarava, com medonhos solecismos, ter sido um ótimo estudante de gramática. Não podia haver coisa mais extraordinária. O cidadão a afirmar, numa linguagem erradíssima, que sabia escrever.

Imaginei as caras dos outros leitores. Não vi nenhuma. Como, porém, ninguém protestou, julgo que todos, gramáticos e literatos, engoliram o que o homem disse, exatamente como aconteceu em Patos, há setenta anos.

Que pedantismo e que miséria! Ali bocados de mitologia, aqui um português arrevezado, pretensioso e manco (Idem).

Como o público ignorante e indeciso que aplaudiu Romano, a comunidade letrada também tinha limitações que a pretensão impedia de superar. O silêncio impedia o debate e o questionamento das “verdades” estabelecidas e partilhadas. 

Neste trecho, Graciliano Ramos critica a hipocrisia e a pretensão de certas pessoas que, apesar de cometerem erros grosseiros de linguagem, afirmam ser proficientes em gramática ou em escrever corretamente. Ele relata o caso de um sujeito que, embora cometesse “medonhos solecismos” em sua linguagem, declarava ter sido um excelente estudante de gramática.

Essa situação é vista por Graciliano como algo extraordinário e indigno de crédito. Ele ironiza a falta de reação dos outros leitores diante dessas afirmações equivocadas, sugerindo que, assim como aconteceu em Patos há setenta anos, as pessoas tendem a aceitar passivamente as declarações sem fundamento, sem questionar ou protestar.

A crítica de Graciliano Ramos recai sobre o pedantismo e a falta de autenticidade dessas pessoas, que se vangloriam de supostos conhecimentos sem realmente possuí-los. Ele denuncia a miséria intelectual e linguística presente nessas atitudes, onde fragmentos de mitologia convivem com um português confuso, pretensioso e defeituoso.

Essa passagem o alinhamento de Graciliano Ramos com a honestidade intelectual e a clareza de expressão, rejeitando a falsa erudição e a presunção vazia. Ao tempo em que valoriza a autenticidade e a precisão na linguagem, critica aqueles que se escondem atrás de uma fachada de conhecimento sem realmente possuí-lo.

E novamente o cronista arremata: “certamente muitos preferem descender dos Romanos, que sempre foram os donos intelectuais do Brasil”. Preferir descender dos Romanos é afirmar a filiação a uma tradição que mantinha o controle do poder, à tradição cultural dos colonizadores; descender dos Romanos é participar de um capital simbólico tido como importante, fazendo-se parte do grupo dos homens ilustrados, que se opõem aos grupos considerados hierarquicamente inferiores na escala socioeconômica, a exemplo dos negros.

Em Memórias do cárcere vê-se que a crítica de Graciliano Ramos vai além da escrita literária e é exemplificada pela prática. No período de tempo em que permaneceu no cargo de diretor de Instrução Pública, Graciliano Ramos teve como interlocutora a d. Irene, diretora de uma escola que, a princípio, atendia clientela elitizada, mas passou por mudanças interessantes:

No estabelecimento dela espalhavam-se a princípio duzentos e poucos meninos, das famílias mais arrumadas de Pajuçara. Numa campanha de quinze dias, por becos, ruelas, cabanas de pescadores, D. Irene enchera a escola, aumentando o material, divididas as aulas em dois turnos, mais de oitocentas crianças haviam superlotado o prédio, exibindo farrapos, arrastando tamancos.

Ao vê-las, um interventor dissera indignado:

– Convidam-me para assistir a uma exposição de misérias (Idem, p. 45-6).

Este trecho de Memórias do Cárcere exemplifica como Graciliano Ramos não apenas critica a sociedade em sua escrita literária, mas também buscou efetuar mudanças práticas quando teve a oportunidade. Como diretor de Instrução Pública, ele se deparou com a realidade de uma escola que inicialmente atendia a uma clientela elitizada, mas que passa por uma transformação significativa sob a direção de D. Irene.

Inicialmente, a escola era frequentada por duzentos e poucos alunos das famílias mais abastadas de Pajuçara. No entanto, D. Irene empreende uma campanha para ampliar o alcance da educação, percorrendo becos, ruelas e cabanas de pescadores para atrair crianças carentes. Essa iniciativa resulta em um aumento dramático no número de alunos, chegando a superlotar o prédio com mais de oitocentas crianças, muitas das quais em situação de extrema pobreza e com vestimentas precárias.

A reação indignada do interventor, que se sente como se estivesse assistindo a uma “exposição de misérias”, reflete a mentalidade da época, que tendia a ignorar ou esconder as condições de pobreza e marginalização existentes na sociedade. No entanto, para Graciliano Ramos e para D. Irene, a educação não deveria ser um privilégio exclusivo das classes mais abastadas, mas sim um direito de todos os cidadãos, independentemente de sua origem social ou econômica.

Ao destacar essa situação na obra, Graciliano Ramos evidencia sua preocupação com a justiça social e com a democratização do acesso à educação. Ele reconhece a importância de mudanças práticas e concretas para combater as desigualdades e promover uma sociedade mais inclusiva e equitativa. Essa passagem mostra como suas críticas à sociedade se estendem além da esfera literária, manifestando-se também em suas ações e posicionamentos políticos.

A abertura da escola para segmentos excluídos e a viabilização de medidas que garantissem a sua permanência no sistema escolar com o fornecimento de fardamento e material, ganharam ares revolucionários na visão dos que naturalizavam a exclusão da maioria e o privilégio da elite.

A abertura da escola para alunos pretos e pobres, bem como a implementação de ações para sua permanência na escola, representaram uma verdadeira revolução na visão daqueles que naturalizavam a exclusão da maioria e o privilégio da elite. Graciliano Ramos, através de sua gestão como diretor de Instrução Pública e de sua obra literária, demonstrou uma preocupação genuína com a democratização do acesso à educação e a promoção da igualdade de oportunidades.

 Desta forma Graciliano Ramos desafiou as normas e expectativas sociais da época, que perpetuavam a exclusão e a marginalização desses grupos. Sua visão progressista reconhecia que a educação como direito fundamental de todos os cidadãos, independentemente de sua origem étnica ou condição socioeconômica.

 Além disso, a implementação de medidas práticas para garantir a permanência desses alunos no sistema escolar, como o fornecimento de fardamento e material escolar, foi crucial para que a educação se tornasse verdadeiramente acessível e inclusiva. Essas medidas não apenas quebraram barreiras materiais que impediam a participação desses alunos, mas também enviaram uma mensagem poderosa de igualdade e dignidade.  A atitude de Graciliano Ramos e de outros educadores progressistas da época foi revolucionária porque desafiou as estruturas de poder estabelecidas e lutou contra a injustiça social e a exclusão. Sua abordagem visionária da educação como um instrumento de transformação social ajudou a pavimentar o caminho para uma sociedade mais justa e igualitária, onde todos têm a oportunidade de alcançar seu pleno potencial, independentemente de sua origem ou condição social.

As ações implementadas pelo diretor de Instrução Pública de Alagoas, de um lado o colocaram na vanguarda dos movimentos educacionais que, encampados pelos reformadores, buscavam assegurar, constitucionalmente, o direito de todos à educação; e de outro o colocavam na contramão dos interesses dos figurões locais. Na “democratização” do acesso à escola, Graciliano Ramos mostrava como era mais importante agir do que falar e que, além das mudanças teóricas, a prática política deveria mudar.

Sem dúvida, as ações implementadas por Graciliano Ramos como diretor de Instrução Pública de Alagoas o colocaram em uma posição de vanguarda nos movimentos educacionais da época, que buscavam garantir constitucionalmente o direito de todos à educação. No entanto, essas mesmas ações o colocaram em rota de colisão com os interesses dos figurões locais, que muitas vezes se beneficiavam da exclusão e da manutenção do status quo.

Ao promover a democratização do acesso à escola, Graciliano Ramos demonstrou que agir era mais importante do que falar. Sua abordagem pragmática e voltada para a ação destacava a necessidade de mudanças concretas na prática política, em vez de simplesmente discursos teóricos ou promessas vazias. Ele entendia que a verdadeira transformação só poderia ocorrer através de medidas efetivas que garantissem o acesso igualitário à educação para todos os cidadãos.

Essa postura de Graciliano Ramos desafiava diretamente os interesses dos que muitas vezes viam na manutenção da exclusão social e educacional uma forma de preservar poder e privilégios. Suas ações representavam uma ameaça para os interesses estabelecidos, uma vez que questionavam as estruturas de poder e buscavam redistribuir o acesso ao conhecimento e à educação de forma mais equitativa.

Portanto, as ações de Graciliano Ramos como diretor de Instrução Pública de Alagoas não apenas o destacaram como um líder educacional progressista, mas também o posicionaram como um agente de mudança política e social que desafiava os interesses estabelecidos em prol de uma sociedade mais justa e igualitária. Sua abordagem prática e determinada mostrou que a transformação real só é possível através da ação efetiva e comprometida com a causa da educação para todos.

Questões como as apreciadas até aqui impregnam as imagens que representam a educação na obra de Graciliano Ramos. A criação artística recompõe aspectos delicados, recorrentes ou interditados na história brasileira, através de narradores, personagens e enredos que manifestam uma postura complexa e ambígua diante das relações étnicas e raciais, gerando situações aparentemente contraditórias. Tais posturas, ao invés de caracterizar indefinição, fraqueza ou dúvida, ao contrário, abrem a possibilidade de discussões dessa temática sob perspectivas variadas.

As obras de Graciliano Ramos, incluindo sua abordagem sobre a educação, estão impregnadas de complexidades e nuances que refletem as questões delicadas, recorrentes e muitas vezes interditadas na história brasileira. A sua criação artística serve como uma lente através da qual essas questões são examinadas e exploradas por meio de narradores, personagens e enredos que manifestam uma postura complexa e ambígua diante das relações étnicas e raciais.

As posturas ambíguas e contraditórias refletem uma compreensão profunda da complexidade das relações sociais no Brasil, que o autor não busca simplificar ou moralizar, mas sim apresentá-las em toda a sua complexidade e multiplicidade de perspectivas. Ele reconhece que as relações étnicas e raciais no Brasil são atravessadas por uma variedade de fatores históricos, sociais e culturais, e que uma abordagem simplista ou binária não seria adequada para capturar essa complexidade.

Ao apresentar personagens e situações que desafiam as categorias convencionais e as expectativas sociais, Graciliano Ramos convida o leitor a questionar suas próprias visões preconcebidas e a explorar essas questões sob perspectivas variadas. Suas obras proporcionam um espaço de reflexão e discussão onde as questões relacionadas à educação, raça e etnia no Brasil podem ser examinadas em toda a sua complexidade, estimulando um diálogo aberto e crítico sobre esses temas tão importantes para a nossa sociedade.

A ironia é um recurso estilístico para evidenciar tais contradições do real e, também, um esforço para superar as limitações do narrador diante da complexidade do real. Como afirmou Graciliano Ramos, evidenciando a sua relação tensa com o contexto político – que o condenou arbitrariamente à prisão – e com a ideologia – que censurou a sua obra: “Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer” [14].

Essa citação de Graciliano Ramos exemplifica perfeitamente o uso da ironia como recurso estilístico para evidenciar as contradições do real e como um esforço para superar as limitações do narrador diante da complexidade do mundo ao seu redor.

Ao afirmar que “começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Ordem Política e Social”, Graciliano Ramos destaca a dualidade entre as restrições impostas pela estrutura linguística e as imposições da ordem política e social. A sintaxe, enquanto elemento básico da linguagem, impõe limites à expressão e à compreensão do mundo, enquanto a Ordem Política e Social impõe limitações à liberdade individual e ao exercício pleno da autonomia.

No entanto, Graciliano utiliza a ironia para sugerir que, apesar dessas limitações, ainda existe uma margem de movimento dentro dos “estreitos limites” impostos pela gramática e pela lei. Essa afirmação irônica sugere que, mesmo diante das restrições e opressões, ainda há espaço para a ação e a resistência dentro das circunstâncias impostas.

Essa citação também reflete a relação tensa de Graciliano Ramos com o contexto político e ideológico de sua época, que o levou à prisão e censurou sua obra. Ao reconhecer as limitações impostas pela sintaxe e pela ordem social, Graciliano revela sua consciência aguçada das estruturas de poder que moldam e restringem a vida humana. No entanto, sua ironia sugere que, mesmo diante dessas limitações, ainda é possível encontrar margem para ação e resistência.

Na crítica do escritor aos que se referiam à coação – real, sem dúvida – para evitar pronunciamentos e posicionamentos sobre o contexto político repressor da época, Graciliano Ramos reafirmava a sua obstinada luta com a linguagem diante da impossibilidade de superar as contradições inerentes ao real. Para tais contradições o escritor não apontava respostas, soluções prontas ou ferramentas pré-estabelecidas, mas também não eliminava a possibilidade de as mesmas serem construídas no processo de representação do real através da linguagem.

Graciliano Ramos reconhecia a realidade da coação política e as restrições que ela impunha à liberdade de expressão e posicionamento, mas não se resignava passivamente a essas circunstâncias. Pelo contrário, sua obstinada luta com a linguagem refletia sua determinação em enfrentar as contradições inerentes ao real, mesmo diante da impossibilidade de superá-las completamente.

Ao criticar aqueles que se calavam por medo da repressão política, Graciliano reafirmava seu compromisso com a linguagem como uma ferramenta de resistência e expressão. Ele entendia que a linguagem era tanto uma arena de conflito quanto um meio de representar e negociar as contradições do mundo ao seu redor.

Graciliano não oferecia respostas fáceis ou soluções prontas para as complexidades e contradições da vida sob um regime repressivo. Em vez disso, ele reconhecia a natureza dinâmica e em constante evolução dessas contradições, sugerindo que as respostas e soluções poderiam emergir no próprio processo de representação do real através da linguagem.

Essa abordagem não eliminava a incerteza ou a ambiguidade, mas abria espaço para a possibilidade de construir significados e compreensões mais profundas no diálogo contínuo entre o escritor, a linguagem e o mundo. Assim, Graciliano Ramos via na linguagem não apenas uma ferramenta de comunicação, mas também um campo de batalha onde as contradições do real poderiam ser enfrentadas e negociadas de maneiras criativas e significativas.

Como se pode examinar, nas representações de educação nas obras do escritor Graciliano Ramos, especificamente aquelas interações literárias com representações de negros, a ironia, é uma ferramenta eficientemente utilizada pelo escritor para resolver certas situações delicadas, como aquelas apresentadas nas escolas da vida, onde o texto social se dá a ler em representações que organizam a apreensão do mundo: imagens ligadas à cor, ao gênero, à origem geográfica, ao poder aquisitivo, somadas ao grau de escolaridade, à profissão, etc. e constituem marcações historicamente construídas para sustentar clivagens. 

Assim, a ironia é uma ferramenta eficaz e frequentemente utilizada por Graciliano Ramos em representações da educação e das interações com personagens negros em sua obra. Essa ironia permite ao escritor abordar de maneira sutil, porém impactante, questões delicadas e complexas que permeiam as relações sociais e raciais na sociedade brasileira.

Ao explorar as interações entre personagens negros e o sistema educacional, Graciliano Ramos utiliza a ironia para revelar as contradições e injustiças presentes nesse contexto. Por exemplo, ele pode satirizar a postura de professores ou autoridades educacionais que perpetuam estereótipos e preconceitos, ao mesmo tempo em que critica a falta de oportunidades oferecidas aos alunos negros.

Além disso, a ironia permite a Graciliano Ramos subverter expectativas e questionar narrativas dominantes sobre raça, gênero, classe social e poder. Ele pode usar a ironia para expor a hipocrisia e a falta de empatia de personagens que se consideram superiores, mas que na verdade estão apenas reproduzindo e reforçando estruturas de opressão.

Ao desafiar essas representações socialmente construídas e marcadas historicamente, Graciliano Ramos estimula o leitor a refletir criticamente sobre as relações de poder e as injustiças presentes na sociedade. A ironia em suas obras serve como uma ferramenta poderosa para desmascarar o absurdo e a arbitrariedade das normas sociais e para promover uma análise mais profunda das estruturas de opressão e privilégio que moldam as interações humanas.

Vidas Secas oferece uma rica fonte para explorar as representações de negros e as desigualdades sociais presentes no contexto brasileiro da época. Ao selecionar elementos substanciais dos contextos pré-existentes para compor suas narrativas ficcionais, Graciliano Ramos retrata de forma vívida as precariedades vivenciadas pelo ensino escolarizado no Brasil, enquanto denuncia as profundas assimetrias nas relações entre alfabetizados e analfabetos, entre brancos e pretos.

Portanto, nos romances de Graciliano Ramos, a presença e representação dos personagens negros muitas vezes refletem as duras realidades enfrentadas pela população negra na sociedade brasileira da época. Eles são frequentemente retratados como trabalhadores rurais explorados, submetidos a condições de vida extremamente precárias e a um sistema social que perpetua a marginalização e a opressão.

Num cenário que destaca as desigualdades no acesso à educação formal, os personagens negros, assim como os brancos pobres, são geralmente retratados como vítimas do sistema educacional falho e excludente, que não oferece oportunidades iguais para todos. A falta de acesso à educação adequada contribui para a perpetuação do ciclo de pobreza e marginalização que afeta principalmente os mais vulneráveis na sociedade, incluindo a população negra.

Ao mesmo tempo, Graciliano Ramos também lança luz sobre as relações de poder e as hierarquias sociais que permeiam a sociedade brasileira. Ele denuncia as assimetrias nas relações entre brancos e pretos, evidenciando como o racismo estrutural se manifesta em diferentes aspectos da vida cotidiana, desde o acesso a oportunidades econômicas até a interação social e a representação cultural.

Assim, ao analisar as representações de negros nos romances de Graciliano Ramos, é possível perceber não apenas as dificuldades enfrentadas pela população negra no contexto social e político da época, mas também as injustiças e desigualdades que caracterizam a sociedade brasileira como um todo. Suas obras funcionam como um poderoso instrumento de denúncia e reflexão sobre as questões sociais e raciais que ainda persistem até os dias de hoje.

Conclusão

Através da análise das representações de educação nas obras de Graciliano Ramos, fica evidente o papel crucial desempenhado pela ironia como uma ferramenta literária e política poderosa. Ramos utiliza a ironia para desafiar normas sociais, expor contradições e provocar reflexões críticas sobre as complexidades da sociedade brasileira, especialmente no que diz respeito às relações raciais e ao sistema educacional.

Tomando contribuições de Antonio Candido e de Roger Chartier para a análise das representações de educação nas obras de Graciliano Ramos, torna-se evidente a riqueza e a profundidade das reflexões proporcionadas pela literatura. Ramos, ao utilizar a ironia como uma ferramenta literária para explorar as complexidades da educação e da sociedade brasileira, executa o que Candido denominou de integração entre texto e contexto, incorporando e revelando as “lutas de representação” de Chartier nas suas narrativas literárias.

A ironia de Graciliano Ramos não apenas desafia normas sociais e expõe injustiças, mas também nos convida a uma reflexão crítica sobre as estruturas de poder e as desigualdades presentes na educação e na sociedade brasileira. Suas obras, ao incorporar as contribuições de Candido e Chartier, não são apenas fontes de entretenimento, mas sim instrumentos valiosos para a compreensão e transformação do mundo ao nosso redor.

Ao explorar as interações entre personagens negros e o sistema educacional, Ramos revela as injustiças e estereótipos presentes nesse contexto, convidando o leitor a questionar suas próprias percepções e compreensões sobre raça, classe e poder. A ironia permite a Ramos subverter expectativas, criticar hipocrisias e oferecer um olhar penetrante sobre as dinâmicas sociais e políticas do Brasil.

 Além disso, a análise das representações de educação nas obras de Ramos destaca a importância da literatura como uma ferramenta para a crítica social e a construção de narrativas alternativas. Suas obras não apenas refletem a realidade, mas também a reinterpretam e a questionam, abrindo espaço para novas perspectivas e entendimentos.

Assim como Candido propôs a necessidade de considerar o contexto histórico e social para uma interpretação completa das obras literárias, as representações de educação de Ramos nos convidam a mergulhar nas realidades sociais e políticas do Brasil do século XX. Da mesma forma, Chartier nos lembra que as representações literárias são construídas e disputadas, refletindo as dinâmicas de poder e as ideologias dominantes de sua época.

Em última análise, a abordagem de Graciliano Ramos para a representação da educação por meio da ironia destaca a capacidade da literatura de provocar reflexões profundas e instigar mudanças sociais. Suas obras continuam a ser fontes valiosas de insight e inspiração, lembrando-nos do poder transformador da arte na compreensão e na transformação do mundo ao nosso redor.

Ao final, ao analisarmos as representações de educação nas obras de Graciliano Ramos à luz das contribuições desses renomados estudiosos, reafirmamos a importância da literatura como uma ferramenta para a crítica social e a construção de narrativas alternativas. Suas obras continuam a inspirar e a desafiar leitores e estudiosos, destacando o papel fundamental da literatura na compreensão e transformação da sociedade.

Referências

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Ed. Nacional, 1980. 

CARVALHO, Marta Maria Chagas de. “Educação e política nos anos 20: a desilusão com a República e o entusiasmo pela educação. In: A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. Helena Carvalho de Lorenzo, Wilma Rios da Costa (org.) São Paulo: Editora da UNESP, 1997.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. DIFEL/Editora Bertrand Brasil S. A.: Lisboa/Rio de Janeiro. (Memória e Sociedade), 1998.

GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. 

RAMOS, Graciliano. Infância. Rio/ São Paulo: Record, 1995. 

RAMOS, Graciliano. Angústia. 59 ed. Rio, São Paulo: Record, 2004. 

RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas: quadros e costumes do Nordeste. 5 ed. Rio, São Paulo: Record/Martins, 1975. ]

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 9 ed. Rio, São Paulo: Record, Martins. (2 v), 1976.


1 Licenciada em História, Mestre em Literatura e Diversidade Cultural e Doutora em Educação. Reside em Feira de Santana, onde leciona história na rede pública estadual. Pesquisadora autônoma recebeu os seguintes prêmios: Capoeira Viva 2007 Ministério da Cultura, com o projeto Horalcap Conversando com Mestres de Capoeira em Feira de Santana; Ponto de Leitura 2008 Edição Machado de Assis, – Ministério da Cultura, com o projeto Tenda Odu Odara Biblioteca para ler e escrever o mundo; Tuxáua Cultura Viva 2009 Ministério da Cultura, com o projeto Cultura de Paz é Cultura Viva; Literatura de Cordel 2010 Edição Patativa do Assaré, Ministério da Cultura com o projeto Joãozinho cantador de coco.