SOBRECARGA DE AÇÕES JUDICIAIS E DESJUDICIALIZAÇÃO COMO OBJETIVO DE FOMENTAR A JUSTIÇA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102411141753


Alexandre Guimarães de Assis Pereira1
Orientador: Domerito Aparecido da Silva2


RESUMO:

O artigo se propõe a realizar uma análise crítica do fenômeno da desjudicialização na resolução de conflitos no Brasil, enfatizando a necessidade de desenvolver a noção de devido processo legal extrajudicial. A reflexão parte da evolução do conceito de acesso à justiça, que, nas últimas décadas, deixou de ser encarado apenas como acesso ao Poder Judiciário, conforme previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988. Em lugar disso, passou a incorporar a ideia de Justiça Multiportas, conforme estabelecido no artigo 3º do Código de Processo Civil de 2015, que promove o compartilhamento do exercício da jurisdição entre diferentes instituições decisórias. A desjudicialização deve, portanto, respeitar as garantias fundamentais do processo, evitando qualquer retrocesso em termos de proteção dos direitos. Para alcançar esse objetivo, é imprescindível formular a concepção de devido processo legal extrajudicial, a qual deve incluir, entre seus elementos mínimos, os seguintes aspectos: a) imparcialidade e independência; b) controle externo; c) publicidade; d) previsibilidade do procedimento; e) contraditório. Esses elementos são discutidos ao longo do texto, reforçando a importância de que a desjudicialização ocorra dentro de um sistema que assegure a justiça e a eficácia na resolução de controvérsias.

PALAVRAS-CHAVE: Desjudicialização; acesso à justiça; devido processo legal; imparcialidade; publicidade; previsibilidade do procedimento; contraditório.

ABSTRACT

The article proposes to carry out a critical analysis of the phenomenon of dejudicialization in conflict resolution in Brazil, emphasizing the need to develop the notion of extrajudicial due process. The reflection starts from the evolution of the concept of access to justice, which, in recent decades, has ceased to be seen only as access to the Judiciary, as provided for in article 5, item XXXV, of the Federal Constitution of 1988. Instead, it has become incorporate the idea of Multi-Door Justice, as established in article 3 of the 2015 Civil Procedure Code, which promotes the sharing of the exercise of jurisdiction between different decision-making institutions. Dejudicialization must, therefore, respect the fundamental guarantees of the process, avoiding any setback in terms of the protection of rights. To achieve this objective, it is essential to formulate the concept of extrajudicial due process, which must include, among its minimum elements, the following aspects: a) impartiality and independence; b) external control; c) advertising; d) predictability of the procedure; e) contradictory.

These elements are discussed throughout the text, reinforcing the importance of dejudicialization occurring within a framework that ensures justice and effectiveness in resolving disputes.

O conceito de “acesso ao Judiciário”, consagrado no século XX, evoluiu para a noção de “acesso à justiça” no século XXI, refletindo transformações significativas na forma como se compreende a relação entre os cidadãos e o sistema jurídico.

No período anterior à promulgação da Constituição Federal de 1988, um acontecimento que marcou a redemocratização do Brasil, diversas barreiras se impunham ao acesso dos jurisdicionados ao Poder Judiciário, dificultando a efetiva reivindicação de direitos. Reconhecendo essa realidade histórica, o legislador constituinte estabeleceu, em seu artigo 5º, inciso XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, associando, assim, o acesso à justiça diretamente ao acesso ao Judiciário.

Entretanto, ao longo das mais de três décadas que se seguiram à promulgação da nova constituição, tornou-se evidente o surgimento de uma série de efeitos colaterais indesejados provenientes do amplo acesso ao sistema judiciário. O Relatório Justiça em Números, disponibilizado em 2023 pelo Conselho Nacional de Justiça, evidencia uma preocupante taxa de congestionamento nos tribunais brasileiros, que atinge a marca de 70,5%. Diante dessa realidade, o presente artigo tem como objetivo apresentar possibilidades para desbloquear o acesso ao Judiciário, pois a intensa demanda tem contribuído para a hiperjudicialização, fenômeno que acentua a sobrecarga do sistema.

Para mitigar essa situação, diversas alternativas têm sido propostas, visando à redução do tempo de tramitação dos processos judiciais. Exemplos disso incluem a improcedência liminar de pedidos, o julgamento antecipado parcial do mérito, a estabilização da tutela provisória e a aplicação de filtros recursais. Contudo, é crucial que os esforços não se limitem ao mero gerenciamento dos processos judiciais. A atual conjuntura nos convida a considerar soluções que extrapolem os limites do Poder Judiciário.

Por um lado, não se pode aceitar a ideia de limitar o número de demandas, seja mediante a supressão total dos conflitos sociais, o que seria ilusório e indesejado, ou pela expectativa fútil de que os litigantes não busquem mais a resolução adequada de seus litígios. Tal abordagem resultaria, em última análise, na promoção de uma litigiosidade reprimida, em desacordo com os princípios do Estado Democrático de Direito. Por outro lado, impõe-se o desafio de concretizar a noção de Justiça Multiportas.

O conceito de “Justiça Multiportas”, introduzido pelo Professor Frank Sander durante a Conferência Pound em 1976 nos Estados Unidos, propõe uma reconfiguração do papel do Judiciário. Este deve transitar de um mero espaço de julgamento para um centro de resolução de disputas, onde as partes são orientadas a buscar o meio mais adequado para a solução de seus conflitos. Embora essa concepção tenha sido amplamente discutida de forma teórica no Brasil, a repetição do conceito sem a implementação de ações concretas não é suficiente para transformar a estrutura de nosso sistema de justiça, que permanece, em grande medida, centrada no modelo tradicional de julgamentos. A efetivação da Justiça Multiportas demanda uma abordagem prática e inovadora que permita uma prática jurisdicional mais eficiente e acessível, beneficiando a sociedade como um todo.

Poder Judiciário. Portanto, cabe a pergunta: será a Justiça Multiportas uma realidade no Brasil ou mera ilusão?

A concretização da Justiça Multiportas demanda um esforço metódico e substancial na criação de novos caminhos de acesso ao sistema judiciário, ressaltando a relevância de integrar, ao acesso ao Poder Judiciário, outras alternativas que se alinhem à perspectiva do pluralismo decisório ou da jurisdição compartilhada, conforme eloquentemente articulado por Mancuso. Sem essa dedicação, a ideia de Justiça Multiportas pode se restringir a uma mera ilusão, que, apesar de parecer promissora, revela-se uma utopia inatingível ao ser perseguida.

A efetivação da Justiça Multiportas é uma tarefa complexa, que não se resume a uma abordagem simplista. Contudo, é encorajador observar que o legislador nacional já implementou significativos avanços nesse sentido. Um exemplo notável é a clara redação do artigo 3º do Código de Processo Civil de 2015, que estabelece que “não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito”. Essa disposição rompe, portanto, com a tradicional equiparação entre acesso à justiça e acesso ao Poder Judiciário, característico da Constituição de 1988, em virtude do seu contexto histórico.

Nos últimos dezesseis anos, especialmente após a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, que criou o Conselho Nacional de Justiça, este órgão tem se empenhado em implementar de maneira concreta a Justiça Multiportas no país, por meio de diversas iniciativas que promovem a desjudicialização como forma de resolução de conflitos. Isso possibilita ao jurisdicionado acessar alternativas ao Poder Judiciário, buscando a solução desejada com eficácia equivalente ou até superior.

O objetivo deste artigo é evidenciar que a fundação da Justiça Multiportas em um Estado Democrático de Direito deve ser solidamente alicerçada na noção de devido processo legal extrajudicial. Esse enfoque visa garantir que, no processo de desjudicialização, não ocorra uma diminuição das garantias fundamentais. Cada uma das vias que compõem a Justiça Multiportas deve assegurar os direitos processuais fundamentais, conquistas democráticas da disciplina processual, respeitando, é claro, as especificidades de cada um dos mecanismos estabelecidos.

Como já mencionado, a construção da Justiça Multiportas não se apresenta como uma tarefa trivial, exigindo esforços variados de todos os envolvidos. No entanto, a reestruturação do sistema judiciário, ao preservar um patamar adequado de garantias, poderá facilitar um acesso à justiça que seja compatível com o exercício pleno da democracia, especialmente após mais de três décadas de vigência da Constituição Cidadã.

Diante disso, proceder-se-á com uma análise concisa sobre a noção de desjudicialização no Brasil, seguida de uma discussão sobre os principais elementos que devem compor o conceito de devido processo legal extrajudicial, sempre respeitando os limites e a estrutura apropriados para um artigo científico.

2. A desjudicialização.

A desjudicialização refere-se ao fenômeno em que litígios ou situações da vida civil, que historicamente exigiam a intervenção do Poder Judiciário para sua resolução, podem ser tratados por agentes que não pertencem ao corpo funcional do Judiciário. Em outras palavras, a desjudicialização visa promover o acesso à justiça por meio de mecanismos extrajudiciais, afastando, assim, a necessidade de recorrer ao ambiente judicial.

Até o ano de 2007, o legislador brasileiro implementou algumas iniciativas pontuais de desjudicialização, tais como a Lei Federal nº 6.015/1973, que regulamenta os Registros Públicos, e a Lei Federal nº 8.951/1994, que introduziu a consignação em pagamento extrajudicial com a inclusão do § 1° no artigo 890 do Código de Processo Civil de 1973. Além disso, a Lei Federal nº 9.514/1997, que aborda a alienação fiduciária em garantia de bens imóveis, também se insere neste contexto, entre outras legislações.

No entanto, o marco decisivo para a desjudicialização ocorreu com a promulgação da Lei Federal nº 11.441, em 2007. Tal norma possibilitou que processos de inventário, partilha, separação e divórcio consensuais fossem realizados mediante escritura pública nos cartórios extrajudiciais. Essa inovação recebeu ampla divulgação na mídia e resultou em filas significativas nas entradas dos cartórios logo no primeiro dia útil após sua implementação. O entusiasmo da sociedade com relação a essa medida não apenas revitalizou o conceito de desjudicialização no terceiro milênio, mas também legitimou os cartórios extrajudiciais como centros adequados para a prestação de jurisdição, conforme analisado por Humberto Dalla.

7 “(…) o art. 3º do NCPC, ao se referir a apreciação jurisdicional, vai além do Poder Judiciário e da resolução de controvérsias pela substitutividade. O dispositivo passa a permitir outras formas positivas de composição, pautadas no dever de cooperação das partes e envolvendo outros atores. Desse modo, a jurisdição, outrora exclusiva do Poder Judiciário, pode ser exercida por serventias extrajudiciais ou por câmaras comunitárias, centros ou mesmo conciliadores e mediadores extrajudiciais. (…) A jurisdição é essencialmente uma função estatal. Por isso, em momentos históricos diversos, desde a Antiguidade, passando pelas Idades Média, Moderna e chegando à contemporânea, o Estado, invariavelmente, chamou para si o monopólio da jurisdição, sistematizando-a, a partir de Luiz XIV. A atuação jurisdicional, então, era um poderoso mecanismo para assegurar o cumprimento das leis. No entanto, Leonardo Greco admite que a jurisdição não precisa ser, necessariamente, uma função estatal. É claro que não se pode simplesmente desatrelar a jurisdição do Estado, até porque, em maior ou menor grau, a dependência do Estado existe, principalmente para se alcançar o cumprimento da decisão não estatal. Por outro lado, podemos pensar no exercício dessa função por outros órgãos do Estado ou por agentes privados. Nesta ótica, percebe-se o fenômeno da desjudicialização enquanto ferramenta de racionalização da prestação jurisdicional e ajuste ao cenário contemporâneo, o que leva, necessariamente, à releitura, à atualização, ou ainda a um redimensionamento da garantia constitucional à luz dos princípios da efetividade e da adequação.” PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. “A releitura do princípio do acesso à justiça e o necessário redimensionamento da intervenção judicial na resolução dos conflitos na contemporaneidade”. In Revista Jurídica Luso-brasileira. Ano 5. Número 3. 209. pp. 791- 830.

A criação do Conselho Nacional de Justiça pela Emenda Constitucional nº 45, em 2004, representou um marco significativo na promoção da desjudicialização no Brasil. Esse órgão controlador tem atuado em diversas situações, impulsionando a desjudicialização por meio da edição de atos normativos que visam aprimorar o acesso à justiça extrajudicial, conforme mencionado na introdução deste artigo.

Um exemplo palpável da evolução desse processo é a permissão para a alteração de prenome e sexo no registro de nascimento, diretamente no cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais, em casos relacionados à transexualidade, conforme determina o Provimento nº 73/2018 do CNJ. Ademais, a possibilidade de averbar a paternidade ou maternidade socioafetiva diretamente no cartório também foi regulamentada por meio do Provimento nº 83/2019 do CNJ. Outras melhorias notáveis incluem a atualização do artigo 110 da Lei Federal nº 6.015/1973, promovida pela Lei Federal nº 13.484/2017.

O Código de Processo Civil de 2015 também desempenhou um papel fundamental no avanço da desjudicialização, ao prever a usucapião extrajudicial, conforme o artigo 1071, que introduziu o artigo 216-A à Lei Federal nº 6.015/1973, além da Resolução nº 65/2017 do CNJ. A legislação trouxe a consignação em pagamento extrajudicial (artigo 539, §§ 1º a 4º, CPC/2015) e a homologação do penhor legal de forma extrajudicial (artigo 703, §2º, CPC/2015), bem como a possibilidade de divisão e demarcação de terras particulares fora do Judiciário (artigo 571, CPC/2015). Também se destaca a dispensa de homologação pelo Superior Tribunal de Justiça de sentenças estrangeiras de separação e divórcio (artigo 961, §5º, CPC/2015 e Provimento 53/2016 do CNJ).

Adicionalmente, o Código enfatizou a importância das atividades extrajudiciais para o processo judicial, reconhecendo a Ata Notarial como meio de prova típico (artigo 384, CPC/2015), a possibilidade de averbação premonitória (artigo 828, CPC/2015), o protesto de decisões judiciais já transitadas em julgado (artigo 517, CPC/2015) e a penhora de imóveis devidamente matriculados mediante termo nos autos (artigo 845, §1º, CPC/2015).

Dessa forma, é possível identificar que o fenômeno da desjudicialização no Brasil tem se desenvolvido sob uma perspectiva dual, a saber:

  • Jurisdição voluntária:

Refere-se ao que frequentemente designamos como o ambiente propício para a desjudicialização, onde este processo avança com menor oposição, pois está ligado ao conceito de consenso e à falta de contendas entre os envolvidos. Nos últimos quinze anos, podemos observar que diversas práticas de jurisdição voluntária foram desjudicializadas em nosso país.

  • Jurisdição contenciosa:

Constatamos que, nos últimos anos, a desjudicialização dos procedimentos de jurisdição contenciosa tem progredido em duas frentes principais, destacando-se:

  • Autocomposição: Consiste na adoção de mecanismos consensuais para a resolução de litígios, reconhecidos pelo legislador no artigo 3º, §§ 2º e 3º do CPC/2015, destaca-se principalmente por incluir a mediação, a conciliação, a negociação direta e a negociação assistida. Juntamente com a Lei Federal nº 13.140/2015 e o Provimento 67/2018, o CPC/2015 estabelece o que se conhece como o marco legal da mediação no Brasil. Na autocomposição, o litígio é resolvido por meio de um acordo formulado pelas partes envolvidas, com ou sem a ajuda de um terceiro imparcial, sendo recomendado que essa abordagem seja preferida em relação à solução heterocompositiva nos dias atuais.
    • Heterocomposição: Trata-se da utilização de mecanismos que substituem a vontade das partes envolvidas, através da imposição de uma solução por um terceiro imparcial que, no contexto da desjudicialização, não faz parte do Poder Judiciário. O exemplo mais notável de heterocomposição extrajudicial no Brasil é a arbitragem, regulamentada pela Lei Federal nº 9.307/1996. A arbitragem, de fato, tem experimentado uma significativa expansão, especialmente após a Lei Federal nº 13.129/2015, que entre outras disposições, permitiu que a Administração Pública resolvesse suas controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis por meio da arbitragem, desde que respeitados os princípios do direito e da publicidade.

Um dos fatores que contribuiu para a significativa evolução da desjudicialização no Brasil foi a reestruturação dos cartórios extrajudiciais nas últimas décadas. A promulgação da Lei Federal nº 6.015/1973 representou um primeiro avanço ao regulamentar as atividades registrárias dessas serventias. Contudo, o principal marco transformador foi a Constituição Federal de 1988, que, em seu artigo 236, estabeleceu que os serviços notariais e registrais são exercidos de forma privada, por meio de delegação do Poder Público, após a aprovação em concurso público de provas e títulos, com a fiscalização atribuída ao Poder Judiciário. Essa disposição assegurou que os cartórios extrajudiciais fossem administrados por profissionais devidamente qualificados, garantindo sua competência técnica.

A prestação de serviços públicos sob a forma privada, aliada à garantia de autonomia, conforme delineado no artigo 11 da Lei Federal nº 6.015/73 e no artigo 28 da Lei Federal nº 8.935/94, permite que o delegatário administre a serventia com maior isenção e eficiência. Essa estrutura confere ao administrador a liberdade de contratar produtos e serviços no mercado sem se submeter às restrições legais que regem as contratações públicas. É relevante destacar que os serviços extrajudiciais são financiados por meio de emolumentos, ou seja, taxas pagas diretamente pelos usuários, e que os investimentos em infraestrutura da serventia são realizados pelo delegatário com base na arrecadação.

Esse contexto favorece um maior dinamismo dos serviços prestados, especialmente na adoção de novas tecnologias. Ao libertar-se de certas amarras burocráticas que caracterizam o setor público, os cartórios extrajudiciais podem inovar e se aperfeiçoar continuamente, atendendo de forma mais eficaz às demandas da sociedade, e contribuindo, assim, para a expansão da desjudicialização no país.

3. O novo conceito de jurisdição na contemporaneidade.

Como discutido no início deste trabalho, o Brasil passou de uma ênfase na garantia de acesso ao Judiciário para uma busca por assegurar um acesso mais amplo à justiça. Essa mudança indica uma transformação significativa no conceito de jurisdição, que deixa de ser visto como um monopólio do Poder Judiciário. O elemento subjetivo já não é considerado essencial para a definição da jurisdição.

Isso se deve ao fato de que a essência da atividade não se altera apenas porque ela ocorre dentro ou fora do âmbito do Poder Judiciário. O importante, portanto, é a atividade realizada, e não quem a está executando. José Frederico Marques já reconhecia que, ao longo da história, os notários desempenharam funções que se aproximavam das de juízes (judex chartularius, judex ordinarius) em atos de jurisdição voluntária. No entanto, o jurista ressaltava, refletindo a visão de jurisdição predominante no século XX focada no aspecto subjetivo, que a atuação extrajudicial “não poderia ser considerada uma função de jurisdição voluntária, pois esta é exclusiva dos órgãos judiciários.” 8 MARQUES, José Frederico. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. I. Campinas: Millennium 2000. pp. 315-318.

Entretanto no século XXI, afirmar que uma atividade caracterizada como jurisdicional não pode ser considerada como tal apenas por não ser exercida pelo Poder Judiciário revela-se inadequado e desvinculado dos parâmetros contemporâneos. Nesse contexto, a arbitragem emerge como um elemento crucial que desafia a noção tradicional de jurisdição, instando os processualistas a reconsiderarem suas premissas.

A evolução nesse campo é contínua, pois, assim como a jurisdição se manifesta por meio da arbitragem, ela também se torna visível no fenômeno da desjudicialização, um aspecto que o legislador tem buscado delinear nos últimos anos. A doutrina contemporânea reconhece que, nos métodos de resolução consensual de conflitos, como mediação e conciliação, existe, sim, uma efetiva prestação de jurisdição.

Esse reconhecimento reflete uma ampliação da compreensão sobre o conceito de jurisdição, que não se limita à atuação estatal, mas que abrange também formas alternativas de resolução de disputas, proporcionando um acesso mais eficiente e adequado à justiça. Assim, a desjudicialização e a arbitragem coexistem e se interconectam, consolidando um novo paradigma no qual a jurisdição se expande para além das tradicionais esferas do Judiciário.

Ada Pellegrini Grinover, em sua obra, afirma claramente que “a jurisdição abrange a justiça estatal, a justiça arbitral e a justiça consensual”. Para fundamentar essa afirmação, a autora esclarece que “o principal indicador” do novo conceito de jurisdição “é a garantia do acesso à justiça, seja estatal ou não, com o objetivo de promover a pacificação de maneira justa”.. (GRINOVER, Ada Pellegrini. Idem, p. 20.) GOLDBERG, Stephen B. SANDER, Frank E. A. ROGERGS, Nancy H. COLE, Sarah Rudolph. Dispute Resolution. 4. Ed. Nova York: Aspen Publishers. 2003. p. 07.

As palavras de José Joaquim Calmon de Passos, proferidas há vinte e quatro anos, são muito pertinentes: “Esquecemo-nos de que o Direito é um medicamento com que procuramos restabelecer a saúde da convivência social (…) É a impotência dos homens, através de suas instituições não-estatais, para prevenir e solucionar os conflitos que surgem de sua convivência, que exige a utilização dos mecanismos jurídicos, sendo a tutela jurisdicional a última e mais significativa expressão desse processo.” Essa reflexão ressalta a importância do Direito como um instrumento essencial para a manutenção da ordem social e a resolução de conflitos, destacando a necessidade de um olhar mais amplo sobre a função jurisdicional e os diferentes meios de alcançar a justiça. (PASSOS, José Joaquim Calmon de. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense. 2000.)

De fato, a atividade, tradicionalmente atribuída ao Poder Judiciário, é cada vez mais desenvolvida pelos cartórios extrajudiciais em razão da desjudicialização, mantendo os mesmos elementos que caracterizam o novo conceito de jurisdição mencionado anteriormente. As novas funções transferidas para essas entidades visam exatamente garantir um acesso mais amplo à justiça nos dias atuais. Esse movimento está alinhado com a ideia de Justiça Multiportas, na qual novos agentes são convocados para oferecer aos cidadãos alternativas legítimas e adequadas para a resolução de conflitos (ou para o exercício da jurisdição voluntária), coexistindo lado a lado com a adjudicação estatal. Assim, diversos caminhos se abrem para alcançar, no Estado Democrático de Direito contemporâneo, a pacificação de maneira justa.

Com a identificação de novos núcleos legítimos de prestação da jurisdição, subverte-se a lógica que predominou no século XX, que posicionava o Poder Judiciário como a prima ratio, contribuindo para sua sobrecarga inegável. O conceito de Justiça Multiportas reorganiza as prioridades do sistema judicial, ressaltando que, em uma democracia amadurecida, o Poder Judiciário deve ser encarado como a última razão a ser buscada e não a primeira ou a única. Não se deve considerar essa abordagem uma violação à inafastabilidade do controle jurisdicional, uma vez que as portas do Judiciário permanecem abertas. Caso o acesso aos mecanismos extrajudiciais se torne inviável, nada impede que o jurisdicionado busque o Poder Judiciário. Trata-se, portanto, de uma racionalização do sistema de justiça e da entrega da prestação jurisdicional estatal.

Essa nova configuração, que surge com a ampliação dos polos de prestação jurisdicional ao lado do Poder Judiciário, todos habilitados para resolver litígios no Estado Democrático de Direito atual, realmente rompe com uma lógica até então dominante e desafia uma cultura enraizada. Contudo, não é obstada pela Constituição ou pela legislação infraconstitucional vigente. Essa evolução representa um importante passo em direção a um sistema mais inclusivo e eficiente para a resolução de conflitos., vem sendo denominada “pluralismo decisório”, “decisão compartilhada”13 ou “policentrismo processual”14.

  1. Rodolfo de Camargo Mancuso destaca que “o próprio legislador vem se mostrando sensível à tendência de Desjudicialização e até de privatização da resolução dos conflitos, como alternativa ao tradicional monopólio estatal da distribuição de justiça. Portanto, essa ‘reserva de Justiça estatal’, ao contrário do que se possa supor à primeira vista, não se extrai da letra nem do espírito do inciso XXXV do art. 5º da CF; ao contrário, ao afirmar que ‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’, esse texto não determina que todas as demandas devam ser encaminhadas à Justiça, mas sim que tal acesso deve operar como uma cláusula de reserva, de cunho residual, preordenada às controvérsias porventura insolúveis por auto ou heterocomposição, ou aquelas que, em razão da pessoa ou da matéria, devem merecer passagem judiciária” MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos e a função judicial no contemporâneo estado de Direito. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2013. p. 168.
  2. OLIVEIRA, Daniela Olímpio de. “Uma releitura do princípio do acesso à justiça e a ideia da desjudicialização”. Revista Eletrônica de Direito Processual. Volume 11. Pp. 67-98.
  3. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit. p. 171.
  4. FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias. “Desjudicialização da Execução Civil”. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/330308/desjudicializacao-da-execucao-civil Consulta realizada em 08/07/2020

Rodolfo de Camargo Mancuso enfatiza corretamente que o Estado brasileiro deve adotar “a contemporânea concepção da Jurisdição”, que é caracterizada pela “composição justa dos conflitos”, ao invés de depender exclusivamente da solução adjudicada e imposta pelo Estado-juiz. Nesse contexto, o acesso à justiça começa a se desenvolver em paralelo com a desjudicialização dos conflitos, marcada pela possibilidade de que litígios sejam resolvidos por agentes que não fazem parte do Poder Judiciário.

Essa abordagem abre novas perspectivas para a resolução de disputas, permitindo que a justiça seja alcançada de maneira mais flexível e acessível, ao mesmo tempo que se reconhece a importância da participação de diversos atores sociais na mediação e na solução de conflitos. Assim, a desjudicialização não apenas amplia as opções disponíveis para os jurisdicionados, mas também contribui para uma compreensão mais abrangente e inclusiva da justiça no Brasil..

Joel Dias Figueira Junior reconhece que:

“(…) a extrajudicialização como técnica resolutiva, inclusiva, participativa e eficiente se afigura como um alvissareiro e iluminado caminho sem volta que há muito o Brasil vem trilhando e reafirmando cada vez mais a sua exitosa prática”16.

Novos desafios se apresentam, mas estamos convencidos de que mais de trinta anos de vigência da Constituição cidadã não podem ter sido em vão. Nesse sentido, acreditamos que as novas funções desempenhadas pelos cartórios extrajudiciais visam potencializar o acesso à justiça na contemporaneidade.

Entretanto, como já ressaltado ao longo da pesquisa sobre o tema, é fundamental reafirmar o compromisso com a observância das garantias essenciais do processo nos procedimentos desjudicializados. Não se pode aceitar uma diminuição das garantias decorrente da desjudicialização. Assim como Cândido Rangel Dinamarco enfatizava a importância de preservar o devido processo legal arbitral, é igualmente necessário assegurar, com o mesmo rigor, o que denominamos de devido processo legal extrajudicial.

Ao moldar esse conceito, devemos garantir que os direitos fundamentais dos envolvidos sejam respeitados, a fim de que a desjudicialização não resulte em um retrocesso nas conquistas de justiça e equidade. Portanto, é imprescindível que a implementação de novas formas de resolução de conflitos seja acompanhada de um fortalecimento das garantias processuais, assegurando que o acesso à justiça se traduza efetivamente em justiça acessível e de qualidade para todos.

Assim como Cândido Rangel Dinamarco já afirmava, com razão, ser necessário zelar pelo devido processo legal arbitral, afigura-se imperioso, com igual empenho, moldar o que ora chamamos de devido processo legal extrajudicial.

Cândido Rangel Dinamarco leciona, com propriedade: “O primeiro pilar do presente estudo é, portanto, representado pela afirmação da plena incidência, sobre o processo arbitral, dos princípios e garantias constitucionais inerentes à segurança interna do sistema processual. Quando se pensa no acesso à justiça, que é a magna condensação de todas as garantias constitucionais do processo, hoje é imperioso incluir nesse pensamento as aberturas para a tutela jurisdicional pela via da arbitragem, como alternativas às vias estatais. Quando se pensa no contraditório e na ampla defesa, deve-se pensar na participação dos sujeitos processuais no processo estatal e no arbitral também. Quando enfim se pensa no due process of law como princípio tutelar da observância de todos os demais princípios, não se pode excluir o devido processo legal arbitral, como fonte de tutelas jurisdicionais justas e instrumento institucionalizado de pacificação social” DINAMARCO, Cândido Rangel. A nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros. 2003. p. 30.

Por este fato, no próximo parágrafo, será enfatizado alguns elementos fundamentais que devem estar presentes para que possamos estabelecer de maneira adequada a noção de devido processo legal extrajudicial. Esses elementos são essenciais para garantir a proteção das partes envolvidas nos procedimentos desjudicializados e assegurar que seus direitos e garantias fundamentais sejam respeitados. Vamos explorar essas características de forma a contribuir para uma prática mais justa e eficiente na resolução de conflitos fora do âmbito judicial.

4. Devido processo legal extrajudicial.

Enquadrar o exercício de uma determinada função como jurisdicional implica, de forma correlata, que no Estado Democrático de Direito, essa atividade observe rigorosamente o devido processo legal. Assim, se as funções assumidas pelos cartórios extrajudiciais em decorrência da desjudicialização se caracterizam como jurisdição, conforme discutido no item anterior deste trabalho, torna-se indispensável estabelecer o devido processo legal extrajudicial, que se refere concretamente ao devido processo legal a ser respeitado nos cartórios extrajudiciais em decorrência do fenômeno da desjudicialização.

Dessa forma, examinaremos a concepção do devido processo legal extrajudicial sob cinco aspectos principais: (a) imparcialidade e independência dos agentes competentes; (b) controle externo; (c) publicidade; (d) previsibilidade do procedimento; e (e) contraditório.

Em primeiro lugar, é necessário compreender quem são os novos núcleos decisórios, ou seja, quais são os novos agentes, indicados pelo legislador, para assumir as funções decorrentes do fenômeno da desjudicialização. Em outras palavras, é fundamental questionar: para quem se está desjudicializando? Esse aspecto se revela relevante não apenas para apurar a capacitação técnica desses agentes para desempenhar funções que antes eram exercidas pelo Poder Judiciário, mas também, e especialmente, para verificar sua legitimação em um Estado Democrático de Direito.

No Brasil, percebe-se que tanto o legislador, na elaboração das leis, quanto o CNJ, na promulgação de resoluções e provimentos, têm atribuído aos delegatários de cartórios extrajudiciais a função de conduzir os procedimentos desjudicializados. Diversos fatores se combinam para que haja uma convergência de várias disposições normativas em torno dos delegatários de cartórios extrajudiciais. O primeiro deles consiste na reconfiguração da carreira a partir do artigo 236 da Constituição Federal de 1988, que passou a exigir concurso público de provas e títulos, eliminando definitivamente a hereditariedade e condicionando a concessão da delegação a critérios técnicos objetivos baseados no mérito, como já exposto anteriormente. A isso se agrega a criação de um regime jurídico que rege tal carreira, composto por diversas leis dispersas, entre as quais se destacam a Lei Federal nº 6.015/73 e a Lei Federal nº 8.935/94.

Ademais, as funções exercidas nas serventias extrajudiciais são fiscalizadas anualmente, de forma permanente pelo Poder Judiciário, tanto pela Corregedoria do Tribunal de Justiça local quanto pelo Conselho Nacional de Justiça. A supervisão do Poder Judiciário, que goza da confiança do jurisdicionado e que tradicionalmente exerce um papel central no sistema de justiça brasileiro, representa um fator importante para que haja o avanço gradualmente na implementação da Justiça Multiportas, de modo a harmonizar tradição e progresso.

Portanto, a desjudicialização se desenvolve, em nosso país, em um ponto de interseção entre os ramos do Direito Notarial e Registral e do Direito Processual, ambos interpretados e aplicados à luz da Constituição Federal de 1988. Assim, é necessário conhecer e aplicar os institutos do Direito Notarial e Registral e as premissas que regem o regime jurídico dos delegatários das serventias extrajudiciais, que contribuirão significativamente para a verificação de que é não apenas desejável, mas plenamente viável, estabelecer os elementos essenciais de um devido processo legal extrajudicial.

Em grande medida, perceberemos que não será preciso iniciar a construção do zero, pois já contamos com uma fundação sólida, apoiada na Constituição Federal de 1988 e no regime jurídico que orienta a atuação dos delegatários de cartórios extrajudiciais. Portanto, falar sobre devido processo legal extrajudicial em nosso ordenamento jurídico requer a transposição de técnicas entre os dois ramos do Direito e um diálogo necessário e enriquecedor entre as fontes, como veremos brevemente nas próximas seções.

4.1. Imparcialidade e independência dos Delegatários.

A etapa inicial para estabelecer a noção de devido processo legal extrajudicial envolve a verificação se o agente responsável pela condução e supervisão do procedimento possui as qualificações mínimas que garantam sua legitimidade e confiabilidade, conforme os critérios constitucionais. Para isso, destacam-se a imprescindível imparcialidade e independência desses agentes. Em um Estado Democrático de Direito, a transferência ou compartilhamento da função jurisdicional entre diferentes instâncias decisórias pressupõe que todas sejam imparciais e autônomas. Assim sendo, caso o legislador opte por desjudicializar um atendido, selecionando um agente que não possua tais atributos, entendemos que isso configuraria uma clara inconstitucionalidade. Esse, aliás, é um ponto delicado nos Projetos de Lei que propõem a desjudicialização da execução fiscal (Projetos de Lei nos 2412/2007, 5080/2009 e PL 4257/2019), os quais passariam a ser geridos pelos órgãos de assistência jurídica do Poder Público em especial, a Procuradoria da Fazenda Nacional e, portanto, em última análise, pelo próprio credor18-19-20.


18 HILL, Flávia Pereira. “Considerações sobre a desjudicialização da execução fiscal”. Lições do isolamento: reflexões sobre Direito Processual em tempos de pandemia. Rio de Janeiro: Edição do autor. 2020. pp. 111-122.

19“Enquanto a Administração tributária brasileira continuar a inspirar-se mais no princípio da mais rigorosa obediência hierárquica do que no da legalidade, a única esperança de preservação das liberdades e dos direitos fundamentais dos cidadãos continuará a ser o Poder Judiciário, devendo ser repudiadas todas as tentativas de imposição aos contribuintes de atos coativos pela Administração Pública”. GRECO, Leonardo. “As garantias fundamentais do processo na execução fiscal”. In LOPES, João Batista. CUNHA, Leonardo José Carneiro da (coords). Execução Civil (aspectos polêmicos). São Paulo: Dialética. 2005. Em outra sede, pontua o autor: “Assim, as resistências que certamente serão opostas a esse projeto de execução fiscal-administrativa tendem a convergir para a falta de imparcialidade dos funcionários por ela responsáveis. Quando se afirma, portanto, que a jurisdição é normalmente exercida por um órgão estatal, não se pretende excluir do seu conceito os casos em que essa função é exercida por quem não é juiz, por leigos temporariamente investidos no exercício da jurisdição, desde que garantidas a imparcialidade em sentido estrito e a independência”. GRECO, Leonardo. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. 1. Op. cit. p. 73.

Diego Cantoario pontua: “Uma questão contundente é saber se o funcionário do fisco possui independência suficiente para realizar tais atos constrição, como previstos no projeto. Como já foi visto, no contencioso, administrativo europeu, a autoridade administrativa possui maior independência, até mesmo em razão da contribuição da Corte Europeia de Direitos Humanos para o avanço das relações Estado-cidadão. Situação diferente é a encontrada no Brasil, e nos países de cultura ibérica em geral, onde prevalece uma relação hierárquica entre os funcionários da Administração Pública”. CANTOARIO, Diego Martinez Fervenza. “Considerações sobre o Projeto de Lei 5080/2009 – A nova lei de execução fiscal”. Revista Tributária e de finanças públicas. Ano 18. Número 91. Março-abril 2010. pp. 11-42.


GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. Vol. 1. Rio de Janeiro: GEN Forense. 2015. p. 70.

Na perspectiva defendida neste estudo, Leonardo Greco afirma, com precisão, que “a jurisdição é exercida por entidades independentes e imparciais, o que não implica, necessariamente, que deva ser exercida exclusivamente por juízes”. O autor continua ressaltando que “a imparcialidade em sentido amplo, que inclui a independência e a imparcialidade em sentido estrito, é uma característica principal e imprescindível da jurisdição, seja esta realizada por um órgão público ou privado”.

Greco finaliza sua definição de jurisdição na atualidade, estabelecendo como suas “duas características fundamentais”: (a) imparcialidade em sentido lato dos responsáveis pelo seu exercício; e (b) finalidade de tutelar interesses particulares22.


22 GRECO, Leonardo. Instituições… Op. cit. p. 75

23 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos. Teoria e Prática. 3. Ed. São Paulo: GEN Método. 2012. P. 533.

24 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos. Op. cit pp. 03 e 533.

É importante ressaltar que os registradores e tabeliães, a quem o legislador confere um papel significativo na desjudicialização, são especialistas do Direito incumbidos do dever de agir com imparcialidade. Por isso, o artigo 15 da Lei Federal nº 6.015/73 e o artigo 27 da Lei Federal nº 8.935/1994 proíbem, de forma coerente, que notários e registradores realizem, pessoalmente, qualquer ato que envolva seus próprios interesses ou os de seus cônjuges ou parentes em linha reta ou colateral, até o terceiro grau.

Os delegatários devem atuar de maneira imparcial, oferecendo um tratamento equitativo e isonômico a todos os envolvidos e não tendo nenhum interesse nos atos extrajudiciais que são solicitados pelos usuários. Eles não defendem nem representam os interesses de nenhuma das partes interessadas na realização do ato extrajudicial, sendo sua responsabilidade primária garantir que, em conformidade com os parâmetros legais, o ato seja praticado de maneira regular, válida e eficaz.

Analogamente, os delegatários das serventias extrajudiciais desfrutam de autonomia em suas atividades profissionais em relação a qualquer indivíduo, órgão ou instituição, não estando sujeitos a condicionantes de natureza política, econômica ou administrativa, conforme se estabelece no artigo 28 da Lei Federal nº 8.935/94. Dessa forma, esses profissionais devem basear toda a sua atuação na imparcialidade, livres de influências externas, o que não constitui uma singularidade ou novidade em sua prática em decorrência da desjudicialização.

Por desempenharem funções técnicas (conforme o artigo 1º da Lei Federal nº 8.935/94) e serem profissionais do direito (artigo 3º da mesma lei), os delegatários estão subordinados exclusivamente ao sistema jurídico.

A garantia de independência é fundamental para criar condições que permitam aos delegatários, na qualidade de profissionais técnicos, pautar o exercício de suas funções somente segundo as legislações e normas aplicáveis. É por isso que cabe a eles realizar a qualificação registral dos mandados judiciais e documentos emitidos pelo Poder Público, a fim de verificar o cumprimento dos requisitos formais estabelecidos por lei como condição necessária para a execução do ato extrajudicial solicitado.


LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos. Op. Cit. P. 03.; CENEVIVA, Walter. Op. Cit. P. 30.

A respeito da nossa visão quanto à atuação dos advogados como agentes de execução, a Dra. Flavia Pereira Hill dispõe: HILL, Flávia Pereira. “O procedimento extrajudicial pré-executivo (Pepex): reflexões sobre o modelo português, em busca da efetividade da execução no Brasil”. In MEDEIROS NETO, Elias Marques de. RIBEIRO, Flávia Pereira. Reflexões sobre a Desjudicialização da Execução Civil. Curitiba: Juruá. 2020. pp. 305-322.

A independência inclui o gerenciamento administrativo e financeiro da serventia extrajudicial, sendo responsabilidade do delegatário recrutar e contratar seus colaboradores (escreventes e auxiliares de cartório) conforme estipulado no artigo 20 da Lei Federal nº 8.935/94. Além disso, cabe a ele determinar o local de instalação da serventia e equipá-la com os recursos necessários para realizar suas atividades de forma eficiente.

As garantias de imparcialidade e independência são essenciais para assegurar que, com a desjudicialização, se mantenha o mesmo nível de proteção oferecido pela jurisdição estatal. Confiar a condução de procedimentos extrajudiciais a agentes que não possuam independência e imparcialidade compromete toda a essência do devido processo legal extrajudicial. Essa consideração nos leva a encarar com certa preocupação a ideia de desjudicialização baseada em processos liderados por particulares que carecem dessas garantias e não estão sujeitos a obrigações semelhantes, principalmente em um momento histórico em que ainda está sendo estabelecido a desjudicialização em nosso país.

Controle Externo

O segundo aspecto a ser considerado na concepção do devido processo legal extrajudicial refere-se à necessidade de um controle externo sobre a atuação dos novos núcleos decisórios. É fundamental que as funções transferidas (ou compartilhadas) do Poder Judiciário para outros agentes sejam monitoradas por um órgão externo, a fim de proporcionar transparência e assegurar que sua execução esteja em conformidade com os princípios do regime democrático e com o devido processo legal extrajudicial.

Nesse sentido, é preocupante a proposta de desjudicialização que envolva a delegação de funções a categorias profissionais, que seriam supervisionadas exclusivamente por seus próprios órgãos de classe. É importante destacar que os cartórios extrajudiciais são supervisionados pelo Poder Judiciário, conforme determinado no artigo 236 da Constituição Federal de 1988. Tanto o Tribunal de Justiça do respectivo Estado ou Distrito Federal quanto o Conselho Nacional de Justiça (conforme estipulado no artigo 48 do Regimento Interno do CNJ) exercem vigilância permanente sobre as atividades das serventias extrajudiciais.

O legislador brasileiro tem optado por atribuir as funções decorrentes da desjudicialização aos cartórios extrajudiciais, de modo que essas responsabilidades não sejam exercidas exclusivamente pelo Poder Judiciário, mas ainda permanecem sob sua supervisão. Esse fato é extremamente relevante, pois a hipersaturação do sistema judicial demonstra que a sociedade brasileira confia no Poder Judiciário. Assim, é apropriado, considerando nossa realidade política e cultural, que o controle das funções decorrentes da desjudicialização seja efetuado pelo Poder Judiciário.

Portanto, há desjudicialização na prestação desses serviços, embora isso não implique a privatização propriamente dita, já que continuam a ser considerados serviços públicos, mesmo que oferecidos de maneira privada pelos cartórios extrajudiciais, e sem abrir mão da fiscalização pelo Estado-juiz.

Esse aspecto é crucial para refletirmos sobre as observações de Leonardo Greco, que enfatiza que a prestação da jurisdição pelo Estado é uma “característica histórica” a ser levada em conta. Em 2015, o autor questionava:

“Será que a História vai confirmar a evolução no sentido da desestatização da jurisdição? Eu pessoalmente acredito que sim, porque, a rigor, mesmo antes da formação do Estado, todos os povos juridicamente organizados instituíram os seus órgãos jurisdicionais como exigência própria da vida em sociedade. (…) o Estado deve facilitar que a sociedade, espontaneamente ou por meio de uma política pública planejada, venha a estabelecer seus próprios mecanismos de exercício da jurisdição, criando as condições necessárias para a coordenação de sua atuação com a dos órgãos estatais. Assim, ainda não se pode desvincular completamente o conceito de jurisdição de uma função tipicamente estatal ou predominantemente estatal, pois, entre nós, ela ainda se mantém como tal, ainda que essa não me pareça a sua característica essencial. (GRECO, Leonardo. Instituições… Op. cit. p. 70. )

De fato, o regime híbrido que vem sendo instituído pelo legislador e que marca a paulatina evolução da desjudicialização no Brasil, por meio da qual as funções decorrentes da desjudicialização continuam sendo consideradas serviço público, agora prestado eminentemente por serventias extrajudiciais, mantendo-se a fiscalização do Poder Público, acaba por compatibilizar, de um lado, um certo grau de estatalidade exigido, até o momento, em virtude dos fatores históricos e culturais antes apontados, e, de outro, um maior potencial de eficiência e dinâmica em sua prestação, visto que prestado em caráter privado.

Ainda no tocante ao salutar controle externo, merece registro que, assim como as funções dos cartórios extrajudiciais vêm mudando em razão da desjudicialização, colocando-os como um dos protagonistas do sistema de justiça no século XXI em nosso país, de igual forma é de todo recomendável que o perfil da fiscalização exercida pelas Corregedorias dos tribunais locais e da Corregedoria Nacional de Justiça igualmente se adapte a essa nova realidade.

Além da conduta sancionatória e repressiva, voltada a atuar a posteriori, afigura-se de todo consentânea com a necessária cooperação entre as esferas judicial e extrajudicial no contexto da desjudicialização a fiscalização preventiva e construtiva, voltada a, mediante troca perene de impressões, experiências e dificuldades de parte a parte, permitir sejam prestados esclarecimentos e sejam cunhadas, conjuntamente, as formas mais adequadas de desenvolver as atividades extrajudiciais, especialmente no caso da assunção de novas funções extrajudiciais em decorrência da desjudicialização, que implica reformulações significativas na praxe cartorária. Cuida-se, pois, de uma fiscalização prospectiva e com caráter instrutivo e construtivo. Essa perspectiva da fiscalização passa pela noção, desenvolvida ao longo do presente estudo, de que a administração da justiça, na atualidade, é compartilhada por vários agentes, incluindo os delegatários dos cartórios extrajudiciais, e que a colaboração entre as Corregedorias e tais serventias, de forma construtiva, ensejará ganhos em efetividade e eficiência e, por conseguinte, resultará em maior grau de satisfação por parte do jurisdicionado, com redução do dispêndio de tempo e recursos29.

4.3. Publicidade

O terceiro aspecto que consideramos fundamental é a garantia de publicidade como norma. É inegável que a arbitragem e a mediação, devido às suas especificidades, envolvem sigilo e confidencialidade. No entanto, essa mesma afirmação não se aplica ao vasto conjunto de procedimentos que estão sendo desjudicializados para os cartórios extrajudiciais.

A manutenção da publicidade contribui para a transparência e o controle social sobre a integridade das ações dos novos núcleos decisórios, promovendo o interesse público que fundamenta a prestação jurisdicional.

De fato, a atuação dos cartórios extrajudiciais já se baseia na publicidade como regra (conforme o artigo 16 e seguintes da Lei Federal nº 6.015/1973 e o artigo 1º da Lei Federal nº 8.935/1994). É responsabilidade desses cartórios fornecer informações sobre seus atos e emitir certidões, independentemente da necessidade de justificativas apresentadas pelo requerente, inclusive para fins estatísticos, de interesse nacional ou fiscalização pública. Isso está em consonância com a premissa aqui discutida.


30 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Op. cit. pp. 38-41.

31 CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. 15. Ed. São Paulo: Saraiva. 2002. pp. 35-36.

4.4. Previsibilidade do procedimento

O quarto elemento que integra a compreensão do devido processo legal extrajudicial é a importância da previsibilidade do procedimento no contexto do Estado Democrático de Direito, um aspecto que não pode ser negligenciado na desjudicialização. É essencial que o jurisdicionado tenha conhecimento prévio do procedimento estabelecido em lei, tanto como uma forma de orientação para a atuação do agente responsável pelo procedimento e controle de possíveis excessos, quanto como um guia para que o jurisdicionado decida qual mecanismo de resolução de conflitos prefere utilizar.

Tal consideração reflete a importância da formalidade na medida necessária para atingir os objetivos do processo, especialmente sua efetividade, evitando assim a validação de um verdadeiro “processo kafkiano “.

José Roberto dos Santos Bedaque destaca, com razão, que:

“(…) a análise do processo pelo ângulo da técnica preordenada à realização de direitos é complementada pela visão política desse fenômeno, segundo a qual é ele garantia da liberdade, dos bens e da própria vida do cidadão”32.

32Esclarece José Roberto dos Santos Bedaque que “Para alcançar esse resultado [atuação coercitiva da regra substancial e a pacificação dos litígios] a jurisdição vale-se de um método, ou seja, de um caminho, de um modo de proceder, regulado por normas de conduta predeterminadas. (…) A análise do processo pelo ângulo da técnica preordenada à realização de direitos é complementada pela visão política desse fenômeno, segundo a qual é ele garantia da liberdade, dos bens e da própria vida do cidadão. Na medida em que não há como conceber a sociedade sem conflito entre seus membros, impossível admitir o Estado Democrático de Direito sem o devido processo legal”. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros. 2006. pp. 41-42.


33 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva. 2003. pp. 108-109.

34 1GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. cit. p. 16.

35 Idem, p. 17.

Carlos Alberto Alvaro de Oliveira destaca que a organização da atividade jurisdicional representa o “primeiro passo efetivo na trajetória rumo à harmonização entre autoridade e justiça”. Ele também enfatiza que “o processo não pode abrir mão de um mínimo de organização, sendo inconcebível qualquer tentativa de torná-lo completamente informal”.

Diante disso, o conhecimento prévio dos procedimentos a serem seguidos em cada situação de desjudicialização não deve ser considerado um aspecto secundário; ao contrário, é um elemento fundamental e inerente ao conceito de devido processo legal extrajudicial que buscamos estabelecer.

Ada Pellegrini Grinover complementa essa visão ao afirmar que, atualmente, o procedimento assume uma importância significativa, permitindo concluir que “a tutela processual adequada só pode ser alcançada por meio do procedimento adequado”. Essa ênfase no procedimento reflete a necessidade de estruturas claras que garantam a efetividade e a justiça nos processos extrajudiciais.

Não podemos nos furtar de reproduzir a seguinte lição da referida autora:

“Eis mais uma vez destacada a relevância do procedimento, que de mera ordenação de atos passa a ser instrumento do instrumento processo, cioso das garantias do devido processo legal e teleologicamente voltado à obtenção da tutela adequada.

Acrescente-se que Barbosa Moreira constata, com sua peculiar lucidez, que não se deve descurar do tecnicismo mínimo, tendo em vista que “a técnica bem aplicada pode constituir instrumento precioso a serviço da própria efetividade” 36.

36“(…) efetividade e técnica não são valores contrastantes ou incompatíveis, que deem origem a preocupações reciprocamente excludentes, senão ao contrário, valores complementares, ambos os quais reclamam a nossa mais cuidadosa atenção”. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual Civil. 6ª série. Rio de Janeiro: Forense. 1997. P. 28.

37“A garantia do contraditório está à base da regularidade do processo e da justiça das decisões. Trata-se de garantia fundamental de imparcialidade, legitimidade e correção de prestação estatal. Sem que o diálogo entre as partes anteceda ao pronunciamento estatal, a decisão corre o risco de ser unilateral, ilegítima e injusta: poderá ser um ato de autoridade, jamais de verdadeira justiça”. GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. cit. p. 23.


38 GRECO, Leonardo. Op. Cit. P. 514.

39 Idem, p. 513.

Verifica-se que, de fato, a desjudicialização tem sido acompanhada, até aqui, da definição precisa do procedimento a ser observado.

4.5. Contraditório

Não poderíamos concluir a discussão sobre os contornos mínimos do devido processo legal extrajudicial sem mencionar brevemente a importância do contraditório para o exercício da jurisdição na contemporaneidade. A garantia do contraditório participativo é uma das principais marcas de um processo verdadeiramente democrático. Garantir aos indivíduos legalmente interessados no resultado do processo a possibilidade de participação é fundamental em um Estado Democrático de Direito.

Leonardo Greco enfatiza que “hoje, o contraditório ganhou uma projeção humanitária muito grande, sendo, provavelmente, o princípio mais importante do processo”. Com base em suas reflexões, podemos identificar três corolários do contraditório participativo: (a) a comunicação oportuna a todos os sujeitos juridicamente interessados; (b) o direito de apresentar alegações e provas; e (c) a congruência dos prazos, assegurando tempo razoável e adequado para a realização dos atos processuais.

Se o contraditório é garantido, inclusive, no processo administrativo (conforme o artigo 5º, LV, da Constituição Federal e o artigo 2º da Lei Federal nº 9.784/1999), é ainda mais importante preservá-lo no processo extrajudicial, onde se consolida o conceito moderno de jurisdição. Os procedimentos extrajudiciais devem necessariamente incluir a comunicação a todos os interessados, permitindo que se manifestem e apresentem as provas de suas alegações.

No contexto da autocomposição, a participação ativa e contínua de todos os envolvidos é essencial para que se alcance um acordo que realmente reflita a vontade de todos. Na desjudicialização de procedimentos de jurisdição voluntária, a impugnação por um dos interessados pode tornar a questão em disputa, exigindo a intervenção judicial. Nesse caso, o requisito de consensualidade, estipulado em lei como condição indispensável para a desjudicialização em jurisdição voluntária, poderá ser comprometido, como ocorre em processos de inventário, partilha, separação, divórcio e divisão de terras, entre outros.

A manifestação de um interessado também pode suscitar dúvidas no delegatário da serventia extrajudicial sobre a forma de proceder, levando-o a levantar uma “dúvida registral” ao juízo competente. No que se refere à usucapião extrajudicial, é necessário que haja a apresentação de uma planta e um memorial descritivo assinados por um profissional legalmente habilitado e pelos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel em questão e nos imóveis adjacentes. A obtenção das assinaturas dos titulares dos direitos referentes ao imóvel usucapiendo e aos confinantes é, em nossa visão, o requisito essencial para caracterizar a jurisdição voluntária e viabilizar a via extrajudicial.

A redação original do §2º do artigo 216-A da Lei de Registros Públicos, introduzida pela Lei Federal nº 13.105/2015, previa que, se a planta não contivesse a assinatura de algum dos titulares de direitos, esse seria notificado para manifestar seu consentimento dentro de 15 dias, interpretando-se seu silêncio como discordância. Contudo, a Lei Federal nº 13.465/2017 alterou essa redação, estabelecendo que o silêncio dos titulares será considerado como concordância.

Embora essa alteração não pareça violar diretamente o princípio do contraditório, consideramos recomendável que a notificação inclua informações claras de que o transcurso do prazo sem manifestação será interpretado como concordância tácita com a planta e o memorial descritivo apresentados, permitindo que o procedimento de usucapião extrajudicial prossiga.

Transcendendo a jurisdição voluntária, é importante mencionar o Projeto de Lei nº 6204/2019, que trata da desjudicialização da execução civil e estabelece um regime escalonado de impugnação, dividido em duas etapas: a primeira extrajudicial e a segunda judicial. Nesse modelo, a oposição do interessado é inicialmente analisada pelo delegatário da serventia extrajudicial (denominado agente de execução). Se a impugnação for rejeitada e o interessado insistir, a questão será então encaminhada ao juízo competente para decisão irrecorrível.

Além disso, o artigo 20 do referido projeto de lei estipula que o delegatário de serventia extrajudicial pode solicitar ao juízo competente a aplicação de medidas coercitivas para assegurar a correta conclusão da execução. Esse modelo parece ser o mais adequado para os tempos atuais, pois permite a formação de incidentes judiciais dentro de procedimentos extrajudiciais, fortalecendo a cooperação entre as esferas judicial e extrajudicial no sistema de justiça contemporâneo.

Assim, à luz da desjudicialização, alcançamos um novo patamar no direito processual nacional, em que há um processo sincrético, composto por fases ou incidentes que se desenvolvem tanto no cartório extrajudicial quanto no Poder Judiciário. Isso significa que temos um processo que integra fases extrajudiciais e judiciais, coordenando-se e complementando-se, em prol da efetividade da prestação jurisdicional na contemporaneidade.

Portanto, embora a desjudicialização abarque uma gama ampla e diversificada de questões, é vital que, em todos os procedimentos, seja garantida a comunicação dos interessados e fornecido um prazo adequado para que possam se manifestar.

A análise até aqui revela a necessidade de reestruturar a Teoria Geral do Processo, adaptando-a às novas características do sistema de justiça atual. Isso inclui a definição dos contornos do contraditório, da ampla defesa e da segurança jurídica dentro deste contexto, além de abordar outros pontos, como a possível intervenção de terceiros na esfera extrajudicial e a aceitação de provas emprestadas entre as esferas judicial e extrajudicial.

Ademais, é imperativo promover um diálogo efetivo entre os regimes do Direito Processual e do Direito Notarial e Registral. Isso se deve ao fato de que a desjudicialização atua na intersecção de ambos os ramos do Direito. Estamos comprometidos a explorar mais a fundo essas questões em trabalhos futuros, uma vez que abordá-las neste momento extrapolaria os limites inicialmente propostos.

Este enfoque integrado e adaptado à realidade contemporânea busca garantir que todos os envolvidos no processo possam ter suas vozes ouvidas, promovendo justiça e transparência em um ambiente de crescente colaboração entre diferentes esferas do sistema de justiça.

4. Das demandas já realizadas:

As ações de desjudicialização promovida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem como objetivo facilitar o acesso à justiça e desafogar o sistema judiciário, permitindo que certas demandas sejam tratadas por cartórios e serventias extrajudiciais. A seguir, apresento alguns exemplos de desjudicialização:

4.1 Divórcio e Separação Extrajudicial:

A Lei nº 11.441/2007 permitiu que o divórcio consensual e a separação fossem realizados extrajudicialmente, desde que não haja filhos menores ou incapazes e que haja acorso consensual entre as partes envolvidas, o CNJ regulamentou o divórcio extrajudicial por meio da Resolução nº 35/2007 e estabeleceu os requisitos necessários para a realização do divórcio em cartórios.

4.2. Reconhecimento de Paternidade/Maternidade:

atualmente o reconhecimento voluntário de paternidade e maternidade pode ser feito diretamente em cartório, conforme a Lei nº 8.560/1992, que trata do registro civil, procedimento o qual só poderia ser realizado judicialmente.

4.3. Inventário e Partilha Extrajudicial:

A Lei nº 11.441/2007 também permite a realização de inventário e partilha de bens de forma extrajudicial. O artigo 2º da lei estabelece que os herdeiros podem fazer o inventário e a partilha por escritura pública, desde as partes sejam capazes, concordantes entre si e não haja testamento.

4.4 Adoção Consensual:

A desjudicialização do processo de adoção consensual, prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990) e regulamentada pela Resolução CNJ nº 227/2016, que possibilita a realização do procedimento diretamente em cartório, facilitando a adoção em casos de consentimento.

5. Registro de Interdição:

Com a Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), possibilita-se a interdição com escritura pública, proporcionando um registro mais célere e direto, evitando a judicialização do processo, desde que haja concordância dos interessados.

Cumpre-se ainda ressaltar que com relação ao item 4.3 acima, durante a elaborações desde artigo, mas precisamente em 20/08/2024, o CNJ por meio da resolução n.º autoriza que inventários, partilhas de bens e divórcios consensuais possam ser realizados em cartório, mesmo quando envolvem herdeiros menores de 18 anos ou incapazes, a única ressalva que nos casos envolvendo menores ou incapazes, a escritura pública de inventário seja enviado ao Ministérios público para homologação, e havendo divisão injusta por intervenção de terceiro de alguma forma, a demanda deverá ser resolvida no pelo judiciário. (link: https://www.migalhas.com.br/quentes/413642/cnj-autoriza-inventario-extrajudicial- com-herdeiro-menor-incapaz)

Como já mencionado, a presente resolução vem para corroborar com o tema deste artigo, pois a autorização para resolver esses casos por via extrajudicial contribui para reduzir a sobrecarga do Poder Judiciário, que atualmente lida com mais de 80 milhões de processos em tramitação. (link:

https://www.migalhas.com.br/quentes/413642/cnj-autoriza-inventario-extrajudicial-com-herdeiro- menor-incapaz)

Tais fatos demonstram a crescente tendência de desjudicialização na gestão de certos procedimentos, promovendo maior agilidade e eficiência na resolução de questões que, anteriormente, eram exclusivamente tratadas pelo Poder Judiciário. Além de desonerar o sistema judiciário, essa dinâmica visa melhorar o acesso da população a serviços essenciais.

6. Considerações finais

A promulgação de leis, assim como sua interpretação e aplicação, é inevitavelmente influenciada pelo contexto histórico em que se situam. Portanto, não é surpreendente que, em 1988, o constituinte tenha definido o acesso à justiça como acesso ao Poder Judiciário, dada a severidade dos obstáculos que se apresentavam ao recorrer aos tribunais na época.

Embora essa tenha sido a realidade no período da Constituição Cidadã, não podemos afirmar o mesmo hoje, após mais de 30 anos de sua vigência, em que enfrentamos os desafios de um Poder Judiciário sobrecarregado, com mais de 80 milhões de ações e uma taxa de congestionamento alarmante de aproximadamente 70,5%, resultado do que chamamos de hiperjudicialização.

Apesar desse cenário preocupante, acreditamos que as últimas décadas, além de terem gerado problemas, também trouxeram possíveis soluções. De um lado, houve um aumento na disseminação de informações na sociedade e uma reconfiguração de várias carreiras jurídicas, especialmente no fortalecimento da advocacia e na reestruturação dos cartórios extrajudiciais. Isso indica que a sociedade está mais apta a participar de maneira mais madura nos processos.

Nesse sentido, especialmente a partir de 2007, a desjudicialização avança em nosso país, por meio da criação de normas que transferem ou compartilham funções antes exercidas exclusivamente pelo Poder Judiciário para novos núcleos decisórios, como os cartórios extrajudiciais, mantendo-se, no entanto, a supervisão dessas funções nas mãos dos tribunais locais e do CNJ.

A preocupação central deste trabalho é destacar a importância de se pensar a desjudicialização de forma ordenada e técnica, sem esquecer que se trata de um fenômeno ligado ao funcionamento do sistema de justiça e que posiciona-se na intersecção entre o Direito Notarial e Registral e o Direito Processual.

Em um Estado Democrático de Direito, isso significa que a desjudicialização, para se consolidar como um fenômeno que proporciona novos mecanismos adequados e democráticos, deve garantir o mesmo nível de proteção experimentado no processo judicial (adjudicação estatal), sem perder de vista, claro, as particularidades do setor extrajudicial. É essencial, portanto, promover um diálogo entre as diferentes fontes do Direito e a transferência de técnicas entre os dois ramos, sempre sob a égide da Constituição Federal.

A noção de devido processo legal extrajudicial deve orientar os estudos sobre a desjudicialização, de maneira a permitir a interpretação e aplicação de suas normas à luz das garantias fundamentais do processo.

No atual estágio evolutivo da ciência processual e das expectativas do jurisdicionado em relação ao sistema de justiça, não é suficiente desjudicializar por desjudicializar. Devemos nos preocupar, de fato, com a imparcialidade e a independência dos novos núcleos decisórios, com seu controle externo, com a publicidade, com o contraditório e com a previsibilidade dos procedimentos.

Igualmente, para que possamos extrair todo o potencial que a desjudicialização oferece, a colaboração entre as esferas judicial e extrajudicial é essencial, assim como já existe, de forma crescente, a cooperação entre órgãos do Poder Judiciário e entre esses e os árbitros.

Por fim, é crucial que a advocacia, que é a principal ponte entre o jurisdicionado e os intricados caminhos do nosso sistema de justiça, familiarize-se com os novos mecanismos oferecidos pela desjudicialização, explore a esfera extrajudicial e, ao fazer um mapeamento da Justiça Multiportas, passe a propor ao cliente todos os recursos adequados disponíveis.

Portanto, mais do que a previsão legal, o avanço da desjudicialização depende de uma mudança cultural por parte de todos os operadores do Direito, para que se compreenda e se assimile a entrada de novos agentes no centro do sistema de justiça. Isso visa, de um lado, reduzir a dramática sobrecarga do Poder Judiciário e, de outro, garantir, ao zelar pelo devido processo legal extrajudicial, o acesso do jurisdicionado a novos mecanismos que sejam eficazes na resolução do crescente e diversificado conjunto de litígios que surgem na sociedade contemporânea.

Assim, não podemos nos contentar em reconhecer a desjudicialização meramente como uma possibilidade de que o jurisdicionado se desloque do Poder Judiciário, contribuindo para a diminuição de sua carga. Precisamos garantir que a desjudicialização preserve as garantias fundamentais do processo, que são conquistas inegociáveis da ciência processual. O objetivo é permitir que o jurisdicionado saia do Poder Judiciário pela porta da frente e também por outras vias, sem déficit garantístico, assegurando seu acesso a uma ordem jurídica justa. Essa é a nossa missão.

REFERÊNCIAS

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1 Alexandre.assispe@gmail.com