REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202411121111
Wirlen Rainoldson Miranda Pereira1
RESUMO
O presente trabalho aborda o tema “Usucapião”. O instituto do usucapião trata-se da aquisição do domínio ou ainda aquisição de outro direito real pela posse prolongada por um determinado período de tempo, permitindo assim a lei que essa situação de fato se transforme em situação jurídica, ou seja a aquisição originária da propriedade. O objetivo geral desta pesquisa é apresentar o instituto do usucapião presente no ordenamento jurídico brasileiro, com objetivos específicos apresentar o conceito de usucapião, mostrar as modalidades existentes da usucapião, por fim, destacar a impossibilidade da aplicação do Usucapião em bens públicos pertencentes União, Estados e Municípios do Território brasileiro. Inicialmente, examina-se o conceito de usucapião e suas principais características. Em seguida, passasse a explanar a legislação vigente sobre a possibilidade de aplicação do usucapião. Finalmente, é apresentada a impossibilidade do instituto do usucapião em bens públicos pertencentes aos entes federativos brasileiros. A partir das informações obtidas neste estudo, conclui-se que, deve ser ressaltada, principalmente, a atuação do Poder Judiciário a quem compete aplicar o sentido finalístico de uma norma a fim de atender o bem comum e os fins sociais a que se propõe. Cabe aos entes federativos criarem novos precedentes a fim de assegurar a proteção dos bens públicos e, assim, atribuir uma função social para bens públicos abandonados.
Palavras-chave: Usucapião. Inaplicabilidade. Bens Públicos. Direito Civil.
ABSTRACT
This work addresses the theme “Usucapion”. The institute of usucapion is the acquisition of the domain or even the acquisition of another real right through prolonged possession for a certain period of time, thus allowing the law for this situation to actually become a legal situation, that is, the original acquisition of the property. The general objective of this research is to present the institute of usucapion present in the Brazilian legal system, with specific objectives to present the concept of usucapion, show the existing modalities of usucapion, finally, highlight the impossibility of applying Usucapion to public assets belonging to the Union, States and Municipalities of the Brazilian Territory. Initially, the concept of adverse possession and its main characteristics are examined. Then, it would go on to explain the current legislation on the possibility of applying adverse possession. Finally, the impossibility of adverse possession of public assets belonging to Brazilian federative entities is presented. Based on the information obtained in this study, it is concluded that, mainly, the role of the Judiciary, which is responsible for applying the final meaning of a norm in order to meet the common good and the social purposes it proposes, must be highlighted. It is up to federative entities to create new precedents in order to ensure the protection of public goods and, thus, assign a social function to abandoned public goods.
Keywords: Adverse possession, inapplicability, Public Assets, Civil Law.
1 INTRODUÇÃO
A pesquisa abordará sobre a inaplicabilidade do instituto do Usucapião em Bens Públicos, que tem como objetivo geral apresentar o instituto do Usucapião presente no ordenamento jurídico brasileiro e com objetivos específicos: 1) apresentar o conceito de Usucapião; 2) mostrar as modalidades existentes de usucapião; e 3) destacar a impossibilidade da aplicação do Usucapião em bens públicos pertencentes União, Estados e Municípios do Território brasileiro.
No Brasil em seu sistema de transmissão da propriedade adota-se o princípio da unidade, de forma que o negócio realizado entre as partes contém as disposições obrigacionais e já se embute a vontade da transferência da propriedade. A escritura pública de compra e venda brasileira, por si só, já tem efeito translativo e é apta a ingressar no Registro de Imóveis, não havendo qualquer indicação na lei de que seja necessária uma referência expressa à vontade de transmitir o bem (Gonçalves, 2015).
O instituto da usucapião, por sua vez, é muito bem definido por Gonçalves (2019, p. 251):
A usucapião é também chamada de prescrição aquisitiva, em confronto com a prescrição aquisitiva, em confronto com a prescrição extintiva, que é disciplinada nos arts. 205 e 206 do Código Civil. Em ambas, aparece o elemento tempo influindo na aquisição e na extinção de direitos.
O usucapião atribui uma utilidade um bem imóvel que irá refletir de modo satisfatório à sociedade, pelo fato de consagrar ao proprietário aparente, também chamado de posseiro, o domínio da terra, desta forma evitando incidentes que visem lesar a posse do bem e incertezas sobre o domínio do bem.
A aquisição da propriedade por decurso de tempo está no Livro do Direito das Coisas do Código Civil. O Código Civil de 2002 traz duas espécies de usucapião, quais sejam o usucapião ordinário e o extraordinário. As duas modalidades de aquisição da propriedade por decurso de tempo já estavam previstas no Código Civil de 1916. A terceira modalidade de usucapião está regulamentada pela Lei nº 6.969/1981 e no artigo 191 da Constituição da República Federativa, e é denominada de usucapião rural especial. A última espécie é o usucapião urbano especial que foi introduzido no ordenamento jurídico pelo artigo 183 da Carta Magna, e encontra-se regulamentado pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001). (Rizzardo, 2007, p.1)
Em face da temática abordada, surge o seguinte questionamento: É possível que seja aplicado o instituto do usucapião em bens públicos? Para responder o questionamento adota-se a premissa que é de acordo com o Princípio da Supremacia do Interesse Público, é inaplicável o usucapião em bens públicos.
A relevância social deste estudo é inegável, uma vez que se trata de um tema atual que gera grandes discussões sociais. Além disso, vale ressaltar a importância de discutir o usucapião de bens públicos, haja vista o latente abandono da administração pública na conservação destes bens.
Ainda, salienta-se a grande tendência de mudança de posicionamento jurídico sobre este tema, inclusive com decisões controversas sobre a possibilidade de usucapir um imóvel pertencente a algum ente público.
Diante disso, é essencial que a sociedade amplie seus conceitos perante este tema, visto que é inevitável não pensar em quantas pessoas se encontram atualmente em situação de vulnerabilidade social e, por outro lado, existem inúmeros imóveis públicos estão abandonados.
Para compreender tal debate e chegar a uma conclusão, é necessário verificar algumas premissas. Uma delas é que se percebe que a proteção que o ordenamento jurídico brasileiro transferi aos bens públicos ainda se faz necessária ainda nos dias atuais.
Assim, com vista a esclarecimento, inicialmente o trabalho passa a examinar o conceito de usucapião. Em seguida, passasse a explanar as modalidades da usucapião. Finalmente, é apresentada a impossibilidade do instituto do usucapião em bens públicos pertencentes aos entes federativos brasileiros.
Espera-se que a pesquisa contribua para esclarecimentos com fundamentos para alertar a sociedade diante da impossibilidade de usucapião em bens públicos. Destaca-se ainda que o trabalho foi configurado segundo de acordo com o método indutivo, acionado à técnica da pesquisa bibliográfica.
2 CONCEITO DE USUCAPIÃO
A usucapião existe desde a Era Romana, o que era disposto na Lei das Doze Tábuas, estendia usucapião apenas para os móveis e imóveis naquela época, o prazo para usucapir era de dois anos para bens imóveis e um ano para bens móveis. Com o passar do tempo o possuidor peregrino passou a ter direito a uma espécie de prescrição, como forma de exceção, que serviria de defesa contra ações reivindicatórias. O prazo para adquirir o bem através da posse prolongada passou a ser de 10 e 20 anos. (Chaves, Rosenvald, 2009).
O instituto da usucapião é uma criação romana, que já no século IV A.C. dava aos cidadãos romanos o direito de adquirir a propriedade de coisa imóvel ou móvel, pela posse contínua de um a dois anos. Não era permitido às mulheres, escravos, estrangeiros ou até mesmo cidadãos romanos de outras províncias. (Sabino, 2021, p.1)
A usucapião possui ligação direta com o instituto da prescrição, justamente por se tratar, segundo a maioria da doutrina, de uma espécie de prescrição aquisitiva, expressão esta que Salles (2005, p.53) classifica como “sinônimo de usucapião”, sendo, também de acordo com parte majoritária da doutrina uma forma originária de aquisição da propriedade, podendo versar tanto sobre bens móveis quanto imóveis, estes que serão estudados nesta dissertação, inclusive podendo ser objeto de usucapião as servidões aparentes e o usufruto, contudo, o instituto em estudo tem maior aplicabilidade na aquisição da propriedade de bens imóveis. (Esteves; Cioffi Júnior, 2017, p.2)
Usucapião é o modo autônomo de aquisição da propriedade móvel e imóvel mediante a posse qualificada da coisa pelo prazo legal. Provém de usus (posse) e capio, capere (tomar, adquirir), ou seja, adquirir pela posse. (Costa, 1999, p. 321)
A doutrina, em sua maioria, aceita a ideia de que a usucapião é uma forma originária de aquisição da propriedade. Isso se dá em virtude de uma coisa usucapida foi abandonada pelo antigo proprietário; a continuidade da posse exercida pelo usucapiente no lapso temporal mínimo exigido, sem que haja moléstia à sua posse, permite aquisição do domínio sem a necessidade de transferência intermediada por um sujeito. (Oliveira; Silva, 2019.1, p. 138)
O possuidor tem garantido a estabilidade da propriedade, após um período de tempo fixado nela, dentre outros requisitos que a lei exige, não podendo mais levantar dúvidas a respeito de ausência ou vício do título de posse, atingindo assim a função social da propriedade por meio do Instituto do Usucapião. (Tartuce, 2020)
Ainda, vale ressaltar que existem três diferentes tipos de ação de usucapião, contendo três requisitos em comum: o animus domini, inexistência de oposição da posse e posse ininterrupta por um período de tempo.
De acordo com Carvalho (2022, p.15) o animus domini, nada mais é do que a posse com intenção de ser dono da coisa. No entanto não basta só estar na posse do bem, é necessário que se comporte como dono, ou seja, arque com os custos; faça as manutenções necessárias; se apresente como proprietário. Já a inexistência de oposição à posse é que esta deve ser pacífica, não havendo contestações e oposições do antigo proprietário do bem. (Brandelli, 2015).
A posse ininterrupta por um período de tempo deve ser um período sem intervalos que o usucapiendi permanece no bem sem oposições. Sendo esse período legal exigido variado de acordo com cada espécie de usucapião. Existem outros requisitos além dos acima listados, porém vão variar com as espécies. (Carvalho, 2022, p.15)
A ideia básica existente no instituto do usucapião é no sentido de que as modalidades de usucapião se situam no tempo do período aquisitivo, que deve ser mais ou menos longo (Pereira, 2019).
A seguir, passasse a explanar as modalidades da usucapião existentes no ordenamento jurídico brasileiro.
3 AS MODALIDADES DO USUCAPIÃO
Pode-se dividir a usucapião em três espécies distintas, sendo a primeira usucapião extraordinária, a segunda usucapião ordinária e a terceira usucapião especial, sendo que a usucapião especial é tratada diferentemente entre os doutrinadores pelo fato de também ser conhecida como usucapião constitucional, isto se dá pelo fato de encontrar seu balizamento no direito constitucional, ou seja, possui seu fundamento instituído na constituição federal. (Esteves; Cioffi Júnior, 2017, p.7)
A usucapião extraordinária é a forma originária aquisitiva de propriedade imóvel ou móvel, onde devem estar presentes: O tempo decorrido de 15 (quinze) anos, para os imóveis e de 05 (cinco) anos para os móveis e a total falta de oposição. Essa oposição é referente às ações de reivindicação de posse por parte do proprietário original da coisa. Não é necessário o possuidor constituir ali sua moradia habitual e nem possuir Justo Título e não há necessidade de que haja boa-fé por parte do possuidor. (Sabino, 2021, p.1)
A usucapião extraordinária está elencada no artigo 1.238, caput, do Código Civil, que visa atingir a função social da que a propriedade deve cumprir, portanto, o possuidor não pode esperar, por longo tempo, para adquirir o domínio da terra pela prescrição aquisitiva. (Lopes, 2023, p.4)
O autor Álvaro Azevedo explica melhor sobre a espécie de usucapião extraordinária:
A usucapião extraordinária de bens imóveis, prevista no art.1.238 do Código Civil, independe de justo título e boa-fé; in verbis:” Aquele que por 15 (quinze) anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente do título de boa-fé, podendo requerer ao juiz que assim, declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis” (Azevedo, 2014).
Ainda, observa-se o art.1.238 da Lei n°10.406, disciplina in verbis:
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo
Já a usucapião ordinária de posse simples é a forma originária aquisitiva de propriedade imóvel ou móvel, onde devem estar presentes: O tempo decorrido de 10 (dez) anos, para os imóveis e de 03 (três) anos para os móveis e a total falta de oposição. Essa oposição é referente a ações de reivindicação de posse por parte do proprietário original da coisa. É necessário o possuidor ter Justo Título e há necessidade de que haja boa-fé por parte do possuidor. (Sabino, 2021, p.1)
A usucapião ordinária está demonstrada no artigo 1.242 do Código Civil.
O autor Arnaldo Rizzardo (2016) disserta sobre os requisitos para essa usucapião:
O Código Civil, no art. 1.242, reduzindo o prazo, e não mais fazendo distinção entre presentes e ausentes, previu a espécie nos seguintes termos: “Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por 10 (dez) anos” (Rizzardo, 2016)
No parágrafo único do artigo 1.242, o legislador muda o prazo de posse mansa e pacífica, ao invés de ser 10 anos passa a ser cinco anos. Vejamos:
Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
Deste modo, para requerer o pedido de usucapião ordinária é necessário a posse do imóvel por dez anos continuadamente. Porém, será reduzida para cinco anos quando o local seja de moradia do possuidor, investimento econômico ou social.
A usucapião especial rural, também conhecida como pró-labore, acontece quando o usucapiente tem a posse de um terreno rural de no máximo 50 (cinquenta) hectares, e que no mesmo local é a sua moradia habitual ou um local produtivo. (Lopes, 2023, p. 4).
Esta modalidade está prevista no art. 1.239 do Código Civil e artigo 191 da Constituição Federal de 1988, vejamos:
O artigo 1.239 do Código Civil, in verbis:
Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
O artigo 191, da Constituição Da República Federativa Do Brasil de 1988, disciplina in verbis:
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
O usucapião urbana coletiva está disposta no artigo 183 da Constituição Federal, é uma modalidade semelhante com a usucapião rural. O art. 183 especifica os requisitos necessários para esta modalidade:
O artigo 183 da Constituição Federal de 1988:
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
O Código Civil, no artigo 1.240, também se refere a usucapião urbana coletiva:
Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
O usucapião familiar está previsto no Código Civil, no art. 1.240-A, que determina que aquele que tem um imóvel compartilhado com o seu ex-cônjuge ou ex-companheiro, onde houve um abandono de lar por uma das partes, ficando o outro cônjuge cuidando do imóvel, exercendo o direito de propriedade forma pacífica, mansa, interrupta e sem oposição direta, com total exclusividade, pelo período de 2 (dois) anos, tem direito de ingressar com o usucapião familiar.
Vejamos o que traz o art. 1.240-A do Código Civil:
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade dívida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (Incluído pela lei 2.424/11).
Importante frisar o teor do parágrafo primeiro do artigo 1.240-A do Código Civil, dispõe que o direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
Finalmente, a usucapião indígena é citada por alguns doutrinadores. Esta modalidade de usucapião está regulamenta pela Lei N° 6.001/73, onde na redação do artigo 3° da sua redação está disposto: “Que indígena é todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional” (Lopes, 2023, p. 7).
No art. 33 da Lei n. 6.001/73, admite-se a possibilidade de usucapião em favor do índio:
Art. 33. “O índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinquenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena”
Após dissertar sobre as modalidades do instituto do usucapião, passasse a mostrar a impossibilidade de aplicação do usucapião em bens públicos.
4 A IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO USUCAPIÃO EM BENS PÚBLICOS
Para falar sobre a aplicabilidade do usucapião em bens públicos, deve-se compreender o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado constitui-se como sendo a melhor forma de se discutir a tese de impossibilidade da usucapião de bens públicos.
De acordo com Meireles (2015), o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado é tratado pela doutrina administrativa que o considera um princípio basilar do direito administrativo brasileiro. Esse princípio não possui previsão legal na Constituição Federal, sendo considerado implícito, porém deve permear toda a atividade administrativa. A supremacia do interesse público sobre o privado leciona que quando houver uma colisão de interesse particular com um interesse público, o interesse público deve sempre prevalecer, pois o bem comum — a vontade coletiva — é a finalidade do Estado. (Beltrão; Andrade, 2021, p. 23).
A imprescritibilidade dos bens públicos baseia-se em cima do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, dessa forma, é atribuída à propriedade pública uma proteção diferenciada. Entretanto, essa proteção peculiar atinge a própria coletividade, sendo suprimido o princípio da função social da propriedade, o qual está presente na CF/1988. Além da função social, outros direitos fundamentais também são suprimidos com base na imprescritibilidade, como o direito à moradia. (Beltrão; Andrade, 2021, p. 24).
O princípio da função social da propriedade está presente na Constituição Federal de 1988 nos arts. 5°, inciso XXII, e 170, inciso III. Nos arts. 182 e 186 estão positivados o princípio da função social urbana e rural, respectivamente.
Neste sentido, Diniz (2010) traz que o Código Civil de 2002 também se compromete a zelar pela função social da propriedade em seu art. 1228, nos parágrafos 1° a 5°, afastando o individualismo e evitando a utilização abusiva da propriedade, a qual deve ser usada para o bem comum.
A Constituição Federal não isenta os bens públicos de cumprirem a função social, dessa forma, qualquer interpretação contrária a isso se distancia do propósito da norma constitucional e do princípio da função social previsto nessa codificação. Já não bastasse a clareza do texto constitucional, seria insuscetível que apenas os bens privados devessem cumprir com o interesse social, retirando os bens públicos de seguir a mesma regra. Aos bens públicos, devido a sua razão de existência em meio à sociedade, impõe-se o dever inexorável de atender a função social (Fortini, 2004, p.177).
Ocorre que, ao mesmo tempo que a Constituição traz a função social da propriedade como um princípio fundamental, explana-se também a impossibilidade de aquisição de bens públicos por meio do usucapião.
Observa-se o que traz o art. 183, § 3º da Constituição Federal de 1988:
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
Em consonância com as normas legais e supralegais existentes que dispõem sobre a imprescritibilidade dos bens públicos, a súmula 340 do STF reforça a ideia, em se tratando especificamente sobre os bens dominicais, quando dispõe que os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião. Vejamos:
Súmula 340 do STF: “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.”
Ainda, observa-se a jurisprudência vigente referente a um caso que julga pela inaplicabilidade do usucapião em um bem público:
ADMINISTRATIVO, CIVIL, CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. IMÓVEL REGISTRADO NO NOME DA TERRACAP. BEM PÚBLICO. PRECEDENTES. IMPOSSIBILIDADE DE AQUISIÇÃO POR USUCAPIÃO. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL E LEGAL. ARTIGOS 183, § 3º, E 191, PARÁGRAFO ÚNICO, DA CF/88. ART. 102 DO CC. SÚMULA 340 DO STF. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. JULGAMENTO LIMINAR DE IMPROCEDÊNCIA. AFRONTA A SÚMULA DO STF. ART. 332, I, DO CPC. SENTENÇA MANTIDA. 1 – A impossibilidade jurídica do pedido se configura nos casos em que o pleito autoral é vedado pelo ordenamento jurídico. O referido instituto, antes considerado uma condição da ação no CPC/73, deixou de ser expressamente retratado no Código de Processo Civil 2015, abrindo, na doutrina, discussão quanto à sua permanência como matéria integrante do exame de admissibilidade da demanda, estando inserida no pressuposto do interesse processual – utilidade, ou se passou a ser matéria de mérito, discutindo-se, ainda, caso constitua matéria de mérito, se autoriza ou não o julgamento liminar de improcedência nos termos do art. 332 do CPC, apesar de não constar das hipóteses legais. 2 – É consabido que a Constituição Federal, em seus artigos 183, § 3º, e 191, parágrafo único, estabelece expressamente que os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. O tema também é retratado no Código Civil, dispondo-se no art. 102 que os bens públicos não estão sujeitos a usucapião. Nesse mesmo sentido, ainda sob a égide do Código Civil de 1916, o STF editou a Súmula n. 340, segundo a qual, desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião. 3 – A vedação constitucional, civil e jurisprudencial à aquisição de bens públicos via usucapião revela a impossibilidade jurídica do pedido usucapiendo direcionado a imóvel registrado sob a propriedade da TERRACAP, uma vez que, segundo a jurisprudência pacífica do STJ e desta Corte de Justiça, apesar de constituir empresa pública, os imóveis administrados pela TERRACAP ostentam natureza pública. 4 – O julgamento liminar de improcedência (art. 332, incisos I a IV, e § 1º, do CPC) é cabível nas causas que dispensem instrução probatória, quando a pretensão autoral afrontar enunciado de súmula do STF ou do STJ e/ou acórdãos proferidos em julgamento de recursos repetitivos por esses Tribunais; entendimento firmado em IRDR ou assunção de competência e enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local, bem como nos casos de prescrição ou decadência. 5 – Apesar de toda a discussão doutrinária existente acerca da impossibilidade jurídica do pedido e das hipóteses de julgamento liminar de improcedência (art. 332 do CPC), verifica-se que o caso concreto efetivamente atrai o julgamento liminar de improcedência, uma vez que a pretensão autoral de usucapir imóvel público, caso dos imóveis da TERRACAP, afronta a Súmula n. 340 do Supremo Tribunal Federal, incidindo na hipótese do inciso I do art. 332 do CPC. Apelação Cível desprovida.
(Acórdão 1343882, 07067654620208070010,Relator: ANGELO PASSARELI, Quinta Turma Cível, data de julgamento: 26/5/2021, publicado no DJE: 9/6/2021).
Vejamos o posicionamento do Tribunal de Justiça do Amazonas sobre o tema:
EMENTA: DIREITO CIVIL. USUCAPIÃO. BEM PÚBLICO DE USO ESPECIAL. MATRÍCULA EM REGISTRO DE IMÓVEIS NÃO NECESSÁRIA. BEM EFETIVAMENTE USADO COM DESTINAÇÃO ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE DE AQUISIÇÃO POR VIA DE USUCAPIÃO. INTELIGÊNCIA DO PARÁGRAFO TERCEIRO DO ARTIGO 183 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
(TJ-AM – AC: 00014742520148044400 AM 0001474-25.2014.8.04.4400, Relator: Flávio Humberto Pascarelli Lopes, Data de Julgamento: 09/11/2020, Terceira Câmara Cível, Data de Publicação: 11/11/2020)
Importante mencionar que atualmente surge uma grande tendência de evolução por meio da lacuna existente na previsão legal, ganhando novo contorno ao longo dos anos, favoráveis a aplicação do usucapião em bens públicos em prol da sociedade.
Sobre os julgados recentes, os autores Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2003):
A outro giro, decisões recentes permitem a usucapião das terras que ainda não foram registradas em nome de alguém. São reputadas res nullius (coisas de ninguém) ou terras adéspotas; portanto, bens excluídos da propriedade pública e apropriáveis pelo particular. Caberá ao Poder Público elidir a presunção relativa, provando que o bem em questão sofreu processo discriminatório – judicial ou administrativo, antes de o particular haurir o prazo da usucapião (Lei n. 6.383/76).
Apesar de já existirem alguns posicionamentos que são favoráveis à aquisição bens públicos por usucapião, o entendimento majoritário ainda permanece com a tese de que deve ser respeitada a supremacia do interesse público.
Desta forma, os entes federativos são responsáveis a atribuir uma função social para estes imóveis, observando o que prevê a Constituição Federal.
5 CONCLUSÃO
Diante do exposto, é possível afirmar que os objetivos deste artigo foram plenamente alcançados. Foram analisadas as implicações legais decorrentes da impossibilidade de aquisição de bens públicos pelo instituto do usucapião.
Além disso, enfatizou-se o conceito do usucapião e as modalidades de usucapião vigente no ordenamento jurídico brasileiro.
Imperioso frisar que o instituto do usucapião é o mais preponderante modo de aquisição dos bens. Tem como requisitos básicos a posse mansa, pacífica e ininterrupta dos bens e o decurso do tempo, e por fundamento subjetivo a renúncia presumida do proprietário negligente, que manifesta desprezo por seus bens.
Apesar de o Brasil ser um país com graves problemas habitacionais, gerados pela carência de políticas públicas voltadas para regularização fundiária, somados ainda pela desigualdade social que assola a população. Sob está ótica, existe uma crescente no entendimento possibilitando a aplicabilidade do usucapião de bens públicos como uma forma de diminuição dos problemas habitacionais.
No entanto, mesmo já surgindo alguns posicionamentos que são favoráveis à aquisição bens públicos por usucapião, o entendimento majoritário ainda permanece com a tese de que deve ser respeitada a supremacia do interesse público.
Conclui-se que, deve ser ressaltada, principalmente, a atuação do Poder Judiciário a quem compete aplicar o sentido finalístico de uma norma a fim de atender o bem comum e os fins sociais a que se propõe. Ainda, cabe aos entes federativos criarem novos precedentes a fim de assegurar a proteção dos bens públicos e, assim, atribuir uma função social para bens públicos abandonados, considerando a inaplicabilidade do usucapião em bens públicos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Azevedo, Álvaro Villaça. Direito das Coisas. São Paulo: Atlas,2014
Beltrão, Maria Fernanda; Andrade, Analice Cabral. Análise histórico-comparativa do Código Civil de 1916 e do Código Civil de 2002 acerca da usucapião de bens públicos. Revista do Tribunal Região Federal da 1 Região, [s. l.], ano 33, n. 3, p. 19-29, 2021. Disponível em: https://revista.trf1.jus.br/trf1/article/download/335/198/1137. Acesso em: 29 out. 2024.
Carvalho, Mikaella Vidal. USUCAPIÃO COMO FORMA DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE. [S. l.: s. n.], 2022. 41 p. Disponível em: http://repositorio.aee.edu.br/bitstream/aee/19504/1/Mikaella%20Vidal%20Fernandes.pdf. Acesso em: 28 out. 2024.
Chaves, Cristiano. Rovand, Nelson. Direito Civil: teoria geral.8. ed. Rio de Janeiro: Forense,2009
Costa, Dilvanir. Usucapião: doutrina e jurisprudência. Revista de Informação Legislativa, Brasília, p. 321/334, 1999. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/524/r143-25.PDF. Acesso em: 28 out. 2024.
Esteves, L. G. B; CIOFFI Júnior, A. C. CONSIDERAÇÕES SOBRE O INTITUTO JURÍDICO DA USUCAPIÃO À LUZ DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO. Revista Matiz Online, [s. l.], p. 1-17, 2017. Disponível em: https://immes.edu.br/wp-content/uploads/2020/10/2017-Considera%C3%A7%C3%B5es-sobre-a-Usucapi%C3%A3o.pdf. Acesso em: 24 out. 2024.
Fortini, Cristiana. A função social dos bens públicos e o mito da imprescritibilidade. Revista Brasileira de Direito Municipal, Belo Horizonte, n. 12, ano 5, abr./jun., 2004. Disponível em: http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/ handle/2011/34656/funcao_social_bens_fortini.pdf?se quence=1. Acesso em: 29 out 2024
Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil: Direito das coisas.18. ed. São Paulo: Saraiva Educação,2018
Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil 2: Contratos em Espécie. Minha Biblioteca, Editora Saraiva,2019.
Lopes, Luiz Eduardo. A HISTÓRIA DA USUCAPIÃO E SUAS MODALIDADES. Revista Científica Multidisciplinar, [S. l.], v. 4, n. 8, p. 1-10, 4 ago. 2023. DOI https://doi.org/10.47820/recima21.v4i8.3706. Disponível em: https://recima21.com.br/index.php/recima21/article/view/3706/2667. Acesso em: 28 out. 2024.
Oliveira, Jadson; Silva, Jeimison. POSSIBILIDADE DA CONCESSÃO DE USUCAPIÃO EM BEM IMÓVEL PÚBLICO. Revista Científica da FASETE, [s. l.], p. 137-154, 2019.1. Disponível em: https://www.unirios.edu.br/revistarios/media/revistas/2019/21/possibilidade_da_concessao_de_usucapiao_em_bem_imovel_publico.pdf. Acesso em: 24 out. 2024.
Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições do Direito civil – vol 4: Direitos reais, 27ª edição. Disponível em: Minha Biblioteca, Grupo Gen, 2019.
Rizzardo, Arnaldo. Direito das Coisas. 3ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
Rizzardo, Arnaldo. Direito das coisas.8. ed. rev.Rio de Janeiro: Forense, 2016
Sabino, Adelmo. As Modalidades de Usucapião Existentes. Jusbrasil, [s. l.], 2021. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/as-modalidades-de-usucapiao-existentes/1339207690. Acesso em: 28 out. 2024.
Tartuce, Flávio. Sentença de MG reconheceu usucapião em bem público. 2014. Disponível em: https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/noticias/136402006/sentenca-de-mgreconhece- usucapião-de-bem-público Acesso em 27.10.2024
1 Graduando do Curso de Direito do Centro Universitário Fametro. E-mail: wirlen.oliveira@hotmail.com. ORCID: 0009-0004-2118-7545