COLABORAÇÃO PREMIADA: VALORAÇÃO DA PROVA E PRISÃO CAUTELAR

PLEA BARGAINING: EVIDENCE EVALUATION AND PREVENTIVE DETENTION

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202411111932


Marco Antônio Pereira Filho


RESUMO

O objetivo geral do estudo é investigar a complexa interação entre a colaboração premiada, a valoração da prova e o uso da prisão cautelar na justiça penal brasileira. Utilizando uma abordagem qualitativa e uma revisão bibliográfica abrangente, o trabalho foi estruturado em cinco seções principais que exploram, respectivamente, a natureza e a importância da prova no sistema jurídico, os fundamentos e operacionalidade da colaboração premiada, a delação como um subtipo de colaboração premiada, a ética e eficácia do uso da prisão preventiva como meio de indução à colaboração e, por último, uma análise comparativa com os sistemas legais da Itália e dos Estados Unidos. O estudo revela dilemas significativos, especialmente no que diz respeito ao equilíbrio entre a eficácia processual e o respeito aos direitos fundamentais do acusado. Aponta, ainda, que o uso de mecanismos coercitivos como a prisão cautelar para incentivar a colaboração levanta sérias questões éticas, comprometendo a integridade e a legitimidade do processo legal. A pesquisa contribui de maneira significativa para o debate acadêmico e jurídico, sugerindo a necessidade de uma revisão contínua e criteriosa do sistema de colaboração premiada.

Palavras-chave: Colaboração Premiada; Valoração da Prova; Prisão Cautelar; Direito Comparado.

ABSTRACT

The general objective of this study is to investigate the complex interaction between plea bargaining, evidence evaluation, and the use of preventive detention in the Brazilian criminal justice system. Using a qualitative approach and comprehensive literature review, the work is structured into five main sections that explore, respectively, the nature and importance of evidence in the legal system, the foundations and functionality of plea bargaining, informants as a subtype of plea bargaining, the ethics and effectiveness of using preventive detention as a means to induce cooperation, and finally, a comparative analysis with the legal systems of Italy and the United States. The study reveals significant dilemmas, especially concerning the balance between procedural effectiveness and respect for the accused’s fundamental rights. It also points out that the use of coercive mechanisms like preventive detention to encourage cooperation raises serious ethical questions, compromising the integrity and legitimacy of the legal process. The research contributes significantly to the academic and legal debate, suggesting the need for continuous and careful review of the plea bargaining system.

Keywords: Plea Bargaining; Evidence Evaluation; Preventive Detention; Comparative Law.

INTRODUÇÃO

A administração da justiça é um processo complexo e multidimensional, cujo sucesso frequentemente se apoia na qualidade das provas disponíveis. Nesse contexto, a colaboração premiada tem emergido como um mecanismo especialmente relevante, sobretudo em casos complexos como os de corrupção ou crimes financeiros cometidos por organizações criminosas. A problemática central deste estudo pode ser formulada da seguinte forma: Até que ponto a prova obtida através da colaboração premiada é válida e confiável dentro do sistema jurídico, e como a utilização de mecanismos como a prisão cautelar para induzir tal colaboração afeta a ética e a eficácia do processo judicial?

O tema é dotado de uma relevância social e jurídica significativa. Socialmente, o mecanismo da colaboração premiada pode agilizar a resolução de casos que têm amplo impacto na sociedade, como grandes esquemas de corrupção, por exemplo. Juridicamente, levanta questões complexas sobre a admissibilidade e o peso da prova, bem como sobre o equilíbrio entre os meios utilizados para obtê-la e os fins judiciais a que ela serve. A compreensão desses fatores é de grande relevo para a eficácia e a legitimidade da justiça penal.

Quanto à metodologia, esta pesquisa será baseada em uma revisão bibliográfica abrangente e em uma análise qualitativa das informações relevantes. Serão examinadas várias fontes doutrinárias, acadêmicas, decisões judiciais e legislações para compreender as nuances da colaboração premiada e da valoração da prova no contexto brasileiro.

O estudo será dividido em seis seções principais. A primeira focará na prova, seu papel e valoração no contexto jurídico. A segunda seção abordará os aspectos gerais da colaboração premiada como instituto jurídico. A terceira examinará a delação premiada, focando na sua valoração como prova. A quarta seção se debruçará sobre uma análise crítica da utilização da prisão preventiva como um meio para incentivar a colaboração premiada. A quinta seção fornecerá uma análise do peso da colaboração premiada para decretação de cautelares contra o delatado e, por fim, a sexta seção realizará uma análise comparativa, estudando os sistemas judiciais da Itália e dos Estados Unidos para entender como eles lidam com esse mecanismo.

No cerne do estudo, encontra-se a busca por equilíbrio entre a eficácia processual e os direitos fundamentais do acusado. Em outras palavras, o estudo tentará responder se a busca pela verdade no processo penal justifica métodos que possam ser considerados coercitivos ou, em alguns casos, quase extorsivos. A pesquisa também visa esclarecer a operacionalidade do sistema de colaboração premiada, incluindo suas virtudes e falhas. O objetivo é entender se esse mecanismo melhora realmente a eficácia da justiça penal ou se simplesmente expõe falhas e dilemas éticos dentro do sistema judicial.

As contribuições esperadas deste estudo são variadas. Espera-se que ele ofereça um entendimento mais aprofundado das complexidades envolvidas na valoração da prova e na operacionalização da colaboração premiada. Além disso, este trabalho tem a ambição de fornecer compreensões que possam ser úteis para a reforma ou o aperfeiçoamento das práticas jurídicas e processuais.

1  DA PROVA

O conceito de prova, presente na legislação nacional, desempenha um papel de grande relevo no contexto jurídico, independentemente da área em que seja aplicado (ANDRADE, 2013). Nesse sentido, a prova assume uma importância significativa para ambas as partes no processo, tanto para o autor quanto para o réu, estando intimamente ligada aos princípios constitucionais do direito de ação e do direito de defesa.

Nesse sentido, para que o magistrado possa proferir uma sentença justa em um processo, é essencial que essa decisão seja baseada na comprovação dos fatos e na identificação da autoria do delito. Sendo assim, é neste ponto que a prova no processo penal revela sua verdadeira relevância, pois é por meio dela que o julgador busca a convicção necessária para sua decisão final.

Ampliando o escopo, o termo “prova” tem origem na expressão latina “probatio”, que em tradução livre significa “experiência” (REZENDE, 2015). Renato Brasileiro (2020, p. 655) comenta sobre isso:

A palavra prova tem a mesma origem etimológica de probo (do latim, probatio e probus), e traduz as ideias de verificação, inspeção, exame, aprovação ou confirmação. Dela deriva o verbo provar, que significa verificar, examinar, reconhecer por experiência, estando relacionada com o vasto campo de operações do intelecto na busca e comunicação do conhecimento verdadeiro.

Continuando na mesma perspectiva, Souza Nucci (2020, p. 683) amplia o entendimento, explicando que a origem do termo “prova” está no latim – “probatio” – que engloba significados como ensaio, verificação, inspeção, exame, argumentação, razão, aprovação e confirmação. A partir desse termo, deriva o verbo “provar” – “probare” – que implica em ensaiar, verificar, examinar, reconhecer por meio da experiência, aprovar, estar satisfeito com algo, persuadir alguém a aceitar alguma coisa ou demonstrar algo.

Nesse panorama, o conceito de prova pode ter diversas nuances no contexto processual, mas todos convergem para o mesmo objetivo: convencer o julgador sobre a veracidade das alegações apresentadas, seja demonstrando eventos passados ou sustentando uma tese jurídica (LOPES JUNIOR, 2020).

Em outras palavras, a prova pode abranger qualquer circunstância, fato ou alegação decorrente de um acontecimento duvidoso, com o propósito de buscar a verdade. Assim, a função da prova é esclarecer ao julgador o que de fato ocorreu em relação ao evento criminoso, permitindo que o juízo tome uma decisão que corrija, na medida do possível, a situação apresentada ao tribunal.

Normalmente, o valor da prova é relativo. Quando se busca comprovar um fato relevante durante uma investigação ou processo penal, a busca geralmente gira em torno de algo que se presume ser verdadeiro. Portanto, a força da conexão entre a prova e a convicção é evidente: se a prova é altamente convincente, o juiz entenderá que o fato ocorreu exatamente como foi apresentado nas evidências (LIMA, 2020).

Segundo as orientações de Tourinho Filho (2013), a finalidade da prova judicial é formar a convicção do juiz sobre os elementos fundamentais para a resolução do conflito. O magistrado precisa conhecer os fatos em disputa para proferir um julgamento adequado. Nesse contexto, as partes apresentam provas para persuadir o juiz sobre a veracidade ou a natureza específica dos eventos em questão.

Sem a prova no sistema processual, as alegações das partes em juízo seriam vazias. Sem a apresentação de evidências para sustentar as afirmações feitas ao longo do processo, o juiz poderia emitir uma sentença totalmente subjetiva, baseada em critérios pessoais. Desta feita, enquanto houver um processo em curso, o julgador tem o dever de permitir a apresentação de provas, pois é esse instituto que estabelece as bases para que a sentença seja congruente com os fatos reais (LOPES JR, 2015).

Dada a importância fundamental da prova no processo, é inegável que o tema é um dos mais importantes em toda a ciência processual judicial, uma vez que as provas orientam o curso do processo, servindo como a base para toda a argumentação processual. Sem evidências confiáveis e válidas, as discussões doutrinárias e as jurisprudências relacionadas a questões jurídicas perderiam seu valor, pois a disputa não teria objeto (CAPEZ, 2016).

Conforme apontado pela doutrina moderna, existem três abordagens diferentes para a atividade de provar: a prova como atividade probatória, a prova como resultado e a prova como meio. Souza Nucci (2020, p. 684) explica o termo “prova” no âmbito jurídico tem três conotações essenciais. A primeira, “ato de provar”, refere-se à fase em que se examina a correção ou veracidade das afirmações feitas por uma das partes, como na etapa probatória. A segunda definição, “meio”, atua como o instrumento utilizado para estabelecer a verdade de um fato, como na forma de um testemunho. Finalmente, “resultado da ação de provar” é o veredicto que advém da análise dos meios de prova apresentados, momento em que o juiz pode, por exemplo, afirmar na sentença que o réu é de fato o autor do crime. Deste modo, a prova não é apenas um elemento processual, mas o ponto culminante na tomada de decisões judiciais.

Sob essa perspectiva, a prova na sua função de “atividade probatória” engloba um conjunto de métodos e práticas destinados à verificação e à comprovação de direitos, com o objetivo de estabelecer os fatos relevantes para a decisão judicial. Neste contexto, a noção de prova está associada à introdução de meios e ações realizadas durante o processo, com o intuito de persuadir o juiz acerca da verdade ou falsidade de um fato que seja crucial para a resolução do caso em questão.

No que diz respeito à prova como “resultado da ação de provar”, esta manifesta-se na formação da opinião do órgão julgador, desenvolvida ao longo do processo, sobre a presença ou ausência de um determinado cenário fático. Por último, quando se trata de prova como “meio”, ela envolve os diversos instrumentos e recursos legais disponíveis que contribuem para moldar o entendimento do juiz sobre a ocorrência ou não ocorrência de um fato específico.

Após a compreensão do conceito e da relevância da prova no contexto dos processos judiciais, torna-se evidente que seu papel é fundamental para auxiliar o magistrado na tomada de decisões justas. No entanto, em situações de maior complexidade, as evidências convencionais podem revelar-se insuficientes para esclarecer todos os aspectos do caso em questão. É nesse contexto que a colaboração premiada emerge como uma alternativa viável para obter informações relevantes que podem ter o potencial de redefinir o curso de um julgamento. Na próxima seção, será aprofundada a análise sobre esse método, explorando como ele pode, efetivamente, influenciar o desenrolar de um processo judicial.

2  O INSTITUTO DA COLABORAÇÃO PREMIADA E SEUS ASPECTOS GERAIS

Embora o crime organizado tenha permeado a história humana, sua crescente notoriedade e impacto alarmante nos tempos atuais se devem principalmente à sua notável habilidade de se adaptar e inovar em suas táticas ilícitas. Vale ressaltar que este fenômeno foi potencializado por um cenário mundial marcado por transformações sociais, políticas e econômicas (CAVALCANTE, 2021, p. 14). Nesse contexto, houve diversas abordagens para confrontar essa “nova onda de criminalidade”, com o objetivo de aprimorar tanto a eficácia das investigações quanto a efetividade das medidas punitivas tomadas pelas autoridades.

Para fazer frente a esse tipo único e particular de atividade criminosa, algumas estratégias notáveis foram desenvolvidas. Isso inclui a implementação de técnicas de investigação avançadas, a adoção de medidas preventivas para proteger direitos fundamentais e, particularmente relevante para este estudo, a prática da colaboração premiada. Assim, enquanto as autoridades buscam adaptar-se a uma paisagem criminal em constante mutação, esses métodos surgem como tentativas válidas de deter o avanço desse fenômeno perturbador.

Quando essa colaboração acontece, o indivíduo delator que fornece as informações importantes geralmente recebe uma redução em sua sentença. Isso ocorre porque sua contribuição é indispensável para superar os obstáculos inerentes à luta contra a criminalidade organizada. Sem essa colaboração, as barreiras para desarticular tais organizações criminosas seriam consideravelmente mais altas (ALBERO, 2022). 

No contexto jurídico-criminal, a colaboração premiada é um conceito que envolve a assistência mútua entre o acusado e as autoridades. O termo “colaborar” implica em auxiliar ou cooperar, enquanto “premiada” sugere a presença de algum tipo de recompensa ou benefício. Em termos mais específicos, essa forma de colaboração ocorre quando o investigado ou acusado admite sua participação no crime, seja como autor ou partícipe, e fornece informações adicionais que implicam outros envolvidos. Essa ação permite ao Estado expandir seu entendimento sobre o crime em questão, seja em relação à materialidade do ato ou à identificação de outros autores. Assim, a colaboração premiada serve como uma ferramenta valiosa para desvendar a complexidade de infrações penais, oferecendo ao colaborador uma espécie de “prêmio” na forma de benefícios legais (NUCCI, 2021).

O emprego de incentivos premiais dentro do contexto de justiça negociada, especificamente na perseguição de organizações criminosas, adquire, em nossa visão, um novo e significativo fundamento. Isto é especialmente verdadeiro dada a complexidade intrincada que caracteriza essas organizações. A oferta de “recompensas” torna-se crucial, servindo como um catalisador para persuadir membros individuais a cortar seus laços de lealdade com o grupo. Como Marcos Zilli sublinha acertadamente em sua obra de 2016 (p. 861), é vital ter mecanismos que instiguem conflitos internos dentro da organização. O objetivo? Destruir o sentido de camaradagem e lealdade que muitas vezes atua como a cola que mantém essas organizações coesas.

O jogo de incentivos aqui é astuto e estratégico, funcionando quase como uma alavanca psicológica. Esta estratégia, diga-se de passagem, aponta para a necessidade de sermos mais perspicazes em nossa abordagem contra uma forma de criminalidade que não apenas é altamente organizada mas também notoriamente resistente a táticas convencionais de desmantelamento.

Segundo Freitas e Greco (2020, p. 99), a colaboração premiada é mais do que um simples acordo; “é um negócio jurídico legítimo, uma espécie de contrato firmado entre o autor do delito e o Estado”. Este contrato é delineado como um mecanismo para a coleta de provas que servem ao bem público.

A noção de “negócio jurídico processual” ganhou contornos mais claros com a introdução do Pacote Anticrime, formalizado pela Lei nº 13.964/2019, que também estabelece o ponto de partida para tal colaboração. Este marco legal não apenas define, mas também legitima a colaboração premiada como uma estratégia jurídica válida, alinhada com o interesse público na busca por justiça, com fulcro nos arts. 3ºA e 3º-B (BRASIL, 2019).

Conforme estabelecido, o negócio jurídico é essencialmente a formalização de um pacto entre o informante e as autoridades competentes. Este acordo assegura uma relação de confidencialidade e, caso seja rompido, resulta em uma violação do sigilo. Para que esse acordo seja considerado válido, existem certos critérios que devem ser atendidos. O primeiro deles é a voluntariedade da delação. Em outras palavras, as autoridades, sejam elas delegados ou membros do Ministério Público, não têm o direito de coagir ou forçar o colaborador a participar. Eles podem apenas elucidar os benefícios potenciais e encorajar a colaboração, mas a decisão final deve emanar do próprio colaborador.

De acordo com os estudos de Mendonça (2017, p. 244):

Deve ser afastada a tentação de se aplicar aqui os mesmos princípios do devido processo penal tradicional, sendo necessária uma releitura à luz de um devido processo penal consensual. Dessa forma, enquanto o princípio fundamental do sistema conflituoso é o devido processo legal, com todas as garantias de ampla defesa, duplo grau de jurisdição, presunção de inocência e contraditório, o modelo consensual, por sua vez, é estruturado principalmente a partir do princípio da autonomia da vontade, da eficiência (por parte do órgão acusador), da lealdade e da boa-fé objetiva.

Em complemento a essas perspectivas, é importante destacar que o sucesso de um negócio jurídico neste contexto também depende da flexibilidade e adaptabilidade do sistema judicial. O modelo de justiça consensual, por sua própria natureza, requer um equilíbrio delicado entre os imperativos de eficácia na perseguição penal e o respeito aos direitos individuais. Este equilíbrio é essencial para garantir que a colaboração funcione não apenas como uma ferramenta de aplicação da lei, mas também como um mecanismo que respeita a dignidade e a autonomia do colaborador.

O segundo critério é a necessidade de representação legal durante todo o processo. O colaborador deve estar acompanhado por um advogado devidamente registrado na OAB ou, alternativamente, por um defensor público. Conforme estipulado no § 15, em todos os atos de negociação, confirmação e execução da colaboração, o colaborador deverá estar assistido por defensor.

O acordo de colaboração premiada cuja validade é questionada pela defesa foi homologado por este Relator ciente do quadro clínico de depressão grave a que estava acometido o candidato a colaborador, sendo que assim se decidiu porque se entendeu que o quadro em questão não se mostrava suficiente para afetar o discernimento do interessado no período que antecedeu a formalização da avença, conforme retratavam atestados de natureza médica que instruíam os autos. Ademais, a decisão homologatória foi antecedida de todas as cautelas procedimentais previstas na Lei nº 12.850/13, mormente a partir da inquirição do candidato a colaborador na presença de seu defensor, ato esse que confirmou a voluntariedade com que negociados os atos de disposição de vontade (STF, AO 2.275/RN, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª T., DJe 28/02/2019).

O terceiro critério para validar um acordo de colaboração premiada é a efetividade da colaboração em si. Não basta apenas testemunhar; o colaborador deve fornecer informações que sirvam como meio de prova. Isso inclui identificar coautores, cúmplices e fornecer detalhes inacessíveis aos investigadores, como localizações de bens valiosos ou esconderijos, desde que estejam relacionados à organização criminosa (ALBERO, 2022). 

O quarto critério é a homologação judicial do acordo. Embora o juiz não participe das negociações, ele deve homologar o que foi acordado para que o acordo seja válido. Se o juiz acreditar que o acordo não é viável, ele pode recusá-lo, tornando a colaboração inválida. O quinto critério, por sua vez, é a renúncia ao direito constitucional ao silêncio por parte do colaborador. Para que a colaboração seja eficaz, o indivíduo deve fornecer informações relevantes para a investigação, o que implica falar e delatar outros membros da organização criminosa ou explicar como as tarefas eram divididas (ALBERO, 2022). 

Lima argumenta que a colaboração premiada é compatível com o princípio do direito de não produzir prova contra si mesmo, conhecido como “nemo tenetur se detegere”. Embora a colaboração muitas vezes leve à autoincriminação, desde que não haja coação e o indivíduo seja previamente advertido sobre seu direito ao silêncio, não há violação desse direito. O direito ao silêncio é um direito fundamental, estabelecido tanto no artigo 5º, LXIII da Constituição Federal de 1988 quanto no artigo 186 do Código de Processo Penal (LIMA, 2017).

Para que um acordo de colaboração premiada seja considerado válido, várias condições devem ser atendidas. Nesse panorama, o colaborador deve abrir mão de seu direito ao silêncio, fornecendo detalhes sobre sua participação na organização criminosa. Ele também deve estar ciente de que pode ser incriminado se as informações fornecidas se revelarem falsas (ALBERO, 2022). 

Por fim, o último requisito é a confidencialidade. O sigilo é o pilar que sustenta o acordo jurídico, e para garantir sua validade, um termo de confidencialidade deve ser elaborado. Este termo vincula todas as partes envolvidas e proíbe atos abusivos. Além disso, a divulgação do termo antes do recebimento da denúncia é estritamente vedada. Qualquer violação do sigilo é considerada uma quebra de confiança e boa fé, tornando o ato nulo (FREITAS; GRECO, 2020).

Por último, para que o acordo seja eficaz, é necessário que ele resulte em certos desfechos específicos. Isso inclui a identificação de outros membros e suas respectivas funções na organização criminosa, a revelação da estrutura hierárquica e divisão de tarefas, a prevenção de futuros crimes relacionados à organização, e a localização de possíveis vítimas em condições seguras.

A adoção responsável da colaboração premiada alinha-se com o interesse público ao fornecer uma via eficaz de coleta de provas, mantendo sempre o respeito aos direitos e garantias fundamentais do acusado. Neste sentido, a estrutura legal, que foi ainda mais solidificada com a introdução do Pacote Anticrime em 2019, oferece um arcabouço para a obtenção de informações relevantes sem sacrificar os princípios do devido processo legal. Isso não apenas potencializa as chances de desmantelar organizações criminosas, mas também insere mecanismos de controle e transparência que servem como salvaguardas contra abusos e desvios.

Portanto, a colaboração premiada é um mecanismo poderoso, mas que deve ser manuseado com cautela para preservar a legitimidade e a eficácia do ordenamento jurídico nacional. Enquanto os benefícios para o Estado e para a sociedade são indiscutíveis, é fundamental que o instrumento seja aplicado de forma ética e aderente à legislação vigente. Isso ajudará a garantir que a colaboração premiada continue sendo uma estratégia efetiva no combate à criminalidade, sem comprometer os direitos fundamentais e os princípios éticos que sustentam o sistema de justiça.

3  A DELAÇÃO PREMIADA E SUA VALORAÇÃO

A maioria dos estudiosos sublinha o papel crucial da colaboração premiada como um instrumento de grande valor para obtenção de provas em casos criminais altamente complexos. No entanto, Aury Lopes Junior (2020) insiste que é de grande importância exercer cautela ao adotar e avaliar as provas oriundas dessa colaboração para evitar injustiças causadas por falhas judiciais. A ideia é não aferir lugar para um “decisionismo” arbitrário na emissão de vereditos penais. É imprescindível, portanto, a determinação de critérios claros não apenas para admissão e produção dessas provas, mas também para avaliar sua qualidade e confiabilidade na formulação de uma sentença condenatória ou absolutória.

Para combater o tal “decisionismo”, alguns doutrinadores, como Vasconcellos (2017, p. 357) delineiam alguns elementos específicos que guiam a confiabilidade dessas declarações, como, por exemplo, a) a verdade da confissão; b) a ausência de ressentimento em qualquer declaração; c) a consistência e coerência nas afirmações feitas; d) a falta de intenção de diminuir ou até eliminar a própria responsabilidade; e) a corroboração da delação por meio de outras provas. Isso é essencial já que a colaboração premiada pode trazer enormes benefícios ao colaborador, incluindo a possibilidade de perdão judicial; sua aplicação, por isso, deve ser estritamente regulada além do que a lei prevê.

Dando uma guinada no tópico, é também imperativo considerar a possibilidade de um desvio no foco da investigação adequada. A este respeito, o artigo 3º-C da Lei nº 12.850/2013 estipula que, durante um acordo de colaboração premiada, o informante deve relatar todos os atos ilícitos relacionados com os fatos sob investigação. Esse direcionamento específico deverá ser rigorosamente observado tanto pelo colaborador quanto pelas autoridades envolvidas. É um mandamento para que a colaboração premiada não se transforme em um labirinto de desinformação, mas sim num farol que clarifica as nuances da criminalidade organizada.

A complexa gama de normas que rege crimes envolvendo organizações criminosas fez surgir a necessidade de desenvolver novas formas de obtenção de provas. À medida que se busca tornar o processo mais eficiente, há momentos em que garantias penais podem ser relativizadas, uma preocupação central quando se discute a colaboração premiada. 

Conforme assinalado por Renato Brasileiro de Lima, a questão não é escolher entre eficiência e garantismo penal. Em vez disso, a meta é encontrar um equilíbrio entre esses dois pilares do sistema de justiça criminal. A eficácia do sistema deve ser avaliada não pelo volume de condenações, mas pela habilidade de alcançar um resultado justo em um tempo razoável. A eficiência e o garantismo devem, assim, andar de mãos dadas; um sem o outro resulta num sistema penal que perde seu propósito (LIMA, 2020).

É importante, como Marçal e Masson ressaltam, que quaisquer meios especiais de obtenção de provas estejam em total conformidade com as leis e princípios constitucionais. Atualmente, a sociedade brasileira vive em um Estado Constitucional e Democrático de Direito, onde a Constituição assegura um sistema acusatório e um conjunto de garantias fundamentais ao réu. Qualquer interferência do Estado na vida privada dos cidadãos, particularmente em casos criminais, deve se dar rigorosamente dentro dos limites legais (MARÇAL; MASSON, 2016). 

A corrida pela eficiência não pode, em hipótese alguma, atropelar direitos e garantias fundamentais inconstitucionalmente. O que se requer dos agentes encarregados da persecução penal é um justo equilíbrio “entre o garantismo e a eficácia da sanção”, almejando tanto um garantismo negativo quanto um positivo. Este equilíbrio é precisamente o que Bedê Jr. e Senna articulam em suas obras, cuja consulta é imperativa para qualquer discussão séria sobre o tema (MARÇAL; MASSON, 2016).

Grande parte da doutrina especializada e decisões judiciais sublinha a importância do requisito já mencionado “voluntariedade” nos acordos de colaboração premiada. O que antes era apenas “delação premiada”, motivada pelo incentivo de uma recompensa e pelo ato voluntário do réu, agora se transformou em um acordo mais formal de colaboração, enraizado em um modelo de justiça negocial. Nesse contexto de consenso, que pode ser visto até como um negócio jurídico, dois fatores cruciais emergem: a voluntariedade e a segurança jurídica (AIRES; FERNANDES, 2017).

Além disso, uma questão polêmica que não pode ser ignorada é a interseção entre voluntariedade e a prisão. A dúvida paira: pode haver consentimento voluntário se o colaborador estiver preso? Para Mello e Suxberger (2017), a opinião é dividida. Alguns argumentam que a falta de liberdade física anula qualquer chance de uma escolha verdadeiramente livre, tornando a prisão uma ferramenta de coerção. No entanto, os autores diferenciam voluntariedade de espontaneidade. O que é fundamental, segundo eles, é se houve coerção ou não por parte das autoridades. Eles sustentam que a mera condição de estar preso não é, por si só, um impedimento para a voluntariedade.

Outro aspecto a ser explorado é o que constitui ‘coerção’. Para abordar essa indagação, os estudiosos propõem uma analogia com o negócio jurídico conforme descrito no Código Civil, já que trata-se, em última análise, de um acordo entre a acusação e a defesa. Resumindo a complexa gama de argumentos, o uso adequado da colaboração premiada é intrinsecamente ligado ao respeito pelas garantias constitucionais concedidas ao réu, bem como pela busca de um processo justo e verdadeiro. Ainda que o juiz não seja parte na formalização do acordo, ele tem o dever, fundamentado pelos princípios da ampla defesa e da presunção de inocência, de avaliar a sua validade e possíveis falhas (MELLO, SUXBERGER, 2017).

Outro desafio que se coloca é o da necessidade de criar mecanismos que garantam a integridade do processo, incluindo a avaliação judicial cuidadosa dos acordos de colaboração. Dessa forma, evita-se o risco de decisionismo arbitrário e assegura-se que a colaboração premiada seja usada como um complemento, e não um substituto, de outras formas de prova. Este é um aspecto crucial para evitar que o sistema penal se torne um meio de coerção indevida ou de atalhos que comprometam a justiça e a equidade.

Com a introdução da Lei nº 13.964/2019, houve uma modificação significativa no artigo 4º, parágrafo 16, estabelecendo que as palavras do colaborador em uma delação premiada não poderiam servir como base exclusiva para a imposição de medidas cautelares, seja de natureza pessoal ou real. Essa mudança não surgiu em um vácuo; ela reflete um refinamento no entendimento dos tribunais brasileiros sobre o assunto. Nesses fóruns judiciais, já vinha se cristalizando a noção de que decisões interlocutórias, como a aceitação de uma denúncia ou queixa-crime, não deveriam ancorar-se unicamente nas declarações de um delator (BRASIL, 2019).

Através dessa evolução legislativa, ganhou-se um impulso significativo para o princípio constitucional da presunção de inocência. Em outras palavras, a inclusão dessa disposição na lei tornou explicitamente insuficiente qualquer dúvida razoável gerada unicamente por uma delação premiada para resultar na condenação da pessoa delatada, bem como em outras decisões processuais severas. Deste modo, declarações isoladas que não sejam respaldadas por outros elementos de prova não detêm o peso necessário para fundamentar tais tipos de decisões judiciais (SOARES; SILVA, PENTEGILL, 2021).

Assim, enquanto o princípio do livre convencimento motivado é comumente aplicado no âmbito do sistema jurídico penal brasileiro, ele encontra certos limites quando confrontado com a dinâmica da colaboração premiada. Essa restrição é ancorada na própria natureza do instituto da delação, que exige cautela por parte do juiz, dado o evidente interesse pessoal do colaborador em angariar os benefícios legais que lhe são prometidos. Nessa linha, Badaró, ao discorrer sobre a nova disposição estabelecida pelo artigo 4º, parágrafo 16, da Lei 12850/2013, argumenta que essa provisão legal introduz uma limitação geral ao uso do livre convencimento como uma forma de avaliação de prova (SOARES; SILVA, PENTEGILL, 2021).

Ao chegar no ponto da sentença, a responsabilidade do magistrado se estende para além da avaliação das afirmações do colaborador; ele também deve analisar se há provas que confirmem a versão fornecida pelo delator. Badaró (2015, p. 26) clarifica que “o § 16 do art. 4º não tem o objetivo de especificar a quantidade ou os tipos de provas necessárias para estabelecer a veracidade de um fato”. Em vez disso, a intenção é sublinhar que, isoladamente, a delação premiada é insuficiente para superar a presunção de inocência (SOARES; SILVA, PENTEGILL, 2021).

Assim, a regra de corroboração impõe que o conteúdo da colaboração premiada seja validado por outras provas geradas ao longo do processo penal. Em outras palavras, a existência e a eficácia corroborativa dessa prova adicional tornamse indispensáveis para usar as afirmações do colaborador como base para medidas cautelares pessoais ou reais, aceitação de denúncia ou queixa-crime e, eventualmente, condenação (SOARES; SILVA, PENTEGILL, 2021).

Dessa forma, o sistema jurídico estabelece uma camada adicional de análise, garantindo que a colaboração premiada não seja um atalho para condenações apressadas ou injustas. Essa abordagem também alinha o instituto da colaboração premiada com princípios constitucionais, como o de presunção de inocência, assegurando que a busca por justiça seja equilibrada e fundamentada em um corpo sólido de provas. 

A prática, portanto, torna-se não apenas um instrumento de agilização processual, mas também um mecanismo atrelado a uma ética jurídica mais ampla. Com medidas de controle, como a necessidade de corroboração, a colaboração premiada pode servir efetivamente como um recurso valioso na administração da justiça, sem comprometer os direitos fundamentais dos acusados.

Nesse contexto, considerando as bases já examinadas, é inegável que as provas oriundas do acordo de colaboração premiada carregam um valor probatório considerado relativo. Tal condição deriva, em grande parte, dos benefícios atrativos oferecidos ao colaborador, cujo interesse pessoal é inegável. Esse cenário, de certa forma, confere às provas um status mais alinhado a indícios do que a evidências concretas (BITTAR, 2020). 

Assim, essas provas exigem uma análise mais minuciosa, devendo ser casadas com outros elementos presentes na investigação ou no procedimento jurídico. A não observação dessa regra corre o risco de elevar, indevidamente, a narrativa unidimensional do delator a um patamar de justa causa suficiente para embasar decisões judiciais ou o lançamento de acusações formais.

Consequentemente, o que se observa é que no contexto da colaboração premiada, o livre convencimento motivado não pode operar sem restrições; ele é, de fato, acobertado pela exigência de que as afirmações do delator sejam corroboradas por outros elementos probatórios. O ajuste é tanto sutil quanto significativo, engajando-se em um equilíbrio delicado entre a autonomia judicial e a necessidade de justiça equitativa (SOARES; SILVA, PENTEGILL, 2021).

O debate sobre a colaboração premiada deve ser continuamente revisitado e aprimorado. Com o avanço da legislação e a crescente complexidade das organizações criminosas, é essencial que haja um diálogo constante entre acadêmicos, profissionais do direito e legisladores. Este diálogo é necessário para adaptar a ferramenta às novas realidades, mantendo-a eficaz, mas sempre subordinada aos princípios constitucionais e éticos que fundamentam o sistema de justiça penal. Assim, consegue-se um equilíbrio entre a necessidade de combater o crime eficazmente e a indispensabilidade de proteger os direitos fundamentais do indivíduo.

4   ANÁLISE CRÍTICA DA UTILIZAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA PARA FINS DE COLABORAÇÃO PREMIADA

Enquanto alguns agentes do sistema criminal podem manipular a prisão preventiva para distorcer os métodos de justiça negocial, em certos cenários, essa mesma medida cautelar pode ser usada para forçar pessoas a concordar com acordos colaborativos. Isto é particularmente relevante quando o alvo é desmantelar organizações criminosas de alto nível, tornando acordos com criminosos de baixo escalão uma tática essencial para esse objetivo.

É importante salientar que essa prática já foi objeto de debate legislativo. O Projeto de Lei 4.372/2016 tentava estabelecer que o colaborador deveria estar em liberdade para que seu acordo fosse validado pelo juiz, eliminando assim potenciais coações. Ademais, o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu, no caso HC n°143.333, que a utilização da prisão preventiva para forçar acordos colaborativos é ilegal, carecendo de fundamento jurídico para tal uso.

De acordo com o voto do Ilustríssimo Ministro Gilmar Mendes:

[…] isso (a delação) tem que se fazer na forma da lei, dentro do devido processo legal. Não se pode, volto a repetir, usar prisão provisória para obter delação premiada! Isso é tortura, em qualquer lugar do mundo! E é preciso deixar isso muito claro; e isso é um vilipêndio a nossa história constitucional, e a história constitucional de qualquer país do mundo! Não se pode usar a prisão provisória de forma trêfega para satisfazer algum tipo de perversão pessoal! Não, não se pode! Não se pode usar prisão provisória, já disse isso na Segunda Turma, de velhos, idosos, octogenários para satisfazer perversão pessoal! Não! Isso tem que ser repudiado (STF, 2018).

A questão ganha mais camadas de complexidade quando são analisados os efeitos sistêmicos dessa prática. Como esperar um sistema judicial íntegro quando suas ferramentas são manipuladas em nome da eficácia, mas à custa do fair play processual? A longo prazo, essa abordagem não apenas banaliza a prisão preventiva, mas também descredibiliza os acordos colaborativos como instrumentos legítimos de justiça. Pois, se a colaboração é fruto de coerção, e não da livre decisão do colaborador, tem-se, de fato, um cenário que beira à tortura psicológica. Assim sendo, a questão vai além do legal e se adentra ao território da moralidade, exigindo uma reflexão profunda sobre os valores que se quer ver refletidos nas instituições de justiça do país.

Ao ser aplicado dessa forma, o instituto da colaboração serve mais como um apêndice à lógica punitiva estatal. Embora a Lei 13.964/2019 tenha introduzido novos aspectos centrados em um sistema acusatório, a essência do acordo de colaboração premiada ainda está enraizada em práticas inquisitivas. Surge uma complexidade adicional quando se considera que a legislação penal brasileira ainda carrega vestígios inquisitórios, influenciada pela importação de modelos estrangeiros, como o plea bargaining dos Estados Unidos. Isso pode resultar em um conflito legal entre os instrumentos de origens distintas e o princípio constitucional da legalidade, um pilar fundamental de sistemas acusatórios (ANITUA, 2015).

Por fim, embora o princípio da legalidade tenha o mérito de controlar o abuso de poder por parte de autoridades, ele tem se mostrado insuficiente para lidar com a crescente onda de criminalidade no país. Isso tem levado a uma maior dependência do instituto da colaboração premiada, especialmente no combate a figuras proeminentes do mundo do crime organizado (LEVORIN, 2018).

Em países com tradições jurídicas romano-germânicas que também absorveram práticas anglo-saxãs, como o Brasil, a implementação da colaboração premiada representa um avanço no combate à criminalidade organizada e na eficácia do sistema judicial. Embora se possa argumentar que a colaboração premiada poderia desafiar pilares do sistema acusatório, como a presunção de inocência e a obrigação da acusação em provar suas alegações, é importante lembrar que esses mecanismos são uma resposta adaptativa à complexidade do crime moderno (GONÇALVES, OLIVEIRA; ASSUNÇÃO, 2021).

Essas técnicas colaborativas se tornaram instrumentos indispensáveis para desvendar esquemas criminosos complexos, onde a obtenção de provas por meios tradicionais é notoriamente difícil. Ao contrário de corroer a integridade do sistema acusatório, a colaboração premiada pode fortalecer os princípios de justiça ao permitir que casos, que de outra forma permaneceriam insolúveis, sejam esclarecidos. Além disso, ao incentivar a cooperação entre as partes envolvidas, a colaboração premiada pode de fato contribuir para um equilíbrio de poderes no processo judicial, mantendo intacta a paridade entre acusação e defesa (GONÇALVES, OLIVEIRA; ASSUNÇÃO, 2021).

O cenário atual, que incorpora medidas do Pacote Anticrime, pode de fato desafiar os conceitos tradicionais da relação entre acusação e defesa em contextos jurídicos. No entanto, este é precisamente o ponto onde a efetividade instituto da colaboração premiada no Brasil pode ser mais frutífera. Ao estipular que um juiz deve avaliar qualquer acordo colaborativo, a lei (art. 4º, §7º-A, da Lei nº 12.850/2013 inserido pelo Pacote Anticrime) assegura um nível de escrutínio e transparência que visa proteger os direitos de todas as partes envolvidas (BRASIL, 2019).

Embora as negociações preliminares aconteçam longe do olhar público, esse caráter confidencial pode ser visto não como uma falha, mas como uma característica necessária para o sucesso da colaboração. A confidencialidade pode encorajar a abertura e a honestidade, elementos essenciais para que a colaboração premiada alcance seu potencial máximo em desmantelar redes criminosas complexas.

Além disso, a categorização da colaboração premiada como um “negócio jurídico” (art. 3º-A da Lei nº 12.850/2013, adicionado pelo Pacote Anticrime) reforça a ideia de que, para ser válido, o acordo deve ser feito sem coerção ou influência indevida. Esse conceito, oriundo do direito civil, oferece uma base sólida para assegurar que o acordo resulta de uma negociação justa e equitativa entre as partes. É uma garantia embutida na legislação que assegura a voluntariedade e, portanto, a integridade do processo (BRASIL, 2019).

Dessa forma, em vez de subverter a avaliação crítica do juiz, esses aspectos do Pacote Anticrime e da Lei nº 12.850/2013 parecem trabalhar em conjunto para garantir que o instituto da colaboração premiada seja uma ferramenta eficaz, justa e transparente no sistema jurídico brasileiro, se forem seguidos todos os pressupostos pontuados na Lei.

A introdução do conceito de “negócio jurídico” no Direito Penal brasileiro pelo Pacote Anticrime pode ser vista como uma tentativa audaciosa, mas essencialmente progressista, de sincronizar elementos do direito privado com o direito penal. O foco tradicional na autonomia das partes no direito privado, quando aplicado corretamente no contexto penal, pode na verdade enriquecer o processo legal, adicionando um nível de flexibilidade e adaptabilidade necessárias para lidar com a complexidade do crime contemporâneo.

É certo que a coação é um fator crítico que deve ser rigorosamente monitorado para manter a integridade de qualquer acordo, como observado no art. 151 do Código Civil. No entanto, a estrutura legal do Pacote Anticrime não só reconhece a importância da voluntariedade, mas também introduz salvaguardas adicionais, como a avaliação judicial obrigatória de acordos de colaboração premiada (BRASIL, 2002).

A colaboração premiada, quando praticada dentro dos limites éticos e legais, é uma ferramenta potencialmente poderosa para desmantelar redes criminosas e promover a justiça. A sua integração cuidadosa dentro do sistema legal existente, inclusive com a possibilidade de medidas cautelares, pode realmente fortalecer, e não enfraquecer, os princípios fundamentais da justiça penal brasileira.

Neste cenário complexo, é possível que a ameaça de uso de medidas cautelares por parte da acusação pode pesar substancialmente na decisão do indivíduo de entrar em um acordo. Isso poderia configurar coação, o que, por sua vez, tornaria o negócio jurídico inválido (AMARAL; PORTO; FILHO, 2020). A tática, então, se mostra como uma manifestação de práticas inquisitivas, onde o controle físico e psicológico serve como uma alavanca de temor para reforçar a maquinaria punitiva do Estado.

Dando continuidade à questão da influência que a acusação detém no cenário jurídico, Ferrajoli (2002, p.600) oferece uma visão esclarecedora. Ele argumenta que a negociação entre acusação e defesa é antitética ao princípio do contraditório, inerente ao sistema acusatório. Esse tipo de interação, ao contrário, favorece práticas persuasivas camufladas pelo segredo, algo mais relacionado à inquisição. Assim, a suposta igualdade entre as partes no processo de colaboração premiada, como sugerido pelo Pacote Anticrime, torna-se uma letra morta, dada a desigualdade inerente entre elas (ANITUA, 2015).

O que se observa, então, é uma espécie de dança desequilibrada. Uma parte mais poderosa acaba dominando a outra mais vulnerável, tornando qualquer consenso alcançado teoricamente válido, mas praticamente discutível. Essa realidade compromete a busca pela verdade no processo penal, já que a rapidez e conveniência desses acordos ofuscam os critérios de justiça fundamentados na culpabilidade, segundo Anitua (2015).

A trama se complica ainda mais quando se traz ao palco a teoria econômica do direito. Nesse domínio, são pesadas as vantagens e desvantagens que conduzem o acusado ou investigado a tomar a decisão de entrar ou não em um acordo de colaboração premiada. Nesse ponto, a probabilidade de resultado favorável para a parte mais fraca é um fator decisivo (JORGE, 2019).

E então entra o elemento perturbador da prisão preventiva. O impacto psicológico dessa medida tem o poder de desorientar as faculdades racionais do indivíduo. Pode ser considerado uma “heurística” nas palavras de Kalkman (2019), ou seja, um fator externo que interfere na expressão da vontade livre do indivíduo. Imagine, então, o peso da ameaça da prisão preventiva como um gatilho que distorce a racionalidade da pessoa ao considerar o acordo. Nesse cenário, prisões preventivas podem assumir o papel de instrumentos de tormento psicológico, submetendo os acusados a pressões que rompem o tecido da legitimidade, através da coação (ANITUA, 2015).

Diante desses elementos, o processo penal se torna comercializado, seguindo uma lógica que, em algumas situações, incentiva a celebração de acordos em prol de uma abordagem repressiva, especialmente quando se trata da rápida desarticulação de organizações criminosas e da prisão de seus líderes. A liberdade de escolha do colaborador passa a ser tratada como um recurso adquirível pelo Estado, o que viola princípios constitucionalmente garantidos. Isso acontece porque o Ministério Público pode abusar de seu poder discricionário, causando medo ao ameaçar negociar a prisão preventiva, por exemplo.

Esta situação contradiz o papel esperado de uma parte do órgão acusatório no processo, pois cria uma disparidade evidente em relação ao acusado, infringindo um dos princípios mais fundamentais do modelo acusatório, como descrito por Ferrajoli (2002). Nesse sentido, há uma clara violação da igualdade de armas entre acusação e defesa, já que para garantir uma verdadeira paridade de armas entre as partes, a defesa deve ter as mesmas capacidades e poderes que a acusação, e seu papel contraditor deve ser respeitado em todos os estágios do processo.

Em resumo, o uso da prisão preventiva não deve visar à obtenção de provas, mas sim garantir a continuidade da persecução penal (SUXBERGER; MELLO, 2017). Portanto, a possibilidade de seu uso inadequado como instrumento de coerção demonstra que ainda existem raízes inquisitórias persistentes no sistema jurídico brasileiro. Além disso, a relativização de princípios constitucionais fundamentais no contexto da celebração de acordos de colaboração, da maneira como está sendo frequentemente praticada, representa mais uma ferramenta que impulsiona a abordagem repressiva e o incentivo ao punitivismo no país.

Em síntese, a prisão preventiva utilizada como instrumento de pressão para obter acordos de colaboração premiada é incompatível com os princípios fundamentais da justiça e dos direitos constitucionais dos acusados. Isso mina a integridade do sistema judicial, desvirtuando a colaboração em um expediente de coação, em oposição à livre e informada escolha do colaborador. 

Assim, a manutenção da igualdade de condições entre acusação e defesa é essencial para garantir um processo penal justo. A influência desproporcional da acusação nas negociações de acordos de colaboração premiada compromete a busca pela verdade e favorece práticas inquisitivas que não se alinham ao sistema acusatório.

A introdução de conceitos do direito privado, como o “negócio jurídico,” pode ser vista como uma abordagem progressista, desde que seja aplicada com cuidado para garantir a voluntariedade e a equidade nas negociações. A confidencialidade, quando utilizada adequadamente, pode fomentar verdades e a abertura necessária, contribuindo para o êxito da colaboração premiada no desmantelamento de redes criminosas complexas.

Portanto, a prisão preventiva usada como meio de coerção para acordos de colaboração premiada é uma prática prejudicial tanto ao processo judicial quanto aos princípios fundamentais que devem nortear o sistema de justiça nacional. Para fortalecer o ordenamento jurídico brasileiro e promover uma verdadeira justiça, é imprescindível rejeitar essa abordagem, defender os direitos constitucionais dos acusados e garantir que a colaboração premiada seja realizada de maneira transparente e legal.

5   A VALORAÇÃO DA COLABORAÇÃO PREMIADA PARA DECRETAÇÃO DE CAUTELARES CONTRA O DELATADO

A colaboração premiada, enquanto instrumento processual, tem despertado intensos debates no cenário jurídico brasileiro, especialmente quando se trata da decretação de medidas cautelares contra os delatados. Esta abordagem crítica se centra na preocupação com a possível fragilidade probatória e a excessiva dependência desse mecanismo para a imposição de restrições severas, como a prisão.

Inicialmente, é importante destacar que a colaboração premiada, por sua natureza, carrega uma ambiguidade intrínseca: enquanto potencialmente valiosa para desvendar esquemas complexos de criminalidade, ela pode também ser um terreno fértil para acusações infundadas ou motivadas por interesses ocultos. Essa dualidade se torna problemática no contexto da decretação de prisões cautelares, pois coloca em xeque a solidez da prova que fundamenta tais medidas.

Gustavo Badaró, em suas análises, ressalta a necessidade de um rigoroso exame das colaborações premiadas. Vale aferir que, sem um controle probatório efetivo, o risco de injustiças aumenta significativamente, principalmente quando a liberdade do indivíduo está em jogo. Essa perspectiva é essencial em um sistema jurídico que valoriza o devido processo legal e a presunção de inocência.

Por outro lado, vale enfatizar a importância de não se basear exclusivamente em declarações de colaboradores para a decretação de medidas cautelares. A unilateralidade desses depoimentos, desprovidos de corroboração independente, fragiliza a estrutura probatória e pode levar a decisões cautelares precipitadas e desproporcionais. A decretação de prisão baseada unicamente em colaboração premiada, sem outras provas que a sustentem, desafia princípios fundamentais do Direito, como o da proporcionalidade e da necessidade. Esta prática pode levar à violação de direitos e garantias individuais, algo inadmissível em um Estado Democrático de Direito.

Além disso, a dependência da colaboração premiada como meio único de prova para a decretação de medidas cautelares pode resultar em uma espécie de ‘justiça negociada’, onde a verdade factual fica em segundo plano, dando lugar a uma dinâmica processual questionável do ponto de vista ético e jurídico.

Outro ponto de preocupação é o possível impacto dessa prática na credibilidade do sistema de justiça. A percepção de que decisões judiciais possam ser baseadas em provas frágeis ou apenas em negociações compromete a confiança pública no judiciário e na equidade do processo legal.

A necessidade de equilíbrio entre a eficácia na persecução penal e a proteção dos direitos fundamentais dos acusados é um desafio constante. Enquanto a colaboração premiada pode ser uma ferramenta valiosa para desmantelar crimes complexos, seu uso deve ser cuidadosamente balanceado com a garantia de um processo justo e com provas sólidas.

Nesse sentido, é fundamental que haja mecanismos de controle e verificação da veracidade e relevância das informações fornecidas pelos colaboradores. A simples aceitação de suas declarações, sem uma investigação aprofundada e sem o confronto com outras provas, não deve ser suficiente para a imposição de medidas tão gravosas como a prisão.

A jurisprudência e a legislação devem, portanto, evoluir no sentido de estabelecer critérios mais rigorosos para a decretação de medidas cautelares com base em colaboração premiada. Isso inclui a exigência de corroboração das informações e a avaliação cuidadosa da necessidade e proporcionalidade da medida.

Assim, a colaboração premiada, apesar de ser um recurso valioso no combate à criminalidade, não pode ser vista como um atalho para a justiça ou como uma ferramenta para contornar os princípios básicos do direito penal e processual penal. Sua aplicação requer um equilíbrio cuidadoso entre a eficiência da justiça criminal e a proteção dos direitos e liberdades fundamentais.

Portanto, a crítica de doutrinadores como Gustavo Badaró e Vinícius Gomes de Vasconcelos à utilização da colaboração premiada como único fundamento para a decretação de medidas cautelares ressalta a necessidade de um sistema de justiça mais equilibrado e comprometido com a verdade e a justiça substancial, evitando abusos e garantindo a proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos.

6  COLABORAÇÃO PREMIADA À LUZ DO DIREITO COMPARADO

Embora já estabelecida em diversas legislações internacionais, é de suma importância entender como a colaboração premiada funciona em diferentes contextos nacionais, considerando as especificidades de cada país, como a estrutura do sistema judiciário e o tipo de sistema jurídico em vigor, seja civil law ou common law. Além de olhar para a legislação italiana como um ponto de referência, o sistema jurídico americano também oferece contribuições valiosas. Isso se deve ao fato de que nos Estados Unidos, o sistema de common law e a maior autonomia concedida aos promotores de justiça abrem novas possibilidades para a aplicação e utilidade da colaboração premiada no contexto brasileiro.

O Brasil não é considerado um dos pioneiros na implementação do mecanismo de colaboração premiada. Esse conceito já está bem estabelecido em outros países, particularmente na Itália e nos Estados Unidos. Na Itália, o sistema de justiça negocial tem raízes históricas profundas, conexas ao surgimento das organizações mafiosas. O termo “máfia” foi usado pela primeira vez em 1865 durante um diálogo entre o prefeito de Palermo e o ministro do Interior, referindo-se a uma associação criminosa. Inicialmente, a máfia funcionava como uma espécie de poder intermediário entre o Estado italiano e a sociedade, especialmente em áreas onde o Estado tinha uma presença apenas formal. Nesse sentido, Bittar afere que o âmbito de surgimento da máfia pode ser elevado como o acordo entre a força pública e os criminosos para recuperar os itens roubados (BITTAR, 2016).

Com o tempo, essa “velha máfia” começou a desaparecer, especialmente no final do século 19 e início do século 20, quando muitos sicilianos migraram para os Estados Unidos. Isso deu origem a novos grupos mafiosos americanos com ligações à Sicília. Embora o regime fascista tenha combatido a máfia, ela ressurgiu após a Segunda Guerra Mundial. Os Estados Unidos, buscando facilitar o desembarque de suas tropas na Sicília, estabeleceram relações com a máfia americana de origem siciliana, nomeadamente com o mafioso Lucky Luciano, colocando pessoas ligadas à máfia em posições políticas na Sicília (RODRÍGUEZ, 2010).

Após esses eventos, o papel da máfia na sociedade italiana mudou drasticamente. O acordo entre o Estado e os criminosos chegou ao fim, e a máfia começou a oferecer serviços de proteção aos proprietários de terras. Eles garantiam a segurança em troca de uma porcentagem das colheitas. Esse fenômeno, que pode ser considerado uma das primeiras formas de crime organizado, expandiu-se rapidamente não apenas na Itália, mas em todo o mundo. Diante desse cenário, o Estado italiano foi compelido a desenvolver estratégias para combater essas organizações criminosas. Foi assim que surgiu o conceito de “pentitismo”, ou arrependimento, uma forma de colaboração premiada adaptada às peculiaridades da sociedade italiana (BITTAR, 2016).

Semelhante ao Brasil, a Constituição Italiana também estabelece, em seu artigo 112, que o Ministério Público tem o dever de iniciar ações penais, consolidando assim o princípio da obrigatoriedade da ação penal. Isso, combinado com a adoção do sistema de civil law, faz com que o sistema jurídico italiano necessite de uma abordagem legislativa mais detalhada, especialmente em aspectos procedimentais, em comparação com o sistema americano (SANTOS, 2016).

No entanto, vale ressaltar que, na prática, os promotores italianos têm flexibilizado o princípio da obrigatoriedade da ação penal. Diversos fatores, como novas leis incriminadoras, a fragilidade da polícia judiciária e altos níveis de criminalidade em certas áreas, além da sobrecarga do Ministério Público, têm levado os promotores a adotar um princípio mais discricionário na seleção de casos que realmente necessitam de ação pena (SANTOS, 2016).

O sistema legal italiano abrange tanto leis materiais quanto procedimentais relacionadas à colaboração premiada. Essas leis oferecem benefícios ao colaborador que são bastante semelhantes aos previstos na legislação brasileira. Historicamente, o Estado italiano tem adotado uma abordagem dual: ao mesmo tempo em que endurece as penas para crimes relacionados a organizações criminosas, também oferece maiores incentivos para os colaboradores. Essa estratégia tem o efeito de não apenas encorajar a colaboração, mas também de desestimular a participação em grupos criminosos, especialmente entre os jovens (BITTAR, 2016).

Quando se trata dos procedimentos para a colaboração premiada, a legislação italiana busca minimizar as ambiguidades, estabelecendo regras claras que regem o comportamento de todos os envolvidos no processo. Por exemplo, a lei italiana exige evidências adicionais para corroborar a veracidade das informações fornecidas pelo colaborador, estipula medidas de proteção específicas para o colaborador e sua família, e detalha os benefícios penitenciários que podem ser concedidos ao colaborador (MARIN, 2022).

Assim, fica evidente que o sistema jurídico italiano tem muitas semelhanças com o sistema brasileiro, tornando seu estudo mais acessível devido à clareza e especificidade das leis que regem a colaboração premiada.

Ao contrário da Itália, que opera sob o sistema de civil law, os Estados Unidos adotam o sistema de common law, que permite uma maior discricionariedade aos promotores na condução de ações penais, conhecido como “prosecutorial discretion”. Isso significa que, se um promotor optar por não prosseguir com um caso, o Judiciário não tem autoridade para intervir. Essa abordagem cria uma dinâmica de negociação entre acusação e defesa que é fundamentalmente diferente daquela encontrada nos sistemas italiano ou brasileiro (SANTOS, 2016).

A prática de usar a colaboração de um coautor como evidência tem suas raízes no sistema jurídico anglo-saxão. Esse sistema favorece o uso de mecanismos como o plea of guilty e o plea bargaining, que são processos de negociação entre a acusação e a defesa. Nos Estados Unidos, o procedimento do plea bargaining é regulamentado pela Federal Rules of Criminal Procedure, Rule 11 – Pleas. O réu tem três opções: declarar-se culpado, não contestar a acusação sem admitir culpa, ou declarar-se inocente. Se o réu optar pelo silêncio, presume-se que ele se declara inocente (GOUVEIA FILHO, 2019).

O plea bargaining é, na verdade, um processo de negociação que pode ocorrer antes mesmo do início do julgamento. Durante esse processo, o Estado pode oferecer uma redução das acusações ou uma diminuição das sanções em troca de uma confissão de culpa do réu, que pode também incluir informações sobre esquemas criminosos dos quais ele faz parte. Isso leva a uma renúncia de certos direitos que o réu teria se o caso fosse a julgamento. Posteriormente, em uma audiência, o réu deve expressar sua decisão de aceitar o acordo perante um juiz, que o informará sobre a renúncia de seus direitos (GOUVEIA FILHO, 2019).

Nesse sentido, o plea bargaining nos Estados Unidos é mais do que um simples acordo; é um contrato entre a acusação e a defesa, determinando a pena que será imposta ao réu. Esse processo é regido por princípios contratuais e oferece uma abordagem mais flexível e utilitária à justiça criminal, em comparação com sistemas que operam sob o princípio da obrigatoriedade da ação penal.

A colaboração premiada representa uma ferramenta valiosa no combate à criminalidade, e sua implementação e prática variam significativamente de acordo com o sistema jurídico de cada país. Enquanto a Itália, sob seu sistema de civil law, desenvolveu um modelo altamente estruturado e codificado, centrado em garantias processuais e proteções ao colaborador, os Estados Unidos adotam uma abordagem mais discricionária sob o sistema de common law. Este último permite acordos mais flexíveis entre a acusação e a defesa, através do mecanismo do plea bargaining, que muitas vezes resulta em resoluções mais rápidas e eficientes de casos criminais. Ambos os modelos oferecem lições importantes para países como o Brasil, que busca otimizar suas próprias práticas de colaboração premiada.

É de grande relevo que qualquer sistema jurídico que opte por implementar ou reformar práticas de colaboração premiada faça isso de forma a equilibrar as necessidades da justiça penal com as garantias de direitos fundamentais. O estudo do direito comparado oferece uma rica contribuição de abordagens que podem ser adaptadas às peculiaridades locais. Para o Brasil, isso pode significar integrar a discricionariedade e flexibilidade do modelo americano com o rigor e as proteções processuais do modelo italiano. O objetivo final é criar um mecanismo eficaz que não apenas ajude na desarticulação de organizações criminosas, mas também preserve os princípios, como o do devido processo legal.

Por fim, a colaboração premiada não deve ser vista como uma chave para todos os problemas associados ao crime organizado e à corrupção. Ela é apenas um dos muitos instrumentos à disposição do Estado para alcançar a justiça. No entanto, o seu uso eficaz pode representar um avanço significativo na capacidade de um país enfrentar esses desafios de maneira mais eficaz. Para isso, a troca de experiências e estratégias entre diferentes jurisdições, tal como promovido pelo estudo do direito comparado, é não só valiosa, mas indispensável.

CONCLUSÃO

O estudo em tela abordou a complexa relação entre a colaboração premiada, a valoração da prova e a utilização de mecanismos como a prisão cautelar no contexto da justiça penal brasileira. A centralidade desse tema se manifesta tanto no potencial de acelerar o curso da justiça em casos graves como na problemática ética que ele instaura, particularmente no que tange aos direitos fundamentais do acusado.

A visão garantista, que serve como a base filosófica deste estudo, ressalta que a busca pela eficácia no sistema judicial não pode, sob nenhuma circunstância, atropelar os direitos individuais assegurados pela Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, o uso da prisão cautelar para induzir a colaboração premiada se mostra especialmente problemático, tendendo mais à coerção do que a uma colaboração genuinamente voluntária. Essa prática levanta sérias dúvidas sobre a ética e a validade do sistema, pois coloca em risco a integridade do devido processo legal.

Ao ampliar o olhar para o Direito Comparado, observou-se que tais desafios são universais e não exclusivos do cenário brasileiro. O sistema italiano, com sua histórica operação ‘Mãos Limpas’, e o sistema norte-americano, com seu estabelecido “plea bargaining”, apresentam dilemas semelhantes. Ambos buscam um equilíbrio delicado entre a eficácia e as garantias processuais, mas também enfrentam críticas em relação à potencial violação dos direitos dos acusados.

Essa análise comparativa permite não apenas refletir sobre as práticas de outros sistemas judiciais, mas também repensar e, eventualmente, remodelar o próprio sistema brasileiro. A contribuição de diferentes abordagens fornece um espectro mais amplo de possibilidades e desafios, permitindo que se possa adotar práticas que honrem tanto o objetivo de eficácia quanto o respeito intransigente pelos direitos fundamentais.

No cerne deste trabalho, foi evidenciada a necessidade de um equilíbrio meticuloso entre eficácia processual e garantias individuais. Isso se revela como um desafio monumental, que torna inadmissível qualquer resposta simplista. A complexidade desse equilíbrio, envolta em variáveis múltiplas, sinaliza que o sistema de colaboração premiada não é um remédio judicial, mas sim um instrumento que requer manuseio cuidadoso e criterioso.

Entre as contribuições deste estudo, destaca-se o olhar crítico e profundo sobre o modus operandi, virtudes e falhas do sistema de colaboração premiada. A análise proposta objetivou servir como um catalisador para futuras reformas ou aperfeiçoamentos nas práticas jurídicas e processuais brasileiras.

A pesquisa mostrou que não é suficiente tratar a colaboração premiada como um fim em si mesma; ela deve ser continuamente avaliada e reavaliada dentro do contexto mais amplo do sistema de justiça penal. Este é um domínio em evolução, sensível às mudanças sociais, avanços acadêmicos e pressões políticas, necessitando de constante revisão para que suas práticas estejam em consonância com os princípios democráticos.

Assim, conclui-se que a colaboração premiada, em sua complexa interação com a valoração da prova e a prisão cautelar, não é um tema que permita conclusões precipitadas ou definitivas. A verdadeira resposta à problemática levantada talvez resida na contínua busca por um sistema mais justo e eficiente, um sistema que se equilibra habilmente entre a busca pela verdade e o respeito pelos direitos fundamentais do indivíduo.

Finalmente, o estudo reitera a indispensabilidade do pensamento crítico e do diálogo interdisciplinar, nacional e internacional, como ferramentas imprescindíveis para o aprimoramento e a legitimidade de um sistema judicial que tem como sua finalidade última a realização da justiça.

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