REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202410272335
Marcella Della Vedova Albuquerque
Orientador: Henry Guilherme Ferreira Andrade
RESUMO:
O presente artigo tem por objetivo realizar uma análise acerca dos direitos reprodutivos da mulher, por meio do uso de métodos contraceptivos, que são cerceados por médicos que se respaldam em preceitos religiosos para se recusarem a prescreve-los. Foram analisados aspectos históricos sobre os direitos das mulheres, sobretudo no que tange ao uso de métodos contraceptivos, a origem destes, a trajetória da Igreja Católica como peça fundamental no controle de massa ao longo da história e o que o Conselho Federal de Medicina traz em seu Código de Ética para embasar os dois lados desse estudo, o direito à saúde e o direito da liberdade religiosa. O artigo foi produzido através de pesquisas bibliográficas e procura propor uma reflexão aos limites da liberdade religiosa quando se trata da saúde reprodutiva da mulher, abordando o uso de contraceptivos, a influência da igreja, a ética médica quando se trata da prescrição e os aspectos históricos que provocaram tudo isso. Desse modo, criou-se aqui um estudo que desperta reflexões sobre o atual cenário da comunidade médica e seu uso da religião dentro dos consultórios.
Palavras – Chave: Métodos contraceptivos. Liberdade religiosa. Direitos reprodutivos.
ABSTRACT:
The following article is a study and a reflection about women’s reproductive rights, through the use of contraceptive methods, that are blocked by medics that take reason in religious reasons to refuse themselves to prescribe them. Was made an analysis on the historical aspects of women’s rights, especially the ones about contraceptive methods, where they came from, the catholic’s church trajectory as fundamental part of the mass control through history an what the federal consil of medicine brings on their statutes to support both sides of this study, the health’s right and the right of religious freedom. The article was made through bibliographic research and has as it’s goal propose a reflection on the religious freedom’s limits when talking about woman’s reproductive health.
Keywords: Contraceptive methods. Religious freedom. Reproductive rights.
1 INTRODUÇÃO
Tem-se como Direitos Humanos os direitos “universais, inerentes à condição humana e não relativos a peculiaridades sociais e culturais de uma dada sociedade”, reconhecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948. Nesse sentido, também se encaixam nessa classe os direitos das mulheres e direitos reprodutivos, onde ambos foram conquistados após muito tempo e luta.
A mulher, imersa na cultura ocidental e vista como ser doméstico geração após geração, teve sua criação e educação voltadas para afazeres familiares. Nunca a prioridade, foi deixada de lado pela história, mesmo sendo parte fundamental dela.
Felizmente, as que vieram antes do tempo atual criaram suas revoltas. Perpassando pelas sufragistas até o movimento feminista hodierno, elas questionaram as normas e os costumes que as oprimiam e criaram, pouco a pouco, um mundo menos hostil para as que vieram depois. Não que os avanços tenham sido imediatos ou que o mundo de hoje seja igualitário, longe disso, mas as mulheres estão conquistando seus espaços um dia de cada vez. Ao ser questionada sobre o que a motivou a tomar o caminho para se tornar a artista e ativista da paz que é hoje, Yoko Ono respondeu “Eu me rebelei contra minha criação. Sem dúvida alguma, ela me influenciou”. (SALLIS, 2020, p.27) No curso da história, foram as meninas oprimidas que se tornaram mulheres e lutaram contra o sistema que as esquecia.
Peças-chave na diminuição da mulher ao longo dos anos são as religiões abraâmicas, em sua maioria católica e protestante, se elas foram – e são – usadas como meio de manipulação em massa desde suas fundações, certamente são personagens importantíssimos no que tange a domesticação e opressão feminina. De acordo com o artigo da BBC (2022), que traz dados do Datafolha de 2022, 49% dos entrevistados a nível nacional se dizem católicos, 26% evangélicos e 14% não possui religião, o que demonstra a força das religiões abraâmicas no Brasil.
Nessa atmosfera, a Igreja Católica munida da exploração da fé de muitos, é personagem constante na história. Embasada em suas escrituras, ela impôs grande parte dos costumes que perduram até hoje, ela está enraizada em todos os aspectos da cultura brasileira.
As demandas que movem os movimentos pela luta dos direitos das mulheres muitas vezes confrontam os princípios perpetuados pela Igreja Católica. Muitos são aceitos hoje porque foram conquistados décadas atrás, mas certamente não foram aceitos pacificamente. É dificílimo pregar a independência e a igualdade para uma comunidade que, pelos últimos dois mil anos, insistiu em hostilizar a mulher e lhe permitiu o mínimo de liberdade.
A Igreja católica é abertamente contra o uso de anticoncepcionais. Métodos contraceptivos com taxas maiores de sucesso e apoio da comunidade científica, como o preservativo, pílula anticoncepcional, DIU (Dispositivos Intrauterinos), entre outros, são desacreditados pelo catolicismo.
Os problemas graves gerados pelo desuso de métodos contraceptivos não são suficientes para que a igreja revise tal regra arcaica, já que o próprio Papa Francisco, em 2016, mencionou, segundo matéria do El País (2016) o uso “permitido” apenas em regiões afetadas pelo Zika Vírus, afirmando que nesse caso “não é um mal absoluto”. Prevenir doenças, planejar famílias, salvar a vida de milhares de mulheres, é.
A problemática tratada aqui está em torno da negativa, por parte de médicos religiosos, a prescreverem e aconselharem o uso de métodos contraceptivos que realmente impõem barreiras à concepção, ao contrário dos métodos “naturais” encorajados por essa parcela. Com isso, fica cerceado o direito à saúde das mulheres, por conta da religiosidade dos profissionais que deveriam ampará-las?
Desse modo, o presente estudo objetiva analisar e propor uma reflexão acerca do conflito entre a liberdade religiosa do médico e o melhor atendimento da paciente, até onde a religião de um pode interferir no tratamento da outra? Quais os limites a serem traçados quando se trata da medicina e da religião?
2 EVOLUÇÃO NORMATIVA QUANTO A PRÁTICAS CONTRACEPTIVAS E PANORAMA ATUAL
A ideia de que métodos contraceptivos e como estes seriam difundidos pela sociedade são tópicos que careceram muito debate e atenção para se tornarem realidade. A Conferência do México (1984) teve caráter inovador ao dar atenção à condição feminina e, consequentemente, ao planejamento familiar, enfatizando a importância do controle acerca de suas fertilidades ser, de fato, das próprias mulheres e que isso era peça chave para que estas conquistassem seus devidos direitos. Dez anos depois, a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD) em 1994, que contou com a participação do Brasil, deu aos direitos reprodutivos a condição de parte integrante e indissociável dos direitos humanos. Tudo isso foi reafirmado e ampliado na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim no ano 1995.
No Brasil, ainda que este tenha participado de várias conferências e firmado acordos, tais discursões demoraram um pouco para se tornarem realidade, principalmente por conta do atraso de temáticas como essa por conta do regime militar.
A pauta da saúde integral da mulher foi retomada junto do processo de redemocratização e impulsionada pelos avanços das conquistas femininas. A Lei do Planejamento Familiar, nº 9.263 de 1996, foi o que tornou esses direitos uma realidade, o artigo 226 da Constituição Federal de 1988 faz remissão à ela ao trazer, em seu sétimo parágrafo:
Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. (BRASIL, 1988)
Os métodos anticoncepcionais atuais, como a pílula anticoncepcional e o DIU foram introduzidos na sociedade na década de 1960. A finalidade da introdução destes foi controlar e reduzir o crescimento populacional, sem qualquer interesse na melhoria da qualidade de vida de mulheres e seus objetivos.
De acordo com o Manual de Anticoncepção da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (2015), “Anticoncepção corresponde ao uso de métodos e técnicas com a finalidade de impedir que o relacionamento sexual resulte na gravidez. É recurso de Planejamento Familiar, para a constituição de prole desejada e programada de forma consciente.” Além disso, tais métodos e técnicas tem sua eficácia – a capacidade destes de proteger contra gravidez não desejada e programada – medidas por meio do Índice Pearl, o mais utilizado no meio médico-científico.
A eficácia geralmente é dada pelo Índice de Pearl, que corresponde ao número de gestações a cada 100 mulheres ao ano, em uso de um anticoncepcional. O Índice Pearl dos AOC’s varia entre 0,2 a 3/100 mulheres/ano, para o uso perfeito e típico, respectivamente, segundo GUILLEBAUD J. (2004, apud FEBRASGO, 2015).
O manual traz, ainda, quatro conceitos ao tratar dos métodos contraceptivos admitidos, sendo eles a eficácia, segurança, escolha do método e critérios de elegibilidade, classificadas da seguinte forma:
EFICÁCIA | É a capacidade deste método de proteger contra a gravidez não desejada e não programada. É medida pelo índice Pearl. |
SEGURANÇA | Potencial do método causar riscos à saúde. Quanto maior a segurança, menor a probabilidade de trazer qualquer tipo de risco à saúde de quem o utiliza. |
ESCOLHA DO MÉTODO | Soma da preferência do paciente e das características clínicas deste, restrições e fatores que podem privilegiar um método em relação a outro. |
CRITÉRIOS DE ELEGIBILIDADE | É o conjunto de características apresentadas pelo candidato ao uso de determinado método, que indicam se a pessoa pode ou não usá-lo. |
Desse modo, pode-se constatar que os métodos contraceptivos disponíveis atualmente foram extensivamente testados e estudados para serem admitidos como métodos eficazes, ainda que a eficácia de uns se sobreponha a de outros.
Os métodos encorajados pela comunidade católica são os chamados “métodos baseados na percepção da fertilidade”. De acordo com o Manual de Anticoncepção da Febrasgo:
Estes métodos fundamentam-se no ciclo menstrual da mulher e nas características biológicas da reprodução humana, que permitem a identificação de um período específico em que existe a possibilidade de fecundação. Para isso, torna-se necessário que a mulher aprenda a reconhecer o início e o fim de sua janela fértil, além da responsabilidade compartilhada com seu parceiro, características pelas quais são também conhecidos como métodos comportamentais de abstinência periódica ou naturais. (2015, p.238)
Assim, tais métodos podem ser divididos como: métodos baseados no calendário, usa-se o registro dos dias do ciclo menstrual em um calendário (métodos: dias fixos e rítmico – tabelinha ou Ogino-Knaus); métodos baseados em sintomas, que dependem da observação de sinais que indicam fertilidade (métodos: da ovulação, também conhecido como Billings ou método do muco cervical, e temperatura corporal) e há também um método que combina ambos mencionados, o sintotérmico.
Não cabe aqui determinar como exatamente cada um deve ser feito, mas faz-se necessário demonstrar as taxas de gravidez com uso correto e consistente e abstinência nos dias férteis, por meio da tabela abaixo:
Vale enfatizar que nenhum desses métodos protege contra doenças sexualmente transmissíveis e que a manutenção deles não é tão simples como parece. Tendo como panorama o público que procura postos de saúde para adotar métodos contraceptivos que, em sua maioria, é formado por pessoas de baixa renda, é de se pensar se eles realmente são aptos a manter métodos como esses, que exigem cuidado, disciplina e, sobretudo, atenção. Inserir um método como estes na realidade da maior parcela da população brasileira é, no mínimo, desafiadora, tendo em vista que os núcleos familiares de baixa renda tendem a uma taxa maior de concepção.
A classe médica atualmente é regulada pelo Código de Ética Médica, é a resolução número 2.217 do Conselho Federal de Medicina, sua última atualização se deu em 2019.
No princípio fundamental VII, no primeiro capítulo do Código, e também no segundo, que trata dos direitos dos médicos, em seu tópico nove, o médico religioso encontra embasamento para recusar-se a prescrever os métodos anticoncepcionais já mencionados:
Capítulo I: VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.
[…]
Capítulo II: IX – Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2019)
Tais diretrizes visam proteger o direito constitucional da liberdade religiosa no âmbito da medicina. Porém, as mesmas resguardam o médico e ignoram o paciente. Veja bem o que diz ser um direito do médico mencionado acima, o profissional pode reservar-se da prescrição do anticoncepcional desde que isso seja contra sua consciência, mas trata-se de algo mais que provado pela ciência, e encorajado por grande parte da comunidade ginecológica-obstétrica e, ainda assim, é direito do médico recusar-se.
Tendo em vista que o uso de métodos contraceptivos não é tido como algo urgente ou em caráter de emergência, como trata o capítulo I, o médico não é encorajado a deixar sua crença de lado, mesmo que, a certo modo, a falta do método poderá sim gerar danos à saúde da paciente. Nessa perspectiva, ocorre aqui uma sobreposição do direito individual do médico sobre o direito difuso, da coletividade, levando-se em conta que a saúde pública é colocada em segundo plano.
É interessante como o próprio código de contradiz quando se tem esta temática em discussão. Trazendo novamente os dois primeiros capítulos, têm-se as seguintes resoluções:
Capítulo I: XXVI – A medicina será exercida com a utilização dos meios técnicos e científicos disponíveis que visem os melhores resultados.
[…]
Capítulo II: II – Indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2019)
Nesse sentido, se é dever do médico fazer uso dos meios aprovados e reconhecidos, que procuram entregar o melhor resultado. Resta então o conflito da possibilidade do médico em se recusar a prescrever um método contraceptivo que preenche esses dois requisitos. A medicina pode recusar algo que vai contra sua consciência, mas ela também deve agir munida do método cientificamente comprovado que, consequentemente, trará o resultado almejado.
O Código (2019) trata em seu quarto capítulo dos direitos humanos no âmbito da classe. De acordo com o art. 24 deste, é vetado ao médico “Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.” Trazer este artigo para a discussão é fundamental, visto que no panorama da mulher com pouca – ou nenhuma – instrução sobre métodos contraceptivos, é extremamente fácil que o médico a convença da falsa eficácia das preferências dele acerca do assunto. Ele, sendo um médico, é a autoridade no consultório e, para alguém ignorante, não vai muito além disso, se ele diz, é verdade.
Adentrando um pouco mais no Código de Ética Médica (2019), pode-se observar que o capítulo V traz em seu art. 34 a seguinte vedação: Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar danos, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.”
A parte final do artigo não é relevante para esta pesquisa, mas a primeira impulsiona um questionamento, se o médico deve deixar claro os riscos e objetivos do tratamento, como ele pode prescrever métodos anticoncepcionais de baixa eficácia deixando de fora o detalhe de que eles terão uma chance pequena de cumprir o objetivo?
Ainda no capítulo V, é fundamental a menção do art. 42 que veda a seguinte prática: “Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre método contraceptivo, devendo sempre esclarecê-lo sobre indicação, segurança, reversibilidade e risco de cada método.” Infere-se por meio desta vedação que caso a paciente opte por um método contraceptivo de sua preferência, o médico deve sustentar tal escolha. Não que isso deva ser feito sem uma análise firme acerca da saúde da paciente, sua rotina, restrições etc, todos esses fatores devem ser levados em conta pelo médico, para que ele demonstre à paciente que o método escolhido é de fato o ideal e, caso não seja, ele possa apresentar outras opções. Se a paciente ainda persistir em adotar o método que ela deseja, caso não haja perigo a sua saúde, o médico deve prescrevê-lo.
No mais, tal artigo seria suficiente para barrar todas as razões que os médicos em questão teriam para recusar a prescrição, porém eles se respaldam na liberdade que também é dada pelo Código. Faz-se necessário uma análise meticulosa por parte do CFM para que contradições como essas não sirvam de embasamento para membros da classe que não tem o melhor interesse de seus pacientes ao atendê-los.
3 ORDENAMENTO JURÍDICO, SAÚDE DA MULHER E DEMAIS NORMAS
A Lei do Planejamento Familiar, Nº 9.263 de 12 de janeiro de 1996, traz como direito de todo cidadão, como diz seu nome, a livre escolha acerca do planejamento de uma família. Em seu texto, é dito que todos têm o direito de criar sua prole e de reservar-se de tal, sendo papel do SUS (Sistema Único de Saúde) amparar os que o procuram com estas finalidades. Desse modo, quando alguém necessita de auxílio para engravidar, por exemplo, é dever dos servidores da saúde ajudarem de todas as formas permitidas em lei para que tal resultado seja alcançado. Do mesmo jeito, deve ocorrer quando o SUS é procurado com o objetivo de cuidados contraceptivos.
Num mundo ideal, todos os jovens teriam acesso à educação sexual e, assim, teriam um conhecimento amplo acerca de sua própria saúde, os cuidados que transitam não apenas em volta de uma vida sexual ativa, mas também sobre higiene básica, e vacinas como a do HPV (sigla em inglês para Papilomavírus Humano) e a necessidade de tomá-la. Os mais novos seriam orientados sobre métodos contraceptivos e como evitar ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) e, munidos de informações, teriam pleno poder de escolha quando a hora de planejar uma família finalmente chegasse.
Infelizmente, a realidade do Brasil encontra-se mais distante que um ideal digno desse cenário. Dados de 2023 mostram que um a cada sete brasileiros é filho de mãe adolescente, de acordo com o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sisnasc), braço do SUS, como mostra matéria divulgada no portal oficial do Governo Federal (2023). Além disso, a taxa de recorrência de gravidez após o parto é de 32%, o que demonstra claramente um “desplanejamento” familiar por parte das novas mães e uma negligência do sistema de saúde que deveria ampará-las.
Tal amparo é de suma importância, não só para as mães adolescentes, mas para todos aqueles que querem iniciar um núcleo familiar, aumenta-lo, ou mantê-lo como está. É garantido por lei, mas a norma não alcança grande parte dos postos de saúde espalhados por todo o Brasil.
Uma mulher quando procura a ajuda de profissionais de saúde deve ser orientada de todas as suas possibilidades e opções. Ela deve ser apresentada a todos os métodos contraceptivos e todos os aspectos de cada um e, caso escolha adotar um deles, seja informada dos possíveis efeitos colaterais e acompanhada na adaptação do que ela, juntamente de seu médico, escolha como o ideal. É assim que deve funcionar a parte dos contraceptivos garantidos na Lei Nº 9.263 de 12 de janeiro de 1996.
Agora, colocando em perspectiva as poucas mulheres que fogem das estatísticas e realmente procuram o sistema de saúde com este objetivo, o que é uma atitude louvável em diversos sentidos, elas estão cuidando delas mesmas e até daqueles ao redor, visto que o muitas não querem que a família aumente porque têm consciência de que não dariam conta de criar e amparar mais um.
Estas mulheres encontram luz e esclarecimento de muitos profissionais dentro do sistema, são orientadas e acompanhadas da maneira que a precariedade da saúde pública permite, mas ainda assim são amparadas e saem com seus devidos métodos contraceptivos. Porém tal solução não ocorre para todas, isso porque existe uma parcela de médicos que se respaldam em princípios religiosos e se recusam a prescrever métodos contraceptivos que realmente impõe uma barreira para que a gravidez não ocorra.
Chega a ser irônico levar em conta todos os avanços dos movimentos que incentivam a liberdade e os direitos das mulheres, que demoraram anos e anos para fazer o mundo de hoje uma realidade menos hostil para as mulheres, são reduzidos a tão pouco em uma consulta de postinho.
É importantíssimo para entender este cenário ter em mente que existem duas possibilidades para a mulher que procura auxílio médico na rede pública ou privada e se depara com um profissional que tenha as convicções aqui tratadas. Veja, uma parcela tem discernimento sobre a melhor alternativa para ela, mas não são todas que serão capazes de fazer tal distinção. Assim, a parcela que não tem tanto conhecimento para perceber que os métodos alternativos apresentados pelo médico são arcaicos, ultrapassados e desencorajados, pode ser prejudicada pela conduta adotada.
Para esse grupo, geralmente mulheres de regiões periféricas, interioranas ou isoladas, que possuem pouco discernimento e acesso a informações, a palavra do médico é a mais absoluta verdade. Elas não vão parar para pensar se aquele médico realmente tem o melhor interesse delas em mente ou o dele mesmo. Afinal, é preciso ter como compromisso o bem-estar social amparado pela ciência e o melhor interesse coletivo em detrimento de sua fé pessoal, uma vez que o profissional poderia aqui incorrer em um desvio ético quanto às consequências de suas prescrições.
Vale pontuar, ainda, que alguns métodos não só previnem a gravidez, mas também evitam o contágio de ISTs, como o uso de preservativo. Nessa atmosfera, é extremamente comum mulheres procurarem ajuda médica por apresentarem sintomas de infecções sexualmente transmissíveis mesmo sendo casadas e tento como parceiro apenas o marido, que não compartilha os mesmos princípios de fidelidade que ela.
Veja, se uma mulher que se encaixa no cenário citado fosse orientada por um médico contra o uso de métodos contraceptivos que formam realmente uma “barreira”, terminasse contraindo alguma IST, seria o médico responsável de alguma forma pelo ocorrido? Tendo em vista que ele, enquanto profissional da área da saúde, falhou em prover a devida educação sexual para sua paciente ao prescrever métodos que deixam espaço para a contração de infecções.
3.1 Base Constitucional
3.1.2-Estado e a Tutela da Saúde
Para o filósofo grego Sócrates , o importante não é viver, mas viver bem. O dito “viver bem” pode se encaixar em diversos aspectos da vida (CHAUÍ, 2014), mas deve-se pontuar que a saúde do indivíduo é, certamente, um dos mais importantes. Tendo cuidado com seus cidadãos, a Constituição Federal que rege o país desde 1988 trouxe em seu artigo 196 a saúde como direito de todos e, ainda, dever do Estado.
Nesse sentido, a Carta Magna implementou o Sistema Único de Saúde (SUS) como o meio para que o cuidado com a saúde chegue aos seus cidadãos. O SUS procura reduzir o risco de doenças, tratando-as quando se faz necessário, e dar acesso universal e igualitário para todos os brasileiros que carecem dos serviços que este presta. Referência mundo afora, o SUS está presente na vida de todos os cidadãos deste país, ainda que muitos não saibam ou percebam sua influência.
Cabe ao Estado fomentar e manter o SUS, sendo dever dele prover pela saúde de sua comunidade. Grande parte dos atendimentos do sistema ocorrem nas UPAs (Unidade de Pronto Atendimento) e nos postos de saúde espalhados por todo o país. Os postinhos, como são comumente chamados, oferecem diversos tipos de atendimentos, desde a vacinação até consultas específicas com médicos especialistas em diversas áreas. Geralmente os pacientes dos postos são atendidos por enfermeiras, médicos generalistas e médicos da família, que analisam e acompanham a população da área coberta pelo posto.
Como generalistas, grande parcela dos médicos que prestam esses atendimentos são aptos para aterem-se aos cuidados mais “básicos” dos pacientes e, quando se fizer necessário, devem encaminhá-los para médicos especialistas, que atendem nas Clínicas Especializadas do SUS. Nessa atmosfera, cuidados contraceptivos simples, como orientação acerca da educação sexual e prescrição de métodos anticoncepcionais fazem parte das consultas de postinho, que buscam deixar o acesso a tais informações brando para aqueles que o procuram. Os postos de saúde dispõem de preservativos gratuitos e educação sobre a saúde sexual, basta procurá-los.
Desse modo, a Constituição (1988) traz em seu artigo, 200, inciso V que é dever do Sistema Único de Saúde “incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico.” Ou seja, cabe ao SUS usar novas abordagens, que são devidamente aprovadas e aconselhadas pela comunidade médica e Organização Mundial da Saúde, aproveitando-se das novas tecnologias desenvolvidas para melhor tratar sua população.
Os cuidados contraceptivos tiveram grande avanço tecnológico desde a década de 1960 até hodiernamente, fazendo deles um passo gigantesco no cuidado à saúde de todos, seja na prevenção de doenças ou no cuidado do planejamento familiar, também previsto pelo ordenamento jurídico brasileiro em lei homônima. Infere-se, portanto, que é necessário por parte do sistema de saúde aliar o cuidado com seus pacientes ao uso da melhor tecnologia disponível e permitida para tratar e alcançar os resultados almejados por seus usuários.
3.1.3 Liberdade Religiosa
O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 traz em seu inciso IV que: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias.” Nesse sentido, a Constituição de 1988 trouxe a liberdade religiosa como um direito inviolável de todo cidadão brasileiro.
Pode-se entender como tal liberdade o poder de cada um escolher suas crenças e segui-las como achar cabível. O Brasil como um todo é riquíssimo quando se trata de sincretismo religioso, mesmo que o foco sempre esteja nas Igrejas Católica e Evangélica, ainda há muito mais para ser explorado quando se trata de religiões por todo o país.
Tal diversidade acabou por gerar a necessidade de proteção para que ela possa continuar existindo. Por isso a liberdade religiosa passou a ser um direito constitucional gozado por todos os brasileiros. Infelizmente esse cuidado não alcança todos os cultos que carecem dele, tendo em vista que o preconceito religioso é algo enraizado desde os primórdios da cultura brasileira. Historicamente, aqueles que possuíam crenças divergentes da “socialmente aceita” sofreram consequências inimagináveis, e todo acervo que se tem hoje acerca das expedições bandeirantes e jesuítas na época da colonização do Brasil é prova disso.
O catolicismo foi imposto aos nativos desta terra muito cedo e com pouco tato. É difícil impor algo tão pessoal como a religião de forma tão bruta como foi feito com os povos ancestrais. Isso, junto da influência gigantesca da Europa católica nos primeiros passos do Brasil, fez com que outros cultos fossem menosprezados e até esquecidos.
É sabido como praxe de nossa cultura que a impunidade incentiva os culpados. E isso se mostra claro quando se tem em mente que, ao impor uma só religião, que acabou se ramificando com o tempo em outras correntes do cristianismo, criou-se uma intolerância pelo que a contraria. Foi adotada uma só verdade para os fiéis que, munidos de suas crenças, acham justo o preconceito com as que divergem delas, e tudo que vai contra a suas interpretações do que se tem como textos sagrados é errado e há de gerar punições eternas.
Infere-se, portanto, que quando um grupo tem o poder, nesse caso a fé de milhares, ele pode manipular uma grande massa e isso pode gerar conflitos. Um embate clássico que perdura há séculos é a religião contra a ciência. Trazida de volta à luz com o fim da Idade Média, quando todas as explicações provinham do clero, o Renascimento trouxe à tona questionamentos que ficaram escondidos por séculos, e a Igreja perdeu uma parcela de seu poder por conta disso e um conflito nasceu, em assuntos da ciência, a fé pode intervir? Ou melhor, quando se trata da fé, a ciência pode explicar?
A liberdade religiosa se encaixa aqui. Até quando esta pode ser justificativa para ações que não lhe pertencem?
4 DA RECOMENDAÇÃO POR MÉTODOS “NATURAIS”
A Igreja Católica, como uma instituição milenar e com grande poder, possui diversas diretrizes e orientações que norteiam a fé de seus seguidores acerca de inúmeros assuntos. Para a fé católica acerca da concepção é sabido que, “A lei natural determina que existe um vínculo inseparável entre a relação sexual e a transmissão de vida. Romper artificialmente essa união – como acontece com os anticoncepcionais – representa uma grave infração desta mesma lei natural.” (CIFUENTES, 2008).
Nesta esteira, o catolicismo condena e desencoraja o uso de métodos contraceptivos, afirmando que as consequências do uso destes são “nefastas”, nas palavras do bispo Rafael Llano Cifuentes, da diocese de Nova Friburgo:
Utiliza-se o corpo humano – especialmente o da mulher – como simples objeto de prazer banaliza-se a relação sexual – que está destinada a unir profundamente dois seres humanos e a ser fonte de vida – para convertê-la em mera satisfação instintiva; fomenta o desprezo da vida considerando a eventual gravidez como um perigo que deve evitar-se. (CIFUENTES, 2008).
A fala do bispo deixa claro o posicionamento do catolicismo na temática, desconsiderando completamente que nem todos compartilham o mesmo posicionamento.
Em 2009, diante da crise da AIDS o então Papa, Bento XVI, afirmou que a igreja estava na vanguarda do combate à doença, falando ainda que tal entrave era piorado pela distribuição de preservativos e que o problema real estava nas pessoas que não respeitavam o mandamento de não cometer adultério.
À época, o uso de camisinhas era, e ainda é, o meio para prevenir não apenas a transmissão do vírus, mas também inúmeras IST’s. Isso pode até ser visto pela igreja como um dilema moral e de fé, mas na realidade isso é um problema de saúde pública, que não há de ser resolvido ao apelar para o catolicismo e questionamentos acerca da moralidade de cada um.
Com o fenômeno da internet, o mundo de hoje é refém das redes sociais em vários sentidos, e estas viraram fontes infinitas de informações sobre tudo. Existe um nicho nas redes que abrange médicos religiosos e como eles veem certos ramos da medicina, nadando contra a maré e propondo alternativas mais “saudáveis” e espiritualizadas de certos tratamentos.
Tais profissionais aproveitam as redes sociais para disseminar informações de forma branda e pouco fiscalizada sobre o mundo da medicina, propondo outras soluções que não vão interferir com a fé católica. O problema disso, que é um problema das redes sociais como um todo, é que aqueles que consumem tais conteúdos raramente se dão o trabalho de checar fontes e acabam sendo facilmente manipulados, ainda mais quando é usado um argumento de tamanho peso quanto a religião.
Nesse sentido, um perfil na rede social Instagram, nomeado “Médicos Católicos” (2023) publicou um relato sobre uma consulta num posto de saúde, a paciente, jovem, pediu que o médico lhe prescrevesse um anticoncepcional. O profissional conta que ouviu sobre a vida da paciente e os motivos do desejo pelo método contraceptivo, e afirmou que não o passava. Mostrou a ela como funcionava o método de Billings e lhe passou informativos sobre pelo celular.
Esse mesmo perfil desacredita no uso de anticoncepcionais para tratar certas doenças, condena a laqueadura e a vasectomia e afirma ser esterilizante a pílula anticoncepcional.
Conteúdos como esse são extremamente fáceis de serem encontrados nas redes sociais. A médica ginecologista dona do perfil da mesma rede “Dra. Melissa Abelha” é membro da comunidade católica, encoraja o método da temperatura e afirma este como um meio ótimo para prevenir a gravidez, recomendando também o método de Billings, que ela diz ter eficácia em torno de 97% a 99%. O manual da FEBRASGO traz a taxa de eficácia deste método como três a cada cem mulheres no primeiro ano, com o uso 100% correto e consistente e com abstinência nos dias férteis. Ela fala em uma entrevista postada em seu perfil que “Nós dos métodos naturais, a gente só não usa muito a palavra concepção, porque na verdade a gente não é contra né, a gente é a favor da vida.” Esse é um exemplo claro de uma corrente que vai contra o comprovado pela própria comunidade médica, e esses “conselhos” dados pela metade alcançam pessoas que realmente vão segui-los e serão frustrados pelos possíveis resultados.
Nesse mesmo perfil ainda pode-se encontrar, entre diversos outros conteúdos do gênero, uma publicação que desencoraja o uso de DIU, afirmando ter presenciado quatro pacientes que engravidaram enquanto faziam uso dele. De acordo com a FEGRASGO, as taxas de falha com o uso típico são de 0,2% para o SIU-LNG e de 0,8% para o DIU de cobre, ressaltando-se que no uso perfeito os índices são de 0,2% e 0,6%, respectivamente. Os métodos contraceptivos permitidos têm falhas, inclusive os que a referida médica indica, mas desacreditar meios que funcionam e são recomendados por uma parcela gigantesca da medicina não é algo que ela deveria estar propagando.
A comunidade “Médicos Católicos Brasília” fez uma publicação sobre a objeção de consciência prevista no Código de Ética Médica, munindo de informação aqueles que querem fazer uso dela para se absterem de certas indicações e procedimentos. Não há nada de errado nisso, afinal, é um conhecimento aprovado pelo regulador da classe, mas deve ser disseminado com cuidado, tendo em vista que pode encorajar comportamentos como os demonstrados acima.
Ademais, o perfil “Dr. Felipe Duarte” faz um trabalho enorme de disseminar os anticoncepcionais como causas de tantos problemas enfrentados por mulheres. Ele, de fato, repudia o uso das pílulas e faz uso de um marketing apelativo para desencorajar o uso destas. Ele afirma, ainda, que “na Fantástica Fábrica de Bobagens” o uso de anticoncepcionais é encorajado porque são omitidos fatos das usuárias do método. Num reel, ele diz “estatística no rabo dos outros é refresco” trazendo como causa de um AVC (Acidente Vascular Cerebral) uma pílula anticoncepcional que, segundo ele, a paciente nem precisava. Ele não demonstra fontes da informação.
É perigosa a disseminação de informações desse modo. O que está em xeque é a saúde de milhares de mulheres que são submetidas a consultas com profissionais como os citados e que podem ser levadas a crerem em métodos alternativos sem de fato saberem os riscos inerentes a estes.
5 DA RESPONSABILIDADE ÉTICA QUANTO À SAÚDE EM DETRIMENTO DO VIÉS RELIGIOSO
Um dos maiores expoentes no ramo da responsabilidade civil, Aguiar Dias (apud ROSADO) , traz os conselhos e os cuidados como duas das obrigações implícitas no contrato médico, sendo elas deveres cabidos ao profissional.
No que diz respeito aos conselhos, o médico deve informar seu paciente sobre a enfermidade que o acomete e tudo que ela engloba, como o indivíduo vai ser afetado, o que a causou, os cuidados a serem tomados e o que fazer a partir dali, o tratamento, medicamentos e os riscos e efeitos colaterais inerentes a estes.
Nesse sentido, os cuidados não podem ser tomados sem as informações mencionadas anteriormente. Ou seja, o paciente tem de ter ciência do que está acontecendo consigo mesmo para partir aos tratamentos. Desse modo, o cuidado mencionado diz respeito a como as informações dadas serão postas em prática, o médico tem de estudar e analisar para que o tratamento ou intervenção tenha como objetivo o melhor interesse do paciente, que seja feito tudo no alcance do médico para ajudá-lo.
Tais conselhos devem ser atribuídos ao se tratar da escolha de um método contraceptivo, devendo o médico respeitar a escolha da paciente e, a partir desta, analisar os aspectos que podem prejudicar ou impulsionar o tratamento. Os dois devem trabalhar juntos para encaixar as necessidades da paciente com os riscos que ela talvez tenha ao usar determinado método contraceptivo.
Ao longo do artigo científico escrito por Aníbal Faúndes, médico chileno especialista em reprodução humana, e José Guilherme Cecatti, mestre em epidemiologia e atualmente professor de obstetrícia da Universidade de Campinas, sobre a operação cesárea no Brasil e seus desdobramentos, eles puderam concluir que, tratando-se da relação médico-paciente, esta encontra grande dificuldade ao tratar das escolhas reprodutivas. Afirmam, ainda, que entre a classe médica há certa tendência que os membros desta partam do princípio que eles sabem mais que o próprio paciente acerca do que é melhor para ele, sendo crença comum que o médico esteja acima dos desejos pessoais daqueles que o procuram. Nesse cenário, o grande entrave ético se dá na possibilidade do médico impor determinado método, seja por ação direta, por omissão de informação acerca do método que o paciente tem em mente e que não faz parte das recomendações do médico. Ou, ainda, pela indisponibilidade de determinado método no serviço de saúde.
É ultrajante a impunidade de um profissional de saúde que age desse modo. É dever do médico zelar pela saúde do paciente fazendo uso dos métodos disponíveis e permitidos, tendo ele de deixar de lado suas presunções pessoais e tratar daquele em seus cuidados da melhor maneira possível. Nessa perspectiva, o Manual de Anticoncepção Febrasgo (2015) traz:
“Quem procura o planejamento familiar está em busca da satisfação de um desejo pessoal de limitar, regular ou espaçar o número de filhos de acordo com o que considera melhor para si. À equipe de saúde, detentora de conhecimento técnico, cabe complementar e corrigir as informações para uma escolha realmente consciente e informada para a consecução desde objetivo.”
Portanto, o médico tem uma responsabilidade ética para com seu paciente, sendo necessário deixar suas crenças de lado para melhor atender aquele que o procura. Na relação médico-paciente, o primeiro foi devidamente educado sobre métodos contraceptivos, e deve fazer uso de todo o conhecimento científico para prover o melhor tratamento para sua paciente, e não para sua consciência. Ainda que se trate de algo tão particular como a religião, ela é exatamente isso, pessoal e diz respeito apenas aquele que a segue, não sendo dever do paciente arcar com as consequências das escolhas do médico que não lhe proveu todas as informações que deveria.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio de todas as informações coletadas para a produção desse artigo, alguns pontos podem ser observados.
Numa primeira ótica, faz-se necessário reconhecer que, de fato, a religião é elemento intrínseco a sociedade brasileira. Enraizada desde os primórdios, a fé promovida pela Igreja Católica e o cristianismo em geral, moldou diversos aspectos comportamentais no Brasil, inclusive a intolerância com aqueles com ideais divergentes dela. Num estado laico, a religião pode interferir na conduta médica que afeta na saúde e no bem estar de alguém?
Nessa conjuntiva, entra o Código de Ética Médica e suas determinações que beiram a contradição. Por que o médico pode abster-se de prescrever métodos contraceptivos que contrariem os ditames de sua consciência enquanto também deve recomendar o tratamento com maiores chances de resultados positivos para a paciente? Por que o Conselho que regula a classe, nessa atmosfera, protege o médico e deixa exposta a paciente?
No que tange aos métodos contraceptivos, o Manual de Anticoncepção da Febrasco deixa claro os índices de eficácia de cada método, afirmando ainda que a escolha deve ser feita pela paciente e orientada pelo médico, é necessário que estes dialoguem e analisem a melhor opção.
Infere-se, portanto, que essas são reflexões que devem ser feitas e levadas a sério, tendo em vista que a negligência desta temática prejudica a vida de inúmeras mulheres. Desse modo, o objetivo aqui não é minar, de forma alguma, o direito constitucional da liberdade religiosa que o médico, como cidadão brasileiro, possui. Mas sim não deixar que tal liberdade interfira no direito da paciente, também cidadã, de receber o melhor tratamento e orientação possível acerca de sua própria saúde.
Desse modo, é papel do Conselho Federal de Medicina rever suas diretrizes e esclarecer até onde a fé do médico pode interferir em seu ofício. É importante frisar que na relação médico-paciente, o primeiro detém o conhecimento, devendo fazer o melhor uso deste para informar quem carece dele. Não cabe ao médico decidir e orientar a paciente usando as diretrizes de sua fé, ele deve se ater as evidências científicas e encorajadas pela própria comunidade médica. Dentro do consultório, ele não é um fiel, ele fez um juramento de prezar pelo melhor atendimento de seus pacientes e deve fazer isso sem demais interferências, porque o importante nessa relação é atender as necessidades da mulher que deseja adotar algum método contraceptivo que realmente vá funcionar.
A mulher com pouco, ou nenhum conhecimento, deve ser amparada. Ao procurar um posto de saúde ela não pode ser levada a acreditar que um método contraceptivo como o de Billings, que não oferece barreira alguma para a concepção, é a melhor opção quando ela procura um método seguro, tanto para evitar gravidez quanto para protege-la de ISTs. Como já foi enfatizado, o médico não pode usar seu conhecimento para propor um tratamento que tem grandes chances de falhar, levando em conta que os métodos “alternativos” mesmo seguidos à risca, tem grandes chances de falharem. Não que exista um método 100% eficaz, mas entre os existentes, tem-se aqueles com índices maiores de sucesso, como a pílula anticoncepcional e o uso da preservativo, esta que é de recomendação importantíssima, já que previne a contração de ISTs que assolam grande parcela da população.
Ademais, a saúde reprodutiva de uma mulher não pode ser posta em risco por uma fé que não é dela. A primeira mulher primeira-ministra do Paquistão, Benazir Bhutto, pouco antes de ser assassinada disse: “A religião é uma questão que desperta paixões intensas e, se não conseguimos cultivar uma cultura de tolerância, aceitação e diversidade, vamos correr o risco de que fanáticos nos coloquem em uma rota de colisão.” (SALLIS, 2020, p.110). Ou seja, a religião e seus fiéis devem encontrar um meio termo para que estes possam exercer suas liberdades, mas não colocando em xeque a liberdade daqueles que não tem interesse nisso. O médico religioso pode sim exercer sua função, mas de forma alguma deve impor sua fé a um paciente. Não é papel dele.
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