REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102410211853
Cerys Christiany de Oliveira Tramontini1
Taís Helena Canto Pereira2
Introdução
Este trabalho tem como objetivo apresentar uma análise aprofundada das Quatro Incomensuráveis a partir da perspectiva da tradição budista, que são: Equanimidade, Bondade Amorosa, Compaixão e Alegria Empática. Além disso, será explorado como essas qualidades contribuem para a transformação da pessoa agente de paz, em conjunto com os conceitos de interdependência budista e Bodhicitta. Cada uma dessas qualidades possui práticas contemplativas correspondentes que as fundamentam. Consideramos este estudo fundamental para a formação do agente de paz bodhisattva, pois essas qualidades servem como mapas tanto para o desenvolvimento interno quanto para a atuação no mundo.
As quatro incomensuráveis estão presentes em diversas tradições, especialmente nas tradições budistas e indianas, e oferecem direcionamentos tanto filosóficos quanto práticos em termos de conduta espiritual. Elas podem ser descritas de várias formas. Em sânscrito, são chamadas de Catvāryapramāṇi (Wallace, 2019, prefácio) e também são conhecidas como Brahmavihārā. O termo “Brahma” refere-se à fonte do amor, e para habitar essa qualidade, é necessário praticar as Moradas de Brahma, ou Brahmavihārā, sendo que “Vihārā” significa habitação ou moradia (Hanh, 2019, p. 191).
Este trabalho está subdividido em duas seções. Na Seção 1, desenvolvemos as quatro incomensuráveis, suas bases e as práticas correspondentes que apoiam o desenvolvimento dessas virtudes. É importante salientar que dentro da tradição budista existem três principais ramos, conhecidos como os três yanas: Hinayana, Mahayana e Vajrayana. Neste trabalho, utilizarei o referencial do ramo Mahayana para discutir os tópicos abordados. Na Seção 2, aprofundaremos os estudos sobre interdependência e Bodhicitta.
O objetivo desta pesquisa é investigar a importância das práticas das quatro incomensuráveis e seus efeitos na transformação do agente de paz. Além disso, este trabalho visa apresentar a ideia do agente de paz Bodhisattva e a Bodhicitta como caminho e a interdependência como base.
A base metodológica deste trabalho fundamenta-se em uma revisão bibliográfica e na escrita incorporada (Anderson, 2001). Assim, será realizada uma tessitura entre a pesquisa em terceira pessoa, referenciando autores relevantes na área, e reflexões em primeira pessoa.
Em um mundo frequentemente marcado pelo individualismo e pela competição, percebo que todas essas temáticas oferecem recursos práticos e reflexivos para que agentes de paz possam se transformar profundamente, a partir de mudanças mentais e de atitude. Ao sair dos padrões de autocentramento, caminhamos na direção da liberação. Acredito que um agente de paz que incorpore essas práticas em sua vida cotidiana gera benefícios incomensuráveis, tanto em sua esfera pessoal quanto profissional.
Assim, nosso objetivo é explorar de que maneira essas práticas podem contribuir para uma maior harmonia nas relações, tanto internas quanto externas. Aspiramos que este trabalho possa suscitar reflexões profundas e uma base sólida de práticas para todos os agentes de paz, tanto do presente quanto das gerações futuras.
1. As quatro incomensuráveis: suas bases e práticas correspondentes
Nesta seção, apresentaremos as bases teóricas de cada uma das quatro incomensuráveis, bem como as práticas correspondentes e suas aplicabilidades. A prática das quatro incomensuráveis é fundamental para o cultivo da Bodhicitta, que será abordada na seção seguinte, e nos auxilia na transformação dos padrões de autocentramento os quais geram grande sofrimento. Segundo o professor Alan Wallace, autor norte-americano e professor na tradição Budista Tibetana, as quatro incomensuráveis são:
Bondade Amorosa: Visão e aspiração sincera de que nós mesmos e os outros possamos experienciar a felicidade e as causas da felicidade; Compaixão: Aspiração sincera de que todos se livrem do sofrimento e de suas causas. Pergunta: o que posso fazer? Alegria Empática: Alegrar-se com as virtudes e alegrias de outras pessoas. Equanimidade: Abertura e disposição imparciais de mente e de coração. (WALLACE, 2019, folha extra)
O impacto das quatro incomensuráveis, como o próprio nome diz, vão além do mensurável, devido ao profundo benefício que proporcionam a todos que as praticam. Aplicadas no cotidiano, essas práticas emergem como práticas poderosas para a pessoa agente de paz possibilitando a promoção de uma harmonia significativa nas relações internas e externas. A incorporação desses ensinamentos na prática pessoal pode ser um recurso valioso para a pessoa agente de paz, direcionando-o em direção à sabedoria e a meios hábeis.
1.1 Equanimidade
Equanimidade é uma das Brahmaviharas, ou virtudes do reino de Brahma, e representa um fator mental saudável cultivado no caminho budista. Equanimidade, ou Upekṣā, trata-se de imparcialidade. Upa significa além de e Eksha significa olhar. (Hanh, 2019, p.196).
A equanimidade trata-se de uma atitude de querer trazer benefício a todos os seres e consiste em termos a mesma consideração com todos, sem privilégios. É ter em mente de que ninguém nos é desconhecido, pois de alguma forma já fomos em algum momento íntimos, se olharmos cada ser como nossas mães. Seja quem for, ou o papel que esta ou aquela pessoa desempenha em nossas vidas, olhar e pensar que aquele ser já foi nossa mãe pode gerar um grande benefício e nossa atitude pode ir na direção da equanimidade, com isto, reconhecemos a verdadeira natureza de todos os seres que está intimamente relacionada a semente do um estado de Budeidade (Rinpoche, 46-52).
A equanimidade é um dos pilares das quatro incomensuráveis na tradição budista. Essas qualidades são fundamentais para cultivar uma mente aberta e equilibrada em relação a todos os seres, independentemente de suas circunstâncias ou comportamentos. Das quatro qualidades, muitos autores iniciam suas explicações pela equanimidade, devido à sua importância e suporte às demais. Thich Nhat Hanh menciona:
Para que seja amor verdadeiro, o amor deve conter compaixão, alegria e equanimidade. Para que a compaixão seja verdadeira compaixão, deve ter amor, alegria e equanimidade contida nela. A verdadeira alegria tem que conter amor, compaixão e equanimidade. E verdadeira equanimidade tem que ter amor, compaixão e alegria contida nela. Esta é a natureza interexistente das Quatro Mentes Imensuráveis. (Hanh, 2019, p.197, 198)
A causa imediata da equanimidade é assumir a responsabilidade por nossa própria conduta. (Wallace, 2019, p.165). Upeksha ou equanimidade, significa livre de apegos, sem discrimação, equilíbrio mental e deixar ir. Ao explorar essa qualidade mental saudável e ao exercitar o ato de soltar e deixar ir, é possível cultivar uma conexão significativa com o outro, enquanto se desenvolve um estado de equilíbrio e serenidade, independentemente das circunstâncias presentes, independente das causas e condições daquele momento. A imparcialidade surge como um objetivo a ser alcançado na prática da equanimidade e refere-se à capacidade de manter uma atitude equilibrada e imparcial em relação a todos os seres. Wallace menciona que:
Equanimidade é absolutamente indispensável.A partir desse plano uniforme, surge o apreço pelos outros e por todo o mundo. A partir da equanimidade, pode-se cultivar a grande bondade amorosa e a grande compaixão e, delas, surge a Bodhichitta. Quando a Bodhicitta surge espontaneamente e sem esforço, permeando todo o seu estilo de vida, você é um Bodhisattva. E diz-se que quando a pessoa se torna um Bodhisattva, os devas se alegram. (Wallace, 2019, p.162)
A prática da equanimidade envolve uma decisão interna, de ver o outro como a nós mesmos e assim agir de acordo, isso ajuda em tantas outras situações de parcialidade e gera uma visão mais ampla do que está acontecendo no momento presente. Equanimidade é um aspecto do verdadeiro amor que difere-se da indiferença. Praticando equanimidade, nós podemos desenvolver amor a todos, sem preferências. (Hanh, 2023, p. 246). Thich Nhat Hanh afirma:
Equanimidade não significa indiferença. Nós compreendemos aqueles que amamos e aqueles que odiamos, e nos empenhamos ao máximo para fazer ambos felizes. Nós aceitamos as flores e o lixo sem apego ou aversão. Tratamos ambos com respeito. Equanimidade significa abrir mão, mas não abandonar. Abandonar causa sofrimento. Quando não estamos apegados, somos capazes de deixar ir. (Hanh, 2023, p.271)
A prática constante da equanimidade traz uma série de benefícios ao agente de paz. Em primeiro lugar, promove um estado mental saudável, e desenvolve resiliência interna sobre todas as situações sem privilégios, e isso será estendido externamente a todos. Tomar tudo como caminho e não ter preferências sobre o que surge é uma prática libertadora. O objetivo da equanimidade é eliminar o apego por um lado e a repulsa por outro preparando uma base uniforme sobre a qual o afeto genuíno e altruísta possa crescer. (Wallace, 2019, p.170). A equanimidade, como uma das quatro incomensuráveis, é uma prática central no budismo Mahayana que enriquece a vida espiritual e contribui para a transformação pessoal e coletiva.
1.2 Bondade Amorosa
A Bondade Amorosa ou Maitrī é a segunda qualidade incomensurável. Essa qualidade é essencial para cultivar um coração aberto e altruísta para desenvolver uma conexão profunda com todos os seres. Maitrī tem suas raízes na palavra mitra, que quer dizer amigo. Thich Nhat Hanh, mestre Budista, ativista vietnamita diz que o significado principal do amor é a amizade (Hanh, 2023, p.194). Bondade Amorosa refere-se ao desejo genuíno de que todos os seres sejam felizes. Essa prática visa cultivar uma atitude de carinho e bem-estar para todos, sem distinção. Na visão de Wallace,
Os budistas distinguem cuidadosamente o “amor” da bondade amorosa – a virtude – e o “amor” do apego, que é uma aflição e uma raiz do sofrimento e do conflito em todo o mundo. Confundir os dois é como confundir uma colher de terra com uma colher de remédio. A bondade amorosa é a aspiração sincera pelo bem-estar e a felicidade dos outros, com base em uma aspiração semelhante para si mesmo. A bondade amorosa é uma preocupação com um ser que tem sentimentos; alguém que, como você mesmo, pode se sentir ferido ou alegre, alguém que deseja encontrar a felicidade e ficar livre do sofrimento. (Wallace, 2019, p.151)
Desta forma, a bondade amorosa é a disposição genuína de desejar felicidade e bem-estar a todos os seres, sem distinção. Ao cultivar a bondade amorosa, começa-se a criar conexões entre todos os seres. Thich Nhat Hanh salienta que:
Quando os sentimentos e o contato estão protegidos, eles não conduzem ao anseio e à aversão, mas sim ao amor, compaixão, alegria e equanimidade – as Quatro Mentes Imensuráveis. Ao virmos pessoas sofrendo ou com dor, ou quando as vemos divertindo-se de maneira insensata, um sentimento dentro de nós faz com que brote a energia da bondade amorosa, ou seja, o desejo e a capacidade de oferecer verdadeira alegria; que, por sua vez, leva à energia da compaixão, ou seja, o desejo e a capacidade de ajudar os seres vivos a pôr um fim no sofrimento deles. Esta energia faz brotar alegria dentro de nós, e somos capazes de compartilhar nossa alegria com os outros. (Hanh, 2023, p.271)
Os benefícios da bondade amorosa são amplos. A prática ajuda a reduzir sentimentos de ansiedade e solidão, promovendo um senso de conexão. Quando se deseja sinceramente a felicidade dos outros, também se experimenta um profundo bem-estar interno, sobre isso o Professor Alan Wallace ressalta:
O primeiro passo na prática do cultivo da bondade amorosa é simplesmente observar os estados mentais opostos à bondade amorosa e ao equilíbrio mental – hostilidade, agressão, raiva, ressentimento, ódio e desprezo. Examine como esses estados mentais afetam a mente. Formule a aspiração, “Que eu possa me livrar desse veneno”. Procure enxergar como a presunção é um veneno com revestimento de açúcar. Faça a aspiração: “Independentemente de quem eu encontre ou das situações que eu encontre, que minha mente esteja livre de aflições” e imagine que isso se torna realidade aqui e agora. Imagine-se encontrando situações em que as chamas da raiva e do ódio se inflamariam facilmente e mantenha a calma, a equanimidade e a liberdade. (Wallace, 2019, p.267)
Além disso, a bondade amorosa contribui para a construção de relações mais saudáveis e harmoniosas, tanto em nível pessoal quanto comunitário. Quando as pessoas agentes de paz se dedicam a cultivar essa qualidade, criam um impacto positivo em seu entorno, inspirando outros. A bondade amorosa é um componente vital do caminho do bodhisattva[1] no budismo Mahayana. Ao fundir a bondade amorosa no nosso dia a dia, seguimos na direção de uma vida mais íntegra, iluminada e amorosa, para conosco e na companhia de todos os seres sencientes.
1.3 Compaixão
A compaixão, também chamada de Karuṇā, significa desejar que todos se livrem do sofrimento e das fontes de sofrimento. (Wallace, 2019, p. 163). A compaixão é o complemento perfeito da bondade amorosa. Eles se encaixam perfeitamente como os símbolos yin e yang. Para que a bondade amorosa exista, você precisa ter compaixão e vice-versa. (Wallace, 2020, p. 133). Thich Nhat Hanh apresenta uma profunda reflexão sobre o sofrimento e a Compaixão:
Sidarta Gautama, o Buda, não era um deus. Ele era um ser humano como você e eu, e sofria exatamente como nós sofremos. Se nos dirigirmos ao Buda de coração aberto, ele vai nos olhar com os olhos cheios de compaixão e dizer: “Como há sofrimento em seu coração, você pode entrar no meu coração”. (Hanh, 2023, p.11)
O budismo tem uma visão única dentro de todas tradições espirituais com relação ao sofrimento, apresentando a hipótese de que o sofrimento pode ser completamente eliminado. O sofrimento é erradicado não por meio de uma anestesia psicológica ou de uma desconexão do mundo, mas transformando a própria mente, de dentro para fora. A forma de eliminar o sofrimento é transformar a mente. Há diversas práticas contemplativas que apoiam a erradicação do sofrimento na direção da liberação (Wallace, 2019, p.26, 27). Neste sentido, Thich Nhat Hanh nos lembra da prática da gratidão e apreciação como elementos importantes no desenvolvimento da pessoa agente de paz.
Seja grato(a) se você pode trabalhar numa profissão que lhe ajuda a realizar o seu ideal de compaixão. E, por favor, viva conscientemente, de forma simples e sã, para assim auxiliar na criação de trabalhos adequados para os outros. Use toda a sua energia se empenhando em melhorar a situação. (Hanh, 2023, p.133, 134)
Ao se dedicar a práticas de compaixão, como meditações guiadas e visualizações, pode-se experimentar uma expansão da mente-coração. A prática de visualizar o sofrimento dos seres e emanar alívio para todos aqueles que estão sofrendo neste momento proporcionam uma alegria profunda e renovadora. Cultivar a compaixão não apenas transforma nossa maneira de interagir com minhas experiências — ou seja, com a mente — mas também modifica a forma como nos relacionamos com o mundo. A partir dessa prática, tensões e ansiedades que antes eram muito presentes começam a se dissipar, dando lugar a uma sensação de paz e conexão. Cada ato de compaixão, por menor que seja, torna-se uma semente que floresce em um jardim de amor e compreensão.
1.4 Alegria Empática
Por fim, a Mudita ou Alegria Empática, que refere-se à capacidade de alegrar-se com a felicidade e o sucesso dos outros. Ao refletirmos sobre a alegria empática, percebe-se como essa qualidade é essencial para a prática do bem-estar. Assim como a bondade e a compaixão se aprofundam quando se integram à sabedoria, o mesmo ocorre com a alegria empática (Wallace, 2019, p. 156). A alegria empática vai além da mera felicidade; é uma celebração do sucesso e da felicidade dos outros, uma capacidade de alegrar-me genuinamente com as conquistas alheias. Mudita é uma alegria repleta de paz e contentamento. Nós nos regozijamos quando vemos outras pessoas felizes, mas nós também nos regozijamos com o nosso próprio bem-estar. (Hanh, 2023, p. 196)
Praticar a alegria empática nos desafia a irmos além das próprias preocupações autocentradas. Ao cultivar essa qualidade, aprende-se a olhar para as vitórias dos outros como oportunidades de celebração. Quando um amigo conquista um emprego dos sonhos ou um familiar realiza um desejo, nosso coração se expande e podemos nos sentir parte daquela felicidade. Essa prática ajuda a aprofundar a conexão com as pessoas ao nosso redor. Ao nos permitirmos sentir a alegria pelo sucesso dos outros, surge uma sensação de paz e contentamento. É como se cada ato de alegria empática não apenas iluminasse a vida de alguém, mas também iluminasse nosso próprio caminho. O grande mestre Budista Vietnamita, Thich Nhat Hanh, ilumina a todos com suas palavras:
Para que seja amor verdadeiro, o amor deve conter compaixão, alegria e equanimidade. Para que a compaixão seja verdadeira compaixão, deve ter amor, alegria e equanimidade contida nela. A verdadeira alegria tem que conter amor, compaixão e equanimidade. E a verdadeira equanimidade tem que ter amor, compaixão e alegria contida nela. Esta é a natureza interexistente das Quatro Mentes Imensuráveis. Quando Buda disse ao homem bramânico que praticasse as Quatro Mentes Imensuráveis, ele estava oferecendo a todos nós um ensinamento muito importante. Mas devemos contemplá-los em profundidade e praticá-los por nós mesmos a fim de trazer às nossas próprias vidas estes quatro aspectos do amor, e para as vidas das pessoas que amamos.
(Hanh, 2023, p.197, 198)
Ao colocar em prática as quatro incomensuráveis, os benefícios incluem o aumento da compaixão, a redução do sofrimento, o cultivo da felicidade e a transformação da mente. Uma pessoa agente de paz treinada nessas práticas estará capacitada para se relacionar com sua mente e com o mundo de maneira mais plena, alegre, compassiva e humana. Essas práticas enriquecem a vida pessoal do agente de paz e também suas interações e contribuições no mundo, estabelecendo um ciclo de compaixão e compreensão que pode ressoar em toda a comunidade.
2. A interdependência Budista como base e a Bodhicitta como caminho
Nesta seção, abordaremos de forma resumida a interdependência budista, também conhecida como Pratītyasamutpāda ou originação dependente, que consideramos a base para a atuação do agente de paz. Em seguida, exploraremos os aspectos da Bodhicitta, que se fundamenta nas quatro incomensuráveis, discutidas anteriormente. A Bodhicitta representa o caminho pelo qual o agente de paz se desenvolve dentro da tradição budista. As quatro incomensuráveis desempenham um papel crucial nesse processo, uma vez que tanto a interdependência quanto a Bodhicitta oferecem mapas claros para que o agente de paz navegue em sua experiência, ou seja, sua mente, servindo como norte tanto em relação à sua conduta interna quanto em suas relações interpessoais. A Bodhicitta é um conceito central no budismo que envolve tanto uma aspiração altruísta quanto um compromisso ativo em ajudar os seres sencientes a alcançar a iluminação. O fruto da Bodhicitta autêntica só pode surgir do solo fértil das quatro incomensuráveis: bondade amorosa, compaixão, alegria empática e equanimidade (Wallace, 2019, p. 148).
2.1 A interdependência Budista
A interdependência budista, ou Pratītyasamutpāda, é o tema central desta tradição. O estudo da interdependência budista é amplo e permeado por outros estudos que compõem a compreensão desse conceito. Neste trabalho, não pretendemos aprofundar-nos neste tema vasto e profundo, mas apenas mencionar sua existência e trazer alguns elementos sobre ele. Pratītyasamutpāda descreve como tudo o que experienciamos — tanto fenômenos externos quanto no nossa experiência (mente) surge, permanece e desaparece em dependência de uma infinidade de relações contingentes (Mattis-Namgyel, 2019, p. 27).
Para ilustrar a interdependência, Buda utilizou o exemplo de dois feixes de bambu apoiando-se um contra o outro; se um deles fosse derrubado, o outro também cairia naturalmente (Mattis-Namgyel, 2019, p. 42). Nesse contexto, o professor Alan Wallace afirma: “O uso da mente estabilizada para sondar a natureza dos fenômenos leva à descoberta de que tudo é interdependente” (Wallace, 2019, p. 105).
As reflexões do mestre Hanh sobre a interdependência traz a ideia de desfrutar plenamente do momento presente e a valorizar as relações com tudo e todos que nos cercam, ele diz que:
Os insights do entre-ser e da interdependência nos ajudam a desfrutar do momento presente de forma mais plena, reconhecendo a vastidão do nosso ser e valorizando cada um de nossos corpos. E podemos ser mais verdadeiros conosco, reconciliando-nos com nossos entes queridos e transformando nossas dificuldades e sofrimentos. (Hanh, 2018, p.131)
O Professor Alan Wallace complementa essa visão ao enfatizar que não somos entidades independentes, pois tudo está relacionado e participamos desta teia infinita e interdependente e tudo que fazemos importa. Juntos, esses ensinamentos destacam que cultivar a compaixão é fundamental para reconhecermos a profunda interconexão entre todos os fenômenos:
Cultivar a compaixão nos prepara para a realização da profunda interdependência de todos os fenômenos. Não somos entidades independentes que, de alguma forma, se relacionam. Somos as próprias relações. É por isso que o cultivo da sabedoria deve seguir de mãos dadas com o cultivo da compaixão. (Wallace, 2019, p. 166)
A prática da compaixão se torna um veículo fundamental para a compreensão da interdependência. Ao cultivar a compaixão, se abre espaço para o reconhecimento de que cada ação, reflete no tecido interdependente da vida. Essa conscientização é um passo importante na jornada para a iluminação ou chamado bem-estar genuíno, onde a sabedoria e a compaixão se entrelaçam e se fortalecem mutuamente. Elizabeth Mattis-Namgyel, professora Budista norte americana, ilumina ainda mais o tema:
Tudo é interdependente e está mudando o tempo todo, assim como o nosso modo de ver as coisas, e não sabemos o que vai acontecer a seguir. Nós vivemos neste mundo interessante, e a condição humana é a de não saber. Precisamos ter fé, não temos escolha. (Mattis-Namgyel, 2018)
Trazendo essa reflexão sobre a incerteza da vida, percebe-se a importância de permanecer com uma mente flexível e aberta às mudanças naturais que surgem. A fé, como bem ilustrou a autora, é uma confiança na interconexão de todas as coisas, uma aceitação de que, mesmo diante da incerteza, estamos todos juntos nesta jornada. Ao abraçar a interdependência, podemos encontrar um sentido mais profundo de propósito e pertencimento, reconhecendo que cada um de nós desempenha um papel vital na teia da vida. E neste mesmo texto Elizabeth correlaciona como a prática de Bodhicitta adiciona ao tema:
O Bodhisattva toma isso de uma forma muito realista. Com a prática da bodhicitta, ganhamos um olhar muito realista sobre a natureza das coisas, e elas não são consertáveis. Mas, como tudo é interdependente, tudo o que fazemos importa muito e está influenciando tudo. (Mattis-Namgyel, 2018)
A interdependência nos confronta com a realidade da vida. A partir desse entendimento, o agente de paz bodhisattva atua com uma visão realista dessa teia, ciente de que cada passo influencia o todo. Assim, cada ação reflete profundamente em níveis de mente, corpo e fala.
2.2 Bodhicitta como caminho: Bodhicitta Relativa e a Bodhicitta Absoluta
A palavra Bodhicitta pode ser compreendida comobodhi significa despertar, e aquele que está desperto é chamado de buda e citta significa mente, coração e espírito. Assim, podemos dizer que bodhichitta é a mente do despertar, a mente da iluminação (Wallace, 2019, p.67). O significado do termo mente da iluminação trata-se de uma mente que se concentra na iluminação completa para o bem-estar dos outros (Wangmo, 21-22), e é considerada a joia da coroa de todo budismo Mahayana (Wallace, 2019, p. 169).
Para que alguém se inspire com a bodhicitta, é essencial treinar na prática das quatro imensuráveis, conforme abordado anteriormente. Essas qualidades são a raiz da bodhicitta e, embora sejam a natureza intrínseca de todos os seres, é difícil cultivá-las porque nossa mente é suscetível a condições negativas. Portanto, a proposta central da prática do treinamento da mente é cultivar e estabelecer essas qualidades imensuráveis. (Rinpoche, 2008). O Budismo Mahayana identifica o desenvolvimento da Bodhicitta como elemento central da prática espiritual, e uma pessoa em quem essa motivação surge sem esforço é chamada de Bodhisattva. (Wallace, 2019, p. 194 -195).
O Bodhisattva é uma figura central nesta tradição, e podemos pensar na pessoa agente de paz como um Bodhisattva em treinamento. A.G.S. Kariyawasam, professor Budista do Sri Lanka nos apresenta o conceito de Bodhisattva dizendo que:
Bodhisattva é uma pessoa que está no caminho de bodhi, do despertar. O bodhisattva é um ser que aspira a Bodhi ou a Iluminação. O conceito de bodhisattva, que significa “futuro Buda”, é um dos mais importantes do Budismo. Etimologicamente, o termo pode ser separado em duas partes: “bodhi” e “sattva”. “Bodhi”, da raiz “budh”, que significa “estar desperto”, refere-se ao “despertar” ou à “iluminação”. Por sua vez, “sattva” deriva de “sant”, o particípio presente da raiz “as”, que significa “ser”, referindo-se a “um ser” ou, literalmente, “aquele que é”, “um ser senciente”. Assim, o termo é entendido como “aquele cuja essência é a Iluminação” ou “conhecimento iluminado”. Por implicação, o bodhisattva é um buscador da iluminação, um futuro Buda. Há também a sugestão de que o termo Pali pode ser derivado de “bodhi” e “satta” (Skt. “sakta de sañj”), significando “aquele que está apegado ou deseja obter a iluminação”. (Kariyawasam, 2002, p. 4, tradução livre)
Como o bodhisattva representa aquele que se dedica ao caminho da iluminação em benefício de todos os seres, a Bodhicitta está intrinsecamente ligada ao caminho do Bodhisattva, pois é através dessa motivação altruísta que se busca a iluminação não apenas para si, mas para todos, que a iluminação acontece. A Bodhicitta pode ser estudada pedagogicamente como Bodhicitta relativa e Bodhicitta absoluta. A Bodhicitta relativa apresenta dois elementos importantes: a aspiração e o engajamento.
A Bodhicitta relativa, também chamada de prajna relativa, refere-se à capacidade de reconhecer padrões, observar causa e efeito e possui um aspecto relacional. Nesse sentido, a Bodhicitta relativa se subdivide em aspiracional e engajamento. Bodhicitta relativa é a aspiração altruísta de realizar o perfeito despertar espiritual em benefício de todos os seres sencientes. (Wallace, 2019, p.67). A bodhicitta aspiracional é o anseio sincero da própria libertação para apoiar todos os seres a se libertarem também do sofrimento. A mente do despertar é uma característica particular do budismo Mahayana, que predomina em países como China, Japão e nos Himalayas. Sua prática se divide entre as fases de aspiração e aplicação. A aspiração é a motivação direcionada para o bem alheio, já a aplicação se refere à atitude que efetiva essa aspiração, com a prática das seis perfeições: generosidade, disciplina, paciência, diligência, concentração e sabedoria (Shantideva, Edição Kindle, 2021, p.174).
Ou seja, a bodhicitta do engajamento que vai além da aspiração; trata-se de se envolver ativamente na prática do Dharma e em ações que beneficiam os outros. O grande mestre Shantideva coloca luz no engajamento na ação com suas palavras:
Engajamento na Ação Bodhisattva versa basicamente sobre a mente do despertar (bodhitcita) e as pessoas que a cultivam: bodisatvas. Bodhitcita é a mente/coração que aspira tanto pelo bem de todos os seres sem distinção, quanto pela realização da budeidade, como um meio para podermos beneficiar os seres de modo também duradouro, já que os benefícios materiais são passageiros. (Shantideva, Edição Kindle, p.173)
No contexto, há os ensinamentos das Seis Paramitas se destaca como parte essencial da prática da Bodhichitta do engajamento. Thich Nhat Hanh, menciona que a palavra paramita pode ser traduzida como “perfeição” ou “realização perfeita”, podendo significar como a “travessia para a outra margem”, que faz alusão a sair do autocentramento, ou seja do sofrimento, na direção da margem da paz, do destemor e da libertação. Praticar as seis perfeições ajuda a atingir a outra margem – a margem da liberdade, da harmonia e dos bons relacionamentos (Hanh, 2023, p. 217).
As seis atitudes, conhecidas como paramitas, têm um longo alcance e representam estados mentais que conduzem à liberação e à iluminação. Elas servem como antídotos para alguns de nossos maiores obstáculos mentais — raiva, ganância, inveja, preguiça e assim por diante. As seis atitudes funcionam em conjunto, permitindo-nos enfrentar tudo o que acontece em nossas vidas. Ao desenvolver essas atitudes, podemos, lenta mas seguramente, realizar nosso potencial completo, trazendo o maior benefício tanto para nós mesmos quanto para os outros. Discorrendo sobre quais são as Seis Paramitas, Thich Nhat Hanh enumera:
(1) dana paramita – dar, ofertar, generosidade.
(2) shila paramita – disciplina, preceitos ou treinamentos da atenção plena.
(3) kshanti paramita – tolerância, paciência, a capacidade de receber, suportar e transformar a dor infligida em você por seus inimigos e também por aqueles que lhe amam.
(4) virya paramita – diligência, energia, perseverança.
(5) dhyana paramita – meditação ou concentração
(6) prajña paramita – sabedoria, discernimento, compreensão.(Hanh, 2023, p. 219)
A generosidade é a disposição de ofertar aos outros tudo o que é possível. Seus benefícios incluem proporcionar um senso de autoestima, ao nos fazer sentir que temos algo a contribuir para o bem-estar alheio, ajudando-nos a evitar ou superar problemas relacionados à baixa autoestima e à depressão. Além disso, a generosidade auxilia na superação do apego, da avareza e da mesquinhez, estados de espírito que geram infelicidade e problemas recorrentes. Também beneficia aqueles que estão em necessidade (Berzin, 2019).
Thich Nhat Hanh complementa sobre a paramita da generosidade salientando que a maior generosidade que podemos ofertar a alguém é nossa presença verdadeira. Complementa ainda, com elementos práticos os quais podemos praticar a generosidade em nosso dia-a-dia:
O que mais podemos oferecer? Nossa estabilidade. “Inspirando, eu sou uma montanha. Expirando, eu me sinto firme.” A pessoa que amamos necessita de que sejamos firmes e estáveis. O que mais podemos oferecer? Nossa liberdade. A felicidade não é possível, a menos que estejamos livres de aflições tais como desejo, raiva, ciúme, medo, ou percepções errôneas. A liberdade é uma das características do Nirvana. O que mais podemos oferecer? Nosso frescor. “Inspirando, eu me vejo como uma flor. Expirando, eu me sinto com o frescor.” Podemos inspirar e expirar três vezes para restaurar a flor dentro de nós. É um grande presente!O que mais podemos oferecer? Paz. É maravilhoso sentar-se ao lado de alguém que esteja em paz. Nós nos beneficiamos com a sua paz. “Inspirando, eu sou a água calma. Expirando, reflito as coisas como elas são.” Podemos oferecer nossa paz e nossa lucidez para aqueles que amamos.O que mais podemos oferecer? Espaço. A pessoa amada precisa de espaço para ser feliz. Em um arranjo de flores, cada flor precisa de espaço ao seu redor para poder irradiar sua verdadeira beleza. As pessoas são como flores. Sem espaço interno e externo elas não podem ser felizes. Não podemos comprar este tipo de presente na loja. Temos que produzi-lo através da prática. E quanto mais dermos, mais teremos. Quando a pessoa que amamos está feliz, esta felicidade retoma para nós imediatamente. Nós damos algo a essa pessoa, mas na verdade estamos dando a nós mesmos. O que mais podemos oferecer? Compreensão. A compreensão é a flor da prática. Focalize sua atenção concentrada em um objeto, observe profundamente o objeto, e você terá insight e compreensão. Ao oferecer compreensão aos outros, eles deixarão imediatamente de sofrer (HANH, 2023, p. 220-222)
A segunda paramita refere-se a autodisciplina ética ou chamada de disciplina. Berzin complementa a segunda paramita dizendo que:
Autodisciplina ética ou disciplina é quando nos abstemos de comportamentos destrutivos ao percebermos suas desvantagens. Seus benefícios incluem a capacidade de evitar ações, falas e pensamentos prejudiciais. Essa autodisciplina cria uma base de confiança com os outros, que é essencial para a verdadeira amizade. Além disso, ajuda-nos a superar comportamentos negativos compulsivos e a desenvolver o autocontrole, o que resulta em uma mente mais calma e estável. Ela também nos impede de ferir os outros (Berzin, 2019).
A terceira paramita é a paciência, Berzin comenta que:
Paciência é a capacidade de suportar dificuldades sem se zangar ou se perturbar pelas dificuldades que surgem. Suas vantagens incluem a habilidade de evitar reações impulsivas em situações adversas, seja quando as coisas não saem como esperado ou quando nós ou os outros cometemos erros. A paciência nos ajuda a superar a raiva, a impaciência e a intolerância, que são estados mentais perturbadores. Com ela, conseguimos manter a calma diante das dificuldades. Além disso, a paciência nos permite ajudar melhor os outros, pois não nos zangamos quando eles não seguem nossos conselhos, cometem erros, agem ou falam de forma irracional, ou nos fazem passar por situações difíceis (Berzin, 2019).
A quarta paramita é a perseverança. O autor acrescenta que:
Perseverança é a coragem heróica de não desistir quando as coisas ficam difíceis, mas de continuar se esforçando consistentemente até o fim. Seus benefícios incluem: proporcionar a força necessária para concluir o que começamos, sem perder o ânimo; ajudar a superar sentimentos de inadequação e preguiça, especialmente quando nos distraímos com questões triviais; e permitir o sucesso na realização de tarefas desafiadoras, além de nos impedir de desistir de ajudar aqueles que são mais difíceis de alcançar (Berzin, 2019).
Já a quinta paramita trata-se da estabilidade mental ou concentração que é um estado mental completamente livre de divagações, apatia e perturbações emocionais. Seus benefícios incluem a capacidade de permanecer focado no que estamos fazendo, evitando erros e acidentes. Ela nos ajuda a superar o estresse, a ansiedade e estados de superexcitação, distração e agitação emocional. Além disso, a estabilidade mental nos permite prestar atenção ao que os outros estão dizendo e como estão agindo, para que possamos entender melhor como ajudá-los (Berzin, 2019).
A sexta e última paramita refere-se a consciência discriminativa, ou seja, a sabedoria. Berzin salienta que:
A consciência discriminativa (sabedoria) é o estado mental que discerne corretamente e com segurança entre o que é apropriado e inapropriado, bem como entre o que é correto e incorreto. Seus benefícios incluem a capacidade de ver com clareza e discernir como agir em qualquer situação, impedindo-nos de tomar decisões das quais poderíamos nos arrepender mais tarde. Ela nos ajuda a superar a indecisão e a confusão. Além disso, a consciência discriminativa nos permite avaliar com precisão as situações dos outros, para que possamos determinar o que dizer ou fazer a fim de causar o maior benefício possível (Berzin, 2019).
As paramitas são práticas interligadas que ajudam a desenvolver uma vida orientada para a mente iluminada. Essas virtudes e qualidades são de profunda relevância para a pessoa agente de paz, pois, ao serem praticadas, naturalmente resulta no surgimento do agente de paz. Em outras palavras, tornar-se um agente de paz é um processo de desenvolvimento constante dessas virtudes; é trilhar o caminho do Bodhisattva em direção à mente iluminada, em benefício de todos os seres.
Toda a estrutura do Dharma compreende cinco caminhos, que não detalharei aqui, mas são: 1) caminho da acumulação, 2) caminho da preparação, 3) caminho da visão, 4) caminho da familiarização (meditação) e 5) caminho sem mais aprendizagem (Budeidade). Geshe Kelsang Wangmo, professora Budista no Tushita Institute, menciona que:
A bodhicitta aspiracional abordada anteriormente, pode-se dizer que é o primeiro momento da Bodhicitta no caminho da acumulação, pois é a Bodhicitta que ainda não está associada ao voto de Bodhisattva. A bodhicitta engajada, por outro lado, é aquela que se associa ao voto de Bodhisattva. Em outras palavras, a bodhicitta engajada é a mente da iluminação presente no continuum de um Bodhisattva que recebeu e não transgrediu o voto de Bodhisattva. Assim, os praticantes do Mahayana cultivam primeiro a bodhicitta (bodhicitta aspiracional) e, em seguida, recebem o voto, convertendo a bodhicitta aspiracional em bodhicitta engajada. A razão para isso é que os praticantes não recebem o voto de Bodhisattva antes de gerar a bodhicitta; só podem recebê-lo quando já são Bodhisattvas. O significado de um caminho Mahayana é a consciência virtuosa que se conjuga com a bodhicitta. Uma consciência virtuosa que se conjuga com a bodhicitta refere-se a uma consciência que gera virtude que é aprimorada e fortalecida pela bodhicitta, independentemente de a bodhicitta estar presente no momento em que essa consciência virtuosa se manifesta. Isso significa que a bodhicitta pode aumentar e fortalecer consciências virtuosas, como a generosidade, a moralidade e a paciência, mesmo quando a bodhicitta está adormecida (WANGMO, 2016, p. 15. Tradução livre)
A bodhicitta absoluta, também chamada de prajna absoluta ou vacuidade, é um tema vasto e todo o caminho e as práticas na tradição budista visam realizar a vacuidade. A Bodhicitta absoluta envolve a investigação da natureza da realidade e a realização de sua essência absoluta (Wallace, 2019, p. 67). Wangmo salienta que:
Em todos os estágios dos cinco caminhos apontados anteriormente, há uma correlação entre os níveis de Bodhicitta e o aprofundamento do caminho do Bodhisattva. A Bodhicitta absoluta refere-se a um estado de equilíbrio meditativo que realiza diretamente a vacuidade no continuum de um chamado Arya Mahayanista que significa um nobre praticante Mahayana nos caminhos da visão, da meditação ou do não mais aprendizado, que correspondem, respectivamente, ao terceiro, quarto e quinto caminhos descritos anteriormente. A partir do caminho Mahayana da visão, que é o terceiro, todos os demais — ou seja, o quarto e o quinto — estão associados à Bodhicitta absoluta. Isso significa que, mesmo quando o equilíbrio meditativo que realiza diretamente a vacuidade no continuum dos Bodhisattvas nos caminhos da visão ou da meditação está adormecido, a Bodhicitta absoluta afeta outros aspectos, assim como a Bodhicitta relativa, a grande compaixão e a prática das perfeições (paramitas), aumentando sua capacidade e força. Assim, da mesma forma que a Bodhicitta relativa é a porta de entrada para o caminho Mahayana em geral, a Bodhicitta absoluta é a porta de entrada para o caminho Arya Mahayana. Além disso, a Bodhicitta relativa e a Bodhicitta absoluta são semelhantes no fato de ambas se concentrarem na própria iluminação. No entanto, a Bodhicitta relativa é caracterizada por uma mente que aspira à iluminação, enquanto a Bodhicitta absoluta é caracterizada por uma mente que realiza diretamente o modo último de existência dessa iluminação (WANGMO, 2016, 26-27. Tradução livre).
Dessa forma, esta seção conclui demonstrando a importância da prática engajada e consistente para que o Bodhisattva agente de paz possa emergir dentro desta tradição, tendo a bodhicitta como seu caminho. Para que esse caminho floresça, a prática das quatro incomensuráveis desempenha um papel fundamental, pois constitui a base para a geração da Bodhicitta. Contudo, o caminho é longo, e aqueles que aspiram a se tornar agentes de paz Bodhisattvas devem percorrer um trajeto que, com paciência e diligência, se revela gradualmente. Assim, a liberação do sofrimento mental torna-se possível.
Conclusão
A investigação sobre as quatro incomensuráveis forma a base para a geração da Bodhicitta e, assim, os alicerces do caminho do agente de paz Bodhisattva. Esse processo deve ser estudado, contemplado e meditado com atenção. As práticas contemplativas surgem como um recurso valioso, transformando o autocentramento em um compromisso de servir. Agentes de paz, podem ser considerados como Bodhisattvas em treinamento, mas para isso precisam cultivar vigilância mental, comprometimento e um engajamento disciplinado. Essa tradição se fundamenta na experiência direta, que se revela por meio da prática. O surgimento de um nobre agente de paz Bodhisattva, acontece quando se dedica a investigar sua própria mente e a renunciar a padrões autocentrados. Essa exploração profunda exige coragem, disciplina, atenção, generosidade, paciência e sabedoria, conforme descrito nas paramitas. É crucial estarmos dispostos a examinar com cuidado e minuciosamente a mente e cada raiz de sofrimento, reconhecendo-as e escolhendo, de forma consciente, seguir o caminho da liberação por meio das práticas budistas.
Por sermos seres relacionais, constantemente interagindo com nossos mundos internos e externos. À medida que desenvolvemos nosso mundo interno, nossa interdependência com o mundo externo se intensifica. Hoje em dia é essencial que nos tornemos genuínos agentes de paz, com a mente clara, focada e com discernimento. Quanto mais agentes de paz Bodhisattvas atuarem no mundo, mais poderemos semear florescimento e relações saudáveis. As sementes de compaixão e altruísmo que germinamos resultam em uma sociedade colaborativa e humana. Precisamos uns dos outros; nosso despertar está entrelaçado com o despertar de cada indivíduo. Cada ação, por menor que pareça, impacta a vasta teia relacional de interdependência. Tudo que fazemos importa e pode, portanto, todas nossas ações refletem no todo.
Referências Bibliográficas
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[1] Bodhisattva é uma pessoa que está no caminho de bodhi, do despertar. O bodhisattva é um ser que aspira a Bodhi ou a Iluminação. O conceito de bodhisattva, que significa “futuro Buda”, é um dos mais importantes do Budismo. Etimologicamente, o termo pode ser separado em duas partes: “bodhi” e “sattva”. “Bodhi”, da raiz “budh”, que significa “estar desperto”, refere-se ao “despertar” ou à “iluminação”. Por sua vez, “sattva” deriva de “sant”, o particípio presente da raiz “as”, que significa “ser”, referindo-se a “um ser” ou, literalmente, “aquele que é”, “um ser senciente”. Assim, o termo é entendido como “aquele cuja essência é a Iluminação” ou “conhecimento iluminado”. Por implicação, o bodhisattva é um buscador da iluminação, um futuro Buda. Há também a sugestão de que o termo Pali pode ser derivado de “bodhi” e “satta” (Skt. “sakta de sañj”), significando “aquele que está apegado ou deseja obter a iluminação”. (Kariyawasam, 2002, p. 4)
1 Doutoranda em Estudos de Paz e Conflitos, Universidade Otago, Nova Zelândia
Email: cerys@pazemente.com.br
www.pazemente.com.br
2 Pós-graduada em Transformação de conflitos e Estudos de Paz pela faculdade Innovare/Paz & Mente
E-mail: taiscanto@gmail.com