FREEMARTINISMO EM BOVINOS

FREEMARTINISM IN CATTLE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202410212148


Barbara Scudeler Gonçalves1; Gabriel Afonso Man Lopes1; Thiago dos Santos Correia1; Bianca Gerardi2


Resumo

A síndrome do Freemartinismo acomete o sistema reprodutor de novilhas e outros ruminantes do sexo feminino em consequência à gestação gemelar de indivíduos heterozigotos, onde ocorre um processo de anastomose vascular precoce que proporciona a troca de células sanguíneas e hormônios em uma circulação comum entre os dois fetos antes da diferenciação sexual dos mesmos. Este trabalho vem com o propósito de revisar as literaturas sobre os casos de intersexualidade em bovinos durante os anos, reunindo os estudos e especificando as possíveis causas, formação, diferenciação dos animais acometidos e os métodos diagnósticos disponíveis.

Palavras-chave: Intersexualidade. Novilha. Reprodução. Gestação.

Abstract

Freemartinism syndrome affects the reproductive system of heifers and other female ruminants as a result of the twin gestation of heterozygous individuals,  which a process of early vascular anastomosis allows the exchange of blood cells and hormones in a common circulation between the two fetuses before their sexual differentiation. The purpose of this paper is to review the literature on cases of intersexuality in cattle over the years, bringing together the studies and specifying the possible causes, formation, differentiation of the affected animals and the diagnostic methods available.

Keywords: Intersexuality. Heifer. Reproduction. Gestation.

1 INTRODUÇÃO

Uma vaca gerada através de uma gestação gemelar onde os fetos são heterozigotos pode apresentar uma anomalia reprodutiva denominada Freemartinismo, onde essa fêmea permanece irreversivelmente em um estado intersexual com vários graus de comprometimento do seu sistema reprodutor (Ayala et al.,2007), além de características masculinas como maior desenvolvimento da musculatura e gordura, pescoço curto e tórax mais estendido (Souza et al., 2022).

A fêmea freemartin pode ser estéril ou possuir eficiência reprodutiva drasticamente diminuída, o que acarreta grandes prejuízos econômicos para o produtor do rebanho. Sanabria (2018) estimou que 81% das novilhas provenientes de gestações gemelares heterossexual são afetadas pela Síndrome do Freemartinismo, reforçando tais números, Padula (2005) o considerou como o distúrbio de desenvolvimento sexual (alterações congênitas de órgãos genitais atípicos aos cromossomos sexuais ou gônadas), mais diagnosticado em bovinos, afetando cerca de 1% a 2% das fêmeas. Estudos também comprovaram que o fator racial não é relevante para determinar a incidência dos casos (Bolaños, 2019). 

Cavalieti et al (2018) realizou um estudo sobre a indução de partos gemelares através da associação dos protocolos IATF e TE, onde foi concluído que as gestações duplas resultam em um aumento da taxa de rejeição das vacas pelos bezerros, menor peso vivo dos animais recém nascidos, maior incidência de doenças metabólicas e novilhas acometidas por intersexualidade. Este artigo de revisão tem como objetivo analisar os casos de intersexualidade em bovinos publicados na literatura, para compreender possíveis causas e métodos diagnósticos, além de ressaltar a importância econômica no cenário agropecuário de maiores estudos e informações para evitar o Freemartinismo em bovinos.

2 Causas

Pesquisadores determinaram, para que ocorra a Síndrome do Freemartinismo são necessários três eventos: Gestação gemelar, fetos dizigóticos e anastomose placentária no início da gestação (antes da diferenciação gonadal) (Esteves et al., 2012).

Esse tipo de gestação acontece quando a ovulação de dois folículos libera dois oócitos que são fecundados por espermatozóides contendo cromossomos diferentes, um com X, e outro com o cromossomo Y. Em seguida, ocorre a anastomose dos vasos sanguíneos cório-alantoideanos, ou seja, os embriões compartilham da mesma circulação, o que irá permitir a troca de células sanguíneas e hormônios gerando quimerismo cromossômico, entre 30 a 40 dias de gestação (Corredor & Páez, 2009; Souza et al., 2022).

Também foram realizadas algumas teorias quanto a formação do animal acometido pela síndrome do freemartinismo, sendo elas:

– Teoria Hormonal: Devido à anastomose vascular cório-alantoidianas dos fetos da gestação gemelar, entende-se que o hormônio MIF (müllerian inhibiting fator), conhecido como hormônio anti-mülleriano, e a testosterona sejam os principais responsáveis pelo freemartinismo (Brace et al., 2008). O MIF atua bloqueando o desenvolvimento dos ductos de Müller na fêmea, consequentemente causando alterações no seu sistema reprodutor (Cabianca et al., 2007)

-Teoria Celular: Essa teoria relata que a anastomose dos vasos placentários ocorre antes da migração dos gonócitos para o embrião, proporcionando então a migração dos mesmos do macho para a fêmea (Almeida & Resende, 2012)

-Teoria do TDF (fator de diferenciação testicular): Nesta teoria o freemartinismo dá-se devido ao gene SRY (Sex Determining Region in chromosome Y), que é o responsável pela diferenciação masculina, transformar a gônada ainda indiferenciada em testículo, pois o desenvolvimento do feto macho é anterior ao da fêmea, acarretando então os problemas de desenvolvimento do sistema reprodutor dessa fêmea (Grunert et al., 2005)

A diferenciação sexual masculina inicia-se no 40 º dia de gestação, enquanto a feminina começa a se diferenciar por volta do 60º dia, por esse motivo o trato reprodutor feminino é mais afetado. Entretanto é importante ressaltar que não somente a fêmea é afetada pela anastomose placentária, mas também os machos resultantes dessa gestação poderão apresentar diminuição da fertilidade devido a menor concentração e motilidade espermática (Corredor & Páez, 2009).

Segundo Almeida & Resende (2012), o freemartinismo também pode ser encontrado no nascimento de um único animal do sexo feminino, devido à morte do gêmeo macho no útero e sua reabsorção depois da anastomose vascular placentária.

Segundo Esteves et al (2012), as fêmeas acometidas pelo freemartinismo podem apresentar diversos graus de alterações morfológicas como clitóris aumentado de forma que se assemelha a um pênis (Fig.1), e que pode direcionar jatos de urina para cima durante a micção, vulva pequena com tufo de cabelo proeminente (Fig.2), vagina mais curta e as vezes com terminação cega, útero hipoplásico com estruturas rudimentares, hipoplasia dos ductos de Muller, presença de glândulas vesiculares, epidídimo e ou cordão espermático, gônadas no abdômen no local dos ovários, ou como relatado por Peretti et al.(2008),  presença de testículos na região inguinal. As alterações do sistema reprodutor são independentes da proporção de células XX/XY (Valência et al., 2005).

Figura 1: Clitoris aumentado de uma bezerra de 15 dias (Scudeler, B. 2024)

Figura 2: Vulva pequena e com tufos de cabelo proeminente em bezerra de 4 meses (Scudeler, B. 2024)

3 Métodos de diagnósticos

O freemartinismo pode ser diagnosticado cerca de 80% das vezes através de palpação retal durante o exame clínico, porém devido aos diferentes graus de acometimento do trato reprodutivo das fêmeas (Fig.3), outros exames para alcançar um diagnóstico fidedignos também podem ser utilizados (Peretti et al., 2008), são eles:

O teste sorológico que pode ser realizado após o animal apresentar um mês de vida, quando se dá a maturação antigênica dos glóbulos vermelhos (Corredor & Páez, 2009). Esse teste é possível devido a anastomose vascular promover o intercâmbio de eritrócitos de dois tipos de células precursoras, cada um com seu antígeno, porém sem que haja a produção de anticorpos. Esses antígenos podem ser detectados por testes hemolíticos através de biomarcadores de grupos sanguíneos específicos (CORREDOR & PÁEZ, 2009);  O exame citogenético que pode identificar um freemartin neonatal ou adulto através da identificação de células homozigotas (XX) e heterozigotas (XY) e possui eficiência de 98%; Os testes moleculares, por meio da técnica de reação em cadeia polimerase (PCR), que são úteis mesmo quando a novilha apresenta pouca diferenciação celular (Valência et al., 2005).

Figura 3: Vagina aparentemente normal de uma novilha freemartin de 2 anos de idade (Scudeler, B. 2024)

O diagnóstico eficiente e rápido do Freemartinismo é de grande interesse econômico dos produtores, para que então possam decidir o destino do animal estéril ou subfértil (Corredor & Páez, 2009). Caso o produtor decida por manter o animal, as fêmeas freemartin podem ser utilizadas para detecção do cio no rebanho com menor risco de acidentes, pois possuem a libido tão elevada quanto de um touro (Khan et al., 1994).

4 Considerações Finais

Não existe tratamento curativo para os animais acometidos pelo freemartinismo, e sua ineficiência produtiva faz com que o prognóstico não seja bom e o descarte desses animais altamente cogitado. 

Com o aumento da incidência de partos gemelares, além da falta de informação e conhecimentos dos profissionais que tem contato direto com os rebanhos, o diagnóstico precoce e fidedigno de um animal freemartin tornou-se imprescindível para que maiores perdas econômicas não venham a acontecer.

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1Graduandos do curso de Medicina Veterinária
E-mail: baahscudeler@gmail.com

2Professora no curso de Medicina Veterinária, Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio (CEUNSP), Salto, SP, Brasil