CINEMA, ARTE E VIRADAS ONTOLÓGICAS

CINEMA, ART AND ONTOLOGICAL TURNINGS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202410141757


Glycia Ruthênia Tomaz Pontes1;
Julianne do Nascimento Rocha2;
Thiago Chellappa3.


RESUMO

No presente ensaio, exploraremos a inter-relação entre cinema, arte e viradas ontológicas, passando pelo conceito de ontologia, viradas ontológicas, a importância do cinema e da arte como formadoras de linguagem e influência em relação à compreensão fundamental de existência, como também buscamos ilustrar a complexidade e a interdependência desses elementos na experiência humana. A metodologia utilizada tem como base pesquisas bibliográficas, trazendo em torno do mesmo, levantamento de informações por meio de livros e artigos. Diante disso, colocando em pauta a importância da relação entre o cinema, arte e virada ontológica como uma reflexão sobre a natureza do ser e da realidade.

PALAVRAS-CHAVE: Ontologia; Viradas Ontológicas; Cinema; Arte; Ser.

ABSTRACT

In this essay, we will explore the interrelationship between cinema, art and ontological turns, going through the concept of ontology, ontological turns, the importance of cinema and art as language builders and influence in relation to the fundamental understanding of existence, as we also seek illustrate the complexity and interdependence of these elements in the human experience. The methodology used is based on bibliographical research, bringing together information gathering through books and articles. In view of this, putting on the agenda the importance of the relationship between cinema, art and the ontological turn as a reflection on the nature of being and reality.

KEYWORDS: Ontology; Ontological Turns; Cinema,; Art; Being.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

“Em seu sentido filosófico, ontologia possui diversas definições (…), é o ramo da metafísica que estuda os tipos de coisas que existem no mundo. A palavra é derivada do grego ontos, ser, e logos, palavra” (MORAIS; AMBRÓSIO, 2007, p. 2).

Nessa perspectiva, a ontologia concentra-se na investigação sobre o ser, a sua existência e a natureza da realidade. Além disso, explora questões fundamentais sobre o que existe, como as coisas coexistem e quais categorias são fundamentais da realidade, ou seja, estudar o ser em si e suas diversas manifestações.

Diante disso, essa diversidade de formas é tratada na ontologia como tudo o que tem existência. Abrangendo, então, entidades concretas, como objetos físicos, e entidades abstratas, como conceitos, números ou relações. Buscando compreender a natureza fundamental, suas categorias e as relações entre diferentes tipos de entidades que compõem a realidade.

Sabendo-se da grande importância da ontologia para esse estudo como disciplina que estuda o ser e existência, a ontologia também proporcionou uma base sólida para reexaminar as premissas da filosofia, onde a partir dela foi aberta novas perspectivas e abordagens, havendo então, uma mudança na ênfase da filosofia com a chegada das viradas ontológicas.

Dessa maneira, o filósofo Martin Heidegger trouxe umas das suas grandes contribuições que permite refletir sobre as “viradas ontológicas”, fundamentando sua ontologia na busca pela verdade que se funda na investigação do ser, e defende que “toda ontologia aponta para o âmbito da questão fundamental: como o ser se essência? Qual a verdade do ser?” (HEIDEGGER, 2015, p. 201).

Nessa perspectiva, Heidegger propôs uma desconstrução da tradição filosófica que, segundo ele, havia negligenciado a questão fundamental do ser. Argumentando que os filósofos anteriores estavam preocupados principalmente com entes específicos (objetos, seres) em vez de questionar o significado mais amplo do ser, além disso, buscou questionar o sentido do ser em si mesmo, o filósofo em seus argumentos mostrava que a compreensão do ser é prévia a qualquer compreensão de entes individuais. Essa mudança de foco permitiu que ele explorasse questões ontológicas fundamentais sobre a existência e a natureza do ser. No que se refere ao “Ser e Tempo”, concentrou-se na análise da existência humana (Dasein) e na forma como ela está imersa no mundo, explorando como a existência humana se relaciona com o ser, considerando o significado mais amplo da existência além de entes individual. Buscando então, superar a tradicional distinção sujeito-objeto na filosofia. Em vez de considerar o ser como um objeto de estudo, ele enfatizou a natureza participativa e envolvente da existência humana no mundo.

A relação de ontologia e viradas ontológicas reside no fato de que as viradas ontológicas representam essa mudança de ênfase na filosofia em si, colocando a ontologia como o centro das investigações. Sendo as viradas, as mudanças na compreensão, representando uma transição de ideias e abordagens anteriores para novos paradigmas ontológicos.

Nesse sentido, o estudo das viradas ontológicas é complexo devido à natureza profunda e abstrata das questões relacionadas à existência, realidade e ser. Envolvendo conceitos complexos, debates densos e uma linguagem filosófica específica, o que torna a compreensão desafiadora. Além disso, diferentes filósofos apresentam perspectivas variadas, aumentando a complexidade do campo.

Com relação a ontologia, a mesma se relaciona com o cinema, pois “significa a possibilidade de restaurar uma articulação originária do sensível e do sentido. É uma possibilidade que cada imagem carrega. Sua capacidade de evacuar significados e identidades, para proliferar semelhanças sem sentido ou origem” (BEZERRA, 2018, p. 115).

CINEMA: ALIADO DA ONTOLOGIA

Representar o ser em sua totalidade é um desafio no âmbito do conhecimento, pois exige uma abordagem interdisciplinar e integradora, que considere a diversidade e a singularidade de cada indivíduo. Além disso, o ser humano é dinâmico e mutável, o que implica em uma constante revisão e atualização das formas de compreendê-lo e expressá-lo. Diante de tal cenário, o cinema surge como uma poderosa ferramenta ontológica, capaz de capturar e refletir a complexidade da existência humana.

Nessa perspectiva, “O ser” trazendo para o contexto cinematográfico, assume uma dimensão singular que se entrelaça com a ontologia, uma vez que o cinema é uma forma de expressão artística multidimensional onde captura e representa acerca da essência da existência humana e do mundo que cerca todos os seres. Portanto, a relação ontológica entre cinema e a natureza do ser reside na capacidade da sétima arte de explorar a condição metafísica, questionar a realidade dos seres, apresentar “temporalidades” e oferecer uma perspectiva única sobre a existência, ao revelar, por meio das imagens em movimento, as múltiplas camadas que compõem a realidade e a própria natureza da nossa existência.

Além dos fatos mencionados, o cinema proporciona uma maneira única de examinar questões ontológicas através de seus elementos, sejam eles visuais, narrativos ou sensoriais. Através dele, que existem diferentes representações de realidade, mundos imaginários e experiências subjetivas, onde contribuem para uma reflexão dos diferentes modos de existência.

Com isso, a relação entre o cinema e a ontologia está na maneira das expressões artísticas, onde reflete as ideias ontológicas, explorando a complexidade da existência e da realidade, se tornando uma forma de linguagem que é tão significativa para as viradas ontológicas, transmitindo significados de maneira envolvente e tornando-se uma forma distinta de expressão artística e comunicação.

“Para Maurice Merleau-Ponty, filósofo francês, um filme significa da mesma maneira que uma coisa significa. Tanto um quanto outro não se dirigem a uma inteligência isolada, mas ao nosso poder de ‘decifrar tacitamente o mundo e os homens e de coexistir com eles’” (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 115 apud BEZERRA, 2007, p. 96). Nesse contexto, o filósofo busca mostrar o poder inato do indivíduo de decifrar o mundo e coexistir com ele, ressaltando a capacidade humana de compreender por meio de símbolos e significados implícitos formas diversas de expressão, onde o cinema é uma forma de expressão.

Diante disso, duas perspectivas que entrelaçam o cinema e a ontologia:

a) O aspecto da temporalidade: “Ao ser projetado, um filme anima e dá presença, traz à vida, para um presente, um agora” (BEZERRA, 2007, p. 90). A espécie humana se propõe a viver no “no presente”, vivendo e experimentando a vida no “agora” já que esta é a realidade tangível para todos os indivíduos. Durante a exibição cinematográfica, os espectadores são convidados a entrar em um mundo que transcende o “presente imediato”, mergulhando em narrativas e realidades alternativas. O cinema pode provocar reflexões filosóficas e influenciar certos estados emocionais, ou seja, a sétima enfatiza a capacidade humana de modelar e remodelar a realidade. Para Menezes (1996, p. 90):

O cinema reintroduz nas imagens o que a fotografia delas retirou, restaura o fluir de uma temporalidade. Mas esta temporalidade não é nunca, ou quase nunca, a temporalidade do “real”. O cinema substitui, portanto, o aparente “foi assim” da fotografia pelo “é assim” da experiência do tempo das coisas.

b) O cinema como formador de linguagem: “O conteúdo de um filme é muito mais que o conteúdo de um roteiro, por mais perfeito que este seja. Se aqui ele é pura literatura, ali ele vai ser reelaborado por uma outra linguagem, essencialmente mais ambígua e abstrata” (Menezes, 1996, p.93). O intuito do cinema deve transcender a mera transmissão de informações ou mensagens explícitas. Em vez disso, ele deve criar uma experiência sensorial e emocional que conecta o espectador de uma maneira mais profunda e visceral. Tal fato, realça a capacidade humana de criar novas linguagens e entender linguagens metafísicas, pode-se argumentar que a arte, incluindo o cinema, é uma expressão da criatividade humana e da capacidade de comunicação para além das palavras e linguagens artísticas muitas vezes ultrapassam os limites da linguagem verbal, comunicando mediante símbolos, metáforas, imagens e emoções.

c) Visível e invisível: Bezerra (2018, p. 99) abordada a respeito das dualidades do visível e invisível:

“Pensar nossa relação com o ser como deiscência é não mais concebê-la como acoplamento, fusão ou coincidência, mas como fissão que, a partir da unidade primordial da carne, faz surgir, um para o outro, corpo e mundo, observador e observado, eu e outro”.

A dicotomia entre o visível e o invisível está intrinsecamente entrelaçada com questões ontológicas no cinema, oferecendo uma lente única através da qual se pode examinar a natureza da existência e da realidade. Ao apresentar a cinematografia visível, retrata a superfície tangível do mundo e uma compreensão aparente do que é aparente aos sentidos. É no invisível que a ontologia se revela de forma mais sutil e profunda. As emoções que não são explicitamente expressas, o simbolismo subjacente e as camadas simbólicas vão além da representação visual imediata e questionam a natureza da realidade. A ontologia cinematográfica destaca-se assim na tensão entre o que é facilmente perceptível e o que permanece oculto, oferecendo uma metáfora para a complexidade da existência. A separação entre o visível e o invisível na cinematografia reflete, assim, uma busca ontológica pela compreensão da verdade fundamental e convida os espectadores a contemplar as profundezas invisíveis e a considerar as muitas camadas que constituem a experiência humana.

Além disso, a arte de um filme não consiste em descrever didaticamente as coisas ou expor ideias, mas em criar uma “máquina de linguagem” com o intuito de instalar o espectador em um certo estado sensível.

O sentido de uma fita está incorporado a seu ritmo, assim como o sentido de um gesto vem, nele, imediatamente legível. O filme não deseja exprimir nada além do que ele próprio. A ideia fica, aqui, restituída ao estado nascente, ela emerge da estrutura temporal do filme, como, num quadro, da coexistência de suas partes. Trata-se do privilégio da arte em demonstrar como qualquer coisa passa a ter significado, não devido a alusões, a ideias já formadas e adquiridas, mas através da disposição temporal ou espacial dos elementos (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 115).

Nesse pensamento, o filósofo Merleau-Ponty, mostra que a percepção espontânea não é analítica, mas sintética, e é justamente por isso que podemos considerá-la “cinematográfica” por natureza. Para o filósofo, um filme significa da mesma maneira que uma coisa significa. Tanto um quanto outro não se dirigem a uma inteligência isolada, mas ao nosso poder de decifrar tacitamente o mundo e os homens e de coexistir com eles” (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 115). Dessa maneira, o cinema não nos oferece os pensamentos de um personagem. O que vemos são gestos, olhares, mímicas. Um personagem se torna visível por meio de seu comportamento, seu modo singular de estar no mundo, de lidar com aquilo que o cerca. O espectador, por sua vez, está numa relação de imediatismo com o mundo através do filme.

Diante do exposto, a relação entre a virada ontológica e as ideias de Merleau-Ponty sobre o cinema pode residir na ênfase compartilhada na experiência direta, na importância do ser e da existência, como também na compreensão da natureza ontológica da arte cinematográfica como uma expressão única da condição humana, já que a ontologia se baseia na importância da experiência direta, da corporeidade e da construção de significado a partir da disposição temporal dos elementos.

RELAÇÃO DE FILME E VIRADA ONTOLÓGICA

Lopes (2014, p.1), indaga sobre o recurso dos múltiplos universos abordados na indústria cinematográfica:

A possibilidade de nosso universo ser apenas um entre vários sempre teve um papel importante na ficção científica e em nossa imaginação. No entanto, mais do que um simples exercício especulativo, existem partes dessa história que não estão muito distantes das mais recentes pesquisas da física contemporânea.

A citação acima refere-se a física quântica, está última por sua vez desafia nossas concepções tradicionais de realidade, introduzindo elementos como a indeterminação, superposição e entrelaçamento quântico e tais fenômenos desencadeiam questionamentos ontológicos profundos sobre a natureza da existência e a definição de estados e propriedades.

No cinema, a narrativa do multiverso frequentemente incorpora esses princípios quânticos, explorando a ideia de universos paralelos com leis físicas distintas: “o cinema bagunça finito e infinito, substância e acidente, alma e corpo, sensível e inteligível. É uma relação íntima entre o artifício e a realidade” (BEZERRA, 2018, p.91).

Um exemplo de arquivo cinematográfico que demonstra essa ideia da “bagunça” é a aclamada série Loki, onde o episódio inicial da série denominado “Glourious Propose” [“Glorioso propósito” em inglês], faz referência direta aos eventos de “Vingadores: Ultimato”, onde Loki escapa com o Tesseract durante a cena do roubo no edifício Stark. Criando então, uma linha do tempo alternativa que se torna o ponto de partida da série, sendo ao longo dos episódios introduzida a ideia de que o multiverso é uma realidade, não apenas uma teoria.

Esse casamento entre a física quântica e o multiverso na ficção cinematográfica permite que os criadores explorem conceitos ontológicos, como identidade, realidade e escolha, em contextos onde a multiplicidade de possibilidades desafia as noções convencionais de ser e existir. Assim, a fronteira entre a ciência, a ontologia e a criatividade cinematográfica se dissolve, proporcionando um terreno fértil para reflexões profundas sobre a natureza fundamental da realidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse aspecto, a interseção entre ontologia e cinema proporciona um terreno fértil para reflexões filosóficas, investigando a essência da representação cinematográfica e sua conexão com a realidade. A sétima arte é um meio que transcende barreiras espaciais e temporais, capturando e reimaginando a essência da existência humana. Através da ontologia, compreende-se como narrativas cinematográficas podem refletir, questionar e reconstruir concepções acerca da realidade. As experiências sensoriais e emocionais proporcionadas pelo cinema tornam-se uma janela para reflexão ontológica, instigar espectadores a explorar, questionar as complexidades da existência e desvendar as múltiplas camadas que compõem a teia da realidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEZERRA, Julio. Bazin e Merleau-Ponty: o cinema e sua aposta ontológica. Poliética, v. 6, n. 1, p. 89-121, 2018.

DE BARROS, Gabriel de Almeida. O pensamento de Heidegger como abertura para uma ecofenomenologia. Ekstasis: Revista de Hermenêutica e Fenomenologia, v. 11, n. 1, p. 148-171, 2022.

HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. São Paulo: Edições 70, 2010

LOPES, Daniel Vieira. Múltiplos Universos: fato ou ficção?. E-Boletim da Física, v. 3, n. 10, p. 1-3, 2014.

MENEZES, Paulo Roberto Arruda de. Cinema: imagem e interpretação. Tempo social, v. 8, p. 83-104, 1996.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

_________________________. “O cinema e a nova psicologia”. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

MORAIS, Edison Andrade Martins; AMBRÓSIO, Ana Paula L. Ontologias: conceitos, usos, tipos, metodologias, ferramentas e linguagens. Relatório Técnico–RT-INF-001/07, 2007.

STOREY, David. E. Naturalizing Heidegger: His confrontation with Nietzsche, his contributions to environmental philosophy. Nova Iorque: Suny Press, 2015.


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