POLÍTICAS PÚBLICAS, GESTÃO E PERCEPÇÕES DE MULHERES MILITARES EM FUNÇÕES DE ALTO COMANDO NO ÂMBITO DA PMAP

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102410141215


Aldinei Borges de Almeida
Ivaldo da Silva Sousa
Ana Cleia Lacerda da Costa Sousa
Esmeralda Viana Braga Sá
Jocivannia Maria de Sousa Nobre Dias
Josiette de Nazaré Silva da Costa
Marlene de Souza da Cunha
Mércia Ferreira de Souza Simone Pelaes
Maciel Nunes Arivaldo Leite Mira


RESUMO

O artigo “Políticas Públicas, Gestão e Percepções de Mulheres Militares em Funções de Alto Comando no Âmbito da PMAP” investiga a percepção institucional da Polícia Militar do Amapá (PM-AP) sobre suas comandantes femininas, o objetivo central é analisar o papel das mulheres na corporação, especialmente nos cargos de alto comando, e confrontar essas percepções com pesquisas similares, a pesquisa parte da constatação de que, apesar do crescimento da presença feminina em diversas áreas da sociedade, inclusive nas forças militares, a PM-AP ainda reflete um modelo patriarcal. Esse contexto se manifesta por meio de preconceito, discriminação e opressão contra as comandantes, o que reforça a necessidade de analisar criticamente a inserção dessas mulheres e as desigualdades existentes, utilizando métodos e técnicas que superam o senso comum, o estudo busca compreender como as relações de gênero se configuram na corporação, a pesquisa também explora temas como o machismo e a supremacia masculina, além de debater o impacto das mulheres nas forças policiais e os desafios enfrentados em termos de assédio e discriminação, visando promover a valorização de todos os membros da PM-AP.

Palavras-chave: Mulheres militares, Polícia Militar, Relações de gênero.

Resumen

El artículo “Políticas Públicas, Gestión y Percepciones de Mujeres Militares en Funciones de Alto Mando en el Ámbito de la PMAP” investiga la percepción institucional de la Policía Militar de Amapá (PM-AP) sobre sus comandantes femeninas. El objetivo central es analizar el papel de las mujeres en la corporación, especialmente en los cargos de alto mando, y confrontar estas percepciones con investigaciones similares. La investigación parte del hecho de que, a pesar del aumento de la presencia femenina en diversas áreas de la sociedad, incluidas las fuerzas militares, la PM-AP aún refleja un modelo patriarcal. Este contexto se manifiesta a través de prejuicios, discriminación y opresión contra las comandantes, lo que refuerza la necesidad de analizar críticamente la inserción de estas mujeres y las desigualdades existentes. Utilizando métodos y técnicas que superan el sentido común, el estudio busca comprender cómo se configuran las relaciones de género en la corporación. La investigación también explora temas como el machismo y la supremacía masculina, además de debatir el impacto de las mujeres en las fuerzas policiales y los desafíos que enfrentan en términos de acoso y discriminación, con el objetivo de promover la valorización de todos los miembros de la PM-AP.

Palabras clave: Mujeres militares, Policía Militar, Relaciones de género.

Introdução

A questão norteadora desta pesquisa está diretamente ligada ao seu objetivo geral, que consistiu em analisar a percepção institucional da Polícia Militar do Estado do Amapá (PM-AP) sobre suas comandantes. Os objetivos específicos foram:

  1. Analisar a inserção das mulheres na PM-AP;
  2. Analisar a atual situação das policiais militares do Amapá;
  3. Analisar os cargos e funções de alto comando na PM-AP; e
  4. Analisar a percepção institucional sob a ótica das policiais militares, e em que aspectos os resultados obtidos se correlacionam com outras pesquisas sobre temas análogos.

A base de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que, em 2021, 51,1% da população brasileira era do sexo feminino: isso representa 4,8 milhões de mulheres a mais que homens no país. Apesar desses números, ainda se mostram incipientes a presença e participação efetiva das mulheres em certos segmentos da sociedade. Em que pese a preponderância masculina em atividades historicamente dominadas pelos homens ‒ como na política, na religião, na ciência, na filosofia e, em especial, no militarismo ‒, cada vez mais as mulheres não só têm estabelecido sua presença nessas áreas, elas também têm exercido elevados cargos e assumido funções outrora exclusivas dos homens. Essa realidade tem suscitado certas inquietações científicas, pois, em face da condição de profissional da instituição militar, na qual se tem observado uma crescente participação de mulheres em elevados postos, o que invariavelmente suscita hipóteses das mais diversas nos mais variados segmentos da corporação, constata-se a premente necessidade de debater o tema por meio de métodos, técnicas e referenciais capazes de ir além dos posicionamentos cristalizados e influenciados pelo senso comum.

A hipótese aqui adotada é que, apesar da condição de mulheres exercentes de elevadas funções no âmbito da PM-AP, a percepção geral da corporação ainda se assenta no modelo patriarcal, caracterizado por preconceito, discriminação e tratamentos depreciativos, aviltantes e até opressores em razão da condição do gênero feminino dessas comandantes militares, mesmo sendo elas oficiais superiores.

Assim, é importante compreender como essas relações vêm sendo definidas dentro da corporação, sob uma perspectiva de quem está diretamente envolvida na situação, para poder refutar ou não a hipótese levantada, uma vez que a expansão da atuação da mulher no mercado de trabalho garante à instituição um semblante de maior acolhimento e delicadeza, o que jamais deverá ser confundido com fragilidade. Para tanto, é crucial saber como (e se) ocorrem desigualdades e diferenciações dentro da instituição, para que PM-AP valorize todos os seus membros.

Nesse sentido, este capítulo recorre a um referencial teórico oriundo de revisão da literatura que caracteriza/conceitua/discorre sobre as seguintes categorias: polícia militar, mulheres nas forças policiais, cargos e funções de alto comando, instituições totais, machismo e supremacia masculina nas forças policiais, relações de gênero nas forças policiais e assédio, preconceito e discriminação contra as policiais.

Referencial teórico
Aspectos históricos e conceituais

Em se tratando do conceito de polícia, a literatura apresenta as mais diversas compreensões de sua concepção e correlação com o Estado e também se refere a esse ente jurídico por meio de outros termos, quais sejam: organização política, governo, regime político, forma de governo e cooperação dos órgãos de Estado. Segundo Sousa (2009, p. 1):

Para o conceito de polícia, o termo polícia vem do grego politeia (πολιƮƐα)1. Tinha na Grécia antiga diversos significados: a) em sentido individual: significava qualidade e direitos de cidadão; b) em sentido colectivo [sic]: significava medidas de governo, regime político, forma de governo, cooperação dos órgãos do Estado e interpenetração das funções de Estado;

c) em sentido geral, significava ciência dos fins e deveres do Estado, governo dos cidadãos por si próprios, governo republicano, tanto oligárquico como democrático, Constituição, democracia.

1 Na Grécia antiga, Politeia (Polieas) também era um dos nomes de Júpiter e, ao mesmo tempo, o nome do Deus do bem comum.

Essa compreensão sobre polícia, no sentido de politia, perdurou por muito tempo na Europa, aperfeiçoando-se para um sentido mais jurídico-político com o advento do Estado moderno, passando pelo Estado liberal, como sinônimo de boa organização, boa ordem na cidade ou boa ordem na coletividade. Depois, no século XVIII, como processo evolutivo da palavra francesa police, surgiu a acepção de polícia como força de segurança que assegura a ordem pública; corporação com a incumbência de fazer com que os cidadãos cumpram as leis vigentes em determinado Estado. É isso que se extrai de Sousa (2009, p. 1):

Em Portugal, o termo politia foi recorrentemente empregue ao longo dos tempos, tanto na linguagem popular, como na linguagem erudita. Porém, o significado jurídico-político que prevaleceu na Europa no período que vai do aparecimento do Estado moderno à implantação do Estado Liberal foi o de boa administração, boa ordem na cidade ou boa ordem na coletividade.

Posteriormente, sobretudo a partir do início do século XVIII, surgiu em Portugal, como em outros países, uma nova acepção do termo polícia, que terá sido adaptada do francês police¸ significando força de segurança que assegura a ordem pública. Essa polícia era, pois, a corporação encarregada de fazer observar as leis ou força que vela pela disciplina da liberdade individual. Significava também, indivíduo membro de uma corporação policial.

Sousa e Morais (2011) também esboçam um conceito de polícia enquanto organização administrativa, com a atribuição de imposição de limites à liberdade individual, como medida necessária para manutenção da ordem púbica através do uso da força:

Polícia é, então, a organização administrativa (vale dizer da polis, da civita, do Estado = sociedade politicamente organizada) que tem por atribuição impor limitações à liberdade (individual ou coletivo) na exata (mais, será abuso) medida necessária à salvaguarda e manutenção da Ordem Pública, segundo Lazzarini (2008).

[…] cuja função é a de repressão e manutenção da ordem pública através do uso da força, ou seja, realiza o controle social.

Na mesma linha, Xavier (2015), invoca as origens da polícia às polis gregas e também a correlaciona a um órgão responsável pela manutenção da ordem pública e que cuida do bom andamento da coisa pública, essenciais para a existência do Estado e dos direitos e das garantias fundamentais do cidadão. Corroborando as visões dos demais autores, Afonso (2018, p. 216), aduz que o termo polícia, também fazendo alusão às origens gregas da polis, em geral, derivada do latim politia, representa governo da cidade ou constituição da cidade-estado:

Do ponto de vista etimológico, o termo polícia tem origem no latim “politia” (que resulta da palavra “polis”, que significa cidade), um conceito que deriva da latinização do vocábulo grego “politeia” (Πολιτεία) que, ao longo dos tempos, assimilou várias significações: governo ou Constituição da Cidade-estado, comunidade, bem-comum, direitos ou privilégios dos cidadãos, cidadania, administração, política, medida política, tradição, costume ou maneira de viver. Para os romanos, que o tomaram de empréstimo, o termo “politia” comporta duas significações: o de res publica (coisa pública) e o de civitas (com o sentido de “negócios da Cidade”), resumindo-se ao conceito de política, isto é, aquilo que pertence ao governo da Cidade.

A concepção de polícia que se tem atualmente passou por inúmeros movimentos até se estabelecer. O que é inegável é sua relação com o poder, com a “ordem social”.

Diante disso, sua concepção moderna se configura a partir do século XVII, quando o então rei francês Luiz XIV institui o cargo de Tenente-General de Polícia, em 1665, em Paris. No século XIX, na Inglaterra, o Duque Wellington estabeleceu o modelo de polícia moderna, onde o governo foi forçado “a criar um órgão de força interna para evitar a utilização do Exército na repressão das revoltas sociais” (AFONSO, 2018, p. 216), as quais vão influenciar a criação em Portugal da Intendência Geral da Polícia, em 1760, e da Guarda Real da Polícia, em 1801. Nesse cenário, a polícia passou a manter a ordem interna de suas nações, mostrando-se primordial para garantir a proteção das pessoas, de seu patrimônio e da ordem pública. Esses modelos serviram de base para a criação da Intendência Geral de Polícia da corte, no Brasil.

Polícia militarizada no mundo e no Brasil

Sendo o Brasil uma colônia de Portugal, por óbvio a história da polícia brasileira tem a ver e foi diretamente influenciada pelo que foi no passado a polícia lusitana. É o que demonstra Cotta (2009) ao descrever todo o processo evolutivo pelo qual passou a polícia brasileira, desde a Intendência Geral de Polícia da corte até a configuração como polícia militar. Para muitos autores, a história da polícia militar brasileira remonta ao século XIX, durante o Período Regencial, que foi bastante conturbado. Em 1808, com a chegada da Família Real ao Brasil, tem-se registro do que muitos historiadores concebem como marco histórico sobre as origens da polícia militar no território brasileiro, pois em 1809 foi criada a Intendência Geral de Polícia da Corte, com o objetivo de zelar pelo abastecimento do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, e de manter a ordem (COTTA, 2009). Assim, tendo em vista que a Guarda Real permaneceu em Lisboa e D. João VI criou a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia do Rio de Janeiro, em 1809, e era subordinada à Intendência Geral. Por volta de 1831, o Ministro da Justiça da época, Diogo Antônio Feijó, foi responsável pela criação da Guarda Nacional, que tinha por objetivo promover a segurança nas províncias. A ideia era que cada província (equivalente aos atuais estados da Federação) deveria ter sua segurança interna autônoma, sua política de segurança pública independente (COTTA, 2009). Tal divisão se estabeleceu ao longo do tempo e o termo polícia militar foi adotado no âmbito da Constituição de 1946 (BRASIL, 1946), elaborada após o fim do Estado Novo, sendo o termo usado em todos os entes da Federação, exceto no Rio Grande do Sul, que até hoje usa a nomenclatura brigada militar.

A Guarda Nacional foi responsável pela segurança das províncias até por volta da Proclamação da República, quando foi reestruturada e passou a ser denominada Força Pública, que existiu nos estados até a década de 1970, quando o Governo Militar decidiu proceder à militarização da força pública, assim, ela passou a se chamar Polícia Militar.

A Polícia Militar é uma instituição presente no Brasil desde o século XIX, embora sua denominação tenha mudado constantemente. Inicialmente era conhecida como Guarda Real de Polícia (1809), Força Policial (1858), Corpo de Polícia (1892), Batalhão de Polícia (1910), Força Militar (1940) e Polícia Militar (1946).

No contexto em que passaram a se denominar polícias militares as forças policiais de todo o território brasileiro, o Amapá ainda figurava como território federal, por conseguinte, o embrião de sua polícia militar foi a Guarda Territorial (Lima; Pereira, 2014), com afirma a própria PM-AP no Boletim Geral da Corporação n. 147, de 13 de agosto de 2018.

A Polícia Militar do Amapá

Como uma das categorias a serem exploradas neste capítulo, a PM-AP é o universo no qual se inserem os sujeitos analisados, quais sejam: as mulheres policiais que exercem funções de alto comando e seus respectivos subordinados. Nesse sentido, caracterizar a PM-AP. As polícias militares de todo o Brasil tem suas respectivas atribuições gerais previstas inicialmente na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988, grifo nosso):

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

[…]

§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.

Cabe frisar, porém, que esse status de instituição militar da PM-AP remonta à Lei n. 6.270 (BRASIL, 1975, grifo nosso):

Art. 1º São criadas as Polícias Militares dos Territórios Federais do Amapá, de Rondônia e de Roraima, destinadas à manutenção da ordem pública na área dos respectivos Territórios.

Parágrafo único. As Polícias Militares, de que trata este artigo, se organizarão à base da disciplina e da hierarquia, segundo o prescrito em quem regulamentação específica, de conformidade com os dispositivos desta Lei.

Antes de oficialmente criada, a PM-AP tinha sua origem atrelada à extinta Guarda Territorial, criada em 17 de fevereiro de 1944, por força do Decreto-Lei n. 08 do Governo Territorial do Amapá. Veja-se que, em suas origens, a PM-AP era uma instituição de natureza civil e tinha como função precípua a manutenção da ordem, bem como fornecia mão de obra para a realização de serviços públicos. O efetivo total da Guarda Territorial, como relatam Lima e Pereira (2014), permaneceu oficialmente em 120 homens, porém, constatou-se mediante entrevistas com guardas territoriais que, extraoficialmente, recorrendo a contratos administrativos, antes de tornar-se Polícia Militar, em 1975, a Guarda Territorial chegou a ter mais de 800 homens. O efetivo da PM-AP foi previsto no Decreto n. 79.108 (BRASIL, 1977, grifo nosso):

Art. 17. Os efetivos das Polícias Militares dos Territórios Federais do Amapá, de Rondônia e de Roraima serão fixados pelos seus Governadores, ouvido o Ministério do Exército, através de Quadros de Organização, dentro dos limites máximos de 550, 750 e 450 homens, respectivamente.

O art. 14 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) transformou o Território Federal do Amapá em Estado do Amapá, iniciando uma nova fase da PM-AP, que dura até os dias atuais (LIMA; PEREIRA, 2014). No momento em que esta pesquisa foi realizada, no 2º semestre de 2022, a PM-AP, com 78 anos de existência, estava sob o comando de uma mulher pela primeira vez na história da corporação. Tratava-se da Coronel Heliane Braga de Almeida, a terceira mulher do país a assumir o mais alto posto de uma corporação policial militar estadual, o que vem sendo considerado, por alguns, um marco para as mulheres amapaenses e brasileiras, e, por outros, uma ameaça àquilo que segmentos reacionários e patriarcais consideraram um santuário dos homens:

Com a escolha da 1ª comandante geral da PM-AP mulher renovou-se o olhar para este cenário que antes era dominado só por homens e mostrou toda sua capacidade como mulher para exercer tal cargo de alto comando com excelência. (Entrevistada 1)

Temos uma mulher comandante geral, atualmente, bem como há outras mulheres exercendo função de comandantes e subcomandantes de unidades operacionais. Tão competentes e responsáveis quanto quaisquer outros comandantes do sexo masculino. (Entrevistada 2)

É sobre essa presença de mulheres em ambientes policiais e as relações que se processam nesse tipo de ambiente, onde sempre prevaleceu a figura masculina, que se discorre a seguir. Serão abordadas as relações de poder, a supremacia masculina e as polícias militares como instituições totais, sob a ótica de Benelli (2014), Bourdieu (2012), Foucault (1974, 1982, 1999a, 1999b, 1999c), Frota (2004) e Frota e Alves (2020), entre outros autores.

Machismo e supremacia masculina nas forças policiais

Com os grandes avanços relativos aos direitos conquistados, em especial pelas mulheres, percebem-se progressos nos campos sociais e maior busca pela igualdade de oportunidades, pois a legislação vigente prevê que, teoricamente, todos somos iguais em nosso país. Com base nisso, é evidente que as mulheres têm ocupado cada vez mais espaço nas repartições de segurança pública, nas esferas municipal, estadual e federal. No entanto, mesmo com as mulheres em constante processo de ascensão, percebe-se que concepções discriminatórias permeiam nossa sociedade e tais atividades ainda são vistas como destinadas aos homens.

Bourdieu (2012) apresenta teorias que buscam a comprovação das causas da dominação masculina. Nota-se que as fontes de tais teorias fundamentam, nos mais diversos locais e/ou regiões, a existência e a perpetuação da predominância masculina subliminarmente em certos espaços. Para o autor, há uma sobreposição, de certa forma “natural”, do sexo masculino sobre o feminino e essa condição se manifesta de maneira inconsciente, sem regras ou normas, sem qualquer fundamentação lógica, ou seja, assume uma forma arbitrária, impondo o sexo masculino como dominador conforme a vontade daquele que assim age. Muitos fatores, regras e ações com atitudes de dominação vão impondo-se no meio social e tornam-se naturalizados no meio social. É nesse cenário que a mulher tenta ganhar espaço nas instituições de segurança pública, como, por exemplo, a polícia militar.

Os tratamentos desiguais e as ações preconceituosas motivadas pelo sexo/gênero identificados com base em Bourdieu (2012) evidenciam o que o autor denomina relação binária, onde a figura do homem, de um lado, opõe-se à figura da mulher, do outro. Ou seja, são totalmente opostos um ao outro e relatam-se atividades, em tese, exclusivamente masculinas ou femininas: seria inadmissível que uma atividade de mulher fosse realizada por um homem e vice-versa.

Bourdieu (2012) apresenta, ainda, o machismo estrutural ou violência simbólica como algo que tem sido observado nas relações sociais. Assim, percebe-se que as diversas relações de dominação do gênero masculino sobre o feminino assumem formas simbólicas, ou seja, de maneira direta ou indireta, proposital ou não, o machismo é considerado algo estrutural, cultural.

Temos que registrar e levar em conta a construção social das estruturas cognitivas que organizam os atos de construção do mundo e de seus poderes. Assim se percebe que essa construção prática, longe de ser um ato intelectual consciente, livre, deliberado de um “sujeito” isolado, é, ela própria, resultante de um poder, inscrito duradouramente no corpo dos dominados sob forma de esquemas de percepção e de disposições (a admirar, respeitar, amar etc.) que o tornam sensível a certas manifestações simbólicas do poder (BOURDIEU, 2012, p. 53).

O autor fala sobre o machismo estruturalista-construtivista, deixando transparecer que a dominação por parte do sexo masculino é percebida nos mais diferentes campos sociais e nas diversas profissões como, por exemplo, policiais, médicos, políticos etc. Sempre que citados, esses coletivos se referem ao gênero masculino, mostrando que o machismo se naturaliza na sociedade ao longo do tempo.

Tanto na análise da literatura quanto no contato direto com o contingente policial, constata-se numericamente que as mulheres são minoria nas funções da segurança pública e identifica-se a carga de preconceito sofrido por elas, pois ainda é comum se deparar com ditos populares como “isso é coisa de mulher” e “isso é coisa de homem”, reforçando a discriminação de gênero. E quando se trata de mulheres exercendo a função de policial militar, percebe-se que:

As mulheres são minoria em todas as forças de segurança no Brasil. Na Polícia Militar, que hoje tem um efetivo de 417 mil policiais espalhados por todo o país, as mulheres compõem apenas 11% das tropas. Na Polícia Civil, a participação feminina é consideravelmente maior: elas somam 28% do efetivo de 117 mil policiais civis (AMOROZO; MAZZA; BUONO, 2020).

Nesse sentido, muitas profissionais do sexo feminino alocadas na segurança pública, mais propriamente na polícia militar, ainda se sentem discriminadas em seu dia a dia de trabalho, pois são tratadas como inferiores aos profissionais do sexo masculino.

Assédio, preconceito e discriminação contra as mulheres policiais

Referimo-nos ao assédio moral no sentido de todas as formas de tratamento onde exista abuso de poder que um(a) profissional sofre por parte de um(a) superior em decorrência da posição hierárquica.

Em acréscimo, tais situações ofendem a dignidade da vítima assediada e acarretam, de algum modo, danos à personalidade, à integridade física ou psíquica. Neste sentido, observamos que o assédio moral, em qualquer de suas variáveis, diz respeito a disputas de poder. Ele pode se apresentar de forma vertical descendente, quando parte do superior para o subordinado pela imposição da autoridade ou, vertical ascendente, quando é o subordinado que assedia o superior, em casos mais raros. Por exemplo, pelo boicote à autoridade de alguém que se tornou superior ou pela vontade, por inveja, de querer obter a sua autoridade. Além disso, o assédio ainda pode se caracterizar horizontalmente entre indivíduos que exercem uma mesma posição hierárquica ou cargo profissional (ALVES; FRANÇA, 2018, p.74).

Portanto, o assédio moral pode manifestar-se de diversas maneiras, como uma forma de violência e para manter a ordem em relações de poder.

O assédio moral se configura como todo comportamento abusivo, resultante de condutas hostis e estigmatizantes, que expõem os indivíduos no exercício de atividades profissionais a situações humilhantes e constrangedoras, geralmente repetitivas e prolongadas, na maioria das vezes durante o desempenho de atividades laborativas.

[…]

O assédio moral pode ser encontrado em instituições militarizadas, tal como as Polícias Militares […], nas quais estão presentes no seu contexto institucional elementos que possibilitam a ocorrência de condutas caracterizadoras do assédio moral. Destaca-se, a partir do contexto cultural policial militar, o controle exercido sobre os seus membros não apenas no desempenho de atividades laborais, mas na vida íntima dos mesmos, ainda que estejam na inatividade (ALVES; FRANÇA, 2018, p.74).

Levando em consideração a questão de gênero, as situações podem agravar-se bastante. O assédio moral pode causar vários tipos de prejuízos às pessoas, refletindo a intenção de demonstrar um poder perverso exercido entre alguns membros das instituições, podendo ser considerada uma espécie de exploração capaz de afetar um ser humano como um todo.

Em meio à exploração que ocorre nas relações trabalhistas, da qual resulta uma série de fatores que desestruturam a harmonia no espaço de trabalho e, sobretudo, são prejudiciais à saúde física e psicológica daqueles que prestam seus serviços, surge o fenômeno denominado de “assédio moral”, hoje conhecido e estudado em todo o mundo (ALVES; FRANÇA, 2018, p. 76).

Quando tais práticas se tornam naturalizadas no dia a dia das pessoas, passam a fazer parte de um cenário no qual as vítimas aceitam passivamente essas formas de violência.

Seguindo esse caminho, também percebemos que as polícias militares, ao apresentarem características das “instituições disciplinares”, ou também constituídas com base na hierarquia e disciplina, apresentam entre seus membros condutas e comportamentos que se correlacionam às práticas de assédio moral. Características essas presentes em seus processos de socialização profissional como desenvolvimento de relações que visam à correção moral do caráter de indivíduos que precisam se adequar aos padrões e regras estabelecidos (ALVES; FRANÇA, 2018, p. 78).

É dessa maneira que ocorre o assédio moral no mundo militar, com a prática diária de fundamentos institucionais que possibilitam o exercício do poder sobre outros membros da instituição, que internalizam o chamado espírito militar, adotando condutas institucionais mesmo em sua vida social, características das instituições totais, que, muitas vezes, chegam a desconstruir o eu das pessoas ‒ nesse sentido, Goffman (1987) fala em “mortificação do eu”.

Marco metodológico

Os procedimentos adotados nesta pesquisa seguem a classificação de Hamada e Moreira (2021): que quanto à sua natureza, é uma pesquisa aplicada, que busca gerar novos conhecimentos úteis; quanto à sua abordagem, é uma pesquisa quali-quantitativa, por usar dados quantificáveis e interpretar e analisar fenômenos, atribuindo significados ao processo de investigação, e, ainda, apresenta-se como uma pesquisa descritiva, identificando características de determinada população e estabelecendo relações entre as variáveis e outras fontes de informações. O cenário da pesquisa consistiu na PM-AP, tendo como sujeitos as mulheres oficiais superiores que exercem postos de alto comando e seus respectivos subordinados. A pesquisa de campo foi mediada por entrevista com os sujeitos, através da plataforma Google Forms, analisando a percepção dos profissionais da PM-AP sobre suas respectivas superioras hierárquicas e eventuais nuances disso.

Durante a aplicação dos questionários foram abordados os seguintes aspectos:

  1. Avanços (ou não) no acolhimento às mulheres militares;
  2. Fatores relativos ao reduzido número de mulheres em funções de alto comando;
  3. Discriminação/preconceito estrutural/tratamento inferiorizante sofrido por mulheres militares em postos de alto comando;
  4. Percepção avaliativa das entrevistadas acerca das mulheres militares ocupantes de funções de alto comando; e
  5. Percepção sobre o desempenho das mulheres que exercem elevados postos militares.

Buscou-se atingir uma amostra aproximada de 20% do universo da PM-AP (3.118 policiais militares), assim, foram entrevistados 621 (19,91% do contingente). Esse quantitativo de entrevistados atende às exigências técnicas, acadêmicas e normativas, à luz do que preconizam os manuais de metodologia de pesquisa científica.

Análises dos resultados
A inserção das mulheres na Polícia Militar do Amapá

Durante a busca de fontes de pesquisa sobre a entrada das mulheres na PM-AP se detectou que tais informações eram raras e escassas; assim, realizou-se uma pesquisa no acervo histórico e na base de dados da PM-AP e identificou-se a primeira turma de soldados com a inclusão de mulheres. Foram consultados os boletins internos da PM-AP (entre os números 130, de 13 de julho de 1988, e 243, de 30 de dezembro de 1988, e entre os números 001, de 2 de janeiro de 1989, e 245, de 29 de dezembro de 1989) e constatou-se a inclusão de soldados policiais militares no boletim interno n. 131, de 13 de julho de 1989, o qual dispôs, com base no art. 10 da Lei n. 6.652 (BRASIL, 1979), a inclusão no efetivo da PM-AP, a contar de 1º de junho de 1989, de 359 recrutas, ou seja, passaram- se 45 anos, quase meio século, para que mulheres fossem admitidas nas fileiras da corporação. Na ocasião, inicialmente foram incluídos como recrutas 279 homens e 80 mulheres. Durante o curso de formação de soldados os boletins internos ns. 158, 159, 167, 172 e 180, todos de 1989, registraram o desligamento de 7 alunas, pelos mais diversos motivos: a pedido, por reprovação, por falta de vocação etc. A ata de conclusão do curso de formação de soldados PM masculinos e femininos foi registrada em 1º de novembro de 1989, informação extraída do boletim interno n. 216, de 16 de novembro de 1989, na qual expõe que o período desse curso foi de 1º de junho a 31 de outubro de 1989. Nessa ata os militares foram ordenados conforme a classificação das notas obtidas. Cabe salientar que esse foi o primeiro documento registrado em boletim interno no qual homens e mulheres constaram na mesma lista sem distinção de sexo, pois os anteriores eram dispostos em duas listas separadas. Na ata de conclusão do curso consta que 312 recrutas foram aprovados direto e 29 foram aprovados na 2ª época; 67 recrutas do sexo feminino foram aprovadas direto e 5 passaram na 2ª época. Ainda sobre a referida ata, constatou-se que a aluna mais bem classificada foi a AL SD PM FEM Ana Claúdia Ribeiro Alves, conquistando a 6ª colocação geral dentre o total de 341 concludentes.

A amostragem deste estudo foi estendida dos boletins internos ns. 130, de 13 de julho de 1988, a 243, de 30 de dezembro de 1988, na tentativa de encontrar alguma publicação sobre a inspeção de saúde ou outra etapa da seleção para o curso de formação de soldados, contudo, sem êxito. Assim como também não foi identificado o documento que registrou o resultado do teste de aptidão física dos candidatos ao referido curso. Tem-se, então que, dentre o universo total de recrutas que inicialmente ingressaram na PM-AP, apenas 341 foram aprovados e prosseguiram na carreira militar, sendo 269 do sexo masculino e 72 do sexo feminino.

A atual situação das mulheres policiais militares do Amapá

Do mesmo modo como procedemos para caracterizar e descrever o ingresso das mulheres na PM-AP, buscaram-se fontes de pesquisa sobre a atual situação das mulheres na PM-AP ‒ situação

com informações mais raras e escassas. Realizou-se uma pesquisa no acervo histórico da instituição, na base de dados da PM-AP, junto às diretorias de pessoal e de inativos e pensionistas, cujos dados contêm as seguintes informações: quantitativo de policiais militares, descrição por sexo e quadro de oficiais e praças (Tabela 1).

Tabela 1 ‒ Descrição do quantitativo geral, por sexo e quadro, de policiais militares da PM-AP (dezembro de 2022)

 Total(%)Oficiais(%)Praças(%)Oficial superior(%)
Masculino2.28073,1%63185,5%1.64969,3%11886,1%
Feminino83826,9%10714,5%73130,7%1913,9%
TOTAL3.118100,0%738100,0%2.380100,0%137100,0%

Fonte: Elaborada pelos autores.

Antes de discorrer sobre o cenário vigente na PM-AP, faz-se necessário caracterizar/conceituar as categorias da Tabela 1, quais sejam: oficiais, praças, oficiais superiores e os gêneros masculino e feminino. O conceito de oficiais está contido no art. 8º, a, do Decreto-Lei n. 667 (BRASIL, 1969), segundo o qual são oficiais de polícia aqueles que possuem os postos de: 2º tenente, 1º tenente, capitão, major, tenente-coronel e coronel. Vale destacar que os postos estão hierarquicamente ordenados do maior para o menor grau, sendo o 2º tenente o de menor patente entre os oficiais e o coronel é o oficial do mais alta patente. Já os oficiais superiores ocupam os postos de major, tenente-coronel e coronel, conforme o art. 17 do Estatuto dos Militares do Estado do Amapá – Lei Complementar Estadual n. 0084 (AMAPÁ, 2014).

Os gêneros masculino e feminino, segundo informações obtidas junto à Diretoria de Pessoal, são estabelecidos pelos próprios policiais militares, ao preencherem a ficha de dados pessoais, no momento de ingresso na PM-AP. Como mostra a Tabela 1, o total de policiais militares era de 3.118 em dezembro de 2022 (2.280 do sexo masculino [73,1%]; e 838 do sexo feminino [26,9%]).

Dentre as 838 policiais, 19 eram oficiais superiores. Quando se compara o número de mulheres ocupantes do posto de oficial superior (19) com o número total de oficiais (631), em termos percentuais, elas representam apenas 3,01% do oficialato. Analisando o número de policiais femininas que adentraram as fileiras da corporação a partir de 1989, ano do 1º Curso de Soldado Feminina da PM-AP, constata-se que em 33 anos o quadro de mulheres policiais cresceu apenas 5% (naquela época elas correspondiam a 22% do efetivo e hoje esse percentual é de 27%). E quando se compara o número de mulheres ocupantes do posto de oficial superior (19) com o quantitativo total da PM-AP (3.118), elas não representam sequer 1% (mais precisamente, 0,6%).

Como se percebe, ainda é tímida a participação das mulheres na PM-AP, o que pode decorrer de inúmeros motivos. E a reduzida participação de mulheres em elevados postos demanda a descrição dos cargos e funções de alto comando na PM-AP.

Cargos e funções de alto comando na PM-AP

Nos termos da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988):

Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

No âmbito da PM-AP, a Lei de Organização Básica (LOB) – Lei Complementar n. 105 (AMAPÁ, 2017) – define sua estrutura organizacional (Figura 1).

Figura 1 ‒ Organograma da Polícia Militar do Estado do Amapá

Fonte: Acervo pessoal dos autores.

A Figura 1 indica que os órgãos de Direção são as Diretorias e os Batalhões de Polícia Militar (BPM). Durante a pesquisa, constatou-se que, dentre as 19 mulheres oficiais superiores, 15 estavam exercendo funções consideradas de alto comando.

Análise e discussão da pesquisa de campo sobre a percepção institucional

A presença feminina nas forças policiais representa uma grande conquista, mas, apesar disso, não se pode olvidar que o processo como um todo ainda se mostra muito limitado. Por se tratar de uma instituição composta predominantemente por profissionais do sexo masculino, é perceptível que a expectativa depositada no trabalho da mulher, especialmente no nível de gestão, é muito maior do que no trabalho do homem, exigindo-se uma formação acadêmica mais ampla, pois, ainda que os requisitos formais sejam os mesmos, na prática policial, as mulheres devem provar suas capacidades de maneira diferenciada. Por outro lado, é inegável que a ocupação de postos e funções, por mulheres têm resultado em maior humanização das forças policiais.

Já no campo operacional se constata forte discriminação contra o trabalho da mulher: impõem- se limites à sua participação em alguns tipos de atividades e demarcam-se lugares em razão da morfologia biológica. Logo, para que a mulher consiga de fato exercer todas as atividades dentro da corporação, ela deve submeter-se a uma carga de treinamento em “pé de igualdade” com o efetivo masculino, partindo do princípio de que a técnica deve suplantar a força. Durante o contato direto com uma das oficiais superiores entrevistadas, perguntou-se a respeito de eventuais barreiras/dificuldades ao longo da carreira e ela afirmou que já passou por situações que considera preconceito ou discriminação, em razão de suas características físicas, o que na sua percepção leva à ideia equivocada de que os homens seriam “mais capazes” no desempenho das chamadas atividades operacionais.

Na mesma linha de pensamento, outras entrevistadas corroboraram o que essa entrevistada relatou ao serem perguntadas se em algum momento sofreram alguma forma de prejuízo, preconceito em razão das peculiaridades morfo (forma/compleição física) fisiológicas (questões orgânicas, funcionais) inerentes às mulheres: 53,3% das 15 oficiais superiores entrevistadas confirmaram que sofreram alguma espécie de preconceito em razão de suas características físicas e/ou fisiológicas (como gravidez ou estado menstrual).

Com base nisso, buscou-se verificar dentre as oficiais superiores se durante suas respectivas trajetórias na instituição policial elas já haviam sido ou se sentido discriminadas, humilhadas, desrespeitadas, constrangidas ou assediadas em razão de seu sexo/gênero ou de sua orientação afetivo-sexual: 86,7% das entrevistadas disseram que sim.

Na sequência de nossa pesquisa, perguntamos quais fatores reduzem a participação da mulher nas funções de alto comando: um grande número de participantes da pesquisa indicou como fator decisivo o histórico de predomínio dos homens nas carreiras militares, ratificando a existência da discriminação contra o sexo feminino. São conceitos e preconceitos que se repetem de maneira naturalizada, colocando o sexo masculino como “mais apto” aos cargos de maior patente na polícia militar.

Também se perguntou às entrevistadas se, em algum momento de sua carreira na corporação, viram, ouviram ou tomaram conhecimento de atos ou gestos discriminatórios, humilhantes, depreciativos e/ou desrespeitosos, constrangedores ou de assédio contra mulheres que exercem postos de alto comando: 49,3% disseram que sim e 50,7% disseram que não.

Vale destacar, ainda, o tratamento recebido pela mulher na polícia militar: 71,2% das entrevistadas acreditam que têm ocorrido avanços no acolhimento desde sua entrada na corporação e 28,8% acreditam que não.

Quanto à participação do gênero feminino nos mais altos cargos, 99% das mulheres que fazem parte da corporação acreditam no potencial e na capacidade das mulheres para exercer os mesmos cargos que os homens. A administração das ocupantes de alto comando é avaliada como ótima, boa ou regular, mostrando que o potencial e a capacidade não dependem do gênero.

A primeira comandante geral da Polícia Militar do Amapá

Nesta pesquisa, conseguimos identificar a primeira mulher a assumir o Comando Geral da PM-AP. Em entrevista realizada diretamente com a Coronel Heliane Braga de Almeida, apurou-se que, decorridos quase 80 anos de criação da corporação, ela entrou para a história amapaense como a 1ª mulher a exercer o mais elevado cargo da PM-AP, tendo sob seu comando mais de 3.000 integrantes. No Brasil, ela foi a 3ª mulher a ascender ao cargo máximo de uma polícia militar.

Em 16 de maio de 2022, aos 42 anos de idade e 23 anos de serviço efetivo, a Coronel Heliane tomou posse como Comandante Geral da PM-AP, em um universo historicamente dominado pelos homens: desde a criação oficial da PM-AP, em 1975, todos os 29 comandantes militares haviam sido do sexo masculino. A Coronel Heliane sempre estudou em escola pública e cursou simultaneamente 2 cursos de Ensino Médio: Técnica em Contabilidade e Magistério. É casada, tem filhos autistas, seu pai é militar da reserva e sua mãe é técnica em enfermagem. É a 4ª de 5 irmãos. Foi aprovada no Concurso para Oficial da PM-AP aos 18 anos (ingressou na PM-AP em 1º de fevereiro de 1999).

Por ocasião da passagem de comando, a Comandante Geral teve seu currículo lido solenemente: a) Bacharel em Segurança Pública pela Academia de Polícia Militar do Cabo Branco;

b) Bacharel em Fisioterapia pela Faculdade SEAMA; c) Bacharel em Direito, pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP); d) Especialista em Segurança Pública; e e) Acupunturista. Na PM-AP, a Coronel Heliane desempenhou as funções de: a) Comandante de Pelotão no Centro de Formação e Aperfeiçoamento, a partir de 2002; b) Assessora Militar da Vice-Governadoria, a partir de 2008; c) Chefe do Gabinete Militar da Defesa Social, a partir de 2010; d) Diretora Adjunta de Comunicação Social, a partir de 2011; e) Subcomandante do 1º Batalhão, de 2011 a 2013; f) Subcomandante do Batalhão Ambiental, de 2013 a 2014; g) Comandante do Centro de Formação, de 2014 a 2017; h) Diretora Adjunta de Pessoal da PM-AP, de 2017 a 2019; i) Comandante do Batalhão de Policiamento Rodoviário Estadual, de 2019 a2021; e j) Diretora de Ensino e Instrução da PM-AP, de 2021 a 2022. Apesar do curto de espaço de tempo, o comando da Coronel Heliane Braga de Almeida já se destacou por várias ações, como: a) implementação e efetivação do serviço extraordinário remunerado; b) premiação por apreensão de arma de fogo; c) edital de concurso para admissão de novos soldados (com 600 vagas, 1ª turma com esse quantitativo); e d) pela primeira vez na história da PM-AP, ao término do curso será concedido um título de Ensino Superior (Graduação em

Tecnólogo em Segurança Pública). Além disso: a) aumentaram os investimentos em capacitação, treinamento e aperfeiçoamento profissional; b) implementaram-se cursos nas áreas operacionais e administrativas para todas as unidades (com destaque para as unidades especializadas Bope e Força Tática, que foram contempladas com os cursos de Sniper, Rotam, Choque, Ações Táticas e Intervenção Rápida Ostensiva). Outra realização histórica sob o comando da Coronel Heliane foi a implantação da Patrulha Maria da Penha, uma estratégia de policiamento destinado ao combate, à repreensão e à prevenção da violência doméstica contra a mulher.

Com a posse do novo governo estadual, em 1º de janeiro de 2023, a Coronel Heliane foi substituída, totalizando 7 meses e meio no comando da corporação.

Primeira policial a se formar no Curso de Operações do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Amapá

Em entrevista realizada diretamente com a Soldado Edlane Barreto Rodrigues se apurou que, desde a criação do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), mediante o Decreto-Lei n. 6.803 (AMAPÁ, 2002), a Soldado Edlane entrou para a história amapaense como a 1ª mulher a participar e concluir um curso misto, composto por homens e mulheres; ela se formou na 4ª turma do curso de operações de choque, em 2019. Antes de entrar para a PM-AP, ela prestava concursos e trabalhava com o esposo como atendente em empresa de entrega de gás de cozinha.

É casada, tem 1 filho, seu pai é pedreiro e sua mãe, professora. É a 3ª de 4 irmãos. Prestou Concurso para Soldado da PM-AP em 2009 e foi chamada para a 2a turma (ingressou na PM-AP em 3 de outubro de 2011). A Soldado Edlane é amapaense e à época da realização desta pesquisa tinha 38 anos de idade e 11 anos de serviço efetivo na PM-AP.

Essa policial militar é graduada em Comunicação Social pela Faculdade SEAMA. Concluiu o Curso de Formação de Soldados em 2011. Ainda em 2011, participou em uma instrução de técnicas de_Controle de Distúrbios Civis (CDC). Sonhou em entrar para o BOPE pela Companhia de Choque: fez a inscrição para o Curso de Choque em 2013, mas na época não passou nos testes para avaliação das aptidões físicas (TAAF); em 2014, participou de Curso de CDC específico para o sexo feminino em 2014, vinha treinando, porém, às vésperas do TAAF, adoeceu e não teve condições de fazer os referidos testes. Entretanto, ela não desistiu e, em 2019, após uma intensa preparação específica de 6 meses, inscreveu-se no IV Curso de Operações de Choque do BOPE, que contou com 92 inscritos, sendo 4 mulheres, e, uma vez concluídas todas as fases para o ingresso, 42 alunos iniciaram e somente 13 concluíram os 2 meses de estudos.

A primeira lotação da Soldado Edlane Barreto Rodrigues na PM-AP foi no 7° BPM, sediado no Município de Porto Grande, no perído de 2012 a 2014, onde exercia funções na Viatura e na

Reserva de Armamento, como armeira. Atuou no 2° BPM de 2014 a 2019, exercendo a função de Motorista de Viatura na maior parte desse tempo. Ela participou no Curso de Choque de setembro a novembro de 2019 e passou a integrar o BOPE após concluí-lo, desempenhando funções na viatura, como motorista e patrulheira. Uma policial militar obter formação pelo BOPE foi considerado algo tão substancial que até meios de comunição de outros estados noticiaram esse feito. Em 2022, 3 mulheres policiais militares se formaram no Curso de Operações de Choque do BOPE, demonstrando que elas podem exercer as mais diversas funções nas forças policiais.

Considerações

A partir de todo o arcabouço teórico que fundamentou esta pesquisa, constatou-se que, não obstante a predominância numérica das mulheres no país e todo o conjunto de discursos, ações e políticas públicas voltadas à defesa, inclusão e valorização do sexo feminino nos mais diversos âmbitos da sociedade, ainda se detectam traços de preconceito e discriminação que limitam a inserção, presença e participação da mulher em áreas outrora dominadas pelos homens, como as instituições militares.

Em que pese esses cenários ainda bastante adversos e desfavoráveis para as mulheres policiais, constatou-se que a PM-AP tem adotado medidas para valorizar e reconhecer essa categoria profissional, como, por exemplo: a) flexibilização de horário para as policiais que estão amamentando; b) flexibilização de horário para as policiais que têm filhos com necessidades especiais; c) aumento do número de mulheres exercendo funções de alto comando; e d) maior participação de mulheres nas tropas consideradas especializadas.

Também se verificou que ainda paira o pensamento errôneo de que a figura masculina exerce supremacia natural sobre a figura feminina, o que se evidenciou nas entrevistas, mediante respostas como: “a condição biológica da mulher faz dela um ser frágil para certas atividades” ou “nas atividades administrativas as mulheres se adequam melhor”.

Ainda se observam muitas discriminações e preconceitos contra o sexo feminino, como a diferença de remuneração entre o trabalho feminino e o masculino, demonstrando total desequilíbrio de gênero. Historicamente, a mulher sempre foi vítima de discriminação e negação de seu valor e sua capacidade intelectual, porém, nota-se uma gradual mudança e a mulher vem conquistando seu espaço nos mais diversos contextos profissionais, inclusive no meio militar, que sempre foi dominado pelo sexo masculino. Porém ainda se percebem indícios do patriarcalismo e do machismo em situações do dia a dia de trabalho.

Esta pesquisa só reforça a necessidade de promover ambientes com oportunidades e condições igualitárias, onde todos os gêneros possam exercer suas funções e valorizar suas potencialidades, pois a sociedade contemporânea é plural nas mais diversas instituições.

Nesta trajetória de análise da realidade feminina nas carreiras militares, ressaltamos que os maiores desafios das mulheres ainda consistem na constante busca pela igualdade de direitos e pelo fim da opressão masculina.

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