REFORMULANDO O JOGO TRIBUTÁRIO: DESAFIOS E SOLUÇÕES NAS TRANSAÇÕES DE GAMES ON-LINE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202409251037


Joseph Murta Chalhoub¹


RESUMO

Nos últimos anos, os jogos de computador alcançaram grande popularidade, impulsionados pelo avanço tecnológico e expansão da internet, resultando na prevalência de jogos on-line e eliminação das mídias físicas. A tributação desses jogos tornou-se uma questão debatida, especialmente a diferenciação entre software de prateleira e sob encomenda. Em 2021, o Supremo Tribunal Federal considerou softwares como serviços tributáveis. Surgiram dúvidas sobre as transações in game, envolvendo aquisição de bens, direitos ou operações financeiras. Este artigo visa compreender se as transações em jogos on-line se enquadram como aquisição de bens ou serviços, determinando os tributos aplicáveis, considerando o cenário jurídico brasileiro pós-Reforma Tributária. Os objetivos específicos incluem compreender distinções técnicas entre bem, mercadoria e serviço; conceituar e diferenciar software e jogos on-line sob aspectos tecnológicos; expor tipos de transações em jogos on-line para fundamentar seu enquadramento legal; entender as razões do STF sobre softwares como serviços; e analisar a influência da Reforma Tributária na tributação de transações in game. A pesquisa, de natureza pura e explicativa, utiliza abordagem qualitativa, método dedutivo e procedimento bibliográfico/documental. Conclui-se que a tributação correta das transações em jogos on-line é uma fonte significativa de incerteza jurídica, decorrente da classificação e legalidade da incidência de tributos. A Reforma Tributária, ao estabelecer imposto único para operações com bens, serviços e direitos, tem potencial para resolver essas incertezas, tornando desnecessária a determinação da natureza das operações para fins de tributação no futuro.

Palavras-chave: Tributação. Games on-line. Reforma Tributária. Softwares. Transações in game.

ABSTRACT

In recent years, computer games have gained widespread popularity, driven by technological advancements and internet expansion, leading to the prevalence of on-line gaming and the decline of physical media. The taxation of these games has become a debated issue, particularly regarding the differentiation between off-the-shelf and custom software. In 2021, the Brazilian Supreme Federal Court deemed software taxable as services. Uncertainties have arisen regarding in-game transactions, encompassing the acquisition of goods, rights, or financial operations. This article aims to understand whether transactions in on-line games qualify as the acquisition of goods or services, determining the applicable taxes, considering the Brazilian legal landscape post-Tax Reform. Specific objectives include grasping technical distinctions between goods, commodities, and services; conceptualizing and distinguishing software and on-line games from a technological perspective; outlining types of transactions in on-line games to support their legal classification; understanding the Supreme Court’s rationale on software as services; and analyzing the impact of the Tax Reform on the taxation of in-game transactions. The research, characterized as pure and explanatory, employs a qualitative approach, deductive method, and bibliographic/documentary procedures. It concludes that the accurate taxation of on-line gaming transactions is a significant source of legal uncertainty, stemming from the classification and legality of tax incidence. The Tax Reform, by instituting a single tax for operations involving goods, services, and rights, holds the potential to resolve these uncertainties, rendering unnecessary the determination of the nature of operations for tax purposes.

Keywords: Taxation. On-line games. Tax Reform. Software. In-Game transactions.

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas os jogos de computador se tornaram extremamente populares e, em decorrência da evolução das tecnologias informáticas, de comunicação e a expansão do uso da internet, também se permitiu que a indústria de jogos de entretenimento pudesse oferecer jogos on-line, não mais necessitando de mídias físicas como disquetes e CDs para que o consumidor possa utilizar estes games. Inobstante estes jogos serem oferecidos em mídia física ou virtual, cabe destacar que esses são softwares, ou seja, programas de computador que permitem a realização de uma tarefa específica.

Por sua vez, a discussão acerca de quais tributos deveriam incidir sobre os jogos de computador é uma questão presente na jurisprudência nacional desde o final da década de 80. Ao longo deste período muito se discutiu sobre questões como a diferenciação do software de prateleira e daquele feito sob encomenda e também sobre os oferecidos em mídia física e virtual.

Vale destacar que os softwares são tratados como propriedade intelectual pela Lei nº 9.609, de 19 de fevereiro de 1998, de maneira que as operações que envolvem seu uso, comercialização e transferência de sua tecnologia são realizados por contratos de licença, cujo pagamento se dá na forma de royalties conforme referida norma. Contudo, em 1998 o Supremo Tribunal Federal tinha firmado entendimento, no Recurso Especial 176626/SP, de que os softwares de prateleira constituem mercadorias postas no comércio, ou seja, inobstante a possível necessidade de pagamento de royalties pela sua venda (devidos ao criador da obra), esta operação deveria ser tributada como uma venda de mercadoria.

Tal entendimento à época se provou suficientemente satisfatório, uma vez que todos os softwares eram somente comercializados através de uma mídia física. Porém, com os avanços tecnológicos a oferta de softwares por meio virtual se tornou corriqueira de forma a levantar novos questionamentos quanto à sua natureza e, consequentemente, os tributos incidentes.

Desta forma, em 2021, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5659/MG o Supremo Tribunal Federal firmou novo entendimento no sentido de que os softwares devem ser considerados como serviços para fins de incidência tributária.

Todavia, atualmente nos games on-line, em razão da contínua inovação tecnológica, estes jogos passaram também a oferecer a possibilidade de que seus usuários realizassem compras dentro do jogo, fazendo nascer assim um novo questionamento quanto à natureza destas transações realizadas in game, ou seja, dentro do próprio jogo.

Assim, embora a aquisição/disponibilização dos games em si, que são softwares, tenham natureza de serviço, verifica-se a possibilidade de que as transações realizadas in game possam ter naturezas distintas, como a de aquisição de bens, direitos ou mesmo operações financeiras. Logo, a determinação da natureza destas transações in game e consequentemente dos tributos devidos em sua decorrência é de extrema necessidade para que haja a devida segurança jurídica decorrente da correta aplicação das normas de direito tributário.

Nesse sentido, o objetivo geral desse trabalho está em compreender se as transações em games on-line se enquadram como aquisição de bens ou de serviços de maneira a determinar quais os tributos que devem incidir sobre elas, levando em consideração o cenário jurídico brasileiro com o advento da Reforma Tributária.

Dentre os objetivos específicos estão: compreender as distinções técnicas quanto ao que se considera como bem, mercadoria e serviço; conceituar e diferenciar software e games on-line sob seus aspectos tecnológicos e não jurídicos; expor os diferentes tipos de transações realizadas nos games on-line, de forma a fornecer embasamento técnico quanto ao seu possível amoldamento legal ao conceito de aquisição de bens ou de serviço; compreender as razões para o atual entendimento do STF sobre os softwares serem considerados como serviço para fins de incidência tributária; e analisar a influência das mudanças propostas pela Reforma Tributária sobre a possível tributação dos diferentes tipos de transações in game cuja natureza de bem ou serviço foram previamente indicadas.

A fim de alcançar os objetivos propostos, desenvolveu-se uma pesquisa de natureza pura, explicativa quanto aos fins, com abordagem qualitativa do problema e método de abordagem dedutivo, com procedimento bibliográfico e documental, de forma que, através do estudo composto da doutrina existente sobre o tema, da legislação e jurisprudência, fosse possível concluir acerca de como as transações in game devem ser classificadas quanto sua natureza de serviço, bem ou direito, para sua correta tributação.

1. A COMPLEXA TEIA DO DIVERTIMENTO HUMANO: UMA ANÁLISE MULTIFACETADA DOS JOGOS DE COMPUTADOR COMO SOFTWARES E A ASCENSÃO DAS MICROTRANSAÇÕES NA INDÚSTRIA DE JOGOS

A necessidade de divertimento pode ser considerada como uma característica inata da espécie humana, justificada, inclusive, biologicamente pela liberação de hormônios (endorfina e oxitocina) e de neurotransmissores (dopamina e serotonina) como resposta positiva a atividades prazerosas, as quais podem ter natureza física, emocional ou intelectual que são atendidas pela prática de jogos.

Por sua vez, embora não exista um conceito único para o que podemos considerar por “jogo”, Geraldo Xexéo et al. propõem uma definição ampla para o conceito de jogo enquanto atividade: 

Jogos são atividades sociais e culturais voluntárias, significativas, fortemente absorventes, não-produtivas, que se utilizam de um mundo abstrato, com efeitos negociados no mundo real, e cujo desenvolvimento e resultado final é incerto, onde um ou mais jogadores, ou equipes de jogadores, modificam interativamente e de forma quantificável o estado de um sistema artificial, possivelmente em busca de objetivos conflitantes, por meio de decisões e ações, algumas com a capacidade de atrapalhar o adversário, sendo todo o processo regulado, orientado e limitado, por regras aceitas, e obtendo, com isso, uma recompensa psicológica, normalmente na forma de diversão, entretenimento, ou sensação de vitória sobre um adversário ou desafio. (XEXÉO et al. 2017, p.10)

Assim, os jogos de computador, especificamente, podem ser compreendidos tanto quanto à sua finalidade/significância enquanto atividade recreativa; tanto quanto à sua forma, enquanto tecnologia. Sob este último aspecto, temos que jogos de computador se configuram como softwares, ou seja, componente intangível de um sistema de computador, contrastando com o hardware (componentes físicos e tangíveis) que permite que um computador realize tarefas específicas.

Neste sentido, cabe destacar que os softwares podem ser classificados em três categorias principais, conforme aponta Martins (2023, s.p.):

1. Os softwares de programação são as ferramentas utilizadas pelos programadores para desenvolver novos programas e softwares. […]

2. Os softwares de sistema são responsáveis por estabelecer a comunicação entre o usuário e o computador, atuando como a base na qual outros softwares, como os de aplicação e os de programação, são executados. […]

3. Os softwares de aplicação são programas familiares, como players de vídeo e música, jogos, editores de texto, calculadoras, navegadores, aplicativos de redes sociais, entre outros.

Logo, infere-se que jogos de computador são considerados softwares de aplicativo porque se configuram como um conjunto de instruções e dados (código de programação) que um computador utiliza para executar tarefas específicas, as quais compõe o conteúdo do jogo.

Ainda sob seu aspecto tecnológico, os jogos de computador, como softwares, podem ser disponibilizados por meio de mídias físicas (CDs e disquetes) como por meio virtual através da internet, hipótese na qual são disponibilizados através de download, podendo ser instalados no dispositivo do jogador ou diretamente utilizados através do navegador da web. Contudo, a integração destes softwares de jogo com a internet possibilitou não somente que os mesmos pudessem ser acessados/adquiridos virtualmente, mas que estes programas de computador pudessem oferecer a possibilidade de compras de conteúdos relativos ao jogo dentro da própria plataforma, ou seja, de aquisições in game, dada a atual facilidade de pagamentos instantâneos por meio da internet.

Importante destacar que essas transações, devido a serem usualmente de baixo valor, são também denominadas de microtransações, assim Takahara (2020, p. 15) explica que essas “vendas de conteúdos para jogos eletrônicos a um baixo valor financeiro, modalidade de negócio que foi possibilitada apenas pela internet e forma de pagamentos on-line”.

Atualmente, a indústria de jogos é a que mais se beneficia das microtransações, sendo possível afirmar que foi uma das primeiras a adotar o modelo de negócios no qual os jogos são oferecidos gratuitamente, jogos free-to-play, mas nos quais os jogadores podem comprar itens do jogo, moedas virtuais e níveis ou personagens adicionais (TOMIC, 2018, p. 18).

2. DA TRIBUTAÇÃO DOS SOFTWARES

O questionamento quanto à natureza dos softwares de maneira a determinar a incidência tributária a eles cabível teve sua primeira manifestação pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário 176626, em 1998, de relatoria do Ministro Sepúlvida Pertence, no qual a corte compreendeu pela distinção entre os softwares sob encomenda daqueles que denominou como “softwares de prateleira”, ou seja, aqueles produzidos em massa e disponibilizados por meio físico (como CDs e disquetes):

III. Programa de computador (“software“): tratamento tributário: distinção necessária. Não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de “licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador” ” matéria exclusiva da lide “, efetivamente não podem os Estados instituir ICMS: dessa impossibilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo – como a do chamado “software de prateleira” (off the shelf) – os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio.(RE 176626, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 10/11/1998, DJ 11-12-1998 PP-00010  EMENT VOL-01935-02 PP-00305 RTJ   VOL-00168-01 PP-00305) (grifo nosso)

Conforme se observa na decisão em comento, a corte compreendeu que os softwares sob encomenda constituiriam “bem incorpóreo” de forma a afastar a possibilidade de incidência de ICMS, tributo estadual, sobre os mesmos, ora que o conceito de mercadoria implicaria na necessidade de sua existência física. Por sua vez, reconhece a legalidade de incidência de ICMS sobre os “softwares de prateleira”, os quais seriam mercadoria posta no comércio devido à materialidade física dos meios de sua distribuição.

Neste sentido, inobstante possível questionamento quanto à adequação de tal compreensão às características de ordem científica sobre o funcionamento dos softwares, é inegável que à época a comercialização dos “softwares de prateleira” somente poderia se dar por meio físico, através de disquetes ou CD-ROMs, conferindo aos mesmos uma aparência de mercadoria. Tal entendimento se manteve vigente por mais de uma década, sendo inclusive confirmado em julgamento da corte em 2008 no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 285870.

Contudo, a evolução tecnológica e especialmente a expansão da utilização da internet possibilitou que programas de computador pudessem ser adquiridos/transmitidos de forma eletrônica, ou seja, através de download, sem a necessidade de mídia física para sua comercialização. Assim, esta nova realidade suscitou questionamentos quanto à incidência tributária cabível para a comercialização virtual de softwares que não feitos sob encomenda. Desta maneira, em 2010, no julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1945, o Supremo Tribunal Federal compreendeu pela incidência de ICMS sobre a aquisição virtual dos “softwares de prateleira”: 

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO TRIBUTÁRIO. ICMS.
[…]
8. ICMS. Incidência sobre softwares adquiridos por meio de transferência eletrônica de dados (art. 2º, § 1º, item 6, e art. 6º, § 6º, ambos da Lei impugnada). Possibilidade. Inexistência de bem corpóreo ou mercadoria em sentido estrito. Irrelevância. O Tribunal não pode se furtar a abarcar situações novas, consequências concretas do mundo real, com base em premissas jurídicas que não são mais totalmente corretas. O apego a tais diretrizes jurídicas acaba por enfraquecer o texto constitucional, pois não permite que a abertura dos dispositivos da Constituição possa se adaptar aos novos tempos, antes imprevisíveis.
[…]
(ADI 1945 MC, Relator(a): OCTAVIO GALLOTTI, Relator(a) p/ Acórdão: GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 26/05/2010, DJe-047 DIVULG 11-03-2011 PUBLIC 14-03-2011 EMENT VOL-02480-01 PP-00008 RTJ VOL-00220-01 PP-00050) (grifo nosso)

A supramencionada decisão fundamentou-se na superação do conceito de mercadoria como necessariamente um bem físico, uma vez que os softwares constituiriam “bens incorpóreos” conforme a jurisprudência da corte, de maneira que aqueles comercializados de forma massificada reuniriam as características fáticas de mercadoria como bem disponibilizado no comércio, o qual não necessariamente demandariam forma física, em face de novas realidades tecnológicas.

Por sua vez, importante ressaltar que desde 2003, a Lei Complementar Nº 116/03 já havia introduzido na lista de serviços tributáveis pelo Imposto Sobre Serviços, em seu item 1.05, o licenciamento e a cessão de direito de uso de programa de computador. Neste sentido, inicialmente esta disposição legal foi compreendida como somente aplicável aos softwares sob encomenda por sua criação ser mais facilmente percebida como a prestação de um serviço e não como a confecção de um “bem incorpóreo”. 

Assim, o entendimento do STF quanto à incidência de ICMS nos “softwares de prateleira”, sejam estes comercializados em mídia física ou por download, inobstante a disposição da LC 116/03, fundamentava-se na compreensão dos mesmos como “bens”. Desta forma, sendo que tal conceituação não advinha de norma positivada, mas somente de entendimento jurisprudencial, a corte reavaliou a questão no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5659 em 2021:  

EMENTA Ação direta de inconstitucionalidade. Direito Tributário. Lei nº 6.763/75-MG e Lei Complementar Federal nº 87/96. Operações com programa de computador (software). Critério objetivo. Subitem 1.05 da lista anexa à LC nº 116/03. Incidência do ISS. Aquisição por meio físico ou por meio eletrônico (download, streaming etc). Distinção entre software sob encomenda ou padronizado. Irrelevância. Contrato de licenciamento de uso de programas de computador. Relevância do trabalho humano desenvolvido. Contrato complexo ou híbrido. Dicotomia entre obrigação de dar e obrigação de fazer. Insuficiência. Modulação dos efeitos da decisão.

1. A tradicional distinção entre software de prateleira (padronizado) e por encomenda (personalizado) não é mais suficiente para a definição da competência para a tributação dos negócios jurídicos que envolvam programas de computador em suas diversas modalidades. Diversos precedentes da Corte têm superado a velha dicotomia entre obrigação de fazer e obrigação de dar, notadamente nos contratos tidos por complexos (v.g. leasing financeiro, contratos de franquia).
[…]
3. O legislador complementar, amparado especialmente nos arts. 146, I, e 156, III, da Constituição Federal, buscou dirimir conflitos de competência em matéria tributária envolvendo softwares. E o fez não se valendo daquele critério que a Corte vinha adotando. Ele elencou, no subitem 1.05 da lista de serviços tributáveis pelo ISS anexa à LC nº 116/03, o licenciamento e a cessão de direito de uso de programas de computação. É certo, ademais, que, conforme a Lei nº 9.609/98, o uso de programa de computador no País é objeto de contrato de licença.
4. Associa-se a esse critério objetivo a noção de que software é produto do engenho humano, é criação intelectual. Ou seja, faz-se imprescindível a existência de esforço humano direcionado para a construção de um programa de computador (obrigação de fazer), não podendo isso ser desconsiderado em qualquer tipo de software. A obrigação de fazer também se encontra presente nos demais serviços prestados ao usuário, como, v.g., o help desk e a disponibilização de manuais, atualizações e outras funcionalidades previstas no contrato de licenciamento.
[…]
6. Ação direta julgada parcialmente prejudicada, nos termos da fundamentação, e, quanto à parte subsistente, julgada procedente, dando-se ao art. 5º da Lei nº 6.763/75 e ao art. 1º, I e II, do Decreto nº 43.080/02, ambos do Estado de Minas Gerais, bem como ao art. 2º da Lei Complementar Federal nº 87/96, interpretação conforme à Constituição Federal, excluindo-se das hipóteses de incidência do ICMS o licenciamento ou a cessão de direito de uso de programas de computador, tal como previsto no subitem 1.05 da lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116/03.
[…]
(ADI 5659, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 24/02/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-096  DIVULG 19-05-2021  PUBLIC 20-05-2021)

Sendo os softwares uma criação intelectual, cujo uso é objeto de contrato de licença por disposição expressa da Lei Nº 9609/98, sobre o qual recai ISS em razão do disposto pela a Lei Complementar Nº 116/03, o Supremo Tribunal Federal entendeu pela necessidade de alterar seu entendimento quanto à natureza de “bem incorpóreo” dos “softwares de prateleira” ante a diferenciação anteriormente adotada entre estes e os softwares sob encomenda, para considera-los igualmente como hipótese de prestação de serviço ora que referida lei não apresenta tal diferenciação.

3. TRANSAÇÕES IN GAME ON-LINE

Tendo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal pacificado a questão quanto à natureza de serviço dos softwares e, conforme previamente exposto, os games on-line se enquadrarem nessa categoria, as transações envolvendo seu uso podem ser categorizadas como serviço, sejam prestados de forma gratuita ou onerosa.

Todavia, os avanços tecnológicos da internet e a maior difusão de seu acesso pela população em geral, especialmente a partir dos anos 2000, possibilitaram que estes jogos pudessem se tornar plataformas para futuras aquisições do usuário/jogador de maneira a proporcionar alterações em sua experiência no próprio jogo. Importante relembrar que a possibilidade de adição dos denominados “pacotes de extensão” aos jogos de computador não é exclusividade dos games on-line, a exemplo do The Sims, que permitia a compra de extensões por meios de mídia física. Hipótese na qual a aquisição desta extensão tinha a mesma natureza que a aquisição do programa original, seja de bem ou de serviço, conforme o entendimento adotado à época.

Desta maneira, observa-se que, se originalmente a aquisição pelo consumidor de um jogo de computador constituía um fim em si mesma, a possibilidade de compras in game suscita discussão quanto as mesmas constituírem extensão à aquisição do jogo, tendo assim a mesma natureza para fins de incidência tributária, ou se consubstanciarem em atividade de natureza diversa, ou seja, devendo ter um tratamento tributário que não aquele aplicável à aquisição do software jogo de computador em si.

Desta maneira, a seguir serão analisadas alguns dos tipos mais frequentes das transações in game, de maneira a esclarecer quanto a sua natureza de bem ou de serviço, critério este essencial para sua adequada tributação. Cabe ressaltar que serão analisadas somente as transações in game, ou seja, aquelas realizadas pelo consumidor/jogador dentro das normas do jogo, não se considerando aquelas resultantes de contratos entre jogadores (como a transferência de contas) que não estejam oficialmente previstos nos termos de serviço do próprio jogo.

3.1 Aquisição de créditos no jogo

Muitos jogos on-line apresentam a possibilidade de aquisição pelo jogador de créditos, denominados de “moedas do jogo”, os quais podem ser utilizados para as transações in game. Estes créditos se caracterizam como a aquisição de moedas, em sentido amplo, conforme conceitua Mankiw (2021, p. 500):

O termo moeda refere-se a ativos que as pessoas usam regularmente para comprar bens e serviços. A moeda tem três funções. Como meio de troca, é o item usado para realizar transações. Como unidade de conta, proporciona uma maneira pela qual preços e outros valores econômicos são registrados. Como reserva de valor, proporciona uma maneira de transferir poder de compra do presente para o futuro.

Neste sentido, cabe apontar a diferenciação necessária entre moeda digital, eletrônica e virtual. Assim, a moeda digital é conceituada como “um tipo de ativo que proporciona, de diversas formas, a circulação de valor por meio eletrônico (de forma intangível) ou via internet” (Gomes, 2022, p. 98), de maneira a constituir gênero, da qual derivam as moedas eletrônicas e virtuais.

Por sua vez, as moedas eletrônicas, conceituadas como aquelas “que estas possuem referibilidade direta à moeda fiduciária” (Gomes, 2022, p. 31), constituindo assim apenas a forma digital de uma moeda emitida por um Estado. Já as moedas virtuais são aquelas que “possuem forma própria de denominação, ou seja, são denominadas em unidade de conta distinta das moedas emitidas por governos soberanos” (Gomes, 2022, p. 31). Tal distinção encontra-se inclusive no Comunicado BACEN Nº 25306 de 19/02/2014, que dispõe:

O Banco Central do Brasil esclarece, inicialmente, que as chamadas moedas virtuais não se confundem com a “moeda eletrônica” de que tratam a Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013, e sua regulamentação infralegal. Moedas eletrônicas, conforme disciplinadas por esses atos normativos, são recursos armazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que permitem ao usuário final efetuar transação de pagamento denominada em moeda nacional. Por sua vez, as chamadas moedas virtuais possuem forma própria de denominação, ou seja, são denominadas em unidade de conta distinta das moedas emitidas por governos soberanos, e não se caracterizam dispositivo ou sistema eletrônico para armazenamento em reais. (BACEM, 2014)

Assim, os créditos adquiridos como “moedas de jogo” nos games on-line se apresentam como moedas virtuais. Contudo, dentro de tal espécie, é possível identificar várias subespécies.  Dentre os diversos critérios para a classificação dessas (Gomes, 2012), destaca-se a do Banco Central Europeu – European Central Bank (ECB), que as classifica conforme seu fluxo de conversibilidade com a economia real:

1) Sistema fechado de moeda virtual: Popularmente conhecido pela sua utilização em jogos on-line, onde os usuários normalmente pagam uma taxa de adesão para receberem moedas virtuais de acordo com sua performance; permite a troca de serviços e mercadorias apenas na própria plataforma, não podendo ser transacionada através de moeda fiduciária fora do ambiente virtual. A moeda virtual é emitida e controlada pelos desenvolvedores do jogo e sua transação no mundo real é proibida na maioria dos casos.
[…]
2) Sistema de moeda virtual com fluxo unidirecional: A moeda virtual pode ser adquirida diretamente por meio de moeda fiduciária e pagamento de taxa de câmbio específica, porém, não podem ser convertidas de volta em moeda fiduciária, como exemplo, podemos citar os programas de “bônus” ou “milhas” das companhias aéreas. Neste caso, a moeda virtual é a própria “milha”, que pode ser adquirida de forma direta através de moeda fiduciária e pagamento de uma taxa de câmbio, ou de forma indireta pelo uso de cartões de crédito conveniados, uma vez adquirida, esta não pode ser reconvertida, isto é, não é possível utilizar as milhas para adquirir moeda fiduciária, porém, em alguns casos também existe a possibilidade destas serem utilizadas para a compra de bens ou serviços fora do ambiente virtual.
[…]
3) Sistema de moeda virtual com fluxo bidirecional: Os usuários podem comprar e vender a moeda virtual através de moeda fiduciária e pagamento de taxa de câmbio específica, neste caso, a moeda virtual se assemelha a qualquer outra moeda fiduciária no que diz respeito à sua conversibilidade e interação com o mundo real. As transações podem ser feitas tanto da plataforma virtual para “real”, quanto da “real” para a virtual, permitindo a aquisição de bens e serviços virtuais ou reais (ECB, 2012, p. 13-14) (TRADUÇÃO NOSSA)

Dessa maneira, observa-se que quando estas “moedas de jogo” puderem ser transacionadas pelo jogador que as adquiriu de maneira a serem convertidas em moeda de curso legal, esta transação constitui a aquisição de criptoativo, conforme conceito traçado pela Instrução Normativa RFB Nº 1888, de 03 de maio de 2019, cujo artigo 5º também determina o amoldamento à categoria de criptoativo quando este puder ser utilizado como “forma de acesso à serviços”. Nesse sentido, tanto as moedas de sistema fechado quanto as de fluxo unidirecional poderiam se amoldar a tal conceituação caso sejam transacionadas eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, uma vez que, precipuamente, são utilizadas na aquisição de funcionalidade no jogo, que seria categorizado como um serviço.

Por sua vez, no caso de não haver tal transação eletrônica, com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, e essas moedas se enquadrarem no sistema de fluxo unidirecional, podendo ser utilizadas para a aquisição de bens ou serviços fora do ambiente virtual, essas devem receber o mesmo tratamento dado às milhas aéreas, ou seja, serem consideradas como “alienação de bens e direitos”, conforme entendimento adotado pela Receita Federal.

Finalmente, também quando não se verificar transação eletrônica com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, no caso destas moedas se enquadrarem no sistema fechado (sendo utilizadas somente para a troca de serviços/mercadorias apenas na própria plataforma) seu enquadramento como de prestação de serviço parece o mais adequado, uma vez que se trataria de uma continuidade aquisitiva de software, cuja natureza reconhecida juridicamente é de prestação de serviço.

Nesse sentido, eventual transação in game que se utilize destas “moedas do jogo” para sua realização pode ser analisada a posteriori, conforme sua natureza fática, contudo, em si a aquisição deste crédito genérico assemelha-se mais à prestação de um serviço, qual seja o de disponibilizar as moedas em si para serem utilizadas pelo jogador. 

3.2 Aquisição de desbloqueio, de estética e de vantagem

As transações in game de desbloqueio podem ser compreendidas como as que têm por finalidade expandir e aperfeiçoar determinado conteúdo oferecido durante o jogo. Este tipo de microtransação está diretamente relacionado com o conceito de Dowload Content (DLC), que são comercializadas com o objetivo de proporcionar uma grande variedade de novas experiências de jogo conforme explica Tomić (2018, p. 18):

[…] É usado para comprar novas missões em jogos de ação, novas nações e novos pacotes de cenários em jogos estratégicos, novos veículos ou pistas em jogos de corrida, times ou regimes clássicos em jogos esportivos, novos personagens em jogos de luta, novos níveis em plataforma jogos e novos episódios em jogos de aventura ou modos de jogo em simulações gerenciais. Esses conteúdos adicionais são chamados de DLC (conteúdo para download) e geralmente são vendidos a um preço próximo ao preço do original. Muitas vezes, ao adquirir um pacote DLC, o jogador realmente ganha uma nova experiência e fica com a sensação de que os criadores se esforçaram para trazer conteúdo adicional. (TRADUÇÃO NOSSA)

Por sua vez, as transações de estética consistem em uma forma de personalizar o jogo ao permitir alterações em sua aparência, porém sem implicar em nenhuma vantagem adicional quanto à jogabilidade como ressalta Tomić (2018, p. 18):

Existem muitas maneiras de vender conteúdo cosmético por meio de microtransações, que em nada afetam o próprio mecanismo do jogo. Isso inclui a compra de visuais ou trajes alternativos para personagens existentes no jogo, personagens completamente novos, uma voz diferente de narradores ou personagens, elementos de um ambiente que não afetam a jogabilidade. (TRADUÇÃO NOSSA)

Em ambos os tipos de aquisições supramencionadas se verifica, a princípio, que o objeto da contratação entre o jogador e o desenvolvedor do game é uma obrigação de fazer, qual seja de disponibilizar novas funcionalidades ao software que é o game on-line. Mesma dinâmica observada quando da disponibilização gratuita de manuais ou atualizações, não constituindo sua onerosidade óbice para o mesmo enquadramento como o de uma prestação de serviço.

Todavia, importante ressaltar que caso este conteúdo adicional (como por exemplo, uma skin, um personagem ou um objeto) seja vendido na forma de NFT, o que normalmente ocorre nos games no modelo de pay-to-earn, esta transação deve ser enquadrada como de aquisição de um bem. Colabora para tal entendimento o fato de que NFTs devem ser declaradas no Imposto de Renda de Pessoa Física na categoria “Bens e Direitos”, grupo 08 “Criptoativos”, código 10 “Tokens não-fungíveis NFTs”.

Já, as transações de vantagem são aquelas em que a compra de determinados atributos inerentes ao jogo propicia benefícios na jogabilidade. Assim, este tipo de microtransação normalmente está associado aos jogos cujo conceito é conhecido como pay-to-win, ou seja, quanto mais recursos financeiros o usuário possuir no jogo, maior a chance de vitória (Andrade, 2019, p. 21). 

Vale ressaltar que, os jogos no modelo de pay-to-win não significam que os jogadores não pagantes não possam se manter no jogo, porém os jogos que utilizam este modelo de lucratividade tendem a distorcer sua mecânica de jogo para beneficiar os jogadores pagantes. Isto porque para poder se igualar aos jogadores pagantes, os jogadores não pagantes precisariam ser altamente qualificados ou dedicar uma grande quantidade de tempo para obter o mesmo acesso a personagens ou habilidades (Baterna, 2022, s.p.).

Inobstante questionamentos éticos quanto tal modelo, as transações que envolvem a aquisição de vantagem se caracterizam como a aquisição de um serviço, uma vez que se apresentam como uma obrigação de fazer do desenvolvedor do software, qual seja a concessão de utilização mediante pagamento de funcionalidades do jogo que permitem ao jogador ter maiores chances de vencer.

3.3 Aquisição de “compra aleatória”

As denominadas “compras aleatórias” envolvem a aquisição da possibilidade de ganhar funcionalidades que irão ajudá-lo dentro do jogo ou mesmo de conteúdo adicional, sendo apresentadas usualmente na forma de loot boxes.  Normalmente custam muito pouco, uma vez que tanto o jogador não sabe o que vai conseguir, quanto usualmente tem itens de pouco valor em seu conteúdo:

Os jogadores recebem caixas de saque de conteúdo desconhecido que não podem ser abertas a menos que paguem uma certa quantia como recompensa pelo progresso. Embora o modelo de dinheiro virtual seja mais usado em jogos para celular, o modelo de loot boxes é mais comum em jogos para PC. O conteúdo das caixas varia de detalhes cosméticos a melhorias sérias que facilitam a jogabilidade. O problema é que o jogador não pode saber com antecedência o que receberá. Usando uma aversão semelhante à perda, como no caso do dinheiro virtual, os editores estão provocando os jogadores com caixas de saque a pagar e obter o conteúdo secreto. O preço de abertura de uma caixa é baixo, mas o problema é que seu conteúdo muitas vezes tem um valor baixo para o jogador. No caso de jogos onde uma grande quantidade de itens diferentes são coletados, um jogador pode gastar grandes quantias para abrir caixas cujo conteúdo ele não precisa. (TOMIĆ, 2018, p. 20) (TRADUÇÃO NOSSA)

Tais compras também são potencialmente viciantes, pois estimulam o jogador a tentar a sorte repetidamente (Briggs, 2023, s.p.). Os desenvolvedores das compras aleatórias fazem uso de um princípio psicológico chamado “reforço de taxa variável”.

Primeiramente, cabe destacar que este tipo de transação não se configura como prática de jogos de azar, uma vez que os mesmos se amoldam às hipóteses elencadas pelo § 3º, do art. 50 do Decreto-Lei Nº 3.688/1941. Especialmente em relação à alínea “a” (o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte) importante observar que esta orientação não se aplica ao fato do conteúdo da loot box conter ou não um prêmio, se referindo ao jogo em si, de forma que a não premiação por si só não implica que a vitória ou derrota no game seja decorrente exclusiva ou principalmente da sorte. Especialmente em relação à alínea “a” importante observar que esta orientação não se aplica ao fato do conteúdo da loot box conter ou não um prêmio, se referindo ao jogo em si, de forma que a não premiação por si só não implica que a vitória ou derrota no game seja decorrente exclusiva ou principalmente da sorte.

Todavia, o Código de Defesa do Consumidor veda ao fornecedor como prática abusiva “exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva” (art. 39, V, CDC). Assim, é questionável a legalidade de tais vendas quando no jogo em tela as mesmas puderem resultar em caixas vazias ou cujo conteúdo tenha valor inferior ao do preço pela chance. 

Feitas estas ressalvas, sendo tais transações legais, seu amoldamento como o de prestação de serviço parece o mais adequado, uma vez que a loot box pode ser considerada como uma funcionalidade do jogo, com o direito de abri-la sendo fornecido pelo desenvolvedor ao jogador mediante pagamento. Em tal hipótese a natureza fática de seu conteúdo seria irrelevante para a determinação da natureza desta transação.

4. DA TRIBUTAÇÃO DAS TRANSAÇÕES IN GAME

Se anteriormente a polêmica quanto à natureza dos softwares revolvia em torno da compreensão quanto à sua caracterização fática como um serviço ou como uma mercadoria em razão da finalidade de sua criação; a nova interpretação em decorrência da natureza da obrigação também suscitou novos questionamentos.  Contudo, no julgamento do Recurso Extraordinário 688223, o STF reafirmou seu novo entendimento adotado, esclarecendo que a natureza de serviço das transações envolvendo a aquisição de softwares deve-se precipuamente em razão de determinação legal, positivada na Lei Complementar Nº 116/03, na qual não tendo o legislador disposto sobre diferenciação não seria constitucional ao poder judiciário fazê-lo sob pena de usurpação de competência legislativa.

Conforme várias das supramencionadas decisões, reconhece-se a complexidade do amoldamento de situações novas à conceitos jurídicos criados para atender à uma realidade distinta. Contudo, a regulamentação legislativa de tais temas, mesmo que em sentido contrário à jurisprudência anteriormente adotada, se apresenta como medida para a garantia de maior segurança jurídica, pelo menos no que concerne ao tratamento futuro da questão.

Assim, inobstante tal disposição normativa não se alinhar ao entendimento previamente adotado pelo STF não é possível alegar sua inconstitucionalidade, uma vez que tal escolha sobre a compreensão quanto à classificação destas transações como serviço é uma escolha perfeitamente válida do legislador no exercício de sua competência legal para a disciplina do tema.

Contudo, embora a tese firmada para o Tema nº 509 de Repercussão Geral, pela constitucionalidade da incidência de ISS nos negócios jurídicos envolvendo softwares, se coadune com o entendimento adotado previamente pela corte, apresentando consonância com a previsão legalmente positivada sobre a matéria e a confirmação pela aplicabilidade isonômica ante a não diferenciação normativa; é necessário observar que a justificativa para este entendimento baseada na natureza da obrigação como sendo “de fazer” não é totalmente livre de falhas.

Desta forma, eventual incompatibilidade fática entre o caso concreto envolvendo transações cujo objeto seja um software e a justificativa de que as tais transações teriam natureza de obrigação de fazer e não de dar, independentemente do tipo de software em comento, não se apresenta mais como passível de alterar o entendimento do STF sobre a constitucionalidade e aplicabilidade da norma trazida pela lei complementar.

Desta maneira, conforme entendimento firmado na ADI 5659 “A obrigação de fazer também se encontra presente nos demais serviços prestados ao usuário […] e outras funcionalidades previstas no contrato de licenciamento”, de maneira que, conforme tal determinação, infere-se que as transações in game, por estarem previstas no contrato de licenciamento, devem ser tributadas da mesma maneira que o software game. Todavia, em face da multiplicidade de naturezas fáticas das transações in games on-line conforme previamente exposto, a adoção de tal entendimento para o amoldamento tributário destas transações se demonstra problemático.

Neste sentido, se a criação e fornecimento de jogos é uma atividade econômica com finalidade lucrativa para aqueles que os criam/fornecem; a utilização desse serviço, que é o jogo de computador, pelo jogador não pode ser considerada como tal, ora que a própria definição de jogo, previamente exposta, na qual o mesmo se caracteriza atividade não produtiva, destinada ao divertimento, implicando assim na subsunção dessa relação de consumo às normas do Código de Defesa do Consumidor.

Vale também apontar a diferenciação feita pelo diploma consumerista quanto à conceituação de produto como “qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial” (art. 3º, § 1°) e de serviço como “qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista” (art. 3º, § 2°). Logo, claramente as transações que tem por objeto um bem, não podem suscitar a aplicabilidade de tributação relativa a serviços e, aquelas que se amoldam ao conceito de serviço de natureza financeira não podem ser tributadas como aquelas que se apresentam com um serviço de utilização de direito autoral.

Desta sorte, verifica-se que as transações in game, que não exclusivamente destinadas a proporcionar funcionalidades adicionais ao jogo, podem ter por objeto a aquisição de bens imateriais (NTFs) ou ativos financeiros (na forma de moedas virtuais em sentido amplo e criptoativos). Ou seja, nestas transações o software do jogo on-line se apresenta como mera plataforma de pagamento, uma vez que a transação tem por objeto um bem/ativo financeiro, o qual pode ser utilizado no jogo, ora que este software admite em sua programação a interação com este objeto externo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Destarte, é imperioso compreender que a correta tributação das transações in games on-line se apresenta como questão de grande insegurança jurídica, a qual decorre especialmente de dois elementos: a determinação da natureza destas transações para seu amoldamento tributário e a legalidade quanto da incidência de demais tributos atinentes a prestação de serviços, com exceção do ISS, para as transações com natureza idêntica à da própria aquisição do game.   

Primeiramente, há a problemática quanto ao amoldamento de todas estas transações como tendo natureza de obrigação de fazer, a qual, conforme disposto no julgamento da ADI 5659, encontra-se presente nos demais serviços prestados ao usuário. Embora muitas das transações, conforme exposto, realmente tenham esta natureza, tal generalização em face de transações que factualmente têm natureza distinta de uma prestação de serviço ou obrigação de fazer impõe a tributação por uma ficção jurídica não somente contrária à realidade, mas decorrente exclusivamente de interpretação jurisprudencial e sem qualquer previsão normativa expressa.

Em segundo lugar, mesmo em relação às transações que efetivamente podem ser consideradas como tendo natureza de prestação de serviço, por constituírem uma aquisição diretamente relacionada à funcionalidade do próprio game/software, ainda é questionável a incidência generalizada de todos os demais tributos, que não o ISS, passíveis de incidir sobre serviços. De todo modo, a inclusão do licenciamento e da cessão de direito de uso de programa de computador na lista de atividades tributáveis pelo ISS pela Lei Complementar nº 116/2003 não deve equivaler à classificação como serviço para fins de incidência de outros tributos. Conforme dispõe a Lei nº 9.609/1998 estas operações têm natureza de pagamento de direito autoral (royalties) e, assim, a menos que expressamente determinado, como no caso do ocorrido na Lei Complementar nº 116/2003, não cabe ao fisco interpretação extensiva de tal aplicabilidade a outros tributos incidentes sobre serviços.

Finalmente, importante comentar o papel da Reforma Tributária (EC nº 132/2023) para sanar esta insegurança gerada pela falta de consenso quanto à natureza destas transações, cuja determinação é essencial para seu amoldamento às hipóteses de incidência de diversos tributos. Com aplicação permeada nos próximos dez anos, a nova moldura constitucional, ao estabelecer a incidência de imposto único para “operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços”, tem o condão de afastar as dúvidas decorrentes da classificação destas operações em razão de sua natureza, cuja determinação se torna assim desnecessária para fins de incidência tributária.

Tendo em vista que continuamente novas tecnologias criam novas realidades, a adoção de uma normativa conceitualmente mais ampla permite que sua aplicabilidade não seja tão facilmente objeto de controvérsia, como ocorre com definições por demais restritivas à exemplo das atualmente adotadas, contribuindo para uma menor judicialização de questões tributárias e garantindo uma necessária e adequada segurança jurídica.

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¹Advogado, graduado em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), pós-graduando em Direito Público pela PUC/RS, binho.chalhoub@gmail.com, http://lattes.cnpq.br/4954048839728580.