UMA ANÁLISE SOCIOPOLÍTICA DA REALIDADE BRASILEIRA SOB O ENFOQUE DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10249091230


Ildefonso Mendes Lima Marcula


RESUMO

O presente artigo visa abordar a conformação estatal hodierna, através da análise histórica e da legislação vigente, mais especificamente das leis penais e do controle social exercido, apreciadas pelo viés da criminologia crítica, não olvidando a problemática das ideologias subjacentes ao processo de efetivação da democracia. O objetivo central é a reflexão, através do método acima sugerido, acerca da realidade do processo de democratização no Brasil, a partir da crítica do sistema punitivo e o modus operandi das instituições do Estado, que, em tese, atuam sob a égide de uma democracia constitucionalmente perpetuada, mas que na prática, opera de maneira diversa.

Palavras-chave: Estado. Democracia. Criminologia Crítica. Ideologias. Realidade Social.

ABSTRACT

The present monographic work aims to approach the current state’s conformation through an historical and the prevailing legislation analysis, more specifically the criminal laws and the established social control, assessed on the critical criminology bias, considering as well the ideologies underlying the process of the institution of the democracy. The main goal is a reflection, through the method mentioned before, about the reality of the democratization process in Brazil, from the critique of the punitive system and the modus operandi of the Estate’s institutions, which in thesis acts under the auspices of a democracy constitutionally perpetuated, though in practice, operates in different ways.

Keywords: Estate. Democracy. Critical Criminology. Ideologies. Social reality.

INTRODUÇÃO

O objetivo central deste estudo consiste na reflexão através análise histórica das leis penais e o controle social exercido, apreciadas pelo viés da criminologia crítica, da realidade do processo de democratização no Brasil, a partir da apreciação do sistema punitivo e o modus operandi das instituições do Estado, que, em tese, atuam sob a égide da democracia constitucionalmente perpetuada, mas que na prática, aparece de maneira diversa.

Abordamos no desenvolvimento do trabalho, em breves linhas, a forma como se erigiu o atual Estado Democrático de Direito guerreando com concepções autoritárias de Estado, constatando, por fim, as frequentes utilizações arbitrárias de poder de Estado conferido pelo povo.

Tais constatações foram possíveis quando analisamos mais detidamente, no decurso do desenvolvimento, o desempenho da polícia militar no controle social formal, bem como a atuação da mídia como controle social informal.

A escolha por analisar estas duas instâncias de poder se deu por razão de percebermos a força de atuação das mesmas no contexto social, mormente os “movimentos de rua” (protestos) bastante presentes no contexto brasileiro desde julho do ano corrente, posto que nenhuma pessoa pode estar adstrita das problemáticas do seu tempo.

Por fim, salientamos que, apesar do impulso inicial ter sido movimentos sociais acima referidos, não alcançamos tempestivamente conteúdo substancial para adentrar nesta temática propriamente dita, de modo que a apreciação que se segue oferece, tão somente, aparato para uma análise crítica ante o discurso de democracia e direitos humanos cristalizado na letra da lei.

PROPEDÊUTICA A SISTEMÁTICA ESTATAL E SUA RELAÇÃO COM A CRIMINOLOGIA CRÍTICA

O Estado brasileiro, tal como o conhecemos hoje, é fruto de uma construção histórica que se desenvolveu (e ainda se desenvolve) desde a colonização portuguesa, perpassando regimes que vão da Monarquia à Democracia governada de forma representativa (do Estado absoluto ao representativo), sendo esta última o regime político atual em que nos encontramos.

Não se pode olvidar, entretanto, que somente a partir da ruptura com as formas de Estado absolutista pela submissão do poder político ao Direito, é que nasce o Estado de Direito. A conquista da democracia brasileira açambarcar toda essa dialética de forças num movimento complexo que atualmente culminou, com fulcro na Carta Magna vigente, na constituição da República Federativa do Brasil.

A propósito deste assunto, insta salientar que se diferencia governo de Estado, de modo que segundo a teoria institucional do direito a constituição de um Estado se perpetua por três elementos primordiais, a saber, governo, povo e território. Sem relevar a abrangência dos outros elementos referidos, mas realizando um corte epistemológico para objetivar o tema ora sob apreço, por governo ou poder político se define as faculdades exercidas por um povo de, por autoridade própria (e não recebida de outro poder), instituir órgãos que exerçam o senhorio de um território e nele criem e imponham normas jurídicas, dispondo dos necessários meios de coação (VASCONCELOS, 2000, p 35).

Além disso, posto que não se pode olvidar a estreita relação entre a ciência e a política, é salutar por ora mencionar, em breves linhas, a crítica da razão subjetiva proposta HORKHEIMER (2002), na qual se constata a situação hodierna de instrumentalização da mesma (da razão), esvaziamento ou relativização de conceitos, como o de liberdade, democracia, de modo a  influenciar diretamente no direito penal, nas reflexões criminológicas, podendo se falar, inclusive, em um direito penal instrumental, apartado dos seus fins, a serviço de qualquer política.

Nesse ínterim, a articulação de tais conceitos acima esboçados, bem como a observação da relevância do caráter histórico para a análise do Estado atual, é uma digressão necessária para a realização do enquadramento ontológico do tema ora proposto, em propedêutica do assunto principal a ser exposto, a saber, a análise da legislação brasileira vigente e sua aplicabilidade sob o enfoque da Criminologia Crítica.

No contexto brasileiro, se observarmos o próprio movimento constitucional que culmina na Carta Magna promulgada em 1988, pós-ditadura militar, percebemos a valorização dos direitos fundamentais igualmente distribuídos, à liberdade, à dignidade da pessoa humana, apartando-se ao máximo da arbitrariedade estatal, do estado absoluto. Para ilustrar tais assertivas, vejamos o que versa a Constituição brasileira vigente:

Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; […]

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; […].

Da mesma forma, temos que o vigente Código Penal, cujo fulcro também acompanha princípios explícitos e implícitos norteados por uma legalidade estrita (ou garantismo), baseados, mormente, no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, claramente limitadores que jus puniendi estatal, ainda contém em seu corpus legis artigos que datam da década de 40, momento histórico diverso do atual, no qual vigorava outra perspectiva de Direito Penal.

Outrossim, mais especificamente sobre as noções principiológicas no Direito Penal brasileiro, a interpretação doutrinária descreve a força normativa dos princípios penais da seguinte forma:

Os princípios penais constituem o núcleo essencial da matéria penal, alicerçando o edifício conceitual do delito – suas categorias teoréticas –, limitando o poder punitivo do Estado, salvaguardando as liberdades e os direitos fundamentais do indivíduo, orientando a política legislativa criminal, oferecendo pautas de interpretação e de aplicação da lei penal conforme a Constituição e as exigências próprias de um Estado democrático e social de Direito. Em síntese: servem de fundamento e de limite à responsabilidade penal (2008).

Notório, conforme acima referido, que tanto a doutrina, quanto às leis e princípios apontam, mormente, para a intervenção mínima do Estado, um garantismo dos ideais de liberdade, igualdade, representados inclusive nos tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil participa.

Doutra banda, se é certo que a análise da realidade para construção de uma ética, de direitos, deve ser uma via biunívoca entre teoria e práxis, pela simples observância cotidiana do funcionamento do Direito, para além do enunciado da norma, vislumbra-se um preterimento da sua aplicabilidade, da concretização dos direitos historicamente conquistados e positivados na lei. Nesse sentido é imperativa a necessidade de existir diferenciação entre Estado de Direito histórico e Estado de Direito ideal, “O Estado de direito concreto realizado no mundo. O estado de direito ideal é que se apresenta em termos de teoria, apartado da práxis (ZAFFARONI, 2005, p 169), sendo perceptível a dissonância do que está posto in legis com a concepção de Estado de Direito histórico, o Direito aplicado. Tal situação não é diferente na aplicação da norma penal.

Antes de adentrar nas questões práticas relacionadas ao sistema penal brasileiro, é relevante trazer à baila essa discussão as questões pertinentes à política legiferante do sistema penal. Ora, pelo simples fato de a lei penal abarcar certas condutas, selecionando-as, omitir outras, apresenta-se um modelo de ordem social imposta a ser seguida; tal perspectiva supera as máximas que rezam a letra “fria” da lei causando a impressão de que para cada delito existe um castigo, ou seja, que a questão perpassa tão somente o jurídico-penal, olvidando a análise do delito é também sob a perspectiva político-social (MARIN, apud PEGORARO, 2007, p. 342).

Ainda com foco na perspectiva acima referida, superadas as questões relativas ao desenvolvimento estatal que culminaram no presente status quo, torna-se plausível a concepção de um Estado de Direito histórico para análise mais detida da realidade. Evidentemente que a democracia representativa, concepção ideal de Estado que se vislumbra na própria Carta Magna brasileira, não se equipara, em termos de conceituação, ao referido Estado de Direito histórico.

O argumento que vigora desde antanho nessa apresentação exordial vislumbra por trás da referida Democracia, um estado histórico que comporta nos seus entre lugares resquícios de absolutismo (representado pelo Estado de Polícia, na qual, em oposição ao Estado de direito, situação em que o poder do estado não é limitado. Aproxima-se do absolutismo (ZAFFARONI, 2005, op. cit., p. 169.). Sob esta perspectiva, a bem da verdade, o Estado de Direito funciona tão somente como contenção das pulsões absolutistas do poder estatal.

Por este viés, elucubrando sobre o Direito Penal, num movimento de exposição das incursões estatais que beiram o absolutismo, o caso deve ser perquirido mais detidamente. Considerado como campo preferido das pulsões do Estado de Polícia, o Direito Penal, em um Estado de Direito, deve necessariamente ser investido de garantias que vão à contramão da arbitrariedade estatal, típica de regimes absolutos, posto que, de outra forma, se fortaleceriam tais arbitrariedades.

Ademais disso, para ilustrar tais afirmativas referidas e retomando a perspectiva político-social na análise do delito, por intermédio de um estudo das legislações penais vigentes, desde a década de 80, realizado por ZAFFARONI (1984), lançamos mão do conceito de co-culpabilidade da sociedade e do Estado no crime cometido.

Nesse sentido, a omissão estatal quanto às garantias de direitos constitucionalizados, como possibilitar ao cidadão acesso à educação, por exemplo, geram para o Estado, representando a sociedade, uma responsabilidade mútua no delito cometido, podendo em razão disso atenuar a respectiva sanção. Vejamos o caso da lei que dispõe sobre crimes ambientais, Lei 9605/98, onde em seu art. 14, inciso I, determina que “são circunstâncias que atenuam a pena: baixo grau de instrução ou escolaridade do agente”, dentre outras situações.Laborando sobre este conceito versa o referido autor:

ao lado do homem culpável por seu fato, existe uma culpabilidade da sociedade, ou seja, uma parte de culpabilidade – da reprovação pelo fato – com a qual a sociedade deve arcar em razão das possibilidades sonegadas […]. Se a sociedade não oferece a todos as mesmas possibilidades, que assume a parcela de responsabilidade que lhe incumbe pelas possibilidades que negou ao infrator em comparação com as que proporcionou a outros. O infrator apenas será culpado em razão das possibilidades sociais que se lhe foram oferecidas (2007, p. 138).

Outrossim, em outros momentos na esfera penal se faz constante na letra da lei a possibilidade de ser afastada a tipicidade da conduta do agente que comete delito de valor irrisório, baseado na apotegma herdado do Direito Romano “minimis non curtat praetor”, sendo inclusive garantido como princípio no vigente Código Penal Brasileiro, o princípio da insignificância, suscitado em razão de se apresentar como mais um exemplo da teoria da mínima intervenção do Estado.

A contrassenso do que até então fora constatado em termos de teoria, que a aplicabilidade desta não demonstra verossimilhança com a sua práxis. Para que se verifique tal assertiva, suficiente uma breve visita aos presídios brasileiros ou mesmo “os estabelecimentos educacionais” destinados aos menores em conflito com a lei, como prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990, art. 112, VI), sendo possível questionar, inclusive, as concepções a respeito do que entendemos por “dignidade da pessoa humana” (BRASIL, 1988, art. 5º, incs. X, XI, XII).

Nesse sentido, verificamos, através do levantamento de dados do Sistema Penitenciário brasileiro, que se mostra crescente a população carcerária no decurso temporal. Em 2021, a população carcerária brasileira registrou a sua primeira diminuição desde 2014, e ainda assim, as penitenciárias estão cerca de 54,9% acima da sua capacidade e o percentual de detentos sem julgamento é ainda maior do que o registrado em 2020 (CISTATI, 2023, p. 1).

Mesmo assim, argumenta-se que a razão de ser de tal situação alarmante do sistema penal é motivada pela sensação de impunidade que paira sobre a população em geral, e nesse sentido, que com o aumento das penas para o respectivo ato criminoso, a diminuição da maioridade penal, maiores incursões da coerção estatal, poderiam vir a sanar crescimento da criminalidade.

Para tanto, sob a égide do mesmo argumento supra, o maior recrudescimento do sistema punitivo brasileiro, a exemplo da criação de leis com punições mais severas para sanção dos delitos tentados ou consumados, como o aumento das tipificações penais, a nova Lei de drogas com tempo de pena maior para o tráfico, por exemplo, não obteve como respaldo a respectiva diminuição dos crimes e da população carcerária.

Por fim, esclarecidas tais questões pertinentes à constituição do Estado, analisando seu percurso histórico para localizá-lo no âmbito da sua atual vigência, a saber, Estado Democrático de Direito, cuja forma democrática se perfaz através de representação, sistema de governo consolidado através de constituição fundamentada pelo viés garantista de direitos, corroborada por tratados internacionais aderidos pelo estado brasileiro, na qual os efeitos se refletem em todas as leis que derivam da Constituição, inclusive, na Lei Penal, de forma que seja inviável, ou pelo menos, que ocorra a minimização da arbitrariedade estatal, a atuação do estado absoluto, que se apresenta no embate de forças com o estado de direito, é que se funda o presente estudo criminológico.

Do sistema penal à criminologia

Para a realização do referido estudo, como ponto de partida, analisou-se a compreensão doutrinária do que venha a ser sistema penal, e partir daí, restringir nossa área de pesquisa ao Direito Penal, com fins de perpetrar a crítica das mesmas, lançando mão ao fim, como já mencionado, da realidade brasileira.

Assim, como delimitação do obejeto do saber ora perquirido, temos que o sistema penal se enquadra no campo do controle social, influência da sociedade delimitadora do âmbito da conduta do indivíduo. Investigando a estrutura de poder, explicamos o controle social e, inversamente, analisando este, esclarecemos a natureza da primeira (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, op. cit., p. 61), entendendo assim que o controle social transcende a estrutura jurídico-penal do Direito. Conforme preleciona ZAFFARONI, temos que o sistema penal conceitua-se por:

Controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca a partir de quando se detecta ou supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação (Idem, op. cit., p. 69).

Outrossim, sobre o mesmo conceito leciona Vera Regina:

Por sistema penal entendo, em sentido lato, a materialização do poder punitivo do Estado. Trata-se de um exercício de poder, controle e domínio, que inclui a engenharia (dimensão instrumental) e a cultura (dimensão simbólica) punitiva, incluindo  normas, saberes  e discursos  do Estado que programam (Declarações de Direito, Constituição, Leis penais, processuais penais, penitenciárias, resoluções, regulamentos; categorias cognitivas, saberes, ciências e políticas criminais), operacionalizam (Polícia, Secretarias de Estado, Ministério Público, Procuradorias, Defensorias, Assistências Jurídicas e Sociais, Advocacias, Justiça, Prisão,Manicômio…) e reproduzem, ideológica e materialmente o poder punitivo, legitimando-o, em interação com a mecânica de controle social informal global (família, escola,  universidade, religião, medicina, psiquiatria, psicologia,  maçonaria, partidos políticos, grupos de extermínio, movimentos sociais, ONGs, facções e organizações presidiárias, mídia,  sistema financeiro e mercado). O modelo integrado de ciências penais e a Política Criminal são saberes internos à dimensão simbólica do sistema penal, tendo uma função histórica decisiva na construção e reprodução da cultura e do senso comum punitivo, e da legitimação do sistema penal moderno.

Percebido por sistema penal as conceituações supra, temos que é indispensável entender o lócus do Direito Penal nesses ditames. Portanto, que o direito penal flerta com a concepção de sistema penal na medida em que ambos versam sobre a coerção penal, entrementes, os limites do direito penal apresentam-se mais parcos em relação ao referido sistema, de modo que se destinam penal expressão “direito penal”:

é o setor ou parcela do ordenamento jurídico público que estabelece as ações ou omissões delitivas, cominando-lhes determinadas consequências jurídicas – penas ou medidas de segurança. Enquanto sistema normativo, integra-se por normas jurídicas (mandamentos e proibições) que criam o injusto penal e suas respectivas consequências (PRADO, 2008. p.55).

Para melhor particularizar o direito penal ante as outras disciplinas, vejamos o seguinte:

O direito penal tem como caráter diferenciador o de procurar cumprir a função de prover à segurança jurídica mediante a coerção penal, e esta, por sua vez, se distingue das outras coerções jurídicas, porque aspira assumir caráter especificamente preventivo ou particularmente reparador (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, op. cit., p. 99).

Ademais disso, insta salientar sobre o vigente Direito Penal em questão, como lei infraconstitucional, em seu caráter coercitivo, preventivo e reparador, tanto o brasileiro, quanto o internacionalmente reconhecido, perfaz-se norteado por princípios éticos que remetem a questões políticas que transcendem o seu horizonte de abrangência. Citamos:

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

[…]

II – prevalência dos direitos humanos.

No caso do Brasil, tal afirmativa se realiza quando é perceptível, conforme já elucidado anteriormente em breve propedêutica, que a República Federativa do Brasil, constituído sob a égide do Estado Democrático de Direito, a prevalência dos princípios relativos à dignidade da pessoa humana, vejamos:

Art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

Outrossim, mais especificamente na lei infraconstitucional penal, é notório a relevância dos direitos humanos em questão, principalmente no que diz respeito a Declaração Internacional de Direitos Humanos, tanto nas questões principiológicas, como por exemplo o princípio nulla actio sine culpa, ou mesmo em tipificações específicas como a caracterização do crime de tortura,

Destarte, ponderando sobre tal problemática quanto ao direito penal, é inegável o envolvimento político-ideológico que constitui a formulação das leis penais, bem como sua aplicabilidade, mormente quando em épocas pós-regime ditatorial e abertura política se perpetuou as reformas na parte geral, apostando em uma nova perspectiva para a legislação penal (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, op. cit., p.216).

Esplanadas as questões que se referem à delimitação do horizonte do Direito Penal, bem como as questões político-ideológicas pertinente às formulações da lei penal, veremos, outrossim, que as concepções de delito transcendem o estudo das condutas tipificadas e preteridas pelo direito penal, mesmo que, em tese, em um sistema de direito positivista as sanções penais são estabelecidas estreitamente com o ato ilícito, em relação à ação ou omissão e não as características pessoais do autor.

Dessa forma, para além da lógica positivista que versa a inferência “delito implica pena”, verifica-se através da criminologia crítica, a possibilidade de se questionar acerca do agente da conduta delinquente, da questão social que envolve a ação delituosa, o que levou o agente a realizá-la, etc.

Ante a complexidade do que se concebe por criminologia e, dada a larga doutrina que a percebe como múltipla, tomamos por criminologia a definição que concebe esta como disciplina que estuda a questão criminal do ponto de vista biopsicossocial, ou seja, integra-se as com as ciências da conduta aplicadas às condutas criminais (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, op. cit., p. 153).

DA CRIMINOLOGIA A CRIMINOLOGIA CRÍTICA

No tópico que se segue buscou-se identificar o locus da Criminologia Crítica em relação às outras concepções de criminologia e assim diferenciá-las, salientando a importância da manifestação crítica em matéria criminológica e suas possíveis atuações políticas e intervenções no modus operandi das políticas criminais.

Sobre essa questão, salutar trazer à baila em breve explanação a acuidade da perpetuação de uma teoria crítica sobre a tradicional, de modo que não se permita desvanecer, com o decurso do tempo, o caráter crítico que toda teoria deve perpetrar e suas possibilidades de mudança da realidade.

Hodiernamente, constatadas as grandes crises dos sistemas políticos postulados na modernidade (positivismo, por exemplo), o movimento funcional da teoria tradicional de observação e descrição dos fatos na contemplação do mundo não satisfaz as aspirações de emancipação de sistemas superados, até mesmo, pelo próprio movimento dialético da história.

Cabe, portanto, a teoria crítica também cumprir a função inicial de uma teoria tradicional, entretanto, além do movimento de observação e descrição, neste mesmo movimento a bem da verdade, ao apreender o objeto de estudo oferecer a crítica do mesmo, no intuito de transformação da realidade (MARX (1991).

Destarte, no mesmo sentido se perpetua a ação da criminologia crítica abordando as outras correntes criminológicas que funcionam pela delimitação do estudo a partir da observação e descrição dos fatos, neste caso as causas e origens do fenômeno criminalidade, com o escopo de ciência, em outras palavras, a etiologia do fato crime (ANDRADE, 2008, p. 1).

Desse modo, caberia à criminologia (ANDRADE, 2008, op. cit., p. 2), embasada no “modelo integrado de ciências penais” (ZAFFARONI, BATISTA, et al, 2003). consolidado na transição entre os séculos XIX e XX, por Franz Von Liszt na Europa:

[…] desempenhar uma “função auxiliar”, tanto do Direito Penal como da Política Criminal oficial, inteiramente abrigada no marco da dicotomia dever-ser/ser. Com efeito, enquanto a Dogmática do Direito Penal, definida como “Ciência” normativa, terá por objeto as normas penais e por método o técnico-jurídico, de natureza lógico-abstrata, interpretando e sistematizando o Direito Penal positivo (mundo do DEVER-SER) para instrumentalizar sua aplicação com “segurança jurídica“, a Criminologia, definida como Ciência causal-explicativa, terá por objeto o fenômeno da criminalidade (legalmente definido e delimitado pelo Direito Penal) investigando suas causas segundo o método experimental (mundo do SER) e subministrando os conhecimentos antropológicos e sociológicos necessários para dar um fundamento “científico” à Política Criminal, a quem caberá, a sua vez, transforma-los em “opções” e “estratégias” concretas assimiláveis pelo legislador (na própria criação da lei penal) e os poderes públicos, para prevenção e repressão do crime.  

Entrementes, essa perspectiva sobre a criminologia, adotada pela escola positivista, tendo como fito esclarecer as causas ou as origens das condutas criminais, sob o etiqueto de ciência, identificando a criminalidade como violência individual, apresentou, em uma análise mais detida, alguns imbróglios que dificultaram sua sustentação enquanto tal.

Ora, por ser tomada como auxiliar ao Direito Penal, este como se sabe, perpetrado por ato do poder político, não vislumbrava a possibilidade de perceber um objeto de estudo peculiar a esta disciplina, posto que se apresentava vinculada a este poder. Também, como auxiliar do Direito Penal, não poderia assumir o escopo de ciência, enquanto ascética e imparcial, posto que o próprio objeto de estudo era delimitado pelo poder político, igualmente (ZAFFARONI, PIERANGELI, 2004, p. 153/154).

Noutro sentido, a transformação realizada pela Criminologia Crítica lavrada em meados do século XX, se perfaz desde a modificação da teleologia causal-explicativa da criminalidade, cujo foco era conduta dos criminalizados, almejada pela ciência criminológica, para uma perspectiva político social, da “reação social”, abarcando o estudo da criminalização, dando vazão a uma nova noção criminológica.

A respeito dessa virada pragmática realizada no estudo da criminologia, leciona (ANDRADE, 2008, op. cit., p. 3).

A criminologia não mais se define como ciência que define as causas da criminalidade, mas as condições da criminalização, ou seja, como o sistema penal, mecanismo de controle social formal (Legislativo – Lei Penal- Polícia – Ministério Público – Judiciário – prisão – ciências criminais – sistema de segurança pública etc) constrói a criminalidade em interação com o controle social informal (família, escola, universidade, mídia, religião, moral, mercado de trabalho,hospitais, manicômios) funcionalmente relacionados a estruturas sociais.

A criminalidade não é (não existe em si e per si), ela é socialmente construída, Analisando as condições da criminalização, transpassadas as fronteiras de uma Criminologia positivista, concebendo que as fontes do Direito Penal, e nesse sentido também da Criminologia, estão além da letra da lei, é notória a influência sociopolítica na formação da criminalidade, assinalando, portanto, a presença de ideologias para além do princípio da legalidade (CUNHA, 1979), estas por muitas vezes indo de encontro com a conjuntura estatal democrática vigente.

Por conseguinte, nos tópicos posteriores apresentaremos uma discussão acerca das ideologias subjacentes à vida política em um Estado de Democrático Direito (dado que o Direito perfaz-se umbilicalmente ligado às concepções político-ideológicas de um Estado), no qual se constituem as leis e normas valorativas de conduta dos indivíduos, o sistema punitivo estatal vigente, sob o escopo de intervenção mínima, oferecendo tranquilidade àqueles que se firmam ao apotegma nullum crimen, nulla poena, sine lege.

O conhecimento produzido pela criminologia crítica, entretanto, nos empresta certa desconfiança a respeito dessa máxima que se propõe a afirmar que o crime é infração às leis estatais, viabilizando um estudo mais detido sobre a criminalidade para além da definição do crime, conforme vem sendo exposto até então, bem como nas linhas que se seguem, as ideologias por trás do sistema punitivo.

IDEOLOGIAS SUBJACENTES AO SISTEMA PENAL

Das distintas acepções que se pode adotar pelo termo ideologia, desde o seu possível surgimento com a significação dada pelo filósofo francês Destutt de Tracy, tomada como ciência das ideias, perpassando por diversos momentos políticos na história, no qual sua utilização tornou-se mais usual e genérico, até a forma de ideologia empregada por Marx[1], não olvidando, entretanto, sua significação “neutra” utilizada mais recentemente; para realizar a apreciação a que se propõe o presente tópico[2] nos valeremos, mormente, do conceito negativo de ideologia, sem relevar as importância e aplicabilidade das outras significações referidas.

Em pesquisa ao Dicionário de Política (BOBBIO, 1998) temos que essa acepção negativa do conceito de ideologia, classificada como significado “forte” da palavra, remete a uma noção de ideologia que está apartada da realidade social, olvidando o caráter histórico da constituição das ideias, não estabelece relação íntima com a sua práxis, uma falsa consciência da realidade factual.

Entretanto, para uma concepção mais aproximada da nossa realidade, sem distanciar-se do conceito acima veiculado, mas salientando a sutileza com a qual se “apresenta” a ideologia hodiernamente, argumenta CHAUÍ (2006) sobre o estudo da origem da ideologia nas sociedades modernas realizado por LEFORT, (1982) apud CHAUI (2006), op. cit., p. 74. que “a ideologia contemporânea […] é invisível porque não parece construída nem proferida por um agente determinado, convertendo-se em um discurso anônimo e impessoal, que parece brotar espontaneamente da sociedade como se fosse um discurso social”.

Ademais disso, estando o Direito visceralmente ligado às concepções políticas de um Estado, seu regime político, sua forma de governo, através da análise do conceito de ideologia nos é facultado ponderar até que ponto a utilização desse termo se perpetua de forma negativa ou neutra (BOBBIO, et. al. 1998), posto que mesmo em um Estado Democrático de Direito, contexto brasileiro, se vislumbra diversas formas de utilização do poder absoluto (ZAFFARONI, 2005, p. 169), ainda que “invisíveis”.

Ainda na esfera penal do Direito, verificamos a evolução da concepção e aplicação das penas, cuja punição em épocas de inquisição (sistema punitivo religioso) e absolutismo perpetuava-se no âmbito corporal do delinquente, envolvendo, com a perpetuação das concepções humanistas apresentadas pelo Iluminismo, para um sistema ideológico de penas cujo foco não mais se direciona ao corpo, mas sim à alma do autor do crime, representados hodiernamente como ideologia da defesa social, do garantismo, dos direitos humanos.

No caso do Brasil, o direito penal não poderia operar de forma diversa, dada a superação dos regimes ditatoriais com a promulgação de uma Constituição cuja índole voltando-se para o fortalecimento a questão social e humanística, sob a égide da garantia dos direitos humanos, perpetrada inclusive em âmbito internacional, com a Declaração Universal de Direitos Humanos, e desse modo, norteado por estes valores.

Entrementes, como já postulado anteriormente, a aplicabilidade dessa norma jurídica no âmbito penal perpetua-se na realidade social discrepante da teoria, içando novamente a questão da significação do conceito de ideologia, de modo que, conforme outrora demonstrado através de pesquisas estatísticas, o sistema penitenciário brasileiro apresenta-se apartado do princípio norteador da Constituição e das demais normas infraconstitucionais, a saber, princípio da dignidade da pessoa humana (SARLET, 2002, p. 22. 2), cuja função, vale mencionar, se presta a limitar, inclusive, a atuação estatal.

Tal discrepância se apresenta, igualmente, no caso das penas privativas de liberdade, no qual, conforme a Lei de Execuções Penal[3], sob a égide ideológica da ressocialização, cabe ao Estado o dever de reinserção do apenado à sociedade. Entretanto, nos é perceptível que seu efeito perpetua uma segregação ainda maior ao convívio social. Sobre esta ponderação temos que:

A ressocialização não pode ser conseguida numa instituição como a prisão. Os centros de execução penal, as penitenciárias, tendem a converter-se num microcosmo no qual se reproduzem e se agravam as grandes contradições que existem no sistema social exterior […]. A pena privativa de liberdade não ressocializa, ao contrário, estigmatiza o recluso, impedindo sua plena reincorporação ao meio social. A prisão não cumpre a sua função ressocializadora. Serve como instrumento para a manutenção da estrutura social de dominação (MIRABETTE, 2002, p.24).

Nesse sentido, também se percebeu que o maior recrudescimento do sistema penal brasileiro, o aumento de penas para crimes hediondos, criação de leis penais para tipos específicos de conduta, não tem solucionado o problema da criminalidade, se não, intensificado o aumento da população carcerária, a contrassenso do que é difundido e incentivado nos meios de comunicação.

Ademais disso, prosseguindo com as ponderações do presente trabalho monográfico, sob o enfoque da criminologia crítica, adotando a concepção de articulada por ANDRADE (2008), entendida como “saber crítico do controle penal”, sobre esta analisaremos nas subseções posteriores a interação do controle social formal e informal na construção da criminalidade, assumindo respectivamente, como exemplo primeiro, a atuação da polícia militar na contenção da criminalidade, e em seguida, problematizando o modelo de mídia vigente e sua atuação na formulação de criminosos e inocentes.

O CASO DA POLÍCIA

A depender do momento histórico e da conformação estatal, o poder de polícia, mesmo veiculado com nomenclatura diversa, pode aquiescer diversas formas de atuação, desde o desempenho e exercício dos poderes mais irrestritos, no caso de um Estado Absolutista, até as formas de intervenção mínima, como se pode vislumbrar na maioria das formas de governo democrático que vigoram atualmente.

O que não se pode escusar, entretanto, é que tais atribuições remetem às atividades do governo, da administração, visando um bem comum. Tal assertiva pode ser verificada até mesmo na etimologia do termo polícia, cujo radical que remete a polis, que remete a conformação das cidades-estado na Grécia clássica (BOBBIO, et. al., 1998), cujo ethos social voltava-se para o coletivo.

Da mesma forma, mais uma vez recorrendo à etimologia, temos que o termo política também remete a igual origem, e como acima referido, seu desempenho, o comportamento prático de ambas as instâncias de poder perfaz-se inter-relacionada, de modo que a atuação da polícia altera conforme a organização estatal.

Além disso, insta salientar que visando o bem comum à atuação da polícia, inter-relacionada com a política, não necessariamente está atrelada à coerção (PEDROSO, 2005, p. 17), através do uso da força ou mesmo da violência, cerceamento de liberdade ou de direitos, podendo desempenhar funções sociais relativas aos préstimos comunitários, apoio às populações carentes, socorro em emergências, dentre outras.

Tornando ao momento atual, no caso do Brasil, consolidada a forma de governo democrático sob a égide da Carta Magna vigente, fundamenta-se a atuação da polícia no intuito de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, cuja organização e mantença cabem à União, conforme versa o seguinte artigo, vejamos:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I – Polícia federal;

II – Polícia rodoviária federal;

III – polícia ferroviária federal;

IV – Polícias civis;

V – Polícias militares e corpos de bombeiros militares (BRASIL, 1988).

Realizando um corte epistemológico para melhor objetivar o fim a que se presta a presente subseção, verificaremos a função da polícia militar que conforme a Constituição vigente em seu art. 144, § 5º, “às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública;”

Assim, ao mesmo modo que o funcionamento da polícia estatal, como outrora mencionado, a concepção de ordem pública também remete a conformação do Estado vigente, interagindo substancialmente com este. Em outras palavras, a ordem pública:

se traduz através de um sistema de normas que tem por objeto e que variam de ordenamento para ordenamento. Por conseguinte, com a variação da inspiração ideológica e dos princípios orientadores (democráticos ou autocráticos, por exemplo), cada ordenamento dará uma disciplina própria (ampla ou restrita) das hipóteses de intervenção normativa e de administração direta tendentes a salvaguardar a Ordem pública (BOBBIO, et. al.,1998).

Ademais, sob o ponto de vista temporal, as transformações políticas e sociais que se sucedem a todo o momento em uma sociedade consentem ao Estado, interpretando o que venha a ser ordem pública, dado o seu caráter genérico, eleger o que venham a ser aqueles desviantes da ordem (PEDROSO, 2005, op. cit., p. 41).

Desse modo, apresentando as concepções gerais acima mencionadas sobre polícia, política e ordem pública, bem como o caso específico da conformação brasileira, interroga-se se, por eventualidade ou não, à corporação policial militar fora eleita como aquela a salvaguardar a ordem pública, bem como o seu dever de atuação ostensiva.

O fato é que no Brasil, tal policiamento fora fundado sob a égide da doutrina militar através da implantação pelo exército francês em princípios do século XX, de início, na Força Pública de São Paulo, posteriormente perpetuando-se nos demais estados, e cujos moldes também não fogem à estruturação militar, ou seja, sob o escopo de corporação, constituindo identidade própria, disposição hierárquica das funções internas e autoritarismo (PEDROSO, 2005, op. cit., p. 39-90).

Destarte, primeiramente sua atuação dava ênfase, conforme o caos social das décadas 20 e 30 do século XX, no desenvolvimento da polícia política, sendo somente associada ao quadro da força pública, a Guarda Civil, quando da reforma perpetuada em abril de 1970. Daí, atrelada a uma ideologia de Estado autoritário, a Polícia Militar nasceu sob a égide da repressão política, além de exercer o poder de vigilância sob o cidadão comum, constituindo assim uma formação ideologia própria (Idem, 2005, p. 148).

É nesse sentido que, no presente subtópico, se questiona o desempenho militar da polícia, mormente quando da sua aplicação cotidiana interagindo com cidadãos, sem que posteriormente à promulgação da Constituição vigente, haja reforma significativa para que se elimine a dessemelhança constante entre o processo de democratização atual e o retrogrado funcionamento autoritário e antidemocrático da polícia militar.

MÍDIA E A PRODUÇÃO DA REALIDADE

Oferecendo seguimento à apreciação sobre a ideologia que subjaz o discurso político estatal, admitido, conforme o apresentado no decurso deste trabalho, que a criminalidade não está adstrita tão somente ao que versa a lei penal, mas que para além do discurso legal, em uma interação entre o controle social formal e informal, assentida a pluridimensionalidade deste controle social, verificaremos com intuito de problematizar a discussão sobre a mídia, no âmbito do controle informal, como o quarto poder[4], os meios de comunicação social podem vir a erigir criminosos e inocentes através da formação da opinião pública[5].

De antemão vale dizer que, em conformidade com o teorema formulado por Thomas Malthus, articulado por SANTOS (2006), laborando sobre as concepções e formulações de realidade, temos que:

[…] situações definidas como reais produzem efeitos reais. Logo se imagens da realidade produzem efeitos reais, então seria desnecessário agir sobre a realidade para produzir resultados concretos, porque ações sobre a imagem da realidade seriam suficientes para criar efeitos reais na opinião pública […]”.

Desse modo, a mídia, considerada como complexo de meio de comunicação que envolve mensagem e recepção, por fontes diversas cuja manipulação dos elementos simbólicos é a sua fundamental característica tem sido utilizada como o principal veículo de informações e notícias. Outrossim, conforme definiu (ZAFFARONI, PIERANGELI, 2006), p. 61), como sendo uma parcela do controle social difuso.

Hodiernamente, com o avanço da tecnologia, a difusão midiática assumiu uma pluridimensionalidade (ZAFFARONI, PIERANGELI, 2006, p. 62), quando se vislumbra a ocorrência sistemas que abarcam várias facetas da mídia em um único veículo de informação, assumindo o caráter de multimídia. Sobre esse conceito temos que:

A própria realidade (ou seja, a experiência simbólica/material das pessoas) é inteiramente captada, totalmente imersa em uma composição de imagens virtuais no mundo do “faz-de-conta”, no qual as aparências não apenas se encontram na tela comunicadora da experiência, mas se transformam em experiência. Todas as imagens de todos os tipos são incluídas no meio porque fica tão abrangente, tão diversificado, tão maleável, que absorve no mesmo texto de multimídia toda a experiência humana, passada, presente e futura, como em um ponto único do universo (CASTELLAS, 1989) apud CHAUI, 2006, p.72).

Citando um exemplo de como a mídia, em suas várias dimensões, tem atingido um papel funcional na perpetração de um controle social difuso, versa ainda SANTOS (2008), que ações sobre a imagem da criminalidade têm sido suficientes para criar efeitos reais de alarme social, necessário para campanhas de lei e ordem desencadeadas com o objetivo de ampliar o poder político e legitimar a repressão penal, em épocas de crise social (SANTOS, 2006, apud MOURA, 2008, op. cit.).

Ademais disso, insta salientar, a força e credibilidade do discurso midiático com caráter de veracidade, produzindo conhecimento através do argumento científico, oferecendo guarida a ideologia subjacente à informação veiculada e obnubilando sua parcialidade. Sobre essa ponderação, denomina CHAUÍ (2005), a ideologia da competência, Vejamos:

[…] a peculiaridade da ideologia da competência está na sua peculiaridade de aparecer sob a forma anônima e impessoal do discurso do conhecimento, e sua eficácia social, política e cultural funda-se na crença na racionalidade técnico-científica. Em outras palavras, o discurso ideológico pode aparecer como o discurso social porque o social aparece constituído e regulado por essa racionalidade.

Nesse sentido, percebemos a possibilidade de formulação de realidades adversas a depender do emissor da notícia, a apreensão e transmissão de fatos, o simulacro da realidade. Assim, o que é veiculado na mídia pode ser utilizado com fins de erigir verdades sobre a realidade social, massificar a opinião pública.

Com fins de fustigar o presente debate sobre a mídia, temos que em termos de Brasil, a veiculação de rádio e TV são concessões de serviços públicos constitucionalmente perpetuados, onde se vislumbra a situação de que informações veiculadas por empresas de interesse privado, intérpretes da realidade privilegiados pela Constituição, formando a opinião da maior parte da população.

Destarte, para não fugirmos do contexto histórico brasileiro atual, elucidando o debate acima suscitado, citamos o exemplo das últimas manifestações populares de rua, cujo foco dos protestos são basicamente os problemas sociais, interesses coletivos, enquanto as empresas de transmissão de notícias, inclusive a esse respeito, como acima referido, em sua maioria tem caráter privado.

Por fim, compreendida a força midiática de formulação da realidade, reforçamos que teoria e práxis devem perpetuar-se inter-relacionadas, de modo que dada a elaboração midiática da notícia, seja verificada na prática para que se efetue uma compleição do real menos superficial.

CONCLUSÃO

O presente artigo permitiu vislumbrar através de uma apreciação da conformação da história e da legislação, na construção e na forma como aparece as concepções de Estado Democrático constitucionalmente garantido, como é o caso do Brasil, suas influências no Direito Penal, sob a égide do princípio da dignidade da pessoa humana, demonstrando uma realidade aparente de direitos humanos garantidos.

Percorrendo as conceituações de Estado, para além das aparências propostas na lei, vislumbramos que o processo brasileiro de democratização ainda carece de maior efetivação no que se refere à sua aplicabilidade, onde ainda se constata a presença, nos entrelugares, da veiculação, através de algumas instituições estatais, do poder arbitrário.

Destarte, em outras palavras, se realizássemos o movimento inverso ao que aduz no apotegma “pôr a teoria em prática”, ou seja, tentássemos pôr a prática na teoria, disso resultaria qualquer sistema de governo próximos do absolutismo, a contrassenso do que propõe a legislação vigente.

Ora, tal movimento de análise teórico e prático da condição do Estado atual, somente nos foi possibilitado através dos estudos sobre o sistema penal, mais especificamente criminológicos, sob o enfoque da criminologia crítica, a qual se perpetuou através da virada pragmática efetuada na criminologia, na qual deixou de ser auxiliar do direito penal, sobrevindo a tomá-lo como objeto de estudo, não mais perquirindo as causas da criminalidade, mas sim as condições de criminalização.

Doravante, percebemos por oportuno investigar pontualmente o conceito de ideologia, posto que está subjaz em todo sistema político, e que por muitas vezes abarca uma promiscuidade ideológica, de perceptível incoerência à proposta de governo. Sublinhamos, por ora, o sentido negativo do termo, no qual denota, basicamente, falsa consciência, que pode ser notória quando se vislumbram as aparentes realidades de garantismo e direitos humanos proposta in legis.

Nesse ínterim, nos fora possibilitado examinar os fundamentos da corporação policial militar, parte do controle social institucionalizado, cuja ideologia ainda hoje, conforme perquirido, perfaz-se atrelada ao autoritarismo estatal, e, destarte, não por acaso, dado que sua conformação e unificação para atuar no policiamento ostensivo, no Brasil, se perpetuou em tempos de ditadura. O ponto saliente nesta questão é que tal atuação sob estes moldes ainda é realizado hodiernamente.

Igualmente, analisando a atuação da mídia, tomada como controle social difuso, percebemos sua capacidade de apreender a realidade, através da qual, difundindo informações sobre a mesma, tem o poder de moldar, à sua maneira, podendo conceber, a partir da forma de exposição, méritos ou deméritos ao que fora veiculado, mais uma vez, remetendo-nos à questão da ideologia. Neste ponto, vale dizer que a mídia no Brasil, pelo veículo de maior difusão, a saber, a televisão e a rádio, concessões públicas legalmente postuladas, nas mãos de empresas privadas, oferecem permuta entre o interesse público e o privado.

Desse modo, não por acaso, foram escolhidos o caso da polícia militar e da mídia com o fito de elucubrar sobre o controle social. Amparados na concepção de teoria crítica, na qual a elucubração sobre a realidade não obsta somente na teoria, cabendo, portanto, além da exposição do real, a elaboração da sua crítica, sem se apartar dos últimos acontecimentos no Brasil, a saber, as manifestações de protestantes de rua que vem se perpetuando desde julho do ano corrente, é que rematamos o presente material de pesquisa.

Tal temática fora o impulso inicial do presente trabalho, entrementes, sem possuir material de pesquisa suficiente para adentrar na questão propriamente dita, mesmo pela razão de encontrar-se bastante recente, consentiremos, sem que se caia na inércia do conforto, a elaboração de juízo de valor para trabalhos posteriores, tendo oferecido desde já, ao mesmo modo que objetiva a criminologia crítica em suas análises do sistema penal, içar o debate quanto à dominação, o controle coercitivo, bem como as arbitrariedades exercidas pelas instituições de um Estado declaradamente democrático.

À guisa de conclusão, salientamos a relevância do esclarecimento quanto às questões políticas e ideológicas pertinentes à conformação estatal, posto que em uma sociedade em constante democratização, cuja Carta Magna celebra, no ano corrente, vinte e cinco anos de promulgação, não podemos fechar os olhos para veiculação arbitrária do poder, este que em tese, emana da vontade do povo, de modo que, não sejamos condescendentes com a efetivação da justiça como mera aplicação das leis.

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[1] MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. Vol. I Portugal : Editorial Presença; Brasil : Martins Fontes, s/d.

[2] BOBBIO, et. al. (1998),  op. cit. Verbete: Ideologia

[3] Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, “Art. 1º- Execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”, disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 09/08/2024.

[4] Os meios de informação desempenham uma função determinante para a politização da opinião pública e, nas democracias constitucionais, têm capacidade de exercer um controle crítico sobre os órgãos dos três poderes, legislativo, executivo e judiciário. A imprensa independente, portanto, enquanto se posicionava em competição cooperativa com os órgãos do poder público, foi definida como o Quarto poder. BOBBIO, et. al. (1998), op. cit. Verbete: O quarto poder.

[5] Em uma democracia, sabe-se que o poder emana do povo, a lei como vontade do povo, conforme artigo primeiro da CF/88: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.