A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL DO ART. 103, IX, DA CONSTITUIÇÃO: A EFETIVA LEGITIMAÇÃO DEMOCRÁTICA DO SUPREMO A PARTIR DE DIÁLOGOS SOCIAIS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202409081509


Carolina Loureiro de Alves Pereira


Resumo

O presente artigo versa sobre a legitimidade ativa da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), prevista no art. 103 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), e a sua potencialidade no avanço da proteção e promoção de direitos fundamentais no Brasil. Para tanto, discorre-se sobre a sua ampliação pelo constituinte de 1988, no processo redemocratização brasileiro, a interpretação restritiva conferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao dispositivo, em um primeiro momento, e o movimento mais recente na jurisprudência da Corte, no sentido da mutação constitucional para admitir entidades de defesa dos direitos humanos como legitimadas ativas em sede de controle concentrado de constitucionalidade.

Palavras-chave: CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE. LEGITIMIDADE ATIVA. DIREITOS FUNDAMENTAIS. REDEMOCRATIZAÇÃO. STF.  INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL. MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL.

Introdução

O que o Instituto de Defesa do Consumidor (IDECON), a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) têm em comum?

Em 2015, o Min. Marco Aurélio – até então Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) – monocraticamente reconheceu a legitimidade ativa do IDECON para a propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.291-DF. Em 2018, foi a vez do Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, em sede de medida cautelar, requerida no bojo da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 527-DF, entender pela legitimidade ativa da ABGLT. Mais recentemente, em 2020, aquele Ministro fez o mesmo em relação à APIB, em sede de medida cautelar, que foi referendada pelo Plenário na ADPF nº 709-DF¹.

Tais entidades são organizações da sociedade civil voltadas à promoção de direitos fundamentais que suscitaram o controle concentrado de constitucionalidade e obtiveram êxito quanto ao reconhecimento de sua legitimidade ativa para tanto, na forma do art. 103, IX da Constituição². Essa poderia ser uma informação irrelevante, mas não é.

Quando se trata de movimentos sociais organizados, a legitimidade ativa para iniciar o controle abstrato de constitucionalidade não é apenas uma questão de ordem processual, e sim de abertura da jurisdição constitucional a demandas sociais, de afirmação da legitimidade democrática do STF e de proteção efetiva de direitos fundamentais e minorias vulneráveis.

Isso torna-se evidente ao se examinar a jurisprudência tradicional do STF sobre tal dispositivo constitucional. Desde a promulgação da Constituição de 1988, cristalizou-se uma interpretação restritiva do vocábulo “entidade de classe de âmbito nacional”, que afasta o acesso ao controle abstrato de constitucionalidade das organizações sociais de proteção de direitos fundamentais.

O presente artigo propõe, então, uma breve reflexão sobre as implicações das diferentes interpretações do art. 103, IX da Constituição à jurisdição constitucional contemporânea e busca a resposta à seguinte pergunta: por que o Supremo acertou ao promover a mutação constitucional quanto à matéria?

Para tanto, em um primeiro momento, será investigado o que motivou o constituinte de 1988 a ampliar o rol de legitimados para a propositura de ADI, de modo a incluir as “entidades de classe de âmbito nacional”. Na sequência, serão identificadas as razões pelas quais o STF assentou uma jurisprudência restritiva e defensiva, na contramão da tendência inaugurada pelo constituinte. E, por fim, será apresentado por que o STF acertou em afastar tal interpretação tradicional em seus julgados mais recentes.

I. A redemocratização brasileira e a ampliação do rol de legitimados para suscitar o controle concentrado de constitucionalidade

Fruto do processo brasileiro de redemocratização, a Constituição de 1988 (CF/88) visava à ruptura com o passado autoritário do país (BARROSO, 2020, pp. 381-387). Para tanto, o constituinte consagrou a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, da CF/88), erigindo-a ao vértice axiológico do ordenamento jurídico. Nessa linha, o texto constitucional albergou uma gama generosa de direitos, que receberam o timbre da fundamentalidade.

Enquanto direitos subjetivos definidos por normas constitucionais dotadas de efetividade, os direitos fundamentais investem seus beneficiários em situações jurídicas imediatamente desfrutáveis, a serem efetivadas por prestações positivas ou negativas. Estas, por sua vez, consistem em deveres jurídicos imputáveis ao Estado ou a outro destinatário eventual da norma constitucional (BARROSO, 2020, pp. 218-219).

Descumpridos esses deveres jurídicos, nasce para o titular do direito lesado a pretensão de se valer dos mecanismos estatais coercitivos e sancionatórios, mediante o exercício do direito de ação (art. 5º, XXXV, da CF/88). Em que pese as ações judiciais serem normalmente instituídas e disciplinadas pela legislação infraconstitucional, nada impediu que a Constituição de 1988 também o fizesse, prevendo as chamadas ações constitucionais.

A extensa carta de direitos fundamentais demonstra que a Constituição de 1988 não só foi analítica, como também compromissória. Na tentativa de conciliar grupos sociais com interesses antagônicos, para que o país conquistasse a tão sonhada estabilidade institucional, a Assembleia Constituinte abraçou mundividências distintas e positivou direitos afeitos tanto a liberais, quanto a estatistas.

Nesse novo desenho constitucional, coube ao Poder Judiciário um papel decisivo na concretização de direitos fundamentais e na solução de disputas sociais já existentes em 1988, mas que não foram resolvidas, por opção do próprio constituinte, que preferiu firmar compromissos dilatórios (SCHMITT, 2011, pp. 69-73).

Exemplo disso é o fenômeno de judicialização da política³, segundo o qual uma série de questões, outrora resolvidas por órgãos políticos eleitos, passaram a ser submetidas, com pretensão de definitividade, ao crivo de órgãos judiciais não eleitos (CARDINALI, 2018, p. 129).

Com efeito, as ações de controle concentrado, abstrato e principal de constitucionalidade são uma das principais vias de contato do Judiciário, em especial, do STF e dos Tribunais de Justiça, com questões de cunho político. Afinal, permitem o exame judicial direto da validade de leis e atos normativos, aprovados por Poderes eleitos sob a regra da maioria, em nome da supremacia da Constituição, da observância das regras dos “jogo democrático” e da proteção de direitos fundamentais.

Com a finalidade de potencializar a proteção das normas constitucionais e dos direitos fundamentais, o constituinte ampliou o rol de legitimados a suscitar o exercício do controle concentrado de constitucionalidade pelo STF.

Conforme o art. 103 da CF/88, a legitimidade ativa da ADI deixou de ser monopólio do Procurador Geral da República, para ser compartilhada com o Presidente da República, o Governador de Estado ou do Distrito Federal, as Mesas do Senado Federal, da Câmara dos Deputados, de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Conselho Federal da OAB, partidos políticos com representação no Congresso Nacional, confederações sindicais e entidades de classe de âmbito nacional.

Essa abertura do controle concentrado de constitucionalidade foi peça-chave para a redação da nova narrativa constitucional brasileira.

A ADI já havia sido positivada antes mesmo de 1988, em plena ditadura militar, mas reservada, propositalmente, ao Procurador Geral da República, cargo então de livre nomeação e exoneração. Dessa maneira, o regime de exceção impedia a propositura de ações judiciais que pudessem pôr em xeque a sua legitimidade e, de quebra, valia-se do controle concentrado de constitucionalidade como instrumento judicial de contenção dos Estados-membros e do Poder Legislativo (BINENBOJM, 2014, p. 128).

Alinhado a isso, na época, prevalecia a concepção de que ações diretas de inconstitucionalidade não seriam propriamente um meio de afirmação da cidadania, uma vez que nem o Supremo era considerado um espaço de afirmação de direitos. Ao contrário, a Suprema Corte era tida como um “Tribunal da Federação”, cujas funções se limitavam à unificação da aplicação do direito no país e a resolução de conflitos entre Poderes e entes federativos (BRANDÃO E NUNES, 2018, p. 177).

Olhar para o pré-1988 torna ainda mais claro o propósito do constituinte para o pós-1988. Com a ampliação do rol de legitimados ativos para a promoção do controle concentrado de constitucionalidade, almejava-se democratizar o acesso à jurisdição constitucional e, com isso, tornar mais diversas as demandas a ela submetidas. O STF tornar-se-ia, enfim, uma verdadeira Corte Constitucional, voltada à garantia de direitos fundamentais (BRANDÃO E NUNES, 2018, p. 174).

Nesse sentido, ao lado de agentes políticos e estatais, as confederações sindicais e entidades de classe de âmbito nacional também foram contempladas pela legitimidade ativa prevista no art. 103 da Constituição. Pretendia-se, então, abrir a porta da jurisdição constitucional a grupos organizados da sociedade civil, engajados com a proteção de direitos fundamentais e minorias. Contudo, o constituinte não contava que a porta permaneceria trancada pela cúpula do Poder Judiciário, por mais alguns anos.

II. O Supremo na contramão: a interpretação restritiva do art. 103, IX, da CF/88

Caso a caso, consolidou-se no Supremo uma interpretação restritiva do art. 103, IX, da CF/88, segundo a qual as “entidades de classe de âmbito nacional” se restringiriam àquelas entidades de cunho profissional e de relevância no setor econômico. A contrario senso, todas aquelas entidades da sociedade civil interessadas em tutelar direitos fundamentais, via controle concentrado de constitucionalidade, estariam excluídas do alcance do dispositivo.

Assim, não se enquadraram no conceito jurisprudencial de “entidade de classe”: (i) grupos formados circunstancialmente – como a associação de empregados de uma empresa –4; (ii) sociedades formadas por pessoas físicas ou jurídicas que firmem sua assinatura em lista de adesão ou qualquer outro documento idôneo5; (iii) organizações formadas por associados pertencentes a categorias diversas6; (iv) entidades associativas de outros segmentos da sociedade civil – a União Nacional dos Estudantes (UNE), por ex., em notório precedente –7; (v) pessoas jurídicas de direito privado que reúnam, como membros integrantes, associações de natureza civil e organismos de caráter sindical8; (vi) associações de associações9; (vii) e, por fim, associações civis voltadas à finalidade altruísta de promoção e defesa de aspirações cívicas de toda a cidadania10.

Há três ordens de argumentos que fundamentam essa jurisprudência restritiva tradicional do Supremo (BRANDÃO E NUNES, 2018, p. 185).

A primeira são os argumentos originalistas, para os quais a “vontade original” do constituinte determina a interpretação restrita do vocábulo “entidades de classe”. Contudo, o que se demonstrou, no Tópico I, foi o oposto. Inserida no processo de redemocratização do país, a ampliação do rol de legitimados para a propositura de ADI claramente não tinha a pretensão de fechar, e sim de abrir canais de participação social pela via jurisdicional.

A corroborar essa afirmação, Plínio de Arruda Sampaio, relator da subcomissão da Assembleia Constituinte responsável pela organização do Judiciário e do Ministério Público, assim declarou, à época: “[…] havia […] um clima que era importante dar peso à sociedade civil. No Brasil, o partido só ainda era uma coisa muito limitada. A ideia era não subordinar isso [o acesso] a interesses, deixar o mais possível aberto […]” (CARVALHO, 2010, p. 110).

A segunda ordem de argumentos destaca a necessidade de evitar a sobrecarga de processos no Tribunal, na linha do que a doutrina denomina de “jurisprudência defensiva”. Não se trata de uma preocupação trivial, afinal, o enorme volume de trabalho no Supremo leva à morosidade de julgamentos e ao eventual comprometimento da justiça no caso concreto, em ofensa ao princípio da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF/88).

Entretanto, a redução do escopo do art. 103, IX, da CF/88 não atende à finalidade de reduzir, ou ao menos evitar, o aumento exagerado do número de processos que tramitam no STF.

Só para se ter uma ideia, de acordo com o estudo Supremo em Números, entre 1988 e 2009, período em que se cristalizou a jurisprudência em exame, apenas 7,8% do total dos processos em trâmite no Supremo correspondiam às suas competências originárias, dentre as quais, o controle concentrado de constitucionalidade. Isso revela que os esforços para a contenção do exercício da jurisdição deveriam se voltar às competências recursais da Corte (FALCÃO, CERDEIRA e ARGUELHES, 2011, p. 21-22), e não o contrário.

Ademais, soa contraditório que se restrinja o acesso à jurisdição constitucional pela via abstrata de grupos sociais organizados e, concomitantemente, alarguem-se as hipóteses daqueles agentes autorizados a proporem ações abstratas.

Explica-se. Há clara tendência de relativização, pela Corte, das restrições relativas à pertinência temática, exigida dos legitimados especiais¹¹, e ao âmbito nacional das entidades de classe¹². Seria perfeitamente possível evitar a sobrecarga processual com a ampliação dos agentes legitimados – em uma interpretação conforme o texto constitucional acerca das entidades de classe – conjugada com uma delimitação mais criteriosa das demais exigências (BRANDÃO E NUNES, 2018, pp. 182-183). O entendimento, assim adotado, não geraria a conversão do controle abstrato de constitucionalidade em ação popular, temor este nutrido por certos juristas tradicionais (MEIRELLES, WALD e MENDES, 2019, p. 427)¹³.

Finalmente, a terceira ordem de argumentos evidencia uma divergência quanto ao papel reservado à jurisdição constitucional pelo regime democrático (ponto brevemente abordado no final do Tópico I).

A redação de uma nova narrativa constitucional é gradual, com avanços e retrocessos. O rompimento com o autoritarismo não é absoluto, mas sim, produto de um lento processo de transição à democracia, iniciado com a promulgação de uma nova Constituição democrática.

Sob o prisma da teoria da constituição, nesse momento, denominado de momento constitucional, há um enorme fluxo de demandas por direitos e transformação social, o que efetivamente gera a modificação da ordem então vigente. Com o transcurso do tempo, a nova ordem positivada sofre releituras, em especial, por meio da interpretação judicial. Nessa atividade hermenêutica dos Juízes, forma-se uma síntese constitucional entre presente e passado, a partir da herança histórica do momento constitucional e dos valores atuais dominantes (ACKERMAN, 2014, p. 51).

Assim, o STF, enquanto mero “Tribunal da Federação”, não deixou de o ser de forma instantânea, com a promulgação da Constituição de 1988. É gradual a construção de um Supremo que se legitima a partir da proteção de direitos fundamentais e das minorias. À medida que se torna preponderante a concepção mais democrática da jurisdição constitucional, perde espaço a restrição do acesso ao controle abstrato de constitucionalidade por movimentos sociais organizados. É o que se passa a demonstrar a seguir.

III. O Supremo na direção correta: a necessária mutação constitucional do art. 103, IX, da CF/88

Há tempos, a atuação proeminente do Supremo se legitima pelo discurso da proteção dos direitos fundamentais e das minorias. Aquela concepção pré-1988 do Tribunal como um mero juízo arbitral entre Poderes e entes políticos foi abandonada com o tempo e hoje não vigora mais.

O controle de constitucionalidade de leis e atos normativos, o controle judicial de políticas públicas e a judicialização da política evidenciam o papel contramajoritário assumido pelo STF sob a égide da CF/88. Trata-se do poder de sobrepor a interpretação constitucional de Magistrados não eleitos à de agentes políticos investidos de mandato representativo e legitimidade democrática.

Apenas se considera legítimo esse papel do Judiciário, dada a pretensa finalidade de proteção dos direitos fundamentais – que, por vezes, são inobservados pelas maiorias políticas de ocasião – e das regras do “jogo democrático” – que também podem ser obstruídas, de forma a calar minorias. Em outras palavras, o papel contramajoritário não é tido por antidemocrático, uma vez que a concepção contemporânea de democracia pressupõe o governo da maioria conjugado com a tutela de valores fundamentais (BARROSO, 2018, pp. 155-158).

Outrossim, à luz do conceito de democracia deliberativa cunhado por Robert Alexy, depreende-se que a legitimidade democrática não se esgota na formalidade do voto, havendo ainda a representação argumentativa. O Poder Judiciário, de forma distinta dos poderes majoritários, seria legitimado por meio da fundamentação de suas decisões (ALEXY, 2015, pp. 53-54). É o que o Min. Luís Roberto Barroso, em trabalhos acadêmicos, denomina de legitimação discursiva (BARROSO, 2015, p. 25).

Esse fluxo de ideias, todavia, é criticado por Daniel Sarmento. Para o autor, seria reservada ao cidadão uma posição passiva, que se reduz a aceitar os argumentos formulados pelo Judiciário simplesmente por serem racionais e corretos. Seria então preciso elevar o cidadão à condição de agente coparticipante do processo decisório-deliberativo, de modo a condicionar a legitimidade democrática da jurisdição constitucional à possibilidade de efetiva participação cidadã (SARMENTO, 2018, pp. 81-85).

A partir desses referenciais teóricos, podemos extrair duas conclusões concernentes à interpretação do art. 103, IX, da CF/88.

A primeira é a de que existe uma incoerência entre o discurso que legitima a atuação contramajoritária do STF e o efetivo exercício da jurisdição constitucional. A interpretação restritiva tradicionalmente conferida pela Corte ao dispositivo silencia demandas oriundas de grupos sociais organizados, criando obstáculos à tutela jurisdicional de direitos fundamentais e de minorias. Sem essa proteção efetiva, fragiliza-se o argumento a favor da legitimidade democrática do Judiciário, em superação à dificuldade contramajoritária.

A segunda é a de que a leitura hermética aos movimentos sociais do controle abstrato de constitucionalidade compromete a legitimação discursiva dos votos dos Ministros. Parcela da população não se verá devidamente representada pela argumentação da Corte – por mais racional e correta –, dada a sua autolimitação ao exame de demandas coorporativas e econômicas. Isso porque, na linha defendida por Daniel Sarmento, há uma relação direta entre a pretensão de representatividade do Judiciário e a sua permeabilidade às demandas e grupos sociais.

Aqui, inclusive, vale a pena trazer as lições do célebre jurista alemão, Peter Häberle, para quem quanto mais pluralista for a sociedade, mais abertos devem ser os critérios de interpretação judicial, o que implica a possibilidade de participação democrática no processo constitucional. Do mesmo modo que a teoria da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição fundamenta o recurso a audiências públicas e amicus curie, instrumentos limitados de pluralização do debate, pode o fazer em relação ao reconhecimento de movimentos sociais organizados como partes do processo de controle abstrato de constitucionalidade.

Essa participação democrática permite a legitimação democrática da jurisdição constitucional, que se opera por meio da promoção de diálogos institucionais, sociais e interculturais14. Nesse sentido, argumenta o autor, Felipe de Melo Fonte:

As instituições políticas mais elevadas de um país são mais que instâncias burocráticas. Elas têm o dever fundamental de colaborativamente no projeto de construção de uma genuína sociedade democrática, como registrado acima. Elas o fazem não apenas pelo exercício de suas atribuições constitucionais regulares, certamente um aspecto primário e relevantíssimo, mas também por meio do discurso que produzem no espaço público. Por este motivo é tão importante o modo como as instituições públicas e a sociedade dialogam (2018, p. 406).

E não só isso: promove também o próprio desenvolvimento da democracia brasileira, com a abertura de mais um canal para a defesa de direitos fundamentais. O controle abstrato de constitucionalidade incentiva a organização dos grupos sociais. Para atender à legitimidade ativa, precisam ser minimamente organizados e voltados à defesa de direitos fundamentais. É o que se chama de “função pedagógica” da Corte Constitucional.

Além disso, o controle concentrado de constitucionalidade passa a ser visto como um “litígio estratégico”, isto é, uma ferramenta para a formação de precedentes, a transformação da jurisprudência dos tribunais, e a promoção de mudanças em leis e políticas públicas.

Conclusão

Como abordado na Introdução deste artigo, mais recentemente, foram proferidas decisões monocráticas no âmbito do Supremo que indicavam uma tendência de mutação constitucional quanto ao art. 103, IX da Constituição. Em 2020, o referendo pelo Plenário da medida cautelar ADPF nº 907-DF foi bastante comemorado pela doutrina mais contemporânea, que há tempos já defendia a superação da interpretação tradicional restritiva do STF. Afinal, o julgamento significou a mutação constitucional sobre a matéria.

Em síntese, o presente artigo procurou demonstrar como que a restrição do acesso ao controle abstrato de constitucionalidade a entidades de classe de cunho profissional ou econômico, defendida pela jurisprudência tradicional do STF – hoje, aparentemente superada –, compromete a sua legitimidade democrática e enfraquece a democracia brasileira, além de ir de encontro à vontade do constituinte de 1988 e de não gerar significativa redução do número de processos em trâmite no Tribunal.


¹Para uma leitura interessante sobre o caso concreto: SARMENTO, Daniel. A jurisdição constitucional e o empoderamento dos excluídos: análise da mudança jurisprudencial na ADPF 709 e os novos desafios. Jota. Clínica UERJ Direitos. 15-8-2020. Disponível em: . Acesso em: 2-2-2021.
²Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
³Para Luís Roberto Barroso, a judicialização da política e o ativismo judicial não se confundem. O primeiro seria a transferência de poder das instâncias políticas tradicionais para as instituições judiciais, em decorrência do desenho institucional brasileiro. O segundo, por sua vez, seria a adoção de uma postura mais proativa de atuação por parte de juízes e tribunais (2013, p. 241).
⁴ADI-MC 34-DF, Rel. Min. Octávio Gallotti, RTJ 128/481.
⁵ADI 52-GO, Rel. Min. Célio Borja, DJU 29.9.1990.
⁶ADI 57-DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU 13.12.1991, p. 18.353; ADI 108-DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 5.6.1992, p. 8.426.
⁷ADI 894-DF, Rel. Min. Néri da Silveira, DJU 20.4.1995, p. 9.945.
⁸ADI 79-DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 10.8.1989, RDA 188/144 (146), 1992; ADI 505-DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJU 2.8.1991, p. 9.916; ADI 530-DF, Rel. Moreira Alves, DJU 22.11.1991, p. 16.842.
⁹ADI 79-DF, Re. Min. Celso de Mello, DJU 10.9.1989, RDA 188/144 (146), 1992; e ADI 914-DF, Rel. Min. Sidney Sanches, DJU 11.3.1994.
¹⁰ADI 61-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 28.9.1990, p. 10.222.
¹¹São eles: Governador de Estado ou do Distrito Federal, a Mesa de Assembleia Legislativa, as confederações sindicais e as entidades de classe em âmbito nacional.
¹²A título ilustrativo: “Esse critério cederá nos casos em que haja comprovação de que a categoria dos associados só existe em menos de nove Estados” (ADI 386-ES, Rel. Min. Sysney Sanches, DJU 28.6.1991).
¹³“A ideia de um interesse comum essencial de diferentes categorias fornece base para distinção entre a organização de classe, nos termos do art. 103, IX, da CF, e outras associações ou organizações sociais. Dessa forma, deixou assente o STF que o constituinte decidiu por uma legitimação limitada, não permitindo que se convertesse o direito de propositura dessas organizações de classe em autêntica ação popular.”
¹⁴Apropriamo-nos do termo empregado pelo Min. Luís Roberto Barroso, na ADPF-MC 709-DF, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, DJU 12.8.2020.

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