DIAGNÓSTICO ECOCARDIOGRÁFICO DE ESTENOSE AÓRTICA SUBVALVAR SUBCLÍNICA EM CANINO JUVENIL – RELATO DE CASO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202408261735


Rayssa Emiliavaca de Moraes¹; Mônica Marschin Cazarotto²; Emanuel Tres Bernicker³; Estela Dall’Agnol Gianezini⁴.


Resumo

A estenose subaórtica (ESA) é uma cardiopatia congênita caracterizada pela incapacidade da válvula aórtica em permitir a passagem do sangue adiante, que desenvolve-se durante o período embrionário e permanece pós-natal. O distúrbio afeta principalmente caninos e causa falha no funcionamento da circulação sistêmica. A gravidade das consequências hemodinâmicas depende da extensão do defeito e da magnitude do fluxo através dele. Este relato descreve os achados ecocardiográficos em  um canino, fêmea, sem raça definida (SRD), com 8 meses de idade, apresentando como única alteração clínica presença de sopro em foco aórtico de grau II/VI. Ao ecocardiograma foi diagnosticado ESA grau leve (gradiente <50mmHg). Na avaliação Doppler, observou-se fluxo turbulento, alta velocidade aórtica e gradiente de pressão acima do normal em via de saída do ventrículo esquerdo, além da presença de insuficiência valvar aórtica e comprometimento diastólico moderado.  Desse modo, a ecocardiografia modo M e Doppler foi o exame de imagem complementar fundamental para o diagnóstico dessa cardiopatia congênita, uma vez que animais jovens são em grande maioria assintomáticos e vêm a óbito antes mesmo de um diagnóstico. Ademais, a ecodopplercardiografia permitiu identificar o defeito, definir seu tamanho e extensão, bem como as possíveis consequências hemodinâmicas que a ESA pode apresentar.

Palavras-chave: Cardiopatia; Congênita;Aorta; Canino; Ecocardiografia.

Introdução

As cardiopatias congênitas são alterações morfofuncionais que ocorrem no coração ou nos grandes vasos oriundas de falhas no desenvolvimento embriológico destas estruturas e que permanecem mesmo após o nascimento (JERICÓ; NETO; KOGIKA, 2015; WARE, 2007). Dentro da cardiologia veterinária, inúmeros são os distúrbios congênitos que afetam a capacidade do coração em funcionar adequadamente, o que implica significativamente na morbidade e mortalidade de animais acometidos já em seus primeiros anos de vida (ARGENTA et al., 2018). Entre as cardiopatias congênitas comumente diagnosticadas em cães, destaca-se a estenose aórtica subvalvar (ESA), caracterizada pelo desenvolvimento de um anel fibroso abaixo da válvula aórtica que resulta na obstrução no fluxo de saída do ventrículo esquerdo, podendo assim, acarretar no desenvolvimento de alterações fisiopatológicas secundárias, como a hipertrofia ventricular concêntrica e fibrose miocárdica (LARSSON, 2020).

Em um estudo realizado por Lucina et al. (2020) com 95 cães avaliados, a estenose subaórtica valvar se fez presente em 24,7% dos casos quando comparada com outras doenças cardíacas congênitas. Dentre as raças com maior predisposição para ESA incluem Newfoundland, Golden Retriever, Boxer, Rottweiler e Pastores Alemães (ONTIVEROS et al., 2019). No entanto, a genética da doença não foi totalmente elucidada devido aos diferentes padrões de herança identificados, o que dificulta determinar o real impacto da hereditariedade nas cardiopatias congênitas em cães (EASON et al., 2021). Os sinais clínicos podem estar ausentes devido à forma leve da doença, sendo a intolerância ao exercício uma das principais queixas. Normalmente o achado de exame físico mais frequente é o sopro sistólico, na base inferior esquerda irradiando para o arco aórtico até a base direita. A alteração de pulso femoral fraco torna-se mais evidente em casos mais graves (LARSSON, 2020; WARE, 2007).

Sabe-se que a ESA é uma doença clinicamente desafiadora em se obter diagnóstico devido a existência de diferentes manifestações clínicas, incluindo casos assintomáticos que podem resultar em morte neonatal, como também a ocorrência de defeitos cardíacos congênitos concomitantes que afetam o planejamento e resultado do tratamento. Desse modo, enfatiza-se a importância da detecção precoce das cardiopatias congênitas com o intuito de retratar o desfecho negativo (OLIVEIRA et al., 2011). 

A ecocardiografia transtorácica é a principal ferramenta diagnóstica para distúrbios congênitos cardíacos, além da combinação de exames complementares como radiografia torácica e eletrocardiograma. Nesse contexto, a ecocardiografia modo Doppler possui a finalidade de classificar a gravidade da ESA. O objetivo desses estudos é avaliar sistematicamente a anatomia cardíaca, fluxo sanguíneo, estimar gradientes de pressão e criar planos de tratamento individualizados (CROFTON; KOVACS; STERN, 2023; PETRUS et al., 2010).

O tratamento para ESA em caninos depende da gravidade da doença manifestada em cada animal, onde os achados ecocardiográficos podem orientar na escolha terapêutica ideal, contribuindo assim para um melhor prognóstico do paciente (LARSSON, 2020). Considerando as informações fornecidas, o objetivo do presente relato foi descrever a contribuição da ecocardiografia no diagnóstico de ESA subclínico em um canino com 8 meses de idade.

Casuística-Relato de Caso

Cão, fêmea, sem raça definida (SRD), com 8 meses de idade e pesando 12 kg, foi levada para atendimento veterinário com o objetivo de realizar cirurgia de ovariohisterectomia eletiva. Na anamnese, o tutor afirmou que o animal sempre esteve saudável e ativo. Durante o exame físico o canino mostrou-se ativo, bem hidratado, escore de condição corporal normal (3/5), com mucosas normocoradas, frequência respiratória de 35 movimentos por minuto, frequência cardíaca de 120 batimentos por minuto, temperatura corporal de 37,6°C, tempo de perfusão capilar de 2 segundos e ritmo cardíaco regular com presença sopro sistólico leve (grau II/VI). Referiu boa qualidade de sono durante a noite, negando tosse, cianose e síncope. Diante da alteração clínica evidenciada o animal foi encaminhado para consulta cardiológica e realização de exame ecocardiográfico.

Em avaliação com o médico veterinário cardiologista, foi confirmado sopro sistólico de grau II em foco aórtico, o que levou a suspeita de obstrução na via de saída do VE ou do VD. A ecocardiografia foi realizada nos modos M, Doppler espectral (pulsado, contínuo e colorido) e Doppler tecidual com sistema Ultramedic® Infinit 7V e transdutor setorial com frequência de 5 a 7 MHz. Após tricotomia da parede torácica cranial bilateralmente, o paciente foi contido em decúbito lateral direito e posteriormente lado esquerdo, aplicado uma espessa camada de gel entre a pele e o transdutor para melhorar a transmissão do som e, consequentemente, a qualidade da imagem.

O exame ecocardiográfico revelou um ventrículo esquerdo (VE) hiperdinâmico, com aumento na fração de ejeção em 93% (IR: 70 a 80%) e  fração de encurtamento em 64% (IR: 30 a 50%). O valor médio de átrio esquerdo/aorta (AE/Ao) manteve-se dentro dos parâmetros de referência de 1,2 (>1,6). A avaliação Doppler evidenciou fluxo turbulento na região da via de saída do ventrículo esquerdo (VSVE), com velocidade acima do normal de 2,56m/s (1,5 – 2m/s) e gradiente de pressão de 26,2 mmHg (Figura 1). Também foi identificada regurgitação no fluxo aórtico, com velocidade máxima de 0,86m/s e gradiente de pressão de 3,0 mmHg (Figura 2), indicando insuficiência da válvula aórtica. Com o Doppler tecidual, usado para avaliar o enchimento do VE, foi  identificado relaxamento pseudonormal (E/A >1 e <2; e’/a’<1) na parede livre do VE, demonstrando comprometimento diastólico moderado.

Figura 1- Imagem ecocardiográfica em janela paresternal direita, corte longitudinal cinco câmaras, de um cão, fêmea, SRD, 8 meses de idade.

A seta sinalizando a avaliação no modo Doppler colorido, demonstrando turbilhonamento sanguíneo na via de saída do ventrículo esquerdo. Fonte: Mônica Maraschin Cazarotto, 2023.

Figura 2- Imagem ecocardiográfica em janela paresternal esquerda, corte apical de cinco câmaras, de um cão, fêmea, SRD, 8 meses de idade.

Indicado na seta alta velocidade e gradiente de pressão em via de saída do ventrículo esquerdo, com gradiente de pressão em 26,2mmHg caracterizando grau leve de estenose subaórtica. Fonte: Mônica Maraschin Cazarotto, 2023.

Em conjunto, os achados ecocardiográficos apoiaram o diagnóstico de estenose aórtica subvalvar de grau leve (gradiente <50mmHg). Devido às alterações anatômicas cardíacas serem leves e o animal apresentar-se de forma assintomática a ESA, sugeriu-se ao tutor que mantenha o controle ecocardiográfico a cada 6 meses e esteja atento a qualquer alteração físico-comportamental do canino. Além disso, considerando discreto comprometimento hemodinâmico da função cardíaca decorrente da ESA, a paciente foi encaminhada para a realização do procedimento de ovariohisterectomia eletiva.

Discussão e Conclusões

Mishra et al. (2021), observou em seus estudos que a ocorrência de ESA em cães sem raça definida é incomum e os dados relatados na literatura veterinária são prevalentes de raças puras, principalmente Newfoundlands, Boxers e Golden Retrievers. A respeito da faixa etária, a incidência de ESA nesses animais é relativa e depende das consequências hemodinâmicas adquiridas pela cardiopatia. Caninos com ESA grave apresentam sinais clínicos da doença muito jovens, com 06 a 08 semanas de idade. No entanto, a doença comumente inicia de forma assintomática e manifesta-se em diferentes graus nos primeiros 12 a 15 meses de vida (BUSSADORI et al., 2000). Sabe-se que a incidência da ESA e seus diversos fenótipos, varia ao longo dos anos e de acordo com a eficácia dos programas de melhoramento genético. Dessa forma, assim como nesse relato, a ESA também tem sido descrita em estudos genéticos recentes em cães sem raça definida (LARSSON, 2020; OLIVEIRA et al., 2011). 

Segundo Crofton; Kovacs; Stern (2023), a sintomatologia do distúrbio pode suceder de forma assintomática por toda a vida do animal ou evoluir a um débito cardíaco gravemente comprometido, resultando em intolerância ao exercício, cianose, síncope e morte súbita. Embora o paciente em questão ainda se encontre assintomático, observou-se no exame físico a presença de sopro sistólico localizado na região aórtica de grau II/VI.  Em todos os casos de estenose aórtica, o sopro sistólico é sempre audível e sua intensidade “crescendo-decrescendo” está correlacionada com a gravidade da obstrução (JERICÓ; NETO; KOGIKA, 2015). Ademais, grande maioria dos sinais clínicos relatados pelos proprietários são escassos, onde a tolerância reduzida ao exercício não é identificada devido a vivacidade destes cães jovens. Outros sinais clínicos são evidentes apenas nos animais que desenvolvem insuficiência cardíaca (MISHRA et al., 2021).

No que se refere às características do presente relato, o diagnóstico da ESA só foi estabelecido devido a realização do exame ecocardiográfico. A principal característica de uma avaliação ecocardiográfica de cães com ESA é uma avaliação da VSVE e da região estenótica abaixo da válvula aórtica por meio de imagens bidimensionais (2D), modo M e Doppler (VIANNA et al., 2016). Com base na avaliação bidimensional, é possível reconhecer anormalidades patoanatômicas da VSVE e classificar a estenose subaórtica em três tipos, definidos pelos estudos de necropsia e cateter de Pyle e Patterson. Neste caso, a ecografia permitiu classificar o relato como ESA tipo I, devido a ausência ou espessamento do endocárdio muito discreto (MADRON; CHETBOUL; BUSSADORI, 2015).

Técnicas de imagem Doppler de fluxo colorido, onda pulsada e onda contínua foram empregadas para avaliar a gravidade da estenose, presença e magnitude da regurgitação aórtica, função miocárdica e descartar outros defeitos congênitos (BUSSADORI et al., 2000). As alterações indicadas no ecodopplercardiograma revelaram um fluxo turbulento em VSVE, com pico de velocidade e gradiente aumentado, resumindo um fluxo de saída da aorta maior que 40 a 50 mmHg segundo valores de referência para velocidades de VSVE/fluxo aórtico derivadas de Doppler. A gravidade de um caso é definida pela velocidade aórtica medida e pelo gradiente de pressão calculado. À medida que a estenose progride, a velocidade do fluxo sanguíneo aumenta (CASTRO et al., 2009; MADRON; CHETBOUL; BUSSADORI, 2015). 

Com a colocação do transdutor apical esquerdo, ecodopplercardiograma também revelou presença de regurgitação sistólica, causando insuficiência da válvula aórtica. E por fim, com o modo Doppler tecidual foi possível identificar relaxamento pseudonormal na parede do VE, demonstrando comprometimento diastólico moderado. Segundo Petrus et al. (2010), tal fato ocorre quando há certa presença de hipertrofia ventricular esquerda e que acaba prejudicando o relaxamento do fluxo transmitral. De modo que esses animais que apresentam perfil supernormal fisiológico, são substituídos por um perfil normal ou pseudonormal. À medida que a disfunção sistólica progride, o ventrículo esquerdo dilata-se, sua complacência diminui e a pressão diastólica final pode aumentar, observando-se perfis pseudonormais ou restritivos. 

Em suma, o conjunto de alterações do exame ecocardiográfico do presente relato, revelam o diagnóstico de estenose aórtica subvalvar de grau leve (gradiente <50mmHg). Portanto, devido as informações sobre ESA fornecidas pelo exame de imagem suprasitado é fundamental realizar acompanhamento periódico cardiológico com a intenção de monitorar o quadro e planejar um tratamento terapêutico que evite possíveis agravamentos.

Conclusão

A ecocardiografia Doppler é uma ferramenta complementar essencial para o diagnóstico de diversas condições cardíacas. Entre as cardiopatias congênitas mais comuns, a estenose aórtica subvalvar destaca-se pela sua alta prevalência, muitas vezes sendo identificada tardiamente em cães adultos-idosos de médio a grande porte, quando a doença cardíaca já está avançada. Portanto, é crucial que os médicos veterinários realizem uma avaliação física minuciosa de seus pacientes, encaminhando-os para exames complementares sempre que detectarem qualquer alteração, mesmo em animais jovens. Quando a doença é identificada precocemente, é possível realizar acompanhamentos ecocardiográficos periódicos, monitorando a progressão da patologia e intervindo com tratamento clínico quando necessário, proporcionando aos pacientes uma vida mais saudável e prolongada.

Referências

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VIANNA, U. R. et al. Tópicos especiais em Ciência Animal V. In: SILVA, M. A. et al. TÓPICOS ESPECIAIS EM CIÊNCIA ANIMAL -TECA. 1. ed. Porto Alegre: CAUFES, 2016. Vol. 5, 512 p.

WARE, W. A. Cardiovascular Disease in Small Animal Medicine. 1. ed. Londres: Manson Publishing, 2007. 240 p.


¹Universidade de Passo Fundo (UPF), rayssaemoraes@gmail.com e currículo Lattes (http://lattes.cnpq.br/6889108842594457);
²Universidade de Passo Fundo (UPF), cazarottomonica@gmail.com e currículo Lattes (http://lattes.cnpq.br/0333443759764802);
³Universidade de Passo Fundo (UPF), emanuelbernicker@gmail.com e currículo Lattes (http://lattes.cnpq.br/7841717378425387);
⁴Universidade Federal do Paraná – Setor Palotina (UFPR), EGianezini@gmail.com e currículo Lattes (http://lattes.cnpq.br/7975386757528559).