A NATUREZA JURÍDICA DAS ALEGAÇÕES FINAIS NO PROCESSO PENAL

THE LEGAL NATURE OF FINAL ALLEGATIONS IN THE CRIMINAL PROCEDURE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202408240824


Lucas Andreucci da Veiga1


Resumo

As alegações finais, na forma de memoriais orais ou escritos, representam o encerramento da atividade das partes no processo penal, antecedendo a prolação da sentença. Constituem a condensação das questões de fato e de direito sobre as quais se possibilitou o exercício do contraditório. Especificamente quanto à derradeira manifestação do Ministério Público, muito se discute qual seria a sua natureza: se opinativa, na literal dicção do artigo 385 do Código de Processo Penal, ou vinculativa, estabelecendo o limite negativo da prestação jurisdicional. A resposta a essa indagação perpassa a compreensão dos sistemas processuais penais, reconhecendo as características inerentes ao brasileiro, bem como conceitos como direito de ação e pretensão acusatória. Adotando-se o método hipotético-dedutivo, realizou-se revisão bibliográfica sobre a matéria, confrontando as considerações da dogmática com outras disposições legais para, em uma interpretação que mantenha a coerência do sistema processual penal, compreender as alegações finais como ato obrigatório, constitutivo da síntese da pretensão acusatória, delimitando o alcance da atividade jurisdicional.

Palavras-chave: Alegações finais. Ministério Público. Art. 385 CPP. Opinativo. Vinculativo.

Abstract

The final allegations, in the form of oral or written memorials, represent the end of the activity of the parties in the criminal process, preceding the delivery of the sentence. They constitute the condensation of the questions of fact and law on which the exercise of adversarial proceedings was made possible. Specifically regarding the last statement from the Public Prosecutor’s Office, there is much debate about its nature: whether it be opinionated, in the literal diction of article 385 of the Code of Criminal Procedure, or binding, establishing the negative limit of judicial provision. The answer to this question goes beyond the understanding of the criminal procedural systems, recognizing the characteristics inherent to the Brazilian system, as well as concepts such as right of action and accusatory claim.. Adopting the hypothetical-deductive method, a bibliographic review was carried out on the subject, comparing the considerations of dogma with other legal provisions in order to understand the closing arguments as an obligatory act, constituting the summary of the accusatory claim, delimiting the scope of the jurisdictional activity, in an interpretation that maintains the coherence of the criminal procedural system.

Keywords: Final allegations. Public Prosecutor’s Office. Art. 385 CPP. Opinionated. Binding.

1 INTRODUÇÃO

O Código de Processo Penal brasileiro é de 1941. No curso das décadas seguintes não foram poucas as tentativas de substituí-lo, das quais a mais relevante foi o anteprojeto Frederico Marques, não levada adiante pelo regime militar. Sobreveio a Constituição Federal de 1988 e os auspícios democráticos estimularam a edição de novas leis e a reforma de inúmeras outras, buscando adequar o ordenamento jurídico à nova diretriz inscrita na Carta Magna.

Mesmo com esse contexto aparentemente favorável, não se conseguiu aprovar um novo diploma processual penal. Diante do insucesso das tentativas, atribuível a significativas disputas ideológicas, optou-se por realizar reformas de maneira parcelada, das quais resultaram onze anteprojetos elaborados pela comissão presidida pela professora Ada Pellegrini Grinover (HAMILTON, 2004).

O esforço obteve êxito parcial. Parte dos novos projetos, centrados no respeito aos direitos e garantias do acusado, foram incorporados à legislação criminal adjetiva a partir dos trabalhos da Comissão de Reforma, sobretudo, no interstício entre os anos de 2005 e 2008. Mais recentemente, em 2019, sobreveio mais uma significativa mudança, consubstanciada no denominado Pacote Anticrime. Entre inúmeras novidades, inseriu-se o artigo 3º-A ao Código de Processo Penal, prevendo expressamente a adoção de um processo de estrutura acusatória.

Outras iniciativas ficaram pelo caminho, pelo esvaziamento de seu conteúdo ou pela ausência de vontade política para sua implementação. Mesmo aquelas definitivamente incorporadas ao Código de Processo Penal foram sujeitadas a sensíveis mutações em relação ao seu conteúdo original: pelo Poder Legislativo, durante a atividade legiferante; pelo Poder Executivo, na aposição de vetos a projetos de lei; ou ainda pelo Poder Judiciário, notadamente quando da realização de controle de constitucionalidade dos textos pelo Supremo Tribunal Federal.

O cenário atual, após as reformas pontuais visando à adequação de um codex octogenário às inspirações democráticas do Estado brasileiro e da sociedade contemporânea, converteu-se em “uma colcha de retalhos, um verdadeiro Frankenstein jurídico, uma codificação eivada de dicotomias e conflitos internos.” (LOPES JÚNIOR & ROSA, 2016). A anomalia é explicável, pois a redação original de 1941 foi forjada sob uma matiz inquisitória, inspirada nas ideias de Alfredo Rocco, que absorveu muito da ideologia fascista. Daí por que o Código de Processo Penal brasileiro, em uma leitura contemporânea, consideradas as inúmeras mudanças, apresenta severas inconsistências. Mas há meios de se valer da hermenêutica e interpretação para, ao menos em parte, solvê-las. É nesse contexto que se firma o enfoque deste artigo: a natureza jurídica das alegações finais.

O artigo 403 do Código de Processo Penal foi um dos dispositivos submetidos à reforma em 2008. Diz com a apresentação de memoriais (orais ou escritos) pela acusação e defesa. Mas, no contexto do Decreto-Lei 3.689/41, não se harmonizou plenamente com as prescrições de antanho, em específico o artigo 385 do mesmo diploma, que remanesceu inalterado. A seletiva substituição de trechos da desgastada redação original fez com que o codex processual penal encerrasse muitos dispositivos contraditórios entre si, o que torna mais difícil a conciliação da vigente norma com proposições sobreviventes de tempos idos.

Assim, o velho artigo 385 e o (nem tão) novo texto do artigo 403 do Código de Processo Penal, imbuídos de comandos normativos, precisam hoje ser interpretados conforme a diretriz do novíssimo artigo 3º-A, em consonância com as características de um sistema processual penal explicitamente acusatório, não mais inquisitório. Os vocábulos e prescrições do pretérito, isoladamente, pouco significam. Há de se recontextualizá-los no sistema. Afinal, “as normas não são como mônadas isoladas, porquanto integram um conjunto normativo, cumprindo examiná-las nas relações existentes entre elas e o próprio conjunto a que pertencem, pois é desta análise que se poderá defluir o seu significado.” (REALE JÚNIOR, 2012). 

Partindo de conceitos extraídos da teoria dos sistemas e explicitando o papel do Ministério Público na dinâmica do processo penal acusatório, firmando conceitos ínsitos ao direito de ação e considerando que judicium est actus trium personarum: judicis, actoris et rei (a existência de um processo depende de três pessoas: o juiz, o autor e o réu), no qual cada parte deve ocupar seu “lugar constitucionalmente demarcado” (COUTINHO, 2009), investiga-se a natureza jurídica dos memoriais do Ministério Público em uma matriz acusatória, extraindo-se sua função no cotejo com os princípios da congruência e da inércia da jurisdição, concluindo-se que a sentença não pode se desvincular das lindes tracejadas na pretensão acusatória, inclusive no que concerne ao seu derradeiro capítulo: as alegações finais.

Adotando-se o método hipotético-dedutivo, realizou-se revisão bibliográfica sobre a matéria, confrontando as considerações da dogmática com outras disposições para, em uma interpretação que mantenha a coerência do sistema processual penal, explicitar as consequências jurídicas de eventual pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público.

2 ESTRUTURA DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL ACUSATÓRIO BRASILEIRO

O conceito de sistema pode ter diferentes nuances. Em comum, há a compreensão de unidade, mais precisamente de um grupamento de unidades a comporem um conjunto. Mas isso não basta. CARVALHO (2013) concebe sistema através de seus elementos, constituindo “um conjunto de objetos que se relacionam entre si e não apenas que apresentam características comuns. São classes, mas com estruturação interna, onde os elementos se encontram vinculados uns aos outros mediante relações de coordenação e subordinação.” E esse ambiente em que se desenvolverão determinadas relações entre as unidades/objetos que dentro dele se encontram é justamente o sistema. Em se tratando de um código de processo, deve persistir um liame que una as proposições iniciais às finais, mantendo-se a coerência em todo o desenvolver das etapas procedimentais.

Um sistema jurídico comporta diversos subsistemas, dentre eles o processual penal. Como visto, tradicionalmente, quando se fala em sistema processual penal, há duas alternativas: modelo inquisitório e modelo acusatório, aos quais se poderia acrescer uma terceira via, tradicionalmente alcunhada de mista. 

No Brasil, diuturnamente se voltava à discussão se, afinal, chegara-se à adoção de um sistema acusatório, conquanto não naquela acepção “pura”. Retroceda-se um pouco.

É ponto pacífico na doutrina que o Código de Processo Penal, na sua feitura nos idos de 1941, foi forjado com ares inquisitórios. Nas décadas subsequentes, pela sucessão de constituições e reformas, alguns autores passaram a defender que o processo penal brasileiro possuiria, na verdade, feição mista (MARQUES, 1980).  Somente com o advento da Constituição Federal de 1988 se teriam definido balizas para implementação de um sistema acusatório, quando efetivamente se deu a “processualização do processo penal, estruturado como ato de três pessoas, a consubstanciar, portanto, o princípio da relação processual.” (MARQUES, 1993). 

O processo penal deveria refletir a diretriz a Magna Carta, que “traz em si os fundamentos institucionais, políticos e ideológicos da legislação ordinária, notadamente quando se situa, com normatividade rígida, no ponto hierarquicamente predominante de todas as fontes formais do Direito” (MARQUES, 1993). Mas, não se atingindo consenso político para a aprovação de um novo diploma (vale lembrar que nos anos seguintes à aprovação da Constituição Federal de 1988 foi profícua a atividade legislativa), fez-se opção diversa. Vieram as reformas pontuais, implicando na necessidade de coexistência das alterações possíveis com prescrições vetustas, o que gerou novos problemas.

Não superada essa reminiscência legislativa, que antecede (e muito) a Constituição Federal de 1988, o remendado Código de Processo Penal de 1941, para afigurar coerente e consentâneo com um processo democrático, deve ser reinterpretado sob os auspícios da vigente Lei Maior, recepcionando-se ou não, no todo ou em parte, os artigos de antanho. E mesmo os dispositivos sobreviventes ao filtro de controle constitucional não necessariamente manterão a orientação de outrora, pela necessidade se harmonizarem com o novo sistema processual que se erige a partir do comando constitucional.

Nesse sentido, cada sistema processual penal, a despeito de se o caracterizar como inquisitório, acusatório ou misto, possuirá particulares caracteres. Em comum, defluem da orientação advinda de uma Carta Constitucional. Esta irradiará a interpretação da legislação ordinária, verificando se os comandos das normas procedimentais (ainda) guardam consonância com os preceitos da Lei Maior e orientando alterações legislativas.

Os princípios constitucionais conferem a diretriz primeira. Um princípio, aliás, é “regra matriz de um sistema, da qual brotam as demais normas, e serve para dar uniformidade ao conjunto” (FERNANDES, 2002). A Constituição Federal de 1988 contempla a constelação principiológica que dirige a interpretação de todo o ordenamento jurídico brasileiro, inclusive do processo penal. Este possui alguns princípios característicos, autônomos e não necessariamente comuns a outras áreas do direito (BARRETO, 2014). Assim, a interpretação sistemática do Código de Processo Penal de 1941 tem sua referência na Constituição Federal de 1988, constituindo “uma exigência não só metodológica e jurídica, mas também político-institucional” (PRADO, 2006), sendo “imprescindível que o processo penal passe por uma constitucionalização, sofra uma profunda filtragem constitucional, estabelecendo-se um (inafastável) sistema de garantias mínimas” (LOPES JÚNIOR, 2014).

Como explicitado alhures, a despeito da perpetuação do octogenário Código de Processo Penal, antes mesmo do advento do Pacote Anticrime, parte relevante da doutrina defendia que o Brasil, pelo projeto político-ideológico apresentado pela Constituição Federal de 1988, passará a se orientar por um processo penal acusatório. E quando se afirma a existência de uma ideologia, se o faz a partir do conceito de FERRAZ JÚNIOR (1986), para quem o vocábulo exprime a “valoração dos valores” do sistema, identificados, hierarquizados e “neutralizados” para que assumam função de calibragem, comunicando ao intérprete a diretriz para se compreender os textos legais.

Embora a Constituição Federal de 1988 não tenha naquela explicitado a opção, traz em seu corpo, por exemplo, a rígida separação entre as atribuições do Ministério Público e os atos reservados ao Juiz, sobretudo no âmbito do processo penal (ARAS, 2013), o que é característica intrínseca ao sistema acusatório. Embora implícita a orientação, é igualmente impositiva.

Mais recentemente, a Lei 13.964/2019 incluiu o artigo 3º-A ao Código de Processo Penal, cuja constitucionalidade foi reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal. Estatui o dispositivo: “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.” Vê-se, da leitura do texto legal, enfoque do sistema acusatório enquanto aquele no qual se atribui a iniciativa probatória às partes, diretriz esta já vislumbrada, aliás, na redação ao artigo 212 do Código de Processo Penal, conferida pela Lei 11.690/08 (CARDOZO, 2016). Inobstante, não são a separação das figuras e funções de acusador e julgador, bem como a iniciativa probatória das partes, as únicas características de um sistema acusatório. Diriam alguns até que a última não é fundamental, conquanto importante. (ANDRADE, 2013).

Para se caracterizar um sistema como acusatório, exige-se, sobretudo, a presença do princípio acusatório. São termos que não se deve confundir. Enquanto o sistema constitui “o conjunto de elementos articulados a partir de um princípio unificador, capaz de organizar, limitar e orientar a aplicação dos elementos que o compõem” (ROSA, 2021), o princípio assume a função orientadora daquele (PRADO, 2006), seu elemento unificador. E, como tal, a despeito das peculiaridades de cada sistema acusatório, encontram-se dois elementos fixos: a separação entre a figura do acusador frente à do julgador, bem como o veto à formulação da pretensão acusatória pelo juiz, sendo a atividade de oferecimento de denúncia reservada ao Ministério Público nas ações penais públicas, ou ao ofendido, pela queixa na ação penal privada (ANDRADE, 2013).

3 DIREITO DE AÇÃO E PRETENSÃO ACUSATÓRIA

O processo penal tem diversas finalidades. Essencialmente, é o instrumento (daí se se dizer possuir natureza instrumental) para aplicação da sanção penal, reafirmando o brocardo nulla poena sine iudicio (não há pena sem processo), mas sem perder sua inspiração constitucional como mecanismo de efetivação dos direitos e garantias do imputado (LOPES JUNIOR, 2023).

Para se iniciar o processo é necessário que o incumbente, seja o Ministério Público ou o particular (este nas ações de iniciativa privada), exerça o direito (poder-dever) de ação (TUCCI, 2003), pelo qual provoca a jurisdição a sair da condição de inércia e decidir, ao final da instrução, pelo cabimento ou não do pedido de aplicação da sanção veiculado na pretensão acusatória, pois pertence ao Estado, corporificado na figura do julgador, o monopólio do poder de punir. Assim, no exercício do direito de ação, a parte autora deduz a pretensão acusatória na forma de denúncia ou queixa, formulando as razões de fato e de direito que justificariam o pedido de imposição de uma pena ao arguido. Trata-se de “uma pretensão processual que possui, como parte de seu fundamento, os elementos que compunham a pretensão material” (BADARÓ, 2013), esta que COUTINHO (1989) chama de “caso penal”.

A questão é importante, uma vez que o fato naturalístico, potencialmente punível por corresponder a possível transgressão a um interdito penal tipificado, “não é o objeto do processo, mas um elemento integrante da pretensão. […] Não basta a existência de um fato delituoso, é imprescindível o exercício de uma pretensão acusatória por meio da declaração petitória.” (LOPES JÚNIOR, 2023). A ocorrência do fato no mundo fenomênico não conduz à automática instauração de um processo, só possível com o exercício do direito de ação.

A pretensão acusatória veiculada pelo exercício do direito de ação receberá ou não o aval da opção, mediante análise da justificativa em si contida. Acolhida esta, estará instaurado o processo. Nesse sentido, “o que se torna indispensável à existência do processo é a pretensão do autor manifestada em juízo, exteriorizada pelo pedido e delimitada pela causa de pedir ou imputação.” (JARDIM, 2020).

Mas não se esgota ali o direito de ação. “Na verdade, se onde existe ação, há também processo e jurisdição, a primeira deve ser compreendida, em realidade, como uma espécie de conjunto, ou feixe que reúne todas e cada uma das faculdades processuais do autor: propor a demanda, peticionar, produzir prova e recorrer, entre outras.” (DUCLERC, 2016).

O processo, instrumento da jurisdição para poder aplicar o direito, se desenvolve na dialética promovida pelas partes, conforme provocação delas. Daí o conceito de NICOLITT (2023), do qual se comunga, para quem jurisdição “é a função através da qual o Estado-Juiz dá resposta às pretensões que lhe são apresentadas, dizendo o direito e dando significado concreto e aplicação aos valores constitucionais.” Note-se que não pode o julgador decidir sem que haja uma pretensão estranha, pois abandonaria sua condução de inércia, característica da jurisdição. Tal postura não se limita a vedar ao juiz avocar a iniciativa de instauração do processo, mas também no que se refere à substituição da atividade das partes, probatória e postulatória.

Caberá ao julgador, sim, a mais importante tarefa: decidir o “caso penal”, possuindo como limite negativo a pretensão acusatória, pois se “os direitos do acusado se colocam como limite à função jurisdicional, de outro lado é o próprio processo penal que se constitui em instrumento de tutela da liberdade jurídica do réu.” (GRINOVER, 1982). Assim, nessa moldura, proclamará o desfecho do processo: absolvição ou condenação. Daí se afirmar que “a ação penal expressa o exercício de um direito subjetivo, configura-se num direito abstrato de agir, pois se trata de um direito ao meio e não ao fim, caso contrário, a ação não existiria se o acusado fosse absolvido” (SILVA, 2009). Aborda-se aqui, em específico, a ação penal pública.

4 O MINISTÉRIO PÚBLICO NA AÇÃO PENAL

A institucionalização do Ministério Público tem seu marco na Constituição de 1934, na condição de “órgão de cooperação nas entidades governamentais” (SILVA, 2007). Perdeu prestígio na Constituição de 1937 (MAZZILLI, 2018), justamente sob os auspícios da qual foi promulgado o Código de Processo Penal de 1941. Importante notar que a instituição, entre idas e vindas na sucessão de Cartas brasileiras durante o Século XX, esteve ora em capítulo autônomo (1934, 1946 e 1988), ora tratado junto ao Poder Judiciário (1937 e 1967), ora ligado ao Poder Executivo (Emenda Constitucional de 1969). Fato é que, a partir da atual Constituição Federal, o Ministério Público assumiu “um perfil inteiramente novo, sem paralelo no direito comparado” (MAZZILLI, 2018). Isto, no entanto, não significa concebê-lo enquanto “um quarto poder do Estado, porque suas atribuições, mesmo ampliadas aos níveis acima apontados, são ontologicamente de natureza executiva, sendo, pois, uma instituição vinculada ao Poder Executivo” (SILVA, 2007).

Este recorte é importante até mesmo para se situar, historicamente, a redação do artigo 385 do Código de Processo Penal, a qual indica que, no final do processo, o Ministério Público “opina”, enquanto se deveria inscrever que “pretende” ou “postula”. É fato que a prescrição foi concebida em um momento sociopolítico no qual o órgão acusador não era tratado na lei de forma independente, mas no capítulo reservado ao Poder Judiciário. Daí não se estranhar, nessa perspectiva histórica, vigendo um Estado autoritário, permissão ao juiz para que condenasse o réu mesmo em face de pedido do Ministério Público pela absolvição. O Código, ao qualificar a manifestação derradeira enquanto opinião, esvazia o direito de ação, atribuindo ao mesmo sujeito (juiz), no mesmo ato (sentença) a titularidade de dois poderes estatais: de definir os limites da pretensão acusatória (transferida a si após a oferta da denúncia) e exercer o direito de punir. 

O Ministério Público, hoje, não tem subordinação a qualquer Poder. Embora vinculado ao Executivo, “não se destina a servir a Administração, nem o governo nem os governantes, e sim a promover com autonomia e independência a correta aplicação da lei, o que significa até mesmo poder contrariar, se for o caso, os interesses da Administração ou dos governantes” (MAZZILLI, 2018). Tal não ocorria em 1941, no curso do Estado Novo, quando da promulgação do Código de Processo Penal.

Eis o motivo pelo qual não se pode promover uma interpretação meramente retrospectiva do dispositivo, ao revés: há de se fazê-lo em consonância com a atual Constituição, em uma visão prospectiva a partir das diretrizes que esta impôs (CASARA, 2003). Hoje, frente à autonomia do Ministério Público o, é seguro afirmar que a instituição e seus membros, além de formal e materialmente apartados das pressões externas e mesmo internas (seus princípios informadores servem a tal proteção), no espectro do processo penal, “tem interesse na condenação do culpado e não do imputado e, se o entende inocente, pode até ter – ou tem – interesse em sua absolvição que, em verdade, não sacrificaria o seu interesse (do Estado acusador, portanto), mas aparece acasalado com ele” (COUTINHO, 1989).

Considerado tal cenário, o Ministério Público tem o poder-dever de oferecer sua pretensão acusatória quando munido de elementos indiciários e convencido da possibilidade de que um fato constitua crime, bem como que seja determinada pessoa suspeita de seu cometimento. Exerce a partir daí o direito de ação, em toda extensão. E aquele a quem atribuído o direito de ação não está vinculado, por consectário lógico, a continuar creditando a hipótese formulada na pretensão acusatória como verdadeira se acaso convencido, pelos elementos hauridos sob o contraditório no curso da instrução, não haver prova segura para postular um juízo de reprovação penal.

Postular no presente a absolvição de alguém contra quem, no passado, a mesma instituição exerceu o direito de ação não é uma contradição, afinal “o Ministério Público não segue o mesmo comportamento de um acusador popular ou particular, pois sua atuação está orientada para a observância da lei, mesmo quando essa observância implique ir contra os termos da própria acusação.” (ANDRADE, 2013).

O Ministério Público, tocante à “possibilidade de ‘dispor’, que caracteriza o sistema processual acusatório, não pode ser resumida tão-somente à iniciativa de instauração do processo (impulso oficial) e o consequente estabelecimento dos limites da atividade jurisdicional, como sói acontecer” (SALO, 2002). O exercício do direito de ação se estende por toda a atividade postulatória orientada pela pretensão acusatória. Assim não fosse e não se poderia admitir a mutatio libelli após a instrução. A permissão ao promotor de justiça para que adite a denúncia original para incluir novos fatos desvelados na instrução e assim redefinir os contornos do “caso penal” a reclamar prestação jurisdicional demonstra que a atividade postulatória, necessária à condução da pretensão acusatória não se encerra com o oferecimento da petição inicial do processo criminal.

5 A NATUREZA DAS ALEGAÇÕES FINAIS

Os prolegômenos foram fundamentais à fixação de diversos conceitos. Permitem, agora, enfrentar o ponto central da pesquisa: a natureza das alegações finais.

Ficou claro que, na vigência de um sistema acusatório, o Ministério Público está institucionalmente legitimado e legalmente obrigado ao exercício do direito de ação penal pública mediante quando verificada no “caso penal” uma pretensão acusatória. Pretensão acusatória esta que se corporifica na denúncia, “uma declaração petitória de que existe o direito potestativo de acusar e que procede a aplicação do poder punitivo estatal.” (LOPES JÚNIOR, 2023). Indicadora pois, dos fatos sobre os quais recairá a atividade probatória das partes.

Também é evidente que o Estado se investe tanto do direito de ação (pelo Ministério Público ou pelo particular, este na condição de substituto), veiculado a partir do oferecimento da pretensão acusatória, como de julgar (pelo Poder Judiciário), materializado na sentença. O primeiro é conditio sine qua non do segundo: nulla poena sine iudicio.

Justamente no ponto de convergência entre a atividade das partes na instrução probatória e a superveniência da decisão judicial que colocará fim ao processo (na instância) é que exsurgem as alegações finais. Diferentemente do que se concebia no passado (MARQUES, 1961), são atos essenciais do processo, integrando a instrução criminal (HAMILTON, 2005), inclusive sujeitando a punição promotor de justiça que não as apresente, nos termos do artigo 801 do Código de Processo Penal. Uma sentença penal que não seja antecedida pela oferta de alegações finais é nula.

A sentença, enquanto ato jurisdicional típico, se erige entre duas pretensões, a acusatória e sua antítese. Assim, quando o Ministério Público deixa de sustentar a pretensão acusatória nas alegações finais (o que não é o mesmo que desistir da ação, algo que lhe é vedado), a jurisdição encontra ali um óbice, uma vez que “não pode o juiz proferir sentença [ou qualquer decisão] ultra ou extra petita (além ou fora do pedido), devendo haver correlação entre sentença e pedido (princípio da congruência).” (NICOLITT, 2023).

6 CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS

A denúncia contém o “caso penal” que, deduzido na forma de uma petição postulatória, contém a pretensão acusatória pela qual o Ministério Público justifica o exercício do direito de ação, uma vez amparado em elementos indiciários. Nesse sentido, indica que pretende demonstrar em contraditório a ocorrência de determinado fato e sua autoria, requerendo ao juiz a consequente imposição de pena. A denúncia delimita, pois, as lindes da atividade probatória, restando adstrito o juiz, no exercício da jurisdição durante a instrução, ao controle de legalidade dos atos praticados pelas partes. 

Já as alegações finais, epílogo da atividade postulatória, encerram o amadurecimento da pretensão acusatória, conferindo-lhe os contornos finais. Não se trata mais de uma hipótese a ser demonstrada, ou da formulação de uma opinião jurídica a outrem endereçada; antes, a conclusão sobre o resultado probatório atingido pela submissão do “caso penal” ao contraditório (ainda que diferido em relação às provas pré-constituídas). Da mesma forma que a pretensão acusatória contida na denúncia definia os confins do exercício do direito de ação, a pretensão acusatória contida nas alegações finais define os confins do direito de punir, delimitando a atividade jurisdicional.

Pode-se concluir que as alegações finais do Ministério Público constituem ato postulatório essencial, pelo qual se veicula a pretensão acusatória amparada na prova produzida sob contraditório judicial, (de)limitadora pois dos confins do direito de punir do Estado e, como consequência, da atividade jurisdicional.

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1Doutorando em Processo Penal na PUC-SP, Mestre em Direito Penal pela USP.
Email: lucasandreuccidaveiga@gmail.com