O MANEJO DA PSICOLOGIA EM SITUAÇÕES DE AUTOMUTILAÇÃO NAS ESCOLAS

MANAGING PSYCHOLOGY IN SELF-MUTILATION SITUATIONS IN SCHOOLS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202408231902


Karollaynne Karlla Freires da Silva1


RESUMO

O presente trabalho propõe uma reflexão acerca do papel da psicologia em situações de automutilação nas escolas. Trata-se de uma revisão bibliográfica pesquisada nas bases de dados LILACS, Periódicos CAPES e SCIELO. Por meio da análise dos artigos, é possível inferir que ainda é incipiente a produção acadêmica sobre esta temática e que além de realizar ações com aos alunos é preciso também voltar o olhar para os profissionais da educação. Portanto, foi constatado a necessidade de ir além das abordagens clínicas, enfatizando a capacitação de profissionais da escola e o envolvimento das famílias. Também se ressalta a importância de criar espaços para que os professores expressem suas dificuldades e recebam apoio, visando garantir um ambiente educacional mais equilibrado e saudável para todos os envolvidos.

Palavras-chave: Psicologia. Automutilação. Escola

1 INTRODUÇÃO

Segundo um estudo descritivo realizado no ano de 2019, que possuía como base as notificações de violências autoprovocadas registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), o perfil epidemiológico das lesões autoprovocadas no Brasil constata que, no referido ano, foram registradas 124.709 lesões autoprovocadas no país, um aumento de 39,8% em relação a 2018. Em relação a ocorrência por faixa etária, entre 15 a 19 anos aparece na segunda posição, com 23,3% dos casos e menores de 14 surgem na quarta posição, com 9,8% dos casos. Quanto ao local da ocorrência, a maior parte dos casos ocorreu na própria residência das vítimas (82%), estando a escola em segundo lugar (1,3%). Os dados ainda revelam que 60,2% dos meios de agressão registrados nas notificações de lesões autoprovocadas corresponderam ao envenenamento, seguidos pelos objetos perfurocortantes (16,8%) (BRASIL, 2021).

A automutilação é o ato intencional de machucar o próprio corpo através de queimaduras, cortes, autoespancamentos, ingestão de substâncias corrosivas; tal práticas podem ser entendidas como um “corta dor”, sendo comumente utilizada como uma tentativa de diminuir o sofrimento psíquico (ALMEIDA et al., 2021). Para além da repercussão na saúde e no desenvolvimento dos indivíduos, este fenômeno é considerado um problema de saúde pública, uma vez que afeta diretamente a rede de relações socioafetivas, em especial, a família. Ademais, gera um impacto nos serviços que sofrem com a falta de recursos para lidar com o problema e a sobrecarga implicadas nesta demanda (GABRIEL, 2020).

Como foi citado anteriormente essa prática se faz presente no público infantojuvenil e a escola é uma instituição que ocupa um papel importante na formação e constituição desses indivíduos. Diante disso, é necessário entender qual a atribuição do psicólogo nesse contexto, buscando compreender como esse profissional pode manejar tais situações que envolvem não apenas o aluno, mas também a instituição, os educadores e os pais.

Em abril de 2019 foi instituída a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio – Lei Nº 13.819, a qual estipula que os estabelecimentos de saúde e de ensino façam a notificação compulsória dos casos suspeitos ou confirmados de violência autoprovocada, entendida como: o suicídio consumado; a tentativa de suicídio; e o ato de automutilação, com ou sem ideação suicida (BRASIL, 2019a). No mesmo ano foi aprovada a Lei Nº 13.935, que dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas da educação básica (BRASIL, 2019b). Perante isso, é preciso questionar quais ações estão sendo feitas de forma contínua para que assim seja possível visualizar mudanças/resultados.

Um dos desafios significativos enfrentados por pesquisadores e profissionais da área da saúde reside na demanda por desenvolver instrumentos que possam facilitar a avaliação de indivíduos e no diagnóstico de comportamentos de risco. Isso é crucial para o desenvolvimento de intervenções eficazes que possam ser aplicadas de forma precisa e direcionada (PEIXOTO et al., 2019). Por isso, a pesquisa que buscam intervenções pode auxiliar na prevenção deste e de outros fenômenos.

O presente trabalho consiste em uma revisão bibliográfica da literatura. Nessa abordagem, fontes de informações eletrônicas são exploradas com o objetivo de obter resultados de pesquisas realizadas por outros autores. Para atingir esse objetivo, foi conduzido um levantamento bibliográfico em bases de dados específicas, como a Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), o Portal de Periódicos Capes e Scientific Electronic Library Online (SCIELO). Por meio dos critérios de exclusão e inclusão, foram refinados e selecionados um total de quatorze artigos.

A estrutura do trabalho está dividida em Introdução; Metodologia; Resultados e Discussões; havendo três capítulos; Conclusão e Referências. O primeiro capítulo disserta sobre a inserção da psicologia no campo escolar, o segundo capítulo aborda a importância de montar espaços de escuta nas escolas e o terceiro capítulo traz o papel da psicologia neste local sobre o tema da automutilação.

2 METODOLOGIA                           

O presente trabalho trata-se de uma revisão bibliográfica da literatura, sendo este um método de pesquisa no qual se utiliza fontes de informações eletrônicas para obter resultados de pesquisas de outros(as) autores(as) com a finalidade de fundamentar teoricamente uma determinada temática – no caso deste estudo, o manejo do psicólogo nas escolas sobre a temática da automutilação. À vista disso, a revisão bibliográfica é uma parte muito importante de toda e qualquer pesquisa, pois é a fundamentação teórica, o estado da arte do assunto que está sendo pesquisado (GARCIA, 2016).

Para alcançar o objetivo foi realizado um levantamento bibliográfico nas seguintes bases de dados: LILACS (Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde), Portal de Periódicos Capes e Scielo (Scientific Electronic Library Online) utilizando os seguintes descritores: (1) psicologia, automutilação e escola; (2) psicologia, autolesão e escola.

Como critérios de inclusão utilizou-se: (1) Apenas as pesquisas publicadas nos últimos cinco anos; (2) Estarem escritas em língua portuguesa; (3) Texto completo disponível; e (4) Formato de artigo. Como critérios de exclusão adotou-se: (1) Publicações duplicadas; b) Pesquisas que apresentaram fuga do tema; e (3) Publicações escritas em outros idiomas. Durante a pesquisa foram encontrados 24 artigos, destes 5 artigos foram excluídos por serem repetidos; em seguida foram excluídos 4 artigos por apresentarem fuga do tema. A partir dos critérios de inclusão e exclusão citados foram refinados um total de quatorze artigos, publicados entre os anos de 2019 e 2024. Os artigos e suas principais informações estão exibidos na tabela a seguir:

Tabela 1

ArtigoBaseTipo de estudoParticipantes
Avaliação da relação entre eventos traumáticos infantis e comportamentos autolesivos em adolescentesArtigo em Português; Periódicos LILACS; 2023QuantitativoEstudantes do ensino médio
Psicologia escolar e automutilação na adolescência: relato de uma intervençãoArtigo em Português; Periódicos LILACS, CAPES, SCIELO; 2021QualitativoEstudantes do ensino fundamental II
Automutilações na adolescência e suas narrativas em contexto escolarArtigo em Português; Periódicos LILACS; 2022QualitativoEstudo de caso
A Autolesão Não Suicida em idade escolar: uma agressão que conforta?Artigo em Português; Periódicos LILACS, CAPES; 2023Qualitativo e ExploratórioEstudantes de uma escola municipal de ensino fundamental
Orientação a Pais por Chamadas de Áudio Durante a Pandemia de Covid-19Artigo em Português; Periódicos LILACS; 2023QualitativoAnálise de uma experiência de planejamento e implementação de um projeto de extensão universitária
A formação continuada de professores sobre as práticas de automutilaçãoArtigo em Português; Periódicos CAPES; 2021QualitativoReflexão crítica e discursiva sobre a formação continuada de professores
    A acessibilidade atitudinal de pessoas que pra- ticam automutilação na escolaArtigo em Por- tuguês; Periódi- cos CAPES; 2021QualitativoRevisão sistemática e dialógica de literatura
Autolesão não suicida entre adolescentes: significados para profissionais da educação e da Atenção Básica à SaúdeArtigo em Português; Periódicos LILACS; 2020 QualitativoProfissionais de uma escola e USF
Psicodiagnóstico interventivo e o Teste de Apercepção Temática Infantil com Figuras Humanas: contribuições à clínica da adolescênciaArtigos em Espanhol e inglês; Periódicos CA- PES; 2022 Qualitativo Estudo de caso
A promoção da acessibilidade atitudinal junto a pessoas que praticam automutilação na escola contribuições da psicologia sóciohistórica de VigotskiArtigo em Português; Periódicos CAPES; 2020

QualitativoRevisão sistemática e dialógica de literatura
Automutilação de adolescentes: um estudo de caso em escola pública de FortalezaArtigo em Português; Periódicos CAPES; 2019Exploratório, analítico, descritivo e transversalGrupo focal com professores
Mapeamento de ações preventivas e interventivas à automutilação com adolescentes em escolas públicas do Distrito FederalArtigo em Português; Periódicos CAPES; 2022

QualitativoProfissionais atuantes no contexto escolar
Questionário de Impulsividade, Autoagressão e Ideação Suicida para Adolescentes (QIAIS-A): propriedades psicométricasArtigo em Português; Periódicos CAPES; 2019QualitativoAdolescentes
Autolesão não Suicida na Adolescência e a Atuação do Psicólogo Escolar: Uma Revisão Narrativa.Artigo em Português; Periódicos CAPES; 2019QualitativoRevisão narrativa

Fonte: Elaborada pela autora

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Durante a pesquisa, percebeu-se uma escassez de trabalhos científicos sobre a temática e por isso foi utilizada a nomenclatura autolesão para tentar abranger mais estudos. A linguagem que se vincula a comportamentos autolesivos vem sendo modificada desde a década de 1990. O termo mais usado, inicialmente, foi “automutilação” (self-mutilation); entretanto o que mais se popularizou foi “autolesão” (self-injury) ou “autolesão sem intenção suicida” (nonsuicidal selfinjury). No Brasil, “automutilação” segue sendo o mais empregado. Essa diversidade de nomenclaturas acaba complicando o entendimento do objeto de pesquisa, além de dificultar a produção de estudos epidemiológicos consistentes no que diz respeito ao desenvolvimento de políticas públicas direcionadas para a prevenção (ARAGÃO NETO, 2019).

Perante isso, é preciso afirmar e reiterar a necessidade de que sejam fomentados mais estudos e pesquisas acerca desta questão a fim de suscitar importantes elementos para a compreensão e reflexão deste fenômeno, descortinando novos horizontes. Para abordar esta temática nota-se a necessidade de incialmente contextualizar a psicologia escolar e logo após analisar as narrativas trazidas pelos artigos.

3.1 A INSERÇÃO DA PSICOLOGIA NO CONTEXTO ESCOLAR

Na primeira metade do século XX a psicologia escolar no Brasil era voltada para o atendimento dos problemas de desenvolvimento e aprendizagem, se caracterizando por um caráter clínico cujo objetivo era atender as “crianças-problemas”. Nos anos de 1970 houve a promulgação da lei 5.692/71, que possibilitou a ampliação do sistema educacional e realizou a ampliação da escolaridade gratuita e obrigatória, acarretando significativas modificações no cenário escolar. Essas mudanças fizeram com que houvesse a necessidade de entender as queixas escolares, e a psicologia auxiliaria com a explicação do fracasso escolar, tentando localizar a problemática no indivíduo. Vale ressaltar que a grande maioria das teorias usadas para auxiliar nas demandas escolares individualizava e naturalizava as explicações dos problemas escolares, desprezando ou limitando o papel da realidade social e das práticas pedagógicas, prescrevendo ações “punitivas”, “corretivas” ou marginalizadoras (MARINHO- ARAUJO, 2014).

No final da década de 1970 havia uma grande insatisfação dos psicólogos escolares com a forma de atuação que estava estabelecida, o que ocasionou uma crise durante as duas décadas seguintes. Esse momento resultou uma produção de pesquisas que apresentavam as problemáticas provocadas por princípios remediativos aplicados no contexto educativo. Esses avanços nas discussões proporcionou a criação, no início da década de 1990, da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), que foi muito importante para a delimitação e fortalecimento da área da psicologia escolar.

É importante mencionar que segundo a ABRAPEE, a diferenciação entre a psicologia escolar e a psicologia educacional está no fato da atuação do psicólogo escolar encontrar-se mais direcionada para a intervenção na prática, ao passo que a do psicólogo educacional se volta, comumente, para as áreas de ensino e pesquisa. Vale ressaltar que esta diferenciação não é considerada consenso entre os estudiosos da área.

Segundo Antunes (2007), a psicologia educacional pode ser entendida como uma subárea da psicologia, que apresenta como objetivo a elaboração de conhecimentos referentes ao fenômeno psicológico constituinte do processo educativo. Já a psicologia escolar está voltada para o campo profissional, fundamentando sua atuação nos saberes produzido pela psicologia da educação e por outros âmbitos da psicologia. É possível deduzir que a psicologia educacional e a psicologia escolar estão intrinsecamente correlacionadas.

Atualmente, baseado em uma compreensão do cenário escolar, o psicólogo pode efetuar intervenções em áreas coletivas existentes na escola, como por exemplo, nos conselhos de classe, nas reuniões bimestrais de pais e mestres, e nas coordenações de professores, além de elaborar outros espaços de discussão, como grupos de professores nos quais seja viável realizar uma reflexão sobre as práticas pedagógicas, fazer estudos de caso e tentar perceber as questões intersubjetivas que atravessam o trabalho da instituição (BARBOSA; MARINHO-ARAÚJO, 2010).

Desse modo, a psicologia escolar passa a considerar para além do atendimento individualizado a importância de entender o funcionamento da instituição e de que maneira a complexa rede de interações existente colabora ou não para a ocorrência de queixas escolares. Partindo de uma correlação entre a psicologia e o compromisso social, Martinez (2009) declara que os psicólogos são profissionais que por meio de sua conduta, seja no fazer ciência, seja na aplicação dela nos vários âmbitos em que atuam, possuem um compromisso com a mudança da realidade social.

Levando em conta a complexidade social e psicológica no processo de constituição dos sujeitos, torna-se essencial conhecer as configurações atuais existentes na sociedade que influenciam os seus comportamentos, modos de ser e de pensar; e isto pode auxiliar na compreensão dos aspectos envolvidos em alguns fenômenos, como por exemplo o da automutilação (SANT’ANA, 2019). Além disso, cabe enfatizar que a escola é um cenário importante na vida das crianças e adolescentes e nela, por vezes, esses comportamentos autolesivos podem ser identificados. Isto posto, passemos a discorrer aspectos relativos às intervenções junto as escolas em face desse problema a partir de dois eixos, a saber: (1) O espaço de escuta na escola: conexões e reflexões; (2) Cortando o silêncio: estratégias de intervenção do psicólogo escolar na automutilação.

3.2 O ESPAÇO DE ESCUTA NA ESCOLA: CONEXÕES E REFLEXÕES

Segundo o dicionário online Dicio a escola é um “estabelecimento que se destina ao ensino, público ou particular”. Fujino (2019) afirma que a escola ocupa um papel de extrema importância em nossa sociedade, fazendo com que as crianças comecem a frequentar instituições escolares cada vez mais cedo. O processo educacional é influenciado por diversos fatores, incluindo a estrutura da escola, os aspectos constitucionais e as relações familiares de cada estudante. A autora traz a reflexão do fato das crianças e adolescentes permanecerem muito tempo confinados em salas de aula, havendo ainda um modelo escolar vigente ultrapassado, que não parece acompanhar as transformações do mundo moderno e mantém sua solidez como uma instituição de controle e disciplina. É preciso considerar que a escola é um ambiente em que circula o conhecimento científico, mas também é atravessada historicamente e culturalmente, construindo o ser criança e o ser adolescente.

Na sua pesquisa realizada com 17 crianças com idade entre 5 e 14 anos acerca dos seus sentimentos sobre o contexto escolar foi observado que elas gostam de frequentar a escola, dado que para elas além de ser um lugar para aprender é um local para brincar e socializar com os colegas. No entanto, há o sentimento de desmotivação, por perceber a escola como um ambiente controlador, pautado pelas disciplinas escolares e um discurso enraizado de que existe apenas um caminho para um futuro promissor (FUJINO, 2019).

Percebe-se que a escola é o local em que as crianças e os adolescentes permanecem por longos períodos, sendo primordial no processo de socialização e na formação das relações sociais. Por outro lado, essas instituições são apontadas como um espaço em que se reverbera um discurso de competição, exclusão, normatização, fato que posiciona o aluno em um lugar de desconforto e enfrentamento de condições com as quais não dispõe de estrutura psíquica para lidar (ALVES; ALBUQUERQUE, 2023; BASTOS, 2019).

A autolesão não suicida (ALNS) é um comportamento sem intenção consciente de suicídio, mas que pode provocar ferimentos graves. Essa ação é utilizada como um mecanismo de enfrentamento de emoções, com o intuito de diminuir a tensão ou e/ou aliviar o sofrimento (GABRIEL et al., 2020). Os estudos reforçam a fragilidade do conhecimento técnico dos profissionais quanto ao manejo da ALNS, principalmente, por ser uma questão que ultrapassa o viés físico, trazendo a necessidade de direcionar o olhar para os elementos subjetivos do cuidado.

Quando ocorre o fenômeno da automutilação em instituições escolares os professores ficam inertes diante de uma realidade com a qual não estão preparados para lidar (BASTOS, 2019). No estudo realizado por Silva Almeida et al. (2021a), é argumentado acerca da importância de através da formação continuada de professores, abordar a historicidade da automutilação e os aspectos sociais e culturais envolvidos no desenvolvimento humano, auxiliando, assim, na criação de estratégias para o conhecimento, o enfrentamento e a promoção da saúde mental nas escolas.

Em vigor há quase cinco anos, a legislação que obriga a contratação de profissionais de psicologia e de serviço Social nas redes públicas de educação básica ainda encontra obstáculos para sua implementação. Conforme dados do Conselho Federal de Psicologia (CFP), no ano de 2023, dentre os 5.568 municípios brasileiros apenas 85 estão cumprindo a lei, existindo no Brasil cerca de um(uma) psicólogo(a) para cada 4 mil estudantes. Na pesquisa feita por Alves e Albuquerque (2023) a ausência de psicólogo na escola foi apontada como uma das maiores dificuldades enfrentadas; as pedagogas foram unânimes em assegurar que caso houvesse a presença desse profissional na instituição não se sentiriam tão sobrecarregadas, bem como seria possível delimitar melhor as demandas de atendimentos dos alunos, de modo que contemplariam os problemas de natureza pedagógica, deixando os de cunho emocional para o psicólogo, uma vez que este profissional está habilitado para manejá- las adequadamente.

Diante disto, é preciso indagar sobre quais atores compõem a vida cotidiana dos estudantes. A inexistência de espaços seguros de acolhimento e escuta para que esses sujeitos sejam capazes de serem compreendidos, juntamente com toda a complexidade e mudanças que os permeiam, desponta como um fator de risco para a ALNS (LORENZETTI; GUZZO, 2021).

Ante o exposto, constata-se a necessidade de haver espaços de fala, em que os alunos possam verbalizar suas queixas e construir maneiras de lidar com o sofrimento. Para isso, é imprescindível que os profissionais estejam preparados não para camuflar esse sofrimento, mas para identificar, avaliar os riscos e promover ações integradas entre escola, família e saúde. Silva Almeida et al. (2021b) declara que é viável, a partir de uma abordagem preventiva, realizar rodas de conversa englobando alunos que praticam ou não a automutilação, propondo reflexões sobre as temáticas cotidianas que geralmente não são discutidas durante as aulas, porém estão presentes na escola, como é o caso da automutilação. Os autores acreditam que por meio do diálogo, da escuta e do compartilhamento de significados e sentidos que surgirão graças aos diferentes componentes do grupo, proporcionará, dentre outras coisas, o desenvolvimento de reflexões e o compartilhamento de experiências podem auxiliar tanto os indivíduos que se automutilam quanto toda a comunidade escolar a criar estratégias de enfrentamento perante esse fenômeno.

3.3 CORTANDO O SILÊNCIO: ESTRATÉGIAS DE INTERVENÇÃO DO PSICÓLOGO ESCOLAR NA AUTOMUTILAÇÃO

Segundo Bastos (2019), a automutilação é geralmente fomentada por problemas ou situações estressantes e que podem ser contínuos, como conflitos familiares, rejeições e dificuldades escolares como o bullying, carecendo ser analisada sob a ótica de um fenômeno psicossocial que tem a capacidade de acontecer em qualquer faixa etária, embora seja mais frequente no período da adolescência. A pesquisadora reforça que a dependência da internet, o bullying e o cyberbullying contribuem para um maior risco de automutilação, como também de depressão e suicídio. O estresse, a ansiedade e a depressão são fatores de risco para comportamentos autodestrutivos. A maioria dos indivíduos que chegam ao hospital com tais comportamentos apresentam outras comorbidades, sendo mais comum haver alguma perturbação de humor e de afeto, com uma incidência maior do transtorno depressivo (NUNES, 2012 apud PEIXOTO et al., 2019).

Diante dessas informações constata-se que o psicólogo escolar carece ser multifacetado para construir à sua maneira formas e técnicas de trabalho que abarquem as demandas atuais. Conforme Gabriel et al. (2020), os profissionais da educação desejam ajudar seus discentes, todavia se deparam com limitações por ser algo que está fora da sua “governabilidade”, enfatizando ainda mais a importância de uma formação específica para o acolhimento dessas situações. É fundamental que o profissional da psicologia esclareça e conscientize a equipe da escola sobre a autolesão, em especial, no que se refere ao entendimento sobre os sinais físicos e emocionais indicativos de que os alunos possam estar efetuando comportamentos autolesivos. Salienta-se que:

Os sinais físicos podem abranger cicatrizes ou cortes, manchas de sangue nas vestimentas, roupas inadequadas para o clima do local, posse de objetos cortantes ou pontiagudos, dentre outros. Os sinais emocionais frequentemente envolvem dificuldade ou incapacidade de lidar com emoções, medo exacerbado, raiva, ansiedade, depressão ou isolamento social, ou mesmo registros escritos sobre temas como tristeza, sofrimento ou danos físicos (Sant’Ana, 2019, p.130).

A realização de oficinas em grupo pode possibilitar que os estudantes falem a respeito das suas angústias, se reconheça no outro e construam modos de lidar com a sua dor que não seja ocasionando uma dor física em si mesmo. Ainda é possível instituir algumas estratégias como a escrita de diário, a formação de espaços de conversas via whatsapp, criação de desenhos e pinturas em tela, e práticas de atividades que movimentem o corpo (SANTOS; PULINO; RIBEIRO, 2021).

Uma questão apontada por Dettmer e Oliveira Costa (2017) é a precarização das condições de trabalho no cenário escolar, a qual influencia na prática do professor, dado que são exigidas novas atribuições e habilidades, contudo sem haver uma capacitação ou formação para atender tal demanda. O papel do professor, que originalmente deveria ser o facilitador do processo de aprendizado, frequentemente se torna sobrecarregado com diversas outras responsabilidades, resultando na precarização de sua prática educacional. A relação entre professor e aluno muitas vezes se enfraquece devido às crescentes demandas e novas competências exigidas dos educadores. Os autores levantam a possibilidade da automutilação também nos professores, uma vez que as condições de trabalho na nossa sociedade são adoecedoras e podem acarretar diversos problemas de saúde, seja mentalmente e/ou fisicamente. É indispensável criar espaços de fala também para esse público e não apenas exigir-lhes algo.

Alvarenga et al. (2023) disserta em seu estudo a respeito da experiência de planejamento e implementação de um projeto de extensão universitária que ofertou orientação a pais com filhos de 0 a 11 anos por intermédio de chamadas de áudio durante a pandemia de Covid-19. A equipe que forjou o projeto e exerceu os atendimentos foi constituída por cinco psicólogos. Todo o material e as estratégias de divulgação do projeto elucidavam o fato de que o serviço não oferecia terapia ou acompanhamento psicológico, mas sim orientações específicas para que os pais conseguissem lidar da melhor maneira com os problemas que aparecessem na rotina com os filhos durante o período de distanciamento social. Diante desta estratégia é plausível pensar novas formas de estender o papel do psicólogo dentro do âmbito escolar, designando a família como corresponsável do cuidado.

Silva Almeida (2021b) destaca que refletir sobre as práticas da automutilação na escola envolve também em pensar na inclusão escolar e na proposição de políticas públicas educacionais. Os autores defendem que a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio – Lei Nº 13.819 (BRASIL, 2019a) é insuficiente para assegurar a acessibilidade e a inclusão das pessoas que se automutilam, visto que não propicia a conscientização da comunidade escolar nem da sociedade em geral. Promover a acessibilidade e a inclusão é ir além dos espaços físicos, sendo necessário acrescentar os aspectos sociais e atitudinais, pois atitudes de exclusão e discriminação também representam barreiras. As atitudes da sociedade tanto podem cooperar para a inclusão dos indivíduos como para a sua exclusão. À frente disso, não se deve contemplar o aluno somente em suas limitações, sejam elas constituídas de alguma deficiência ou outras dificuldades, mas viabilizar o seu desenvolvimento integral (SILVA ALMEIDA; SANTOS; CARDOSO, 2020).

Portanto, nota-se a necessidade de discutir continuamente o lugar da psicologia nas instituições escolares, quebrando paradigmas já estabelecidos e constituindo novas formas de atuação. Nessa perspectiva, cabe ao psicólogo desenvolver uma escuta ativa e promover reflexões em torno da temática da automutilação, pautando-se em uma estreita relação com toda a comunidade escolar- escola, estudante e família.

4 CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados do boletim epidemiológico de 2019, revelam um aumento significativo no número de casos de automutilação. Destaca-se que tal fenômeno é um problema de saúde pública, com impacto não apenas na saúde dos indivíduos, mas também em suas relações e na capacidade das instituições de lidar com essa demanda.

A presença deste comportamento no público infantojuvenil e a importância da escola como uma instituição chave na vida desses sujeitos traz o questionamento de qual o papel do psicólogo escolar nesta conjuntura. Foi constatado que é essencial ir além de abordagens puramente clínicas, e passar a considerar a relevância de capacitar os profissionais da escola e de incluir as famílias neste processo.

Por fim, foi enfatizada a importância de criar espaços para que os professores também possam expressar suas dificuldades e necessidades, em vez de apenas serem sobrecarregados com mais exigências. Isso implica não apenas em reconhecer os desafios que os educadores enfrentam, mas também em fornecer apoio, recursos e formação adequados para que possam desempenhar seu papel de forma mais eficaz e saudável. Além disso, a saúde mental e física dos professores deve ser uma preocupação constante, a fim de garantir um ambiente de trabalho mais equilibrado e produtivo para todos os envolvidos na educação.

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1Psicóloga, Residente do Programa Multiprofissional em Saúde da Criança pela Escola de Saúde Pública da Paraíba, e-mail: karoll.karlla@hotmail.com