A LIBERDADE DE CÁTEDRA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

THE ACADEMIC FREEDOM IN THE JURISPRUDENCE OF THE SUPREME COURT

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202408142048


Lucas Andreucci da Veiga1


RESUMO

A temática liberdade de cátedra não é nova. É há muito discutida em conjunto com temas mais amplos como o direito à informação, a autonomia das universidades e mesmo a livre expressão do pensamento, gênero do qual é espécie. E muitos foram os embates, passando pela censura imposta pela ditadura civil-militar iniciada em 1964 e circundando iniciativas legislativas de agentes políticos de matiz conservadora na tentativa de promover temas permeados de vieses ideológicos, como a “pauta de costumes”. Contextualizando-se esses dois marcos temporais e as discussões decorrentes a partir dos resultados trazidos por pesquisa jurisprudencial, traz-se um panorama do que está sendo debatido a respeito da liberdade de cátedra perante o Supremo Tribunal Federal, o que pode indicar quais pontos ainda permanecem em disputa. A revisão bibliográfica exploratória permitiu fixar conceitos sobre as liberdades públicas em geral e, sobretudo, a especificidade da liberdade de cátedra. A partir daí realizou-se pesquisa empírica no acervo jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, analisando-se quantitativa e qualitativamente os resultados obtidos, consistentes em acórdãos e decisões monocráticas, identificando os assuntos correlacionados e tornando possível observar que o campo da Educação, do qual a liberdade de cátedra é uma específica vertente, permanece um campo de disputa ideológica e jurídica.

Palavras-chave: liberdade de cátedra. liberdade de ensino. Constituição Federal. princípios.

ABSTRACT

The theme freedom of chair is not new. It has long been discussed in combination with wider themes such as the right to information, the autonomy of universities and even the free expression of thought, a genre of which it is a species. And there were many clashes, including the censorship imposed by the civil-military dictatorship initiated in 1964 and surrounding legislative initiatives by political agents of a conservative hue in an attempt to promote themes permeated with ideological biases such as the “agenda of customs”. Contextualizing these two time frames and the discussions arising from the results brought by jurisprudential research, we provide an overview of what is being debated regarding the academic freedom before the Supreme Court, which may indicate which points still remain in dispute. The exploratory bibliographic review made it possible to establish concepts about public freedoms in general and, above all, the specificity of academic freedom. From then on, empirical research was carried out on the jurisprudential collection of the Federal Supreme Court, analyzing quantitatively and qualitatively the results obtained, consisting of rulings and monocratic decisions, identifying correlated subjects and making it possible to observe that the field of Education, of which the Freedom of professorship is a specific aspect, it remains a field of ideological and legal dispute.

Key-words: academic freedom. freedom of teaching. federal Constitution. principles.

1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 (CF/1988) veio a lume como resposta aos arbítrios vividos no regime militar. Mas, como não poderia deixar de ser, foi, desde a sua elaboração pelas comissões da Assembleia Constituinte, alvo de disputa. Exemplifique-se com a observação feita por José Afonso da Silva após o falecimento de Tancredo Neves e antes do início dos trabalhos:

Sua morte, antes de assumir a Presidência, comoveu o Brasil inteiro. Foi chorado. O povo sentiu que suas esperanças eram outra vez levadas para o além. Assumiu o Vice-Presidente, José Sarney, que sempre esteve ao lado das forças autoritárias e retrógradas. Contudo, deu sequência às promessas de Tancredo Neves. Nomeou, não com boa vontade, a Comissão referida [Comissão de Estudos Constitucionais], que começou seus trabalhos sob intensa crítica da esquerda. Por muito tempo, a Comissão foi o único foro de debates sobre os temas constituintes e constitucionais. Logo que seu anteprojeto se delineara, viu-se que era estudo sério e progressista. Era a vez da direita e de os Conservadores agredirem-na, e o fizeram com virulência (SILVA, 2008).

Vê-se que um dos temas postos no cerne do embate, no passado e no presente, é a Educação. As bases da Educação e do Ensino foram assentadas na Lei Maior, apesar das divergências na Assembleia Constituinte. Seguiram-se à promulgação da Carta diversas iniciativas legislativas, (com)formando todo o sistema educacional nos âmbitos nacional, distrital, estadual e municipal. Mas o confronto de ideais, salutar se realizado sob viés democrático, não cessou.

Hoje, cada vez mais, colocam-se como se antagônicos fossem os direitos de liberdade dos alunos e docentes e as convicções morais, sociais, políticas e religiosas dos alunos e de suas famílias, transformando o que deveria ser um embate de ideias em um conflito ideológico no qual o diálogo sucumbe frente à intolerância.

Embora as liberdades públicas tenham obtido papel prevalente, não só no capítulo dos direitos e garantias individuais, mas também em diversas outras passagens da Magna Carta, como o Capítulo III, encimado pelo epíteto “Da Educação, da Cultura e do Desporto” (BRASIL, 1988), isso não tornou a questão definitiva. Ainda hoje, segmentos organizados da sociedade e do Governo, conservadores e progressistas, buscam inserir suas pautas, às vezes verticalmente, nos ambientes escolares. Docentes e alunos, colocados ora como sujeitos passivos do embate, mas por vezes se assumindo como agentes do debate, buscam um espaço para livremente defender suas convicções. As disputas acabam, muitas vezes, sendo levadas ao Poder Judiciário, incumbindo-o de dirimir o conflito.. E é sobre os temas e conteúdos de tais decisões que se debruça a presente pesquisa.

Assim, realizou-se revisão bibliográfica exploratória, tracejando-se breve histórico do tema, fixando-se alguns termos ligados à liberdade de cátedra e delimitando o respectivo alcance para depois, realizada a pesquisa empírica de decisões no banco de dados do Supremo Tribunal Federal (análise quantitativa), proceder a um exame da temática dos julgados em si (análise qualitativa), identificando os assuntos correlacionados, permitindo inferir alguns pontos cuja discussão está em evidência.

2 LIBERDADE DE ENSINO-APRENDIZAGEM E LIBERDADE DE CÁTEDRA

A liberdade de cátedra, sob tal nomen iuris, foi no Brasil prevista pela vez primeira na Constituição Federal de 1934, como uma garantia aos docentes (BRASIL, 1934). No Diploma Maior de 1946 passou à categoria de princípio orientador, conquanto expressamente se o afirmasse como garantido (BRASIL, 1946). Em 1967, sob a égide de governo ditatorial, ainda assim constava, tal qual na Carta antecedente, que a Educação era orientada pelos princípios de liberdade e solidariedade (aos quais se agregava o princípio da unidade nacional), devendo também ser “garantida a liberdade de cátedra” (BRASIL, 1967). A prática acabou mostrando o trilhar de caminho diverso do propalado na legislação regente, reprimindo-se o discurso docente.

Curiosamente, com o advento da CF/1988, a liberdade de cátedra deixou de estar expressamente prevista no atual texto da Lei Maior, mas nem por isso a liberdade do docente, agora vista em um contexto de bilateralidade na relação com o educando, foi suprimida. Compreende-se hoje a liberdade de cátedra em uma acepção mais ampla, como vertente da livre manifestação do pensamento e liberdade de consciência, permeando o processo comunicacional docente-discente:

A tarefa coerente do educador que pensa certo é, exercendo como ser humano a irrecusável prática de inteligir, desafiar o educando com quem se comunica e a quem comunica, produzir sua compreensão do que vem sendo comunicado. Não há inteligibilidade que não seja comunicação e intercomunicação e que não se funde na dialogicidade. O pensar certo por isso é dialógico e não polêmico (FREIRE, 2002).

E tal contexto é interpretado mediante análise da CF/1988, a começar pelos princípios fundamentais estruturantes do Estado brasileiro, os quais demandam sistemática interpretação. Afinal, é dos textos que se extraem as normas (GRAU, 2005), a começar pela Lei Maior.

Apontam-se, extraídos do artigo 1º, a cidadania (inciso II), a dignidade da pessoa humana (inciso III) e o pluralismo político (inciso V) como valores orientadores da interpretação do sistema jurídico brasileiro. Desse proêmio se retira a ideologia da CF/1988. Dir-se-ia ideológica em aspecto técnico-científico. A despeito do pejorativo uso que ordinariamente se faz do vocábulo, para fins da ciência do direito, a ideologia consiste na “valoração dos valores” do sistema, identificados, hierarquizados e “neutralizados” para que assumam função de calibragem, comunicando ao intérprete a diretriz para se compreender os textos legais (FERRAZ JÚNIOR, 1986), mormente quando normas opostas se ponham em conflito no caso concreto.

Mais adiante, em uma acepção programática, o artigo 3º indica como objetivos fundamentais da ainda jovem república a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como das desigualdades sociais e regionais (inciso III), além da promoção do bem comum, com ênfase no combate à discriminação em quaisquer de seus matizes (inciso IV).

Interpretando-se as diretivas fundamentais sob o viés educacional e, sobretudo, da liberdade de cátedra, toda e qualquer manifestação docente deve se orientar a uma formação humanística dentro de um contexto social (cidadania), em que se respeite os direitos e diferenças dos educandos (dignidade da pessoa humana) e se lhes apresente uma visão diversa de ideias e concepções acerca dos conteúdos a serem ministrados (pluralismo político), sem que isso impeça o educador de expor o seu próprio pensamento. Mas a enunciação das próprias ideais, complementa Fabricio Veiga COSTA, não é uma carta em branco: “a liberdade de conduzir o processo ensino-aprendizagem não assegura ao professor o direito de catequizar seus alunos com ideologias que professem discriminações, preconceitos, exclusão, marginalidade e desigualdade” (COSTA, 2018).

Dentro da dimensão, de que a Educação deve preparar o indivíduo para a cidadania, o Ensino, enquanto uma das vertentes do direito à educação, será responsável por enfrentar os preconceitos porventura existentes, começando o discente por assumir os próprios em uma postura ética, reforçando a ideia de que o aprendizado não se esgota em si mesmo, mas contribui para a construção de uma sociedade menos desigual.

Prosseguindo-se na interpretação sistemática, assumindo-se tanto os docentes quanto os discentes enquanto sujeitos do processo dialógico educacional, tanto docente quanto discentes podem opor, um perante os outros, seus direitos de liberdade.

Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, idealizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a ‘outredade’ do ‘não eu’, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade de meu eu (FREIRE, 2002).

Os direitos de liberdade estão consagrados já no caput do artigo 5º da CF/1988, além de permearem diversos incisos, ao tratar da livre manifestação do pensamento (inciso IV), liberdade de consciência e de crença (inciso VI), liberdade de expressão intelectual, artística, científica e comunicacional (inciso IX), liberdade de exercício profissional (inciso XIII) e liberdade de informação (inciso XIV).

Perceba-se que a CF/1988, em resposta aos influxos autoritários, positivou direitos e garantias plúrimos, elevando muitos deles à categoria de princípios. Como pertencentes a tal conjunto, diferentemente das regras, hão de se compatibilizar entre si, mediante o fenômeno da ponderação (ÁVILA, 2015), devendo coexistir.

Fato é que, dos incisos apontados, resta nítido que eventual conflito, a ser solvido com a convivência entre os princípios que informam direitos de cada qual, ocorreria no plano da exteriorização da liberdade de manifestação do docente, quando antagoniza com convicções ou opiniões do discente. Não se precisaria de grande esforço para solucionar o impasse, no âmbito da compatibilização. Antes, retroagir-se-ia ao artigo 1º da CF/1988, invocando-se o pluralismo político enquanto a diversidade de ideias e de crenças. A educação não pode se alhear da política, afinal o exercício desta é uma das vertentes da cidadania. E, como alhures mencionado, um dos objetivos da Educação é preparar o ser humano justamente para o exercício da cidadania. O pluralismo político deve ser visto dentro da perspectiva do Estado Democrático de Direito. Nessa dimensão, não se adstringe à produção de efeitos no âmbito da política partidária:

Daí falar-se em pluralismo social, pluralismo político (art. 1º), pluralismo partidário (art. 17), pluralismo econômico (livre iniciativa e livre concorrência, art. 170), pluralismo de ideias e de instituições de ensino (art. 206, III), pluralismo cultural que se infere dos arts. 215 e 216 e pluralismo de meios de informação (art. 220, caput, e § 5º). (SILVA, 2008).

Há ressalva (ou limite) à liberdade comunicacional (dialogicidade) no âmbito educacional (FREIRE, 2002), na relação bilateral de ensino-aprendizagem em que tanto professor e aluno são atores ativos do processo, tão somente no que se refira a condutas contrárias à promoção da cidadania e à dignidade humana, sobretudo discriminatórias. Adicionando à equação o fato de que o ensino é voltado, na maior parte dos casos, a crianças e adolescentes, a proteção integral destes, também professada na CF/1988, não pode ser olvidada:

o balanço dos interesses da liberdade de informação com o valor da dignidade do jovem e com o dever de protegê-lo parte de uma necessária inclinação por estes últimos. Afinal, o próprio constituinte atribui-lhes ‘absoluta prioridade’. A liberdade de expressão, portanto, poderá sofrer recuo quando seu conteúdo puser em risco uma educação democrática, livre de ódios preconceituosos e fundada no superior valor intrínseco de todo ser humano (MENDES; COELHO; BRANCO, 2019)

Trazendo-se a questão da liberdade de expressão ao âmbito do ensino, insiram-se na equação os artigos 206, incisos II e III da Constituição Federal de 1988, os quais respectivamente invocam a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” e a observância do “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”.

Nota-se que tal disposição, adequadamente interpretada, vincula a liberdade de expressão na sala de aula à sua externalização em um contexto abarcando o pluralismo de ideias, isto significando dizer que se permite, científica e politicamente (política enquanto cidadania, na sua vertente substantiva), a discordância e o embate (TAVOLORO, 2008). Aliás, este é outro limite à preconizada liberdade de cátedra: uma diferenciação ética e clara entre o que seja informação e opinião, respeitando-se em ambos os casos a cientificidade dos dados e argumentos trazidos à sala de aula. Até porque, na opção constitucional, não se dissocia o ensino da pesquisa, sendo tarefa do docente “não apenas ensinar o conteúdo, mas também a pensar certo”, o que exige “rigorosidade metódica” (FREIRE, 2002). Por ser liberdade de ensino-aprendizagem espécie do gênero liberdade de expressão, possui singularidades:

É importante deixar desde logo claro que a liberdade de ensinar tem seus próprios contornos e contextos, decorrente do fato de ser uma liberdade vinculada a um direito fundamental ao qual serve de instrumento, o direito à educação. Já a liberdade de opinião, assim como a liberdade de consciência, são liberdades amplas e praticamente irrestritas” (RODRIGUES; MARROCO, 2014).

Somente em um ambiente livre se pode fomentar críticas, inclusive quanto a si mesmo. E, ao se criticar, passa-se a questionar e a externar o inconformismo com a realidade, idealizando-se o combate a sistemas de dominação. Aliás, é a própria CF/1988 que, ao vedar a discriminação, promover a busca pela igualdade e a justiça social, assenta as bases para uma Educação voltada à transformação, o que só se torna possível com a liberdade do docente (HOOKS, 2013).

Nesse preciso contexto, a liberdade de cátedra, hodiernamente concebida em mais ampla dimensão enquanto liberdade de ensino-aprendizagem, ganha importante relevo como limite à ingerência dos agentes atípicos da moral sobre o ensino particular e público.

Há de se conceber, conquanto não seja objeto deste artigo, que o projeto político pedagógico de uma instituição – e aqui se está a falar dos estabelecimentos de ensino privados – possa se antepor como um limite à liberdade de cátedra do docente. Nesse sentido, sendo confessional a escola, isso não obsta um ateu de lá lecionar, tampouco de professar em público sua ausência de fé. Exigir dele a conversão ou o proselitismo, isto sim, violaria sua liberdade. Mas, de outro turno, não deve tornar sua cátedra, como alhures referido, como palanque para perorar sobre a sua visão de mundo que compreende as religiões enquanto falaciosas estruturas de dominação. Assumir tal postura contrariaria o projeto político pedagógico no microcosmo e não encontraria, nas diversas instâncias do ambiente legislativo, autorização a tanto, salvo se a obediência a tal projeto implicar em qualquer forma de indignidade.

3 A INTERPRETAÇÃO DOS TRIBUNAIS

Atentando-se a uma indissociável rigorosidade científica, realizou-se inicialmente a pesquisa empírica nos sítios dos Tribunais Superiores utilizando-se a expressão “liberdade de cátedra”. Considerando que a expressão, de um lado, não foi expressa na Magna Carta vigente e, de outra parte, o mais amplo alcance conferido pela diretriz constitucional, dela se extraindo a ideia de “liberdade de ensino-aprendizagem”, efetuou-se busca complementar com o termo “liberdade de ensino”. A pesquisa, no debruçar sobre uma base de dados, não é infensa a erros, até mesmo devido à forma como realizada a digitalização de arestos mais antigos ou a indexação do acervo.

Em direito, ao se trabalhar com pesquisa empírica, emprega-se como método a “jurimetria”, cujo objetivo “é compilar, em um só trabalho, dados que ajudem a mostrar evidências de algum fenômeno ou de alguma tendência em decisões judiciais.” (YEUNG, 2017) E buscar no repositório dos tribunais impõe realizar recortes. Atentando-se ao escopo do presente artigo e à normativa observada, cingiu-se a busca às Cortes Superiores.

Os termos de busca eleitos foram “liberdade de cátedra” e “liberdade de ensino”, uma vez que nem sempre se emprega as expressões como se sinônimas fossem. Além da análise quantitativa dos julgados, promoveu-se verificação qualitativa, isto significando a identificação do subtema abordado na decisão e, quando existente, a conclusão alcançada pelo colegiado sobre a matéria. O levantamento foi realizado no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça em 06 de agosto de 2024.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF, 2024): treze acórdãos com o termo “liberdade de cátedra”, sendo dois deles prolatados no período da ditadura civil-militar (um em 1964 e outro em 1968), um em 1998, 1 (um) em 2012, um em 2018 (para referendar medida cautelar em ação que teve o mérito julgado em 2020), seis em 2020, um em 2021, um em 2022 e um em 2023. A busca com o termo “liberdade de ensino” retornou três resultados, sendo um repetido, com vinte e uma decisões monocráticas no somatório das rubricas, excluídos os resultados repetidos.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ, 2024): nenhum acórdão retornou aos termos buscados, somente 7 (sete) decisões monocráticas para cada expressão. Analisando-as individualmente, versavam ou sobre o indeferimento definitivo da pretensão veiculada na lide respectiva, ou sobre o indeferimento de provimento liminar, hipóteses estas em que não se encontrou o julgamento definitivo da matéria guindada à Corte Cidadã. A própria decisão monocrática concessiva da ordem de Habeas Corpus apenas afastou a tipificação penal à luz do artigo 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente, não elidindo a possibilidade de que outro segmento da jurisdição pudesse sancionar o Paciente. Assim, por não exibirem, na maior parte, convergência com a temática da pesquisa ou pouco acrescentassem à interpretação do estado da arte, foram desconsiderados no cotejo analítico

4 ANÁLISE QUALITATIVA DOS DADOS

Frente ao resultado, cinge-se a análise à jurisprudência advinda do STF. Todos os acórdãos podem ser consultados ao se inserir o respectivo número no link indicado nas referências.

Há, inicialmente, sob a rubrica “liberdade de cátedra”, dois arestos prolatados durante a ditadura civil-militar. Possuem natureza diversa. O primeiro, Habeas Corpus 40.910-PE, impetrado em 1964, trancou ação penal contra professor. Cronologicamente, se situa entre o Ato Institucional nº 1 (09/04/1964) e o Ato Institucional nº 2 (27/10/1965). Afirmou o Ministro Relator Hahnemann Guimarães, relatando o caso e manifestando seu entendimento:

Defiro o pedido, para tolher a ação penal, pois a denúncia narra fatos, que evidentemente não constituem crime (f. 61). Diz a denúncia que o paciente, no exercício da Cadeira de Introdução à Economia, distribuiu aos seus alunos um manifesto, com o fim de fazer propaganda de processos violentos para a subversão da ordem e propaganda de ódio de classe, conduta que está em consonância com as ideias comunistas do denunciado, o qual no exercício de sua Cadeira de professor, na Universidade Católica de Pernambuco, escreveu, em um pedaço de papel, dizeres subversivos, ‘Viva o Partido Comunista’. No manifesto que se encontra por certidão a fls. 41, o paciente faz crítica desfavorável à situação política atual, acentuando, afinal, que aos estudantes ‘cabe uma responsabilidade, uma parcela de decisão dos destinos da sociedade e para isto têm que optar entre ‘gorilar-se’ ou permanecerem humanos. A estes cabe a honra de defender a democracia e a liberdade’. Não há no manifesto nada que se possa considerar propaganda de processos violentos para subversão da ordem política ou social (lei nº 1802, artigo 11, a e § 3º), ou instigação pública à desobediência coletiva ao cumprimento da lei de ordem pública (lei nº 1802, artigo 17).

Importante pontuar que, no original, a referência a “Partido Comunista” se apresenta riscada à mão, tal como exibido na transcrição, o que denota a realização de censura no âmbito do próprio acórdão, apagando-se vocábulos com o objetivo de esquecer a carga semântica e valorativa que os permeia. Tornando ao conteúdo do decisório, acrescentaria, dentre outros, o Ministro Evandro Lins e Silva, ao final de seu voto:

“Li, também, o escrito do paciente, em que ele se opõe à situação dominante e lhe faz críticas. Mas, nesse documento, não se propaga o uso de meios violentos para a subversão da ordem política e social, como foi demonstrado pelo Senhor Ministro Hahnemann Guimarães. É uma crítica desfavorável, mas não criminosa.
Tendo em vista a liberdade de expressão, e a liberdade de cátedra, asseguradas em nossa Carta Magna, acompanho o voto do eminente Ministro relator, concedendo a ordem por falta de justa causa para o procedimento penal”.

Já o aresto de 1968 antecede o Ato Institucional nº 5. Mas a ameaça de endurecimento do regime já era explícita, ocorrendo o julgamento em um cenário que contava com uma Corte ampliada para quinze membros e em uma composição de tendência mais favorável à vontade do Poder Executivo Federal. O pleito era de recondução de docentes aos cargos na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. A controvérsia do Recurso em Mandado de Segurança 17.108-SP era assim delimitada:

“Alegam que a investigação feita em inquérito militar, concluirá pela nenhuma responsabilidade dos impetrantes.
Que as garantias constitucionais a eles asseguradas não estavam suspensas e que o Dec. 53.897, de 27 de abril de 1964, regulamentando os artigos 7 e 10 do Ato Institucional atribuiu a uma comissão de investigação a apuração de atividades, subversivas, ou de corrupção e que, portanto, não podia o Governo reconhecer culpa quando a comissão competente não encontrara fundamento para a punição”.

O Ministro Relator, Themístocles Cavalcanti, embora reconhecendo a existência da liberdade de cátedra, pois expressa na Constituição de 1946 e não formalmente suprimida no início do regime ditatorial, denegou o Writ, no que foi acompanhado à unanimidade do órgão fracionário (nenhum dos Ministros que viriam a ser compulsoriamente aposentados participou da sessão). Assim concluiu ao final de seu voto:

“Pode não haver crime porque o fato não atingiu a ordem social, mas haverá pena administrativa porque ofendeu interesse legítimo dos círculos de atividade em que anda o indivíduo.
Pode não ter sido justa a pena, pode ter ferido um princípio que precisa ser preservado, como a liberdade de cátedra, mas considerou o Governador que a tudo isso se sobrepunha a proteção da juventude contra a propaganda comunista.
Não está provado? Não nos cabe dizer que não está. A única preocupação do poder judiciário é verificar se os acusados foram ouvidos. Nada mais. Eles o foram e fartamente
Nego provimento”.

A partir de 1968, perdurando por muitas décadas, a temática passou à margem da pauta do Supremo Tribunal Federal. Somente em 1998 alguma discussão sobre a matéria retornaria ao STF, embora ainda incipiente. Tratava-se do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 214.756-SP, versando sobre critérios de reajustes de mensalidades, invocando-se a liberdade de ensino no argumento, refutado pelos Ministros, que buscava menor ingerência do Estado na fixação de critérios limitativos aos preços a serem cobrados por instituições particulares.

Em 2012 o exercício de tal liberdade de cátedra voltaria de fato à pauta da Corte. Reconheceu-se a Repercussão Geral, no âmbito do Recurso Extraordinário (RE) 631.053-DF, do conflito entre o direito potestativo da instituição de ensino de demitir professor sem justa causa e a garantia do emprego, derivada da liberdade de cátedra por este exercida, assim delimitando a controvérsia:

“Demissão sem justa causa de professor sem prévia instauração de inquérito administrativo, não obstante a previsão no regimento interno da instituição privada de ensino.” (Tema 556).

Passado mais de um decênio do reconhecimento da natureza constitucional da discussão, com inclusões e retiradas de pauta do recurso, não há data para a decisão final.

O ensino domiciliar (homeschooling) foi objeto do RE 888.815-RS, de 2015, afetado sob Tema 822 e julgado em 2019, ocasião na qual se decidiu que “não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar, inexistente na legislação brasileira”. Não se proibiu a modalidade, mas se impôs a necessidade de prévia regulamentação legal, estabelecendo-se o imperativo da participação do Estado no respectivo acompanhamento. O assunto da liberdade de ensino foi enfrentado sob o viés do aluno/família e não na perspectiva da liberdade do docente, esta sim objeto desta pesquisa.

Já em 2020, na esteira da guinada política brasileira e já em exercício um governo indutor de uma política marcada pela tentativa de imposição de uma “pauta de costumes”, de índole extremamente conservadora, em nome do combate a um suposto “marxismo cultural” e à “doutrinação comunista” (MOYA, 2019) nas escolas, foram julgadas cinco Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs), que haviam sido distribuídas entre 2017 e 2018, e uma Ação de Inconstitucionalidade (ADI) protocolada em 2016.

Na pioneiramente apreciada, ADPF 526-PR, reconheceu-se que lei municipal proibindo a “aplicação da ‘ideologia de gênero’, do termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’ nas instituições da rede municipal de ensino” invadiria competência legislativa privativa da União sobre as Diretrizes Básicas da Educação Nacional, além de promover “afronta ao princípio da isonomia, ao direito fundamental de liberdade de cátedra e à garantia do pluralismo de ideias”.

Na sequência, debruçou-se o Supremo Tribunal Federal sobre o mérito da ADPF 548-DF, referente à (i)legalidade da realização de operações policiais no âmbito de universidades, quando se impediu o direito de reunião e manifestação, com ou sem cunho político-partidário, de indivíduos e agremiações estudantis, recolhendo-se documentos e até mesmo interrompendo aulas. Esses eventos ocorreram no contexto que antecedeu as eleições de 2018, de crescente polarização política no Brasil. O STF, referendando a liminar concedida dois anos antes, decidiu ser ilegal qualquer censura ou proibição a manifestações políticas no ambiente universitário, respeitando-se sobretudo os princípios da autonomia universitária e livre manifestação do pensamento. Assentou-se em trecho do aresto:

“São inconstitucionais, portanto, as condutas de autoridades públicas desrespeitosas à autonomia universitária e tendentes a constranger ou inibir a liberdade de expressão, a liberdade de cátedra e o livre debate político, realizado democraticamente e com respeito ao pluralismo de ideias, no âmbito das Universidades, tradicionais centros autônomos de defesa da Democracia e das Liberdades Públicas”.

Poucos dias depois, foi a vez do julgamento da ADPF 467-MG, por meio da qual a Procuradoria Geral da República pretendia ver reconhecida a inconstitucionalidade de lei municipal que excluía da política local de ensino “qualquer referência à diversidade de gênero e orientação sexual”. O acórdão não faz qualquer referência ao termo “liberdade de cátedra”, posto apenas nas “palavras-chave” que refinam a pesquisa. À margem disso, percebe-se congruência com o objeto da já analisada ADPF 526-PR. A ADPF 460-PR enveredou por seara análoga, reconhecendo-se o descumprimento do preceito fundamental na legislação municipal discriminatória e se referindo à liberdade de cátedra tão somente na transcrição da ADPF 526-PR. Os julgamentos dessas quatro ADPFs ocorreram em um intervalo de menos de quarenta e cinco dias.

Dois meses depois, concedia o Supremo Tribunal Federal medida cautelar na ADPF 722-DF, impedindo que o Ministério da Justiça continuasse a promover a confecção de dossiês contra servidores federais, supostamente ligados a “movimento antifascismo”, pois tal prática violaria o artigo 5º CF/1988, com relevo aos incisos concernentes à liberdade de expressão (IV), ao direito à intimidade, à vida privada e à honra (X), à liberdade de reunião (XVI) e à liberdade de associação (XVII). A Rede Sustentabilidade, autora da ação, arguiu que “caso o ato ora impugnado persista, as pessoas listadas na tal tabela poderão ser acometidas por espécie de autocensura, receosas de serem perseguidos pelo mero exercício da profissão (liberdade de cátedra) ou pelo mero exercício do pensamento íntimo”. Os professores das universidades federais tinham lugar de destaque dentre o rol de perseguidos (detratores), justamente por sua postura no ambiente acadêmico. A medida cautelar foi referendada em 2022.

Quatro dias após adviria o julgamento a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5580-AL (que também abrangeu as ADIs 5537 e 6038). No que concerne à constitucionalidade formal, declarou-se procedente a ação proposta para declarar inconstitucional legislação estadual que estabelecia, entre outros aspectos, obrigações às escolas confessionais dissonantes do currículo nacional. A liberdade de cátedra, mais uma vez, foi argumento complementar, como se depreende do seguinte excerto:

“Apesar da astuciosa retórica empregada para, com ares de objetividade, disfarçar sua verdadeira natureza, a leitura atenta e séria da legislação impugnada não deixa dúvidas acerca do que se realmente se trata: um evidente atentado às liberdades de cátedra, de pensamento, de consciência e de expressão.”

Os dois próximos acórdãos não dizem respeito ao objeto deste artigo. A ADI 3481-DF, julgada em 2021, versa sobre a inconstitucionalidade de regulamentação do Conselho Federal de Psicologia obrigando seus associados a só utilizar testes psicológicos aprovados pelo próprio Conselho, sendo a liberdade de cátedra enunciada apenas como uma das várias liberdades públicas. Já a ADI 6565-DF, decidida cautelarmente em 2022 (mas até hoje não em definitivo), é clara ao enunciar que “não se está aqui a discutir o exercício da liberdade de expressão ou de cátedra, ou mesmo outro direito fundamental de natureza individual em ambiente universitário”, mas sim analisando a possibilidade de escolha, pelo chefe do executivo, de qualquer dos candidatos a reitor da lista tríplice, refutando a vinculação pelo mais votado.

A última decisão colegiada a respeito do assunto é de 2023. Cuida-se da ADI 4652-DF, versando sobre os limites da liberdade de expressão do advogado público federal e o imperativo de somente poder se pronunciar nas questões afeitas às funções sob autorização do Advogado-Geral da União. Excepcionou-se da prévia anuência aquela externalização do pensamento proferida em ambiente acadêmico, fixando-se a seguinte tese:

“Considerando-se a natureza do cargo, é constitucional a necessidade de ordem ou autorização expressa do Advogado-Geral da União para manifestação do advogado público sobre assunto pertinente às suas funções, ressalvadas a liberdade de cátedra e a comunicação às autoridades competentes acerca de ilegalidades constatadas.”

Enveredando-se nas decisões monocráticas, há oito em resposta ao termo “liberdade de cátedra” e quatorze sob a rubrica de “liberdade de ensino” (das quais uma é repetida).

O RE 150.756-CE, a ADPF 624-DF e a ADI 5.443-SP foram rejeitados por vícios formais, bem como o Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) 1.494.677-RJ (embora quanto a este exista Agravo Regimental, ainda não julgado).

A decisão monocrática proferida em 2009 no Mandado de Segurança 27.800-MG (julgado colegiadamente em 2022) diz com contingenciamento de verbas potencialmente prejudicial ao desenvolvimento das atividades acadêmicas e respectiva autonomia universitária.

A ADPF 689-DF não foi conhecida, por voltar o enfoque a atos de um indivíduo e não restar demonstrado o interesse público ínsito à medida constitucional; já a Reclamação 49.570-MS foi rechaçada por desrespeito ao decidido na ADPF 548-DF.

A ADPF 457-GO versa sobre lei municipal que teria proibido a utilização de material didático contendo “ideologia de gênero” na rede pública de ensino, tal como se discutiu no âmbito da ADPF 526-PR, sendo a medida cautelar deferida naquela por ser a matéria afeita à competência legislativa da União.

A ADI 5537-AL e o Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) 1.294.085 versavam sobre o mesmo tema da já referida ADI 5580-AL, qual seja, a inconstitucionalidade das iniciativas legislativas municipais e estaduais visando implementação do projeto “escola sem partido”, pois invadindo esfera de competência exclusiva da União, além de reputado violador da liberdade de cátedra e vários outros direitos dos docentes e educandos. O assunto ainda será retomado no julgamento colegiado da ADPF 578-PR.

Da mesma forma, a proibição, por norma estadual ou municipal, do emprego da “linguagem neutra”, objeto de controvérsia da ADI 7.019-RO, ADI 7.644-AM, ADPF 1.159-SC e ADPF 1.163-MT, esbarraria em competência legislativa exclusiva da União (nas duas primeiras houve julgamento colegiado do mérito, enquanto nas últimas os acórdãos se referem à ratificação das respectivas medidas cautelares). Vale, por todas, transcrever trecho do aresto da ADI 7.644-AM (destaques no original):

8. Todas as pessoas são livres para se expressar como desejarem, em suas vidas privadas, liberdade insuscetível de eliminação, salvo a configuração de crime, o que evidentemente não é o caso da linguagem neutra. Em virtude da liberdade de manifestação do pensamento, é assegurada a expressão de opiniões sobre a temática ora controversa em espaços públicos e privados, a exemplo de seminários, eventos culturais, livros, revistas, jornais, rádio, televisão e internet, entre outros.

9. A língua é viva, sempre aberta a novas possibilidades, em diversos espaços e tempos. Trata-se de um processo cultural e difuso, sem que seja possível a regulação a priori nem para impor nem para impedir mudanças sociais, que posteriormente podem ser incorporadas ao sistema jurídico. A adoção de formas mais inclusivas de comunicação é uma questão social de altíssima relevância.

10. A Constituição Federal consagrou a língua portuguesa como idioma oficial (CF, art. 13). A liberdade de ensinar não é absoluta, encontrando limites nas normas regentes da educação debatidas em espaços públicos, em ambiente democrático, com ampla participação da sociedade e da comunidade científica em geral. O princípio da legalidade, constante do art. 37 da Constituição Federal, condiciona todos os atos oficiais, inclusive nos sistemas de ensino.

11. Qualquer mudança jurídica no ensino do idioma oficial brasileiro, tal como atualmente disciplinado pela União, depende do exercício de sua competência privativa para legislar sobre diretrizes e bases da educação, bem como sobre normas de uso da língua portuguesa editadas em consonância com o art. 13 da Constituição Federal. Esta matéria somente pode ser regulada pelo Congresso Nacional, sendo vedada a edição de leis estaduais ou municipais, contra ou a favor da linguagem neutra em sistemas de ensino.

A invasão de competência da União foi também o motivo da denegação monocrática do RE 1.303.865-RJ (depois referendada pelo colegiado da 2ª Turma).

Já as ADPFs 820-RS e 756-DF versavam sobre aulas em contexto de emergência sanitária, mas perderam seu objeto no curso da tramitação.

A ADPF 800-DF e a ADI 6.744-DF dizem efetivamente com a liberdade de cátedra, que estaria sendo violada pela imposição de um Termo de Ajustamento de Conduta a dois docentes da UFPel, proibindo-os de “proferir quaisquer ‘manifestações de desapreço’ no local de trabalho pelo período mínimo de 2 (dois) anos”, ajuste este firmado a partir de interpretação de Nota Técnica da Controladoria-Geral da União. Embora proferidas decisões monocráticas negando seguimento às ações por questões de competência jurisdicional (está pendente o julgamento do Agravo Regimental interposto contra o despacho singular na primeira, havendo trânsito em julgado quanto à segunda), o Ministro Ricardo Lewandowski, Relator de ambas, não deixou de pontuar:

Assim, não obstante a reprovabilidade da referida nota técnica, que ignora a proteção constitucional conferida à liberdade de pensamento, de expressão, de informação, de reunião, ao lado de inúmeros outros direitos de primeira geração e da máxima envergadura, o fato é que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a impropriedade da utilização do controle abstrato de constitucionalidade para a averiguação da validade de atos desse jaez, destituídos de um coeficiente mínimo de generalidade, abstração e impessoalidade.

A Petição 10.047 visava atribuir a Ministro da Suprema Corte a prática dos crimes previstos nos artigos 321, 359-L e 359-M do Código Penal (estes últimos acrescentados pela Lei nº 14.197/2021, então ainda em período de vacatio legis). Foi rejeitada liminarmente, trazendo-se em uma das facetas da argumentação quanto à atipicidade da imputação o fato de que as frases hipoteticamente delitivas terem sido proferidas pela autoridade durante fórum jurídico e não no exercício da judicatura:

“A conclusão resulta de motivação percuciente sobre as características típicas dos delitos e de sua correlação com o fato noticiado, perpassando, inclusive, as eventuais repercussões da pretendida incidência penal sobre os direitos fundamentais à livre manifestação do pensamento, à liberdade de expressão, ao acesso à informação e ao princípio da liberdade de cátedra, não estando a justificar a sempre excepcional intervenção judicial sobre a formação da opinio delicti.”

Vê-se que os assuntos versados nas decisões monocráticas, pendentes de referendo do colegiado ou com trânsito em julgado após manifestação singular, possuem temática afim aos acórdãos, orientando-se as interpretações no mesmo sentido.

5 CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Educação permanece como terreno de disputa, uma disputa verdadeiramente ideológica. E o STF, enquanto Poder constituído e incumbido de conferir final interpretação à CF/1988 e às demais normas em face desta, é convocado a pacificar o conflito, aplicando a ideologia da diretiva constitucional.

Nessa tarefa de interpretação, por certo, haverá entre os membros do STF diversidade de ideias e concepções ideológicas de seus membros, leituras diversas que cada qual faz do texto constitucional. E isto é fundamental, justamente porque a imparcialidade dos membros da Corte (e de todos os integrantes do Poder Judiciário), é garantida justamente pelo “pluralismo, e este só é possível dentro de um modelo democrático de magistratura que permita os agrupamentos democráticos e espontâneos, e o controle recíproco dentro da sua estrutura.” (ZAFFARONI, 1995) E isso não significa juízes neutros, pressupondo-se, no entanto, adesão à ideologia emanada da CF/1988, conforme sua singular interpretação. Assim, a liberdade de ensino-aprendizagem não pode restar alheia à política, pois esta é um dos pressupostos da cidadania. Na medida em que a CF/1988 impõe que a Educação deve preparar o sujeito para o exercício da cidadania, a política deve também ter assento.

Conquanto não expressa na CF/1988, a liberdade de ensino-aprendizagem é produto da interpretação de diversos trechos do texto da Lei Maior, denotando seu assento constitucional. A liberdade de ensino-aprendizagem é espécie, com peculiares características, da liberdade de expressão, ao passo que o viés docente da liberdade de ensino-aprendizagem é a liberdade de cátedra, cuja externalização pressupõe a relação dialógica comunicativa com o interlocutor (discente). Encontra limites no respeito aos saberes do educando (FREIRE, 2002) e na rigorosidade científica que emana das manifestações do docente, reconhecendo-se o discente também como um sujeito de direitos dentro de tal processo.

Traduzindo-se para o âmbito das universidades, a liberdade de ensino constituiria a “autonomia didático-científica” que, com a autonomia administrativa e a autonomia financeira, constituem as três dimensões da autonomia universitária, em consonância com o julgado na ADI 51-RJ.

Observando, pois, a orientação ideológica da CF/1988, o STF reafirmou a liberdade de cátedra, garantindo-a na extensão dos movimentos políticos no âmbito das universidades, na proibição da implantação da chamada “pauta de costumes” no ambiente de ensino, refutando iniciativas como pretenso combate à “ideologia de gênero” e ao uso da “linguagem neutra”. Reafirmou, assim, a submissão de todas as esferas do Poder Executivo à Base Nacional Comum Curricular, mesmo que para tanto invoque como óbice questões formais da ação ou vícios de iniciativa legislativos.

É possível observar que fatores políticos podem funcionar como catalisadores do debate sobre o alcance de determinadas liberdades. Assim foi na ditadura civil-militar, tal como no recente acirramento da polarização política. Não só a quantidade de julgados, mas o momento em que estes vêm a lume, são indicadores da candência dos assuntos em disputa. E cabe ao Poder Judiciário, capitaneado pelo STF, dar a palavra final quanto à diretriz da ideologia constitucional.

REFERÊNCIAS

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 16. ed. São Paulo, Malheiros, 2015.

BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm?TSPD_101_R0=f164e65bd3b8aafbe0962d25f59edd87h6100000000000000009c1a15c9ffff00000000000000000000000000005b1e984d0090e03690. Acesso em: 06 ago. 2024.

______. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/cciviL_03////Constituicao/Constituicao46.htm. Acesso em: 06 ago. 2024.

______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm. Acesso em: 06 ago. 2024.

______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 06 ago. 2024.

______. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em:  https://scon.stj.jus.br/SCON/. Acesso em: 06 ago. 2024.

______. Supremo Tribunal Federal. Disponível em:  https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search. Acesso em: 06 ago. 2024.

COSTA, Fabricio Veiga. Liberdade de cátedra do docente nos cursos de bacharelado em direito: um estudo crítico da constitucionalidade do projeto de lei escola sem partido. In Revista Jurídica. Vol.1, nº 50. Curitiba, 2018. pp. 374-397.

FERRAZ Júnior, Tercio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica. 2ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p.156-157.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São Paulo, Paz e Terra, 2002.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 3. ed. São Paulo, Malheiros, 2005.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: e educação como prática da liberdade. São Paulo, Martins Fontes, 2013.

MACHADO, Patricia da Costa. Justiça e Ditadura: atuação das Cortes Supremas de Brasil e Argentina durante as ditaduras de segurança nacional. In Revista Sul-Americana de Ciência Política, v. 5, n. 1, 67-85.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo, Saraiva, 2008

MOYA, Isabela. Marxismo Cultural: o que é isso? Disponível em: https://www.politize.com.br/marxismo-cultural/. Acesso em: 06 ago. 2024.

RODRIGUES, Horácio Wanderlei; MARROCO, Andréa de Almeida Leite. Liberdade de cátedra e a Constituição Federal de 1988: alcance e limites da autonomia docente. In CAÚLA, Bleine Queiroz [et. al.]. Diálogo Ambiental, constitucional e internacional. Fortaleza, Premius, 2014. vol. 2. pp. 213-238.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30. ed. São Paulo, Malheiros, 2008.

TAVOLORO, Sergio B. F. Quando discursos e oportunidades políticas se encontram: para repensar a sociologia política da cidadania moderna. In Novos estudos CEBRAP [online]. 2008, n. 81. Acesso em: 11 ago. 2024, pp. 117-136. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0101-33002008000200010.

YEUNG, Luciana. Jurimetria ou análise quantitativa de decisões judiciais. In: MACHADO, Maíra Rocha (Org.). Pesquisar empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995.


1Doutorando em Processo Penal na PUC-SP, Mestre em Direito Penal pela USP. Email: lucasandreuccidaveiga@gmail.com