ANÁLISE DOS PROCESSOS DE PRIVATIZAÇÃO EM CURSO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA NO ENSINO INFANTIL: UMA REVISÃO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.13038865


Meire Vilela Barbosa Ferreira1


RESUMO

A privatização da educação pública no ensino infantil tem sido um fenômeno amplamente debatido nas últimas décadas, especialmente em relação às suas implicações para a qualidade, acessibilidade e equidade do ensino. Este estudo tem como objetivo analisar criticamente os impactos dos processos de privatização em curso na educação pública infantil no Brasil. Utilizando uma revisão integrativa da literatura, foram selecionados sete estudos relevantes, publicados nos últimos cinco anos, que abordam essa temática. A busca foi realizada nos principais bancos de dados eletrônicos, incluindo SciELO, Lilacs, Scopus, Periódicos CAPES, Google Acadêmico e o Banco de Dissertações e Teses da UFU, com a utilização de descritores específicos em português e inglês. O referencial teórico-metodológico baseia-se na análise crítica das políticas de privatização, considerando aspectos sociais, econômicos e pedagógicos. Segundo Domiciano e Adrião (2020), a privatização envolve a transferência de responsabilidades e gestão de instituições educacionais públicas para entidades privadas, o que pode comprometer o propósito fundamental da educação como um direito universal. Borghi (2018) argumenta que, embora a gestão privada possa trazer inovações e maior eficiência, as evidências empíricas sobre melhorias na qualidade do ensino são inconclusivas. Farias et al. (2020) ressaltam que a privatização pode aumentar a segregação educacional e social, exacerbando as desigualdades existentes. Os principais resultados desta revisão indicam que a privatização frequentemente não resulta em melhorias significativas na qualidade do ensino e pode agravar desigualdades, especialmente em comunidades vulneráveis. A lógica de mercado aplicada à educação pode priorizar o lucro sobre o bem-estar dos alunos, comprometendo a equidade no acesso à educação. Além disso, a privatização pode enfraquecer as instituições públicas, desviando recursos e talentos para o setor privado, e criando um sistema educacional hierarquizado onde o acesso à educação de qualidade depende da capacidade financeira das famílias. Conclui-se que, embora a privatização possa oferecer soluções de curto prazo para a expansão da oferta de vagas, ela apresenta sérios riscos para a qualidade e a equidade da educação infantil. Políticas públicas precisam ser cuidadosamente desenhadas e implementadas para garantir que a privatização não comprometa os princípios fundamentais de universalidade e equidade na educação. A regulação rigorosa, a supervisão efetiva e a avaliação contínua dos impactos das parcerias público-privadas são essenciais para mitigar os efeitos negativos da privatização e promover uma educação de qualidade para todas as crianças.

Palavras chave: Educação Pública. Gestão. Privatização da Educação

INTRODUÇÃO:

A privatização da educação pública no ensino infantil é um fenômeno complexo que tem ganhado destaque nas últimas décadas. Esse processo envolve a transferência de responsabilidades e gestão de instituições educacionais públicas para entidades privadas, sejam elas com fins lucrativos ou não. No Brasil, essa tendência tem gerado debates intensos sobre os impactos na qualidade da educação, acesso e equidade. A análise dos processos de privatização em curso revela uma série de implicações sociais, econômicas e pedagógicas que necessitam de uma avaliação crítica e criteriosa (Domiciano, 2020).

Um dos principais argumentos a favor da privatização é a suposta melhoria na eficiência e na qualidade do ensino. Defensores afirmam que a gestão privada pode trazer inovações, melhores práticas administrativas e maior flexibilidade na implementação de currículos e metodologias de ensino. No entanto, evidências empíricas sobre esses benefícios são mistas e muitas vezes inconclusivas. Em muitos casos, a privatização não resulta em melhorias significativas na qualidade do ensino e, em alguns casos, pode até agravar desigualdades, especialmente em comunidades vulneráveis que dependem mais fortemente do sistema público de educação (Domiciano, 2020).

Por outro lado, a privatização da educação infantil pode levar a um aumento na segregação educacional e social. As instituições privadas tendem a selecionar alunos com base em critérios que podem excluir crianças de famílias de baixa renda ou com necessidades educacionais especiais. Isso pode resultar em uma disparidade crescente entre as oportunidades educacionais oferecidas às diferentes camadas da sociedade (Correa et al., 2021). Além disso, a lógica de mercado aplicada à educação pode priorizar o lucro sobre a qualidade e o bem-estar dos alunos, comprometendo o propósito fundamental da educação infantil como um direito universal e um bem público.

É crucial considerar as consequências de longo prazo da privatização para o sistema educacional como um todo. A privatização pode enfraquecer as instituições públicas ao desviar recursos e talentos para o setor privado, comprometendo a capacidade do estado de oferecer uma educação de qualidade para todos. Políticas públicas precisam ser cuidadosamente desenhadas para garantir que a privatização não comprometa a equidade e a qualidade da educação infantil. Isso inclui regulamentações rigorosas, mecanismos de supervisão e avaliação contínua dos impactos das parcerias público-privadas e outras formas de privatização no ensino infantil (Correa et al., 2021). Nesse cenário, o problema de pesquisa adotado foi: qual é o impacto dos processos de privatização em curso na qualidade, acessibilidade e equidade da educação pública no ensino infantil no Brasil?

O objetivo geral desta pesquisa é analisar os impactos dos processos de privatização em curso na educação pública no ensino infantil no Brasil, avaliando como essas mudanças afetam a qualidade, acessibilidade e equidade do ensino, por meio de uma revisão crítica da literatura existente e estudos de caso relevantes. A análise dos processos de privatização em curso na educação pública no ensino infantil é de suma importância, pois tais mudanças têm o potencial de transformar significativamente o cenário educacional brasileiro, impactando milhões de crianças em uma fase crucial do desenvolvimento. Com a crescente adoção de modelos de privatização, é fundamental compreender como essas práticas afetam a qualidade, acessibilidade e equidade do ensino infantil. 

O presente estudo trata-se de uma revisão integrativa da literatura realizada a partir de estudos científicos, publicados em revistas especializadas em educação, a fim de compreender os processos de privatização da educação pública no ensino infantil.

MATERIAIS E MÉTODOS:

Foi feito um levantamento da literatura em março de 2024. A revisão foi composta por: (1) Formulação da pergunta; (2) Definição de critérios de inclusão e exclusão; (3) Estratégia de busca e localização dos estudos; (4) Seleção dos estudos; (5) Extração dos dados; (6) Avaliação da qualidade do estudo; (7) Análise e interpretação dos resultados; (8) Discussão e Considerações Finais. 

Foi realizada uma busca no período de março de 2024, abrangendo dois grandes bancos de dados eletrônicos que contemplam extensa literatura, a saber: SciELO, Lilacs, Scopus, Periódicos CAPES, Google Acadêmico e Banco de Dissertações e Teses da UFU.

Foi utilizada na busca dos trabalhos a combinação dos descritores: “Educação pública” AND “ Gestão” AND “Privatização da educação” e, em inglês, “Public. Education’’ AND “ Management’’ AND “Privatization of education” em todas as bases de dados. 

Desse modo, foram selecionados 07 estudos sendo incluídos segundo os critérios de elegibilidade conforme a figura 1. Os critérios de inclusão foram: estudos nos idiomas inglês, espanhol e português, nos últimos cinco anos, envolvendo análise dos processos de privatização em curso da educação pública no ensino infantil. 

Foram ainda excluídos os capítulos de livros, resumos de eventos, relatos de caso, editoriais, revisões sistemáticas e estudos de opinião.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Como supracitado, os resultados da pesquisa bibliográfica realizada são apresentados na Tabela 1, onde consta o nome da pesquisa, os autores e seus respectivos anos de publicação: 

Nome da PesquisaNome do AutorAno de Publicação
Financiamento e privatização da Educação Infantil de 0 a 3 anos no Município de São PauloCARVALHO, Celso do Prado Ferraz; SILVA, Gicelia Santos.2023
Redes de políticas, terceiro setor e os movimentos de privatização da educação brasileiraLÉLIS, Úrsula Adelaide et al.2020
Nova Gestão Pública e Programa ‘Nave-mãe’: caminhos comuns à privatizaçãoDOMICIANO, Cassia.2020
Processos de privatização da educação pública: Uma revisão sistemática da literaturaSANTOS, Mariline; NETOMENDES, António.2022
O processo de privatização da educação infantil no âmbito do FundebMONTANO, Monique Robain; PERONI, Vera Maria Vidal; FERNANDES, Maria Dilnéia Espíndola.2021
Estratégias de privatização da educação infantil em ribeirão preto e as resistênciasCORREA, Bianca; DE REZENDE PINTO, José Marcelino; GARCIA, Teise de Oliveira Guaranha.2021
Empresas sociais e a privatização de novo tipo da educação básica: um estudo sobre a relação público-privada em cidades de Minas Gerais-BrasilMARTINS, André Silva; SOUZA, Camila Azevedo; PINA, Leonardo Docena.2020
Tabela 1 – Resultados da Pesquisa 
Fonte: Dados da Pesquisa (2024) 

O financiamento e a privatização da educação infantil de 0 a 3 anos no Município de São Paulo têm sido temas amplamente debatidos, especialmente no estudo de Carvalho e Silva (2023). Este estudo investiga a complexidade e as implicações dessas práticas, destacando aspectos cruciais para a compreensão da política educacional local. Primeiramente, o estudo destaca a importância do financiamento público adequado para garantir a qualidade da educação infantil. Segundo Carvalho e Silva (2023), a falta de recursos suficientes compromete a infraestrutura, a formação de professores e a oferta de materiais pedagógicos, resultando em um ambiente educacional inadequado para o desenvolvimento das crianças. A pesquisa aborda a crescente tendência de privatização na educação infantil. Esta prática, conforme observado por Carvalho e Silva (2023), surge como uma resposta à incapacidade do setor público de atender à demanda. No entanto, a privatização traz consigo uma série de desafios, incluindo a desigualdade no acesso à educação de qualidade, uma vez que instituições privadas tendem a ser inacessíveis para famílias de baixa renda.

Outro ponto crucial abordado no estudo é a qualidade do ensino nas instituições privadas. De acordo com as pesquisas realizadas, há uma variação significativa na qualidade educacional oferecida por essas instituições, o que evidencia a necessidade de uma regulação mais rigorosa e de políticas que garantam um padrão mínimo de qualidade. A análise também enfatiza a importância da formação continuada dos profissionais da educação infantil. Conforme Carvalho e Silva (2023) argumentam, a capacitação adequada dos professores é essencial para o desenvolvimento integral das crianças. Infelizmente, tanto no setor público quanto no privado, há lacunas significativas nesse aspecto, o que compromete o processo educativo.

Carvalho e Silva (2023) também discutem as implicações sociais e econômicas da privatização da educação infantil. O estudo sugere que essa tendência pode agravar as desigualdades sociais, uma vez que as famílias mais pobres são frequentemente excluídas das melhores oportunidades educacionais. Isso perpetua um ciclo de pobreza e limita as possibilidades de mobilidade social. O estudo em questão ainda examina o papel do Estado na regulação e no financiamento da educação infantil. Carvalho e Silva (2023) argumenta que é crucial um compromisso governamental mais robusto para assegurar que todas as crianças tenham acesso a uma educação de qualidade, independentemente de sua condição socioeconômica. 

Já Lélis et al. (2020) analisa as redes de políticas, o terceiro setor e os movimentos de privatização da educação brasileira, destacando a complexidade das relações entre o público e o privado na definição das políticas educacionais. Primeiramente, as autoras argumentam que os grupos empresariais têm se organizado em movimentos que assumem um papel central na formulação de políticas educacionais, promovendo uma educação voltada para a produtividade e legitimando a configuração capitalista contemporânea. Conforme descrito no estudo em questão, a atuação do terceiro setor enfraquece as fronteiras entre o público e o privado, assumindo funções que tradicionalmente pertenciam ao Estado. As parcerias público-privadas (PPP), segundo Lélis et al. (2020), resultam na privatização de serviços educacionais, transformando direitos sociais em mercadorias e reforçando as desigualdades socioeconômicas.

Outro ponto abordado é a influência das redes de políticas que conectam empresas nacionais e internacionais. O estudo mostra como essas redes promovem a transposição dos ideais empresariais para o setor público, especialmente através de movimentos como o Todos pela Educação e o Movimento pela Base. Essas iniciativas são vistas como mecanismos para aumentar os lucros e reorientar a gestão educacional, segundo as pesquisas realizadas. Além disso, Lélis et al. (2020) discutem a importância dos movimentos sociais e associações que defendem uma educação pública, laica e de qualidade. O texto ressalta a necessidade de resistência contra a crescente influência do setor privado nas políticas públicas, sublinhando que essa intervenção ameaça a natureza pública e inclusiva da educação.

O estudo também destaca o papel do Estado na regulação dessas parcerias e na garantia de uma educação pública de qualidade. As autoras argumentam que é essencial um compromisso governamental mais robusto para assegurar que todos os alunos tenham acesso a uma educação de qualidade, independentemente de sua condição socioeconômica, conforme observado por Lélis et al. (2020). A análise das políticas públicas implementadas a partir da década de 1990 revela a intensificação das PPP e a adoção de modelos de gestão privada no setor público. Lélis et al. (2020) apontam que essa tendência foi fortalecida por reformas que visavam descentralizar, focalizar e privatizar os serviços educacionais, muitas vezes sob o pretexto de eficiência e justiça social. Outro aspecto relevante abordado no estudo é a formação de novas subjetividades dentro do sistema educacional, moldadas pela lógica do mercado. As autoras destacam que a introdução de princípios gerenciais e empresariais na educação tem impactos profundos na formação dos profissionais e no currículo escolar, conforme evidenciado nas pesquisas realizadas.

Domiciano (2020) analisa os impactos da privatização na gestão da educação infantil através do Programa de Atendimento Especial à Educação Infantil (PAEEI) em Campinas-SP. A autora discute como a transferência da gestão de Centros de Educação Infantil (CEIs) para o setor privado tem moldado a oferta educacional e aumentado as desigualdades no atendimento infantil. Segundo o estudo em questão, o PAEEI foi implementado em 2007 com a aprovação da Lei Municipal nº 12.884. O programa visa atender à demanda por vagas na educação infantil, transferindo a gestão de CEIs construídos com recursos públicos para entidades privadas sem fins lucrativos. Domiciano (2020) observa que essa política reflete tendências da Nova Gestão Pública (NGP), que prioriza a eficiência e a competitividade típicas do setor privado.

A análise de Domiciano (2020) revela que a implementação do PAEEI resultou em uma expansão significativa de vagas na educação infantil. No entanto, a autora destaca que a gestão privada dos CEIs tem gerado disparidades no atendimento, com variações na qualidade dos serviços oferecidos. Essa privatização, segundo a pesquisa, favorece entidades privadas que muitas vezes carecem de controle e supervisão adequados. Outro ponto crítico levantado pela autora é o impacto das práticas de privatização na laicidade do ensino. Domiciano (2020) aponta que muitas das entidades gestoras são confessionais, o que pode influenciar a abordagem pedagógica e as práticas cotidianas nas unidades educacionais, comprometendo o princípio da laicidade garantido pela Constituição. A pesquisa expõe fragilidades na supervisão administrativa e pedagógica das instituições privadas. A autora ressalta que, apesar da existência de regulamentações, a fiscalização das práticas dessas entidades é frequentemente insuficiente, o que permite irregularidades e inconsistências na prestação do serviço educacional.

O estudo também examina a questão dos repasses financeiros do governo municipal para as entidades privadas gestoras dos CEIs. Domiciano (2020) argumenta que esses repasses são significativos e muitas vezes não são acompanhados por uma prestação de contas transparente, o que levanta preocupações sobre a eficiência e a moralidade no uso dos recursos públicos. Domiciano (2020) também discute o impacto da privatização na oferta de vagas. Segundo os dados analisados, houve uma redução no número de matrículas na rede pública direta enquanto as matrículas em instituições privadas conveniadas aumentaram. A autora sugere que essa mudança configura um avanço da privatização na educação infantil, subordinando esta etapa educacional aos interesses do setor privado.

Outro aspecto relevante abordado no estudo é a sobreposição de recursos públicos para entidades que já possuem convênios de oferta de vagas, criando um cenário de captação extra de fundos. Domiciano (2020) destaca que tal prática não apenas compromete a eficiência do gasto público, mas também perpetua desigualdades no acesso à educação de qualidade. A pesquisa de Domiciano (2020) conclui que, embora o PAEEI tenha expandido a oferta de vagas na educação infantil em Campinas, essa expansão ocorreu às custas da qualidade e da equidade. A autora enfatiza a necessidade de uma regulação mais rigorosa e de uma supervisão eficiente para garantir que os recursos públicos sejam utilizados de forma justa e que todas as crianças tenham acesso a uma educação de qualidade.

Enquanto isso, Santos e Neto (2022) exploram de maneira meticulosa os diversos caminhos pelos quais a privatização da educação pública tem se manifestado em diferentes contextos. Enfatiza-se que a privatização da educação não segue um padrão único, mas se desdobra em múltiplas formas, dependendo do contexto político e econômico de cada país. Santos e Neto (2022) identificam sete rotas principais para a privatização: mercado, financiamento, prestação de serviços, crises econômicas e humanitárias, shadow education e inércia. Essa diversidade de abordagens reflete as várias estratégias adotadas para diminuir a intervenção estatal e aumentar a participação privada na educação pública. Uma das principais contribuições do estudo em questão é a identificação da “privatização por mercado”, onde o fracasso estatal na provisão de serviços educacionais é utilizado como justificativa para a entrada de atores privados, buscando lucros através dos “edunegócios” e diminuindo a rede escolar pública. Este processo é especialmente visível em contextos como a Turquia e América Latina, onde surgem escolas privadas de baixo custo como alternativa ao sistema público debilitado.

Outro ponto central abordado por Santos e Neto (2022) é o impacto das crises econômicas e humanitárias na aceleração dos processos de privatização. O estudo destaca que, em momentos de crise, há uma tendência de os governos cederem espaço para atores privados na provisão de serviços educacionais, o que pode incluir desde a construção e manutenção de escolas até a gestão de currículos e finanças escolares. Este fenômeno é impulsionado pela “modernização da administração pública”, que preconiza a eficiência do setor privado sobre a gestão pública tradicional. A “shadow education”, ou educação sombra, é outro aspecto analisado detalhadamente no estudo. Santos e Neto (2022) descrevem como a terceirização de serviços educacionais e a formação de parcerias público-privadas são formas de privatização encoberta, onde empresas privadas fornecem serviços que anteriormente eram de responsabilidade do Estado. Este modelo tem ganhado força em vários países, refletindo uma mudança estrutural na gestão da educação pública.  

O estudo também aborda a privatização por inércia, onde a falta de investimento público e a negligência estatal criam um ambiente propício para a entrada de atores privados. Esse tipo de privatização ocorre quando o Estado se abstém de suas responsabilidades, forçando escolas e famílias a buscar soluções privadas para problemas educacionais. Isso reforça a ideia de que a privatização é, muitas vezes, uma consequência da falha estatal em garantir uma educação de qualidade para todos.  Santos e Neto (2022) discutem ainda a influência da mídia no apoio e promoção da privatização educacional. O estudo evidencia que a cobertura midiática, frequentemente, favorece o modelo de privatização, moldando a opinião pública de maneira sutil. Este apoio velado ajuda a legitimar e acelerar os processos de privatização, criando uma percepção de que a intervenção privada é uma solução necessária e eficiente para os problemas da educação pública. 

O estudo conduzido por Montano et al. (2021) analisa detalhadamente o processo de privatização da educação infantil no âmbito do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) em duas capitais brasileiras: Campo Grande e Porto Alegre. Esta análise abrange o período de 2009 a 2020, abordando tanto a legislação educacional quanto dados de diversos sistemas de ensino e materiais de imprensa. Segundo o estudo em questão, a legislação brasileira, através do Fundeb, permitiu que recursos públicos fossem transferidos para entidades privadas sem fins lucrativos, destacando a Lei n° 12.101/2009 e a Lei n° 13.019/2014 como marcos regulatórios que facilitam essa transferência. Montano et al. (2021) argumentam que tal processo contribui para a privatização da educação infantil ao financiar matrículas em instituições conveniadas, o que reflete uma política pública que favorece parcerias público-privadas.

No caso específico de Campo Grande, Montano et al. (2021) apontam que, apesar da legislação permitir a privatização, houve uma interrupção significativa desse processo devido a intervenções do Ministério Público. Essas ações judiciais revelaram irregularidades no uso dos recursos públicos por entidades filantrópicas, como a Organização Mundial de Educação Pré-Escolar (OMEP) e a Sociedade Caritativa e Humanitária (SELETA), resultando na proibição de novos contratos com o poder público e obrigando o município a reassumir a gestão da educação infantil. Em Porto Alegre, a situação é bastante distinta. A pesquisa mostra que a cidade ampliou significativamente a oferta de educação infantil através de parcerias com entidades privadas sem fins lucrativos. Esse modelo de gestão mista, conforme Montano et al. (2021), resultou em um aumento expressivo das matrículas em creches e pré-escolas conveniadas, destacando uma tendência crescente de privatização impulsionada pela administração municipal.

Montano et al. (2021) também discutem as implicações financeiras dessas parcerias. Os dados revelam que, em Porto Alegre, a proporção de recursos do Fundeb destinados às entidades privadas aumentou substancialmente ao longo dos anos, levantando preocupações sobre a sustentabilidade financeira e a equidade na distribuição de recursos educacionais. Essa análise sugere que a privatização não apenas transfere a responsabilidade de oferta do Estado para o setor privado, mas também redireciona fundos públicos de maneira que pode comprometer a qualidade da educação oferecida pela rede pública.

O estudo conduzido por Correa et al. (2021) explora de maneira abrangente as estratégias de privatização da educação infantil em Ribeirão Preto, destacando tanto os mecanismos adotados quanto as resistências encontradas nesse processo. A pesquisa aborda a complexidade e os impactos dessa tendência na qualidade e na equidade da oferta educacional. Segundo Correa et al. (2021), a privatização da educação infantil em Ribeirão Preto se dá principalmente através de parcerias público-privadas (PPPs), onde entidades privadas sem fins lucrativos são contratadas para gerenciar escolas públicas. Este modelo, conforme destacado no estudo, visa ampliar a oferta de vagas e melhorar a gestão escolar, no entanto, levanta preocupações sobre a qualidade do ensino e a transparência no uso dos recursos públicos.

O estudo em questão evidencia que, embora as PPPs tenham contribuído para a expansão do acesso à educação infantil, elas também trouxeram desafios significativos. Correa et al. (2021) observam que a falta de fiscalização rigorosa e a variabilidade na qualidade das instituições privadas conveniadas resultam em disparidades no atendimento às crianças, afetando a equidade do sistema educacional. As autoras discutem a precarização das condições de trabalho dos profissionais de educação nas instituições conveniadas. De acordo com as pesquisas realizadas, os professores dessas entidades muitas vezes recebem salários inferiores e enfrentam condições de trabalho mais precárias em comparação aos seus colegas da rede pública, o que pode impactar negativamente a qualidade do ensino oferecido.

Outro ponto crucial abordado por Correa et al. (2021) é a resistência da comunidade e dos movimentos sociais contra a privatização. O estudo detalha como grupos locais têm se organizado para defender a educação pública, realizando protestos e campanhas para sensibilizar a população sobre os riscos associados à transferência da gestão educacional para o setor privado. A pesquisa também analisa o impacto financeiro das PPPs na educação infantil. Correa et al. (2021) apontam que, apesar dos investimentos em entidades privadas, a demanda por vagas em creches e pré-escolas ainda não foi plenamente atendida, indicando que a privatização não é uma solução definitiva para os problemas estruturais da educação infantil em Ribeirão Preto.

A análise das ideias apresentadas no texto de Martins et al., (2020) revela uma reflexão crítica sobre a privatização da educação básica, enfocando especialmente a emergência das empresas sociais e sua interação com o setor público. O estudo destaca a “privatização de novo tipo”, que não apenas redireciona recursos públicos para entidades privadas, mas também altera profundamente o papel do Estado na gestão educacional. A investigação de Martins et al., (2020) apresenta um quadro onde a educação, antes vista como um direito universal, passa a ser tratada como mercadoria, o que tem implicações significativas para a equidade e a qualidade educacional.

Segundo as pesquisas realizadas, as empresas sociais emergem como protagonistas nesse cenário, oferecendo serviços educativos financiados pelo Estado. Essa relação público-privada é caracterizada pela transferência de recursos e gestão escolar para essas organizações, que operam sob uma lógica de mercado. O estudo em questão evidencia que tal prática resulta na “desfiguração” do espaço público educacional, tornando as instituições escolares mais parecidas com empresas que visam lucro do que com espaços dedicados ao desenvolvimento humano integral (Martins et al., 2020).

O conceito de “privatização de novo tipo”, conforme discutido no texto, incorpora tanto a gestão quanto a oferta e o currículo, redefinindo as funções do Estado. Essa abordagem, influenciada por diretrizes gerenciais, busca eficiência e controle de custos, mas frequentemente à custa da qualidade e da universalidade do acesso à educação. Conforme argumentado, esse modelo promove a redução das funções públicas do Estado, mantendo o financiamento, mas transferindo a gestão para o setor privado (Martins et al., 2020). O estudo de Martins et al., (2020) também aborda as implicações dessa nova configuração para a democratização da educação. A transferência de gestão para empresas sociais, que muitas vezes seguem preceitos religiosos ou filantrópicos, pode comprometer a laicidade e a universalidade do ensino, ao introduzir agendas particulares nos currículos escolares. Tal prática, segundo a pesquisa, desestabiliza o princípio de políticas sociais universais, reforçando desigualdades e segmentações no atendimento educacional.

A análise revela que a privatização de novo tipo se estende a diversas etapas da educação básica, com particular avanço na educação infantil. O texto indica que essa prática cria um sistema educacional hierarquizado e diversificado, onde o acesso à educação de qualidade passa a depender da capacidade das famílias de acessar esses serviços privatizados, frequentemente localizados em áreas mais privilegiadas (Martins et al., 2020). A abordagem crítica de Martins et al., (2020) ressalta a contradição inerente entre as finalidades públicas e privadas na educação. Enquanto o setor público visa a universalidade e a equidade, as empresas sociais, regidas pela lógica do mercado, podem priorizar eficiência e lucratividade. Essa tensão é central para compreender os desafios e as limitações da privatização de novo tipo, conforme destacado no estudo.

O estudo também aponta que a adoção desse modelo gerencialista não ocorre sem resistência. Movimentos sociais, organizações da sociedade civil e conselhos educacionais frequentemente se opõem a essas iniciativas, argumentando que comprometem o direito à educação pública, gratuita e de qualidade. No entanto, a pesquisa mostra que essas resistências nem sempre são suficientes para barrar o avanço das políticas privatizantes (Martins et al., 2020). Outro aspecto relevante abordado é a legalidade e os instrumentos jurídicos que viabilizam a privatização. O texto destaca como decretos e leis municipais foram adaptados para facilitar a contratação de empresas sociais sem a necessidade de concorrência pública, revelando um alinhamento políticoadministrativo que favorece a privatização. Esse arcabouço legal é crucial para entender a pervasividade do fenômeno nas diversas esferas da administração pública (Martins et al., 2020).

Em conclusão, os estudos de Carvalho e Silva (2023), Lélis et al. (2020), Domiciano (2020), Santos e Neto (2022) e Montano et al. (2021) convergem na análise crítica das diferentes formas de privatização da educação no Brasil. Esses estudos sublinham como a privatização, em suas diversas manifestações, resulta em desafios significativos para a equidade e a qualidade da educação infantil e básica. A transferência de recursos e gestão para o setor privado, apesar de expandir a oferta de vagas, frequentemente compromete a universalidade e a laicidade da educação, além de aprofundar desigualdades socioeconômicas.

Carvalho e Silva (2023) destacam a importância do financiamento público adequado para garantir a qualidade da educação infantil. A pesquisa sugere que a privatização pode surgir como uma solução para a incapacidade do setor público de atender à demanda, mas alerta para as desigualdades resultantes no acesso à educação de qualidade. A falta de regulação rigorosa e de capacitação adequada dos profissionais são apontadas como problemas críticos que comprometem o desenvolvimento integral das crianças.

Lélis et al. (2020) analisam a influência das redes de políticas e do terceiro setor na educação brasileira, ressaltando como essas parcerias público-privadas transformam direitos sociais em mercadorias. A introdução de princípios empresariais na gestão educacional é vista como um fator que aumenta as desigualdades e ameaça a natureza pública e inclusiva da educação. Movimentos sociais e associações que defendem uma educação pública e de qualidade são destacados como essenciais para resistir à crescente influência do setor privado nas políticas públicas.

Domiciano (2020) foca no Programa de Atendimento Especial à Educação Infantil (PAEEI) em Campinas, revelando como a gestão privada de Centros de Educação Infantil (CEIs) leva a disparidades no atendimento e a um possível comprometimento da laicidade do ensino. A pesquisa aponta para a necessidade de uma supervisão mais eficiente e de uma prestação de contas transparente para garantir que os recursos públicos sejam utilizados de forma justa e que a educação de qualidade seja acessível a todas as crianças.

Finalmente, Santos e Neto (2022) e Montano et al. (2021) fornecem uma visão detalhada sobre as diversas rotas e mecanismos de privatização. Santos e Neto discutem como crises econômicas e humanitárias aceleram os processos de privatização, enquanto Montano et al. analisam o impacto financeiro das parcerias público-privadas e a necessidade de uma regulação mais eficaz. Ambos os estudos alertam para as implicações em longo prazo dessas políticas, que podem minar a sustentabilidade e a equidade do sistema educacional público. Os estudos analisados evidenciam que a privatização da educação, embora possa oferecer soluções de curto prazo para a expansão da oferta de vagas, apresenta sérios riscos para a qualidade e a equidade da educação. É crucial um compromisso governamental robusto e uma regulação eficiente para garantir que a educação permaneça um direito universal e que os recursos públicos sejam utilizados de forma a promover a justiça social e o desenvolvimento integral das crianças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A presente revisão revela um fenômeno multifacetado, cujas implicações vão além da mera transferência de gestão de instituições educacionais para entidades privadas. A análise crítica dos estudos selecionados demonstra que, embora a privatização possa ser vista como uma estratégia para expandir a oferta de vagas e aumentar a eficiência administrativa, seus impactos na qualidade, acessibilidade e equidade do ensino infantil são profundamente complexos e muitas vezes negativos.

Primeiramente, a privatização tende a introduzir uma lógica de mercado na educação infantil, onde a busca por eficiência e lucro pode comprometer a qualidade do ensino e o bem-estar dos alunos. Os estudos revisados indicam que, em muitos casos, as instituições privadas não conseguem garantir um padrão mínimo de qualidade, resultando em disparidades significativas na experiência educacional das crianças. Além disso, a falta de fiscalização adequada e a variabilidade na qualidade dos serviços oferecidos pelas instituições privadas conveniadas são pontos críticos que afetam negativamente o sistema educacional como um todo.

A revisão também destaca que a privatização pode exacerbar desigualdades sociais e educacionais. As instituições privadas tendem a selecionar alunos com base em critérios que podem excluir crianças de famílias de baixa renda ou com necessidades educacionais especiais. Esse processo de segregação educacional aumenta a disparidade entre diferentes grupos sociais, comprometendo o princípio da equidade na educação pública. Além disso, a transferência de recursos públicos para o setor privado pode enfraquecer as instituições públicas, desviando talentos e fundos essenciais para a manutenção de uma educação de qualidade para todos.

Outro aspecto crucial abordado é a necessidade de uma regulação mais rigorosa e de mecanismos efetivos de supervisão e avaliação. Políticas públicas devem ser desenhadas de maneira a garantir que a privatização não comprometa a universalidade e a qualidade da educação infantil. Isso inclui a implementação de regulamentações claras, a fiscalização constante das práticas das entidades privadas e a avaliação contínua dos impactos das parcerias público-privadas. Somente assim será possível mitigar os efeitos negativos da privatização e assegurar que os recursos públicos sejam utilizados de forma justa e eficiente.

Em síntese, a análise dos processos de privatização em curso na educação pública infantil revela que, embora essa prática possa oferecer soluções imediatas para problemas estruturais, ela apresenta sérios riscos para a qualidade e a equidade do ensino. É essencial que as políticas de privatização sejam acompanhadas de um compromisso renovado com a educação pública, garantindo que todos os alunos, independentemente de sua condição socioeconômica, tenham acesso a uma educação de qualidade. A reflexão crítica e a ação coordenada são fundamentais para construir um sistema educacional inclusivo e justo, que promova o desenvolvimento integral das crianças e a justiça social.

REFERÊNCIAS   

CARVALHO, Celso do Prado Ferraz; SILVA, Gicelia Santos. Financiamento e privatização da Educação Infantil de 0 a 3 anos no Município de São Paulo. Educação, p. e114/1-23, 2023.

CORREA, Bianca; DE REZENDE PINTO, José Marcelino; GARCIA, Teise de Oliveira Guaranha. Estratégias de privatização da educação infantil em ribeirão preto e as resistências. FINEDUCA-Revista de Financiamento da Educação, v. 11, 2021.

DOMICIANO, CASSIA. Nova Gestão Pública e Programa ‘Nave-mãe’: caminhos comuns à privatização. Educação em Revista, v. 36, p. e232177, 2020.

LÉLIS, Úrsula Adelaide et al. Redes de políticas, terceiro setor e os movimentos de privatização da educação brasileira. Revista Brasileira de Educação do Campo, v. 5, p. e10845-e10845, 2020.

MARTINS, André Silva; SOUZA, Camila Azevedo; PINA, Leonardo Docena. Empresas sociais e a privatização de novo tipo da educação básica: um estudo sobre a relação público-privada em cidades de Minas Gerais-Brasil. Education Policy Analysis Archives, v. 28, p. 183-183, 2020.

MONTANO, Monique Robain; PERONI, Vera Maria Vidal; FERNANDES, Maria Dilnéia Espíndola. O processo de privatização da educação infantil no âmbito do Fundeb. Fineduca: revista de financiamento da educação. Porto Alegre, RS. Vol. 11, n. 28 (2021), p. 1-18, 2021.

SANTOS, Mariline; NETO-MENDES, António. Processos de privatização da educação pública: Uma revisão sistemática da literatura. Education Policy Analysis Archives, v. 30, p. (83)-(83), 2022.


1Especialista em coordenação pedagógica-UFU