LETRAMENTO LITERÁRIO E SEUS BENEFÍCIOS NO AUXÍLIO À RECUPERAÇÃO DA DEPENDÊNCIA QUÍMICA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10247231320


Eliane Borges Lundin1
Ana Maria Bueno Accorsi2


Resumo

O presente trabalho aborda o letramento literário e o modo como a leitura pode ser um objeto na busca da recuperação e socialização, contribuindo para a formação de sujeitos leitores em um espaço de recuperação de dependentes químicos. A metodologia é de cunho bibliográfico e de pesquisa-ação, com abordagem qualitativa. Tem por objetivos versar sobre a importância da leitura, incentivar o letramento literário, propiciando um ambiente agradável e diversificado, com intuito de fomentar a formação de sujeitos leitores, desafiando assim, os pacientes para o processo de construção de novos saberes. Para tanto, a análise dos dados foi realizada partindo das contribuições e atividades realizadas pelos internos participantes da pesquisa. Desta maneira, a antropologia imersa na pesquisa, exerce um método diversificado e de inserção na comunidade em questão. Essas informações levaram à conclusão de que o letramento literário tem um enfoque importante na trajetória de recolocação dos pacientes na vida em sociedade, mesmo sendo um processo lento, a pesquisa obteve bons resultados.

Palavras-chave: Letramento literário. Leitura. Dependência química. Comunidades terapêuticas.

Abstract

The present study deals about literary literacy and how reading might be useful in the search for recovering and socializing, contributing for the training of readers in an environment of chemical addicts recovery. It is based on bibliographical survey, and action research with qualitative approach. It aims at discussing about the importance of reading, at stimulating literary literacy, in a pleasant and diverse environment, in order to promote reading training, thus challenging patients to the process of building new knowledge. To do so, the analysis of the data was made based on the contributions and activities carried out by the research participants. In this way, the anthropology immersed in the research exerts a diversified method and insertion in the community in question. This information led to the conclusion that literary literacy plays an important role on the trajectory of patient replacement in life in society, even though it is a slow process, the research brought up good results.

Keywords: Literary literacy; Reading; Drug addiction; Therapeutic Community

1  Introdução

Este trabalho visa entender e definir alguns conceitos, como leitura, letramento literário, comunidade terapêutica e dependência química. É de fundamental importância inferir seus conceitos e possíveis benefícios, já que ambos têm sido alvo de muitos estudos e pesquisas, que apontam quão necessários são dentro da vida em sociedade.

Busca colaboração de Petit (2009, p.15): “A ideia de que a leitura pode contribuir para o bem estar-estar é sem dúvida tão antiga, quanto à crença de que pode ser perigosa ou nefasta. Seus poderes reparadores, em particular, foram notados ao longo dos séculos”. Bem como, busca outras colaborações necessárias e pertinentes para o bom andamento do trabalho.

A fruição, o prazer e o gosto pela leitura são elementos, que, somados e de maneira mais ampla, podem definir uma nova concepção de letramento: o letramento literário. Para o letramento literário as habilidades de leitura vão além de ler gêneros literários, mas, sugerem a interação e compreensão de textos, em que o letramento se torna uma ferramenta metodológica na formação de leitores proficientes.

As drogas, tanto lícitas quanto ilícitas, fazem parte da vida em sociedade desde sempre. Por isso, a importância de uma pesquisa dentro dessa área, que busque não só mostrar o problema, mas sim, uma possível solução, mesmo que não seja de modo definitivo, o que seria pretensão demais, porém, dar início a um processo que possa, ao longo dos tempos, ajudar a melhorar a vida de muitos indivíduos, que se encontram imersos nesse mundo obscuro.

A metodologia da pesquisa foi de cunho bibliográfico e pesquisa-ação, com abordagem qualitativa, de modo a avaliar os resultados da pesquisa.

O trabalho é educacional e envolveu a criação de uma biblioteca. A pesquisa foi realizada em uma comunidade terapêutica (CT), na região da grande Porto Alegre, com 95 internos (em média), sendo que, desses, 50 participaram da retirada de livros.

Partindo do pressuposto de que a leitura auxilia no processo de crescimento do indivíduo, na busca de si mesmo e de sua identidade, possibilitando, assim, novas oportunidades de ressocialização, estabeleceu-se as perguntas principais de pesquisa: pode-se usar o letramento literário como base para auxiliar no processo de reconstrução de indivíduos? Como a leitura pode atuar na busca da recuperação, socialização e na descoberta de si mesmo, na procura por sua identidade e na formação de sujeitos leitores em um espaço de recuperação de dependentes químicos?

Os objetivos do projeto são de:

  1. mostrar a importância da leitura, em um espaço não tradicional, ou seja, em uma comunidade terapêutica para recuperação de dependência química;
  2. incentivar o letramento literário entre os pacientes como um auxílio na busca da recuperação, na descoberta de si mesmos e na concentração para a formação de sujeitos leitores;
  3. proporcionar um ambiente de leitura diversificado e agradável; fomentar o prazer pela leitura;
  4. desafiar os pacientes para o processo de construção de novos saberes e auxiliar no processo de socialização.

Os processos de desenvolvimento da pessoa, a busca de sua identidade, autonomia e a ressocialização vêm acontecendo desde os primórdios da educação, sendo utilizados como um auxílio em todos os campos da sociedade, até mesmo na dependência química.

Para Sorenson, a identidade é a criação de um sentimento interno de semelhança e continuidade, uma unidade de personalidade sentida pelo indivíduo e reconhecida por outro, que é o “saber quem sou” (2011, p. 32); portanto, o reconhecimento da personalidade única é o que estabelece a identidade que se busca em qualquer contexto educacional.

Toda educação, deveria ser social, política, crítica, e principalmente, deveria preservar a igualdade e o respeito, fatores inerentes e essenciais para uma educação e um ensino aprendizado de valor, Paulo Freire (1996), sustentava que toda educação é política, porque supõe um projeto de sociedade. A educação na sociedade capitalista tende a procurar vender o sonho de que todos podem ser capitalistas, utilizando uma estratégia ardilosa: “estude, arrume um emprego e fique rico”. É assim que a educação capitalista e sem comprometimento, vem contribuindo para a reprodução das desigualdades sociais, para a opressão e a exclusão de muitos indivíduos, que acabam abandonando seus ideais e sonhos, entrando, assim, no mundo das drogas.

Com o intuito de organização, a pesquisa está dividida em seis capítulos, a introdução apresenta o trabalho e serve de base para os subsequentes. O capítulo dois apresenta o embasamento teórico da pesquisa, que está relacionado com os demais capítulos posteriores. A metodologia está presente no capítulo três, trazendo os métodos que foram utilizados na pesquisa. O capítulo quatro, denominado de Desenvolvimento do letramento literário como terapia em uma comunidade terapêutica (CT), relaciona-se à luz das ideias e vai ao encontro do embasamento e da metodologia. Posteriormente são apresentados os resultados e discussões, no capítulo cinco, no qual, constam os relatos e a trajetória, bem como, os resultados obtidos na pesquisa. No capítulo seis, as considerações finais, que estão diretamente relacionadas com os capítulos anteriores. Esse capítulo traz não somente as considerações, mas, também, possíveis reflexões acerca do trabalho exposto na pesquisa. Por fim, o capítulo sete apresenta as referências.

2  Referencial teórico

Para compreensão e embasamento da pesquisa, busca-se a colaboração de alguns autores, que tratam dos assuntos aqui pertinentes, letramento literário e dependência química, visando um trabalho educacional. Importante também referenciar as comunidades terapêuticas e alguns conceitos necessários ao entendimento do trabalho.

Aberasttury e Knobel (1981), por meio de algumas de suas obras, dão um auxílio aos mediadores, que lidam, muitas vezes, diariamente com a dependência química. Os autores propõem um limite entre a realidade e os conflitos que envolvem, não só adolescentes, como também uma grande massa da população que, de algum modo, tem envolvimento com a dependência química. Para Diehl et al (2011) historicamente problemas relacionados ao uso de drogas sempre existiram e que o aumento progressivo do consumo e a influência de aspectos psicológicos, genéticos, ambientais e morais, corrobora para o vício.

Segundo a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), a dependência química é caracterizada pelo uso descontrolado, de uma ou mais substâncias químicas psicoativas, com repercussões negativas em uma ou mais áreas da vida do indivíduo. A dependência química é uma doença primária, crônica, progressiva e fatal, multidimensional e multifacetada, ou seja, atinge o indivíduo em diversos níveis: físico, mental, emocional e espiritual. Assim como, muitas outras doenças, os aspectos físicos, sociais, culturais e comportamentais, fazem parte desta doença, que traz consigo inúmeros prejuízos.

Os prejuízos neurológicos, cognitivos e relacionais causados pelas substâncias são em sua maioria irreversíveis, progressivos e passam despercebidos pelo indivíduo. Os danos físicos e sociais quando percebidos impulsionam, ainda mais, o dependente químico a uma insaciável busca pelos efeitos da droga (SILVA, 2000, p.14).

 A Dependência Química é uma doença mais decorrente de uma pane na química cerebral do que um colapso do caráter. A Organização Mundial da Saúde – OMS afirma que a dependência química é um estado psíquico e físico que sempre inclui uma compulsão de modo contínuo ou periódico, podendo causar várias doenças crônicas físico-psíquicas, com sérios distúrbios de comportamento. Pode também, ser resultado de fatores biológicos, genéticos, atingindo toda a sociedade, desde a classe social mais elevada à mais baixa. A Classificação Internacional de Doenças – CID-10 define-a como transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de substâncias psicoativas.

De Leon (2009, p. 45) afirma que o abuso de substâncias é um transtorno da pessoa como um todo, de maneira inteira, que afeta algumas ou todas as áreas da vida, de tal modo que, estão tipicamente envolvidos problemas cognitivos e de comportamento, bem como perturburbações do humor; o pensamento pode mostra-se irrealista ou desorganizado, no qual existe uma confusão de valores e sobre a existência, provocando comportamentos de caráter antissocial. São frequentes as dificuldades e os déficits de capacidades verbais, de leitura, de escrita ou realização de tarefas. Diz ainda que, é evidente a “falência” moral e espiritual, descrita em termos psicológicos e existenciais.

Ribeiro (2007, p.08) traz sua colaboração no que diz respeito às estratégias terapêuticas:

As estratégias terapêuticas se organizam a partir da combinação simultânea ou consecutiva de três componentes: o tratamento profissional especializado, (ambulatórios, enfermarias de desintoxicação), estruturas de apoio não profissional (oficinas, centros culturais) e atividades não oficiais de ajuda mútua ou autoajuda (12 passos).

Uma das maneiras de fazer com que o dependente químico possa ser reabilitado em termos cognitivos e comportamentais é por meio da leitura. Para tanto, acredita-se que sempre se deve poder fazer um projeto junto com pacientes de instituições terapêuticas para despertar o prazer pela leitura. Lois (2010) aponta que o poder maior que a leitura proporciona ao cidadão, não deve estar asociada apenas, em sua autonomia para atividades da vida diária, mas em seu poder de escolha, pois, a leitura amplia sua bagagem, seus conhecimentos, expressa sua subjetividade, contribuindo de forma significativa na interação social.

Petit (2008) lembra que o mundo inteiro é um espaço em crise e que nesse contexto de dificuldades, violências e desigualdades, crianças, adolescentes e adultos poderiam redescobrir o papel dessa atividade (leitura), na reconstrução de si mesmos e, além disso, entender a contribuição única da literatura e da arte para a atividade psíquica. Para a vida, em suma.

Neste sentido Petit (2013, p. 41) ressalta que:

O primeiro aspecto que eu gostaria de evocar, porque talvez seja a base de todo o resto, é que a leitura pode ser em qualquer idade, um atalho privilegiado para elaborar ou manter um espaço próprio, um espaço íntimo, privado. Como dizem os leitores: a leitura permite elaborar um espaço próprio, é “um quarto para si mesmo”, para falar com Virginia Woolf, inclusive em contextos onde nenhum espaço pessoal parece ter sobrado.

Quanto ao letramento literário, sabe-se que consiste, não somente na leitura de uma obra, mas sim, na construção de mecanismos que não estão ligados somente ao âmbito escolar, e que sejam capazes de desenvolver outras habilidades tais como: capacidade de múltiplas interpretações, habilidades sociolinguísticas, interação e participação, o prazer e o gosto pela leitura.

Para Cosson (2014), a leitura literária, não deve ser tratada como uma atividade exclusivamente individual, pois, é justamente o contrário, já que, o efeito produzido é de inserção profunda em uma sociedade, é o resultado do diálogo que a literatura permite com o mundo e com os outros.

O autor ainda argumenta que:

[…] devemos compreender que o letramento literário é uma prática social e, como tal, responsabilidade da escola. A questão a ser enfrentada não é se a escola deve ou não escolarizar a literatura, como bem nos alerta Magda Soares, mas sim como fazer essa escolarização sem descaracterizá-la, sem transformá-la em um simulacro de si mesma que mais nega do que confirma seu poder de humanização (COSSON, 2009, p. 23).

A fruição e o prazer pela literatura são elementos, que somados e de forma mais ampla, podem definir uma nova concepção de letramento, o letramento literário, em que, as habilidades vão além de ler gêneros literários, mas, da interação e compreensão das leituras, no qual o letramento se torna uma ferramenta metodológica, na formação de leitores proficientes.

O letramento literário começa na infância e segue por toda a vida, a cada texto lido, a cada nova descoberta em uma série ou novela, é o que se sente ao ler um texto e além de compreendê-lo, apropriar-se dele, passando também a fazer parte da história, por isso, esse processo de interação com a leitura, passa a ser um processo de apropriação da linguagem e desse modo, da literatura, que passa a ser o letramento literário. No dizer de Cosson (2014, 11-12):

Escolhemos denominar a proposta de letramento literário para assinalar sua inserção em uma concepção maior de uso da escrita, uma concepção que fosse além das práticas escolares usuais. […] Trata-se não da aquisição da habilidade de ler e escrever, como concebemos usualmente a alfabetização, mas da apropriação da escrita e das práticas sociais que estão a ela relacionadas. Há, portanto, vários níveis e diferentes tipos de letramento. […] O letramento literário, conforme o concebemos, possui uma configuração especial. Pela própria condição de existência da escrita literária, o processo de letramento literário que se faz via textos literários compreende não apenas uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas também, e sobretudo, uma forma de assegurar seu efetivo domínio. Daí sua importância na escola, ou melhor, sua importância em qualquer processo de letramento, seja aquele oferecido na escola, seja aquele que se encontra difuso na sociedade.

Além da ideia de apreciação do texto literário, outro aspecto relevante que os autores costumam considerar, diz respeito à linguagem literária e da experiência literária.

Neste sentido Cosson (2014, p. 17) afirma que:

Na leitura e na escrita do texto literário encontramos o senso de nós mesmos e da comunidade a que pertencemos. A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos. E isso se dá porque a literatura é uma experiência a ser realizada. É mais que um conhecimento a ser reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim sem renúncia da minha própria identidade. No exercício da literatura, podemos ser outros, podemos viver como os outros, podemos romper os limites do tempo e do espaço de nossa experiência e, ainda assim, sermos nós mesmos. […] A experiência literária não só permite saber da vida por meio da experiência do outro, como também vivenciar essa experiência […].

Já Paulino (apud PINHEIRO, 2004, p. 56), diz que: “a formação de um leitor literário significa a formação de um leitor que saiba escolher suas leituras, que aprecie construções e significações verbais de cunho artístico, que faça disso parte de seus fazeres e prazeres”. Ou seja, o leitor literário é capaz de interagir, apreciar e participar do processo da leitura, e ainda compreender a leitura como um prazer e não meramente como uma obrigação, sendo capaz de reconhecer e aproveitar as oportunidades que a leitura poderá lhe proporcionar, tanto em nível de conhecimento de mundo, como em termos estilísticos e linguísticos.

Sabe-se que os usuários de substâncias químicas têm muitas dificuldades de convivência. Normalmente suas relações são conturbadas, apresentam dificuldades de manter seus estudos, de socialização, e problemas no trabalho e, ocorre, também, uma deterioração na qualidade de vida. Para eles a dificuldade é maior em todos os sentidos, até mesmo, para tomar uma decisão.

Os residentes em CTs exibem uma variedade de características cognitivas associadas a seus problemas de abuso de substâncias e de estilo de vida. São típicos os déficits de percepção, as dificuldades de tomar decisões, os déficits de julgamento e a carência de capacidades de resolução de problemas. Adicionalmente, falta a muitos deles capacidades educacionais, vocacionais, sociais, interpessoais, e um número crescente revela claras deficiências de aprendizagem. (DE LEON, 2009. p. 53)

Diante de tantas dificuldades, a leitura é uma ferramenta, que pode auxiliar nesse processo doloroso de recuperação dos dependentes químicos, ajudando a melhorar a percepção e a memória, e principalmente a ressocialização. Muitos revelam percepções depreciativas a seu próprio respeito, a seu comportamento moral ético, não conseguem administrar seus sentimentos e nem expressá-los. Ler é uma condição básica e necessária para o bom funcionamento da memória.

A Dra. Anna Gabriela Fuks ([20–].), afirma que:

A leitura ativa novas memórias e vasculha as memórias que já temos, por isso é tido como o principal exercício. Mas ela deve estar associada a outros fatores, como dormir bem, conversar bastante, ter uma alimentação adequada e fazer atividade física regularmente. Como a memória é uma das primeiras funções cerebrais a se deteriorar e o declínio dessa capacidade afeta nossa liberdade e autonomia, devemos cuidar dela para mantê-la ativa, pois assim poderemos melhorar nossas habilidades, mudar de comportamento e seguir evoluindo e aprendendo.

Portanto, a leitura pode ser em qualquer situação, em qualquer idade e a qualquer tempo, uma forma privilegiada, para ajudar na construção do privado, Petit (2009, p. 41) diz que: “a leitura permite criar um espaço próprio, é um “quarto para si mesmo”, diz ainda que esse espaço criado pela leitura não é apenas um espaço ilusório, mas sim que pode ser o próprio lugar da elaboração ou da reconquista de uma posição de sujeito, da sua história.

3  Procedimentos metodológicos

A metodologia usada na pesquisa foi de cunho bibliográfico e de pesquisa-ação, com abordagem qualitativa, com objetivos descritivos. As abordagens foram apoiadas em fundamentos epistemológicos dentro desse enfoque.

Quanto à forma de abordagem dos sujeitos pesquisados e suas observações é preciso que haja uma conversação amigável e coerente, desde o primeiro momento. Explicando a relevância da pesquisa, Marconi e Lakatos (2003, p.76), afirmam que:

Um mesmo objeto ou fenômeno – uma planta, um mineral, uma comunidade ou as relações entre chefes e subordinados – pode ser matéria de observação tanto para o cientista quanto para o homem comum; o que leva um ao conhecimento científico e outro ao vulgar ou popular é a forma de observação.

A pesquisa bibliográfica baseia-se em materiais publicados anteriormente, Essa interação leva ao aprimoramento do trabalho e enriquece a pesquisa.

Encontra-se a definição em Gil (2010, p. 29), de que:

A pesquisa bibliográfica é elaborada com base em material já publicado. Tradicionalmente, esta modalidade de pesquisa inclui material impresso, como livros, revistas, jornais, teses, dissertações e anais de e anais de eventos científicos. Todavia, em virtude da disseminação de novos formatos de informação, estas pesquisas passaram a incluir outros tipos de fontes, como discos, fitas magnéticas, CDs, bem como material disponibilizado pela internet.

Já na pesquisa-ação o processo tem intervenção, visando assim uma modificação do sujeito, que, no caso, se deu pela leitura, pela observação e pela prática de atividades, buscando-se alcançar algum resultado prático. Segundo Gil (2010), esse tipo de pesquisa, vem emergindo como uma forma de metodologia, por ser uma modalidade que não se ajusta ao modelo clássico de pesquisa científica, tem características situacionais, que visam diagnosticar um problema e uma situação específicos.

Segundo Thiollente (2003, p. 14) a pesquisa-ação pode ser definida como:

“[…] um tipo de pesquisa social participante, com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo, no qual pesquisadores e participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo […].

A abordagem qualitativa, segundo Gil (2010), é usada para que se possa avaliar a qualidade dos resultados da pesquisa, e saber como os dados foram obtidos, bem como os procedimentos que foram adotados para a análise e interpretação.

Não é uma metodologia particular, mas sim um conjunto de metodologias. Silva e Menezes (2001, p. 20), afirmam que:

Pesquisa qualitativa: considera que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, isto é, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito que não pode ser traduzido em números. A interpretação dos fenômenos e a atribuição de significados são básicas no processo de pesquisa qualitativa. Esta não requer o uso de métodos e técnicas estatísticas. O ambiente natural é a fonte direta para coleta de dados e o pesquisador é o instrumento-chave. Tal pesquisa é descritiva. Os pesquisadores tendem a analisar seus dados indutivamente. O processo e seu significado são os focos principais de abordagem.

Quanto aos objetivos, a pesquisa classifica-se como descritiva. Nesse sentido Gil (2002, p.41-42) traz suas contribuições dizendo que: “As pesquisas descritivas têm como objetivo primordial a descrição das características de determinada população ou fenômeno, ou então o estabelecimento de relações entre variáveis”.

Os métodos científicos têm sua importância reconhecida, já que, há várias formas para se identificar e tentar solucionar um problema, devendo o pesquisador achar a que melhor se adapta a sua proposta de trabalho, ampliando assim as possíveis soluções e respostas, para o problema proposto.

O público alvo da pesquisa foram, em média, 50 homens, com idades variadas, todos internos da comunidade.

A pesquisa tem por objetivos, mostrar o modo como a leitura auxilia na recuperação da dependência química, seus benefícios nessa trajetória e as percepções de cada interno, antes, durante e depois das leituras.

A coleta de dados para o tipo de pesquisa denominado pesquisa-ação, foi feita por meio de textos escritos pelos internos (sem identificação), fichas de leituras, e principalmente por observações, feitas pela pesquisadora. Já na pesquisa bibliográfica os dados foram obtidos através de pesquisas realizadas anteriormente.

Os dados analisados foram: os textos escritos, as avaliações dos livros (feitas pelos internos participantes), após as leituras, as observações feitas, os comentários, as percepções de cada um durante o sarau, as visões e respostas dadas durante as conversas, bem como, as leituras que escolheram e, o que, elas representaram.

4                Desenvolvimento do letramento literário como terapia em uma comunidade terapêutica (CT)

Para De Leon (2003), as comunidades terapêuticas (CT) têm dado provas de constituir uma eficiente abordagem de tratamento do abuso de substâncias e de problemas da vida vinculados a este abuso. As abordagens são feitas fora das práticas psiquiátricas, como clínicas para tratamento de dependentes, sendo hoje uma modalidade de serviços humanos.

A comunidade terapêutica na qual o presente estudo se desenvolveu e, onde as atividades forma realizadas, localiza-se na região da grande Porto Alegre; é uma comunidade religiosa, que se intitula evangélica. Com a finalidade de manter seu anonimato, não será identificada.

A comunidade possui muitas regras, restrições e até censura de materiais, que foram apresentados desde o início da pesquisa, sendo necessário solicitar autorização para desenvolver todas as atividades posteriormente desenvolvidas pela pesquisadora.

Dispõe de uma área ampla, com aproximadamente 32 hectares, ou seja, uma grande extensão de terras, com plantações, prédios, casas de moradia, padaria, trufaria, gramados extensos, que dependem de uma enorme manutenção diária. Toda a manutenção é feita pelos internos, que trabalham muito para manter tudo sempre limpo e organizado, e, além disso, muitos prestam manutenção aos prédios com serviços de carpintaria, elétrica, área de informática, refeitório, padaria, cada um dentro daquilo que trabalhava na sua vida social cotidiana, fora da CT. Muitas vezes com carga horária de trabalho excessiva, chegando a 24 horas de trabalho, como por exemplo, na trufaria, onde a produção chega até 1000 trufas por dia/noite.

A comunidade terapêutica tem em média 95 internos, sendo desses 90 homens, com idades variadas, desde 14 anos até 65 anos, e em torno de cinco mulheres, com idades também variadas, sendo que, elas ficam em local separado denominado: Ala Feminina. Homens e mulheres não se misturam em nenhum momento.

Observam-se diferentes níveis de escolaridade entre os internos: desde analfabetos até mestres, diferentes níveis culturais e condições financeiras/sociais. Boa parte deles (50%), não recebe apoio familiar efetivo, não recebem visitas e ficam largados à própria sorte. Quanto ao modo de internação, a maioria procurou auxílio por vontade própria, alguns por determinação judicial e outros porque não têm onde morar. O número de internos oscila bastante, já que, muitos não têm persistência e apoio familiar e acabam saindo; alguns ficam em rotatividade, vão e voltam várias vezes.

O encontro para a atividade de leitura era semanal, aos sábados à tarde. Cada encontro durava de duas a três horas. A proposta envolveu, como primeira parte do trabalho, a organização de uma biblioteca, com pressupostos sociais, de forma a criar um ambiente agradável e propício à leitura, também com o intuito de despertar e incentivar o prazer. A biblioteca se localiza no centro da Comunidade Terapêutica, em uma sala de tamanho pequeno, mas aconchegante; dispõe de um acervo variado, e está com aproximadamente 400 livros, dentre os quais, encontram-se romances, contos, poesias, clássicos literários, ficção, comédias, autoajuda, infantis, histórias em quadrinhos, mangás, revistas, gibis e literatura estrangeira.

A segunda parte foi a de montagem e organização da biblioteca (figura 1), que ocorreu em conjunto com os internos da comunidade. Essa atividade durou aproximadamente dois meses, trabalho árduo e gratificante, devido ao alto grau de dificuldade que eles têm, de assimilar, entender e memorizar trabalhos mais práticos, já que, muitos apresentam muitas sequelas cerebrais devido ao uso prolongado de drogas. Grande parte dos livros foram doados pelo Banco de Livros, que se localiza em Porto Alegre. Os demais livros, todos também de doação, porém, em menor quantidade, foram doados por várias pessoas, entre quais, alunos, colegas, familiares, que se identificam com a proposta do projeto. A biblioteca foi carinhosamente chamada de Biblioteca Ler e Reviver.

Figura 1: Biblioteca Ler e Reviver

Fonte: autor (2016).

A inauguração oficial da biblioteca aconteceu no mês de setembro de 2016, com um sarau literário, no qual, foi realizada a leitura de um texto motivacional, denominado “O vendedor de sapatos”. Encerrada essa leitura, notou-se que muitos dos internos ficaram emocionados, outros foram levados à reflexão, mas nenhum ficou indiferente à situação. Houve muitos comentários sobre o texto, ligações com suas próprias vidas e suas histórias.

Posteriormente, foram lidos pequenos trechos de alguns livros, com intuito de despertar a curiosidade dos internos, o que, de fato, aconteceu: notava-se nitidamente a curiosidade e a vontade de conhecer os livros.

Depois, foi explicado como seria o procedimento de retirada dos livros, que é o seguinte:

retiradas semanais, quinzenais ou até mesmo mensais; na biblioteca existe uma caixinha com fichas (figura 3), sem nome, apenas com espaço para opiniões sobre as obras; são disponibilizadas também folhas ofícios em branco, para que possam escrever, sem identificação, suas percepções sobre a leitura e a influência em suas vidas. Quando ocorre a troca de livro, solicita-se que devolvam as fichas junto.

Como uma maneira de incentivar e motivar, também era realizada leitura coletiva. Ocorria todos os sábados durante as retiradas de livros, momento em que os internos comentavam sobre seus livros, diziam se gostaram ou não e recomendavam livros uns para os outros. O que impressiona são as muitas formas de interpretação dos livros – alguns se colocavam tão forte nas histórias, que as tomavam como suas; outros despertaram para a escrita, querendo ser escritores, outros ler para os filhos.

Foi permitido que eles assistissem a um filme no mês de outubro. O filme escolhido foi Escritores da Liberdade (2007), filme baseado em uma história real, que aborda de modo comovente a história de adolescentes na Califórnia, Estados Unidos da América, criados em zona de miséria e pobreza, em meio a tiroteios e muita violência; são de diferentes nacionalidades e a maioria participante de gangues jovens desacreditados, que fazem parte de um programa de inserção social na escola, que, no entanto, mais os excluí. Eles não têm nenhuma perspectiva de vida, até que, uma nova professora, Mrs. G, se propõe a motivá-los para o real aprendizado e a lutar contra um sistema educacional deficiente e corrupto. Uma professora decidida e determinada que faz a diferença na vida de seus alunos. Escritores da Liberdade é baseado no best-seller, Freedom Writers Diary (O Diário dos Escritores da Liberdade).

A trama é emocionante. Aos poucos, Mrs. G conquista a confiança dos alunos, quebrando barreiras sociais, culturais, étnicas e raciais. O trabalho dela fomenta a leitura. Os jovens descobrem esse novo prazer e, a partir daí, passam a escrever suas histórias. A metodologia da professora acaba levando seus alunos ao sucesso, não só acadêmico, mas também pessoal, já que ela incentiva e motiva os alunos, mostrando a eles que são totalmente capazes, que só precisam acreditar em si mesmos.

O filme acabou levando muitos internos ao riso, ao choro, à emoção. Terminado o filme conversou-se sobre o assunto, e, de forma unânime, quiseram escrever suas percepções, seus sentimentos. Relataram que se identificaram muito com as histórias dos jovens. Nos relatos, escreveram que ficaram emocionados e motivados a seguir em frente, firmes em seus propósitos de recuperação. A motivação foi tanta, que nesse dia os internos fizeram até mesmo uma prece especial em agradecimento pela aula.

No último encontro do ano de 2016, como forma de confraternização, os pacientes receberam livros para doarem aos filhos, afilhados, sobrinhos, enfim, para presentearem a alguém que escolhessem. Foram distribuídos mais de 150 exemplares de literatura infantil e infanto-juvenil.

A trajetória docente dentro da comunidade envolveu muita calma e persistência. Um dos principais motivos para tal dá-se pelo fato de a comunidade ser evangélica e impor muitas restrições e censura no trabalho, como já mencionado. Fato curioso e que merece destaque, ocorreu na ala feminina, com o livro, acervo da biblioteca, Comer, Rezar e Amar de Elizabeth Gilbert, que foi confiscado e depois queimado, por conter a palavra rezar no título, já que, segundo a crença evangélica, eles não rezam, mas, sim, oram.

Este fato absurdo demonstra a que nível chega a censura de pensamento dentro da comunidade impedindo o contato com o mundo real. A leitura, por outro lado, tem o objetivo de expandir os horizontes do leitor. Para muitos, isto continua sendo perigoso.

Um argumento de Paulo Freire, em sua obra A importância do ato de ler, esclarece esta discussão: Me parece indispensável, ao procurar falar de tal importância (do ato de ler) dizer algo do momento mesmo em que me preparava para aqui estar hoje: dizer algo do processo em que me inseri enquanto ia escrevendo este texto e que agora leio, processo que envolvia uma compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançado por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. Ao ensaiar escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado – e até gostosamente – a ‘reler’ momentos fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de ler se veio em mim constituindo. (FREIRE 1983, p.09)”

Conquistar um espaço para que os internos pudessem ler, foi uma tarefa árdua, que requereu calma e perseverança, já que, antes da biblioteca, a única leitura a que os pacientes tinham acesso era da Bíblia. A criação de espaço de leitura , certamente, também criou um paradigma, “quebrando” lentamente essa sociedade de leitura única.

Ficou também estabelecido no grupo que o horário disponível para leitura seria aquele tempo livre de cada um em cada dia, ou seja, o momento em que podem fazer qualquer coisa diferente, de suas tarefas diárias dentro da comunidade. Ganhar esse espaço de tempo também foi um processo lento, mas exitoso.

Diante isso fica evidente que ter as condições e o direito, não basta.

Essas condições materiais não bastam para garantir o direito ao íntimo, e o direito, em particular, a sonhar dentro de um livro. Pois, aparece também, com mais frequência do que imaginamos, o eco de um antigo medo: que o livro leve o leitor ou a leitora para longe dos seus, que os separe do grupo. […] (PETIT, 2013, p. 116)

Todos têm o direito de saber, o direito de aprender, de ler. A leitura permite a apropriação do imaginário, da fantasia, sem discriminar nenhuma classe social; no entanto, pode-se perceber que muitas comunidades terapêuticas, ligadas às igrejas evangélicas, trabalham com a leitura única da Bíblia, não proporcionando aos internos outra perspectiva de leitura.

A Leitura promovida dentro da comunidade onde o trabalho foi desenvolvido, despertou novas emoções e sentimentos aos internos. Fica, portanto, a pergunta: seria correto privar- lhes o direito de tal prazer?

Novamente, Petit parece nos responder, ao afirmar que:

Quanto não se teve a sorte de dispor de livros em casa, de ver seus pais lerem, de escutá-los contar histórias, as coisas podem mudar a partir de um encontro. Um encontro pode dar a ideia de que é possível ter outro tipo de relação com os livros. Uma pessoa que ama os livros em um certo momento desempenha o papel de “iniciador”, alguém que pode recomendar livros. Algumas vezes pode ser um professor, em uma relação personalizada, singular[..]. (PETIT, 2013. p. 25)

Ainda Petit (2013), diz que a leitura é uma via de acesso privilegiado a esse território íntimo que ajuda a elaborar e manter o sentimento de individualidade, ao qual se liga a capacidade de resistir às adversidades.

[…] Ler, apropriar-se dos livros, é reencontrar o eco longínquo de uma voz amada da infância, o apoio de sua presença sensível para atravessar a noite, enfrentar a escuridão e a separação. Como para essas crianças de um hospital, que dizem, enquanto dormem, a voz da pessoa que leu as histórias para elas durante o dia. […] Quando está no quarto de hotel, ou à noite, antes de dormir, ela lê: ‘Nunca estive tão só como então, quando não tinha mais livros, estava perdida[…] (PETIT, 2009, p. 65).

Além da barreira de censura de alguns livros, como se viu, os internos dispunham de pouco tempo para a leitura literária de livros em geral, já que na programação de suas terapias, eram liberados apenas para ler a bíblia. Percebeu-se que a literatura é algo prazeroso para eles, quando acessível.

Outro fator relevante percebido, que contribui para reduzir o tempo dedicado à leitura, dá-se à carga horária excessiva de trabalho que têm os internos. Muitos viram a noite na chamada trufaria o que lhes causa tanto cansaço que não têm vigor para outra tarefa qualquer, muito menos a leitura, que exige concentração. Este é o paradigma que se tenta romper.

Durante as atividades, o que se percebeu, foram muitas melhorias, como na comunicação em público e durante os relatos para os colegas, melhora na escrita, e principalmente um brilho no olhar e uma vontade imensa de recuperação, e consequentemente a conquista de uma nova vida. A maioria (90%) dos internos falava, de suas vidas e sonhos sempre usando verbos no passado: eu queria ter feito, eu tinha um sonho, um dia quis ser. Depois de algum tempo da aula, o discurso mudou: eu quero ser, eu posso ser, tenho vontade de fazer. Descobriu-se que ali naqueles rostos que outrora, eram sem luz própria, passou a brilhar, uma luz, algo novo no olhar e uma enorme vontade de fazer algo novo, ou de retomar um sonho que foi deixado para trás.

Foram muitos relatos, dentre esses, um dos internos, escreveu que rogava a Deus todos os dias pela vida da professora (pesquisadora), por ela acreditar que eles poderiam ser mudar de vida e que viam nas aulas e na leitura uma nova chance e a oportunidade de recomeçar. Outro interno relatou que para muitos, eles eram apenas “um bando de drogados”, mas que ficava feliz em saber que alguém acreditava neles e que ele em particular queria muito mudar de vida. Ainda teve outro, que em sua escrita, disse não ter nenhuma expectativa de vida, mas que depois desse convívio e das leituras passou a acreditar que existe, sim, uma segunda chance e que nunca é tarde para recomeçar e aprender.

5  Resultados e discussões

A leitura é, historicamente, uma das ferramentas de comunicação mais usadas pela humanidade. Especialmente nos dias atuais, necessitamos dela para quase tudo, para ler placas, pegar um ônibus, cálculos matemáticos, enfim, a leitura tem um poder transformador. Como pesquisadora preocupa-me o fato de alguns acontecimentos nas comunidades terapêuticas evangélicas ou mesmo, as convencionais de outras religiões, como a prática rotineira da leitura única e exclusivamente da Bíblia.

O percurso mesmo que, sutil da leitura, está mais presente na vida dos internos, como um objeto desafiador, que os liga ao mundo externo de maneira positiva. Petit (2009, p.08), evidencia essa relevância:

Graças a mediações sutis, calorosas e discretas ao longo de seu percurso, a leitura começou a fazer parte de sua experiência singular. Não se tornariam necessariamente grandes leitores, mas os livros já não os desencorajavam nem os assustavam. Ao contrário, ajudavam-nos a encontrar palavras, a serem um pouco mais atores de sua própria história. Tanto quanto um meio de sustentar o percurso escolar, a leitura era, para esses meninos e meninas vindos de famílias muitas vezes iletradas, mas desejosos de traçar seu caminho, um auxílio para elaborar seu mundo interior e, portanto, de modo indissoluvelmente ligado, sua relação com o mundo exterior.

A pesquisa buscou estudos e informações, acerca de como a leitura poderia auxiliar na recuperação da dependência química. A análise foi de observação e de coleta de dados, como produção de pequenos trechos escritos, realização de saraus literários, e discussão dos assuntos relacionados às leituras feitas pelos internos.

Por meio da leitura, percebeu-se uma melhora significativa nas habilidades, raciocínio, vocabulário, senso crítico, na interação entre o grupo, e principalmente no prazer pela leitura dentro do processo de letramento literário.

Cosson (2014, P. 27) traz sua contribuição:

Ao ler, estou abrindo uma porta entre meu mundo e o mundo do outro. O sentido do texto só se completa quando esse trânsito se efetiva, quando se faz a passagem de sentidos entre um e outro. Se acredito, que o mundo está absolutamente completo e nada mais pode ser dito, a leitura não faz sentido para mim. É preciso estar aberto à multiplicidade do mundo e à capacidade da palavra de dizê-lo para que a atividade de leitura seja significativa. Abrir-se ao outro para compreendê-lo, ainda que isso, não implique aceitá-lo, é o gesto essencialmente solidário exigido pela leitura de qualquer texto […] Por isso, o ato físico de ler pode até ser solitário, mas nunca deixa de ser solidário.

No primeiro mês de pesquisa, observou-se que 90% (noventa por cento), dos envolvidos na pesquisa, não se manifestaram e poucos escreviam. A comunicação era restrita e limitada a responder apenas o que lhes era perguntado. Do segundo mês em diante, houve uma confiança maior, por parte dos internos, o que acarretou numa interação melhor com a pesquisadora. A partir do terceiro mês, a interação passou a ser quase total. Muitos textos escritos, começaram a apreciar os debates, indicar livros e os internos passaram a ler pequenos trechos para os colegas.

O ápice dos encontros se deu, a partir da metade do terceiro mês, quase início do quarto mês de pesquisa, quando as atividades passaram a ser mais variadas, leituras, escritas, filmes, saraus, escritas livres, desenhos. Atividades que, em conjunto com a leitura, contribuíram até na melhora do visual da comunidade, pois, os internos criaram e escreveram em placas de madeira, com tinta, lindas mensagens, que foram espalhadas pela comunidade. Placas essas, escritas até mesmo em língua espanhola, para orgulho e alegria da pesquisadora, que é também a professora de língua espanhola desses internos.

A expectativa pelas aulas foi aumentando, já não era mais necessário procurar os internos, eles passaram a chegar no horário marcado, e quando, por algum motivo de atividade extra, dentro da comunidade, não podiam participar, notava-se um descontentamento muito grande. Pode-se dizer que isso até os entristecia. Os momentos de leitura passaram a ser momentos de prazer e não mais de obrigação.

Os internos passaram a pedir livros, por recomendação de um colega, ou, até mesmo, porque escutaram falar, porque se lembraram de algum título; outros pediram dicionários para pesquisar e entender melhor o significado de algumas palavras dentro dos textos. A curiosidade passou a ser tanta, que alguns pediram materiais em espanhol e seu respectivo dicionário para traduzir trechos e compartilharem com os demais e até mesmo com a família.

Em uma roda de conversa, depois das leituras coletivas, um paciente fez uma fala, dizendo que nunca havia ajudado os filhos com os temas, já que, era detentor de poucos conhecimentos, mas que, na ultima visita feita pela filha (no domingo, que é o dia de visitação), a filha estava cheia de dúvidas e dificuldades na disciplina de língua portuguesa e, ele conseguiu incentivá-la e orientá-la, o que deixou ambos contentes. Falou ainda que, sua satisfação foi tanta que não tinha palavras para descrever tal momento.

Nos últimos encontros, até mesmo o vocabulário mudou, passaram a aparecer palavras mais complexas como: mudança concreta, problemas sociais e raciais, discriminação, objetivos alcançáveis, novos horizontes.

6  Considerações finais

Por que esse trabalho? Por que essa pesquisa? As respostas são simples, porque ao ensinar se aprende e aprendendo se ensina, não há uma fórmula mágica, nem uma receita que possa terminar com as drogas e as desigualdades sociais, mas há pessoas que acreditam que todos os seres humanos merecem uma segunda chance, uma oportunidade. Há pessoas que acreditam em pessoas. Eu sou uma delas. Essa experiência teve grande influência na minha vida, tanto profissional, quanto pessoal. Aprendi muito, entendi que pequenos gestos podem mudar o dia, ou até mesmo a vida de alguém. Momentos, dos quais, ficarão para sempre, registrados na minha memória e no meu coração, em cada olhar que vi um “fio” de esperança renascendo.

Gratificante para um pesquisador, saber que seus objetivos são passíveis de serem alcançados, que é possível, sim, por meio da leitura, auxiliar na recuperação da dependência química. Para sustentar essa afirmação, Lois (2010, p. 79), traz sua contribuição afirmando que:

A leitura, como estamos acompanhando, é mais do que saber ou não o código escrito […] e ler é bem mais que ser fluente, é saber se posicionar sobre aquilo que se encontra escrito; é ter seus próprios pensamentos; é se envolver com a trama; é gostar de conhecer muitos mundos.

Quando se trabalha com “gente”, não há uma fórmula específica, não um método pronto, mas, sim, possibilidades a serem exploradas, possibilidades que aliadas a um trabalho de pesquisa realizado, com determinação e foco, podem passar a ser uma nova possibilidade e um auxílio nesse processo lento e difícil da recuperação da dependência química. Lois (2010, p. 50) traz sua contribuição dizendo que: ‘A leitura e a interpretação dos fatos colocam o sujeito frente a frente com suas reflexões e individualidades’.

É preciso saber que caminho se deseja trilhar e principalmente, saber aonde se quer chegar, pois, para quem não sabe aonde vai, qualquer caminho serve, já dizia o gato de Alice no País das Maravilhas. Só pode convencer quem está convencido.

A melhora não foi apenas dos internos, mas, notou-se que a pesquisadora, também entrou em processo de transformação, após tantas vivências, tantas histórias e superações. Quando se desenvolve a habilidade e a sensibilidade de se colocar no lugar do outro, percebe-se que a relação vai mais além, Lois (2010, p. 77), traz esse esclarecimento:

Relacionar-se com a leitura é relacionar-se com a palavra. E a palavra é nosso veículo no mundo. Quanto mais nos aproximamos da palavra, mais nos aproximamos dos nossos desejos e dos desejos do outro. Melhor compreendemos suas dores e suas alegrias; mais desenvolvemos nossa sensibilidade; mais nos aproximamos do potencial aprendiz e humano de nossos estudantes.

Existe uma fábula, cuja autoria é desconhecida, que conta a história de um pequeno pássaro, que ao ver sua linda floresta pegando fogo, e todos os animais fugindo desesperadamente, decide ficar, decide buscar água para apagar o incêndio. Os outros animais o chamam de tolo, pois sabem que ele sozinho jamais poderia apagar o fogo. Mas ele não desiste e apenas fala aos outros animais que estão fazendo a sua parte. Se uma vida foi modificada durante esse processo de letramento literário, se uma vida foi “salva”, então, o trabalho terá sido válido. Não se pode mudar o mundo, mas se pode fazer a diferença na vida de alguém. Livros e amor, uma combinação de sucesso. O trabalho não pode parar, é preciso ser como o pássaro, o caminho é árduo, mas, os resultados são gratificantes; é preciso seguir, “semeando” bibliotecas, para “colher” vários leitores, e “devolver” muitos sonhos.

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1Mestranda em Educação pela UERGS. E-mail: eliane.lundin@hotmail.com.

2Professora Adjunta – UERGS. Coord. Curso de Letras. Coord. Curso de Especialização em Teoria e Prática da Formação do Leitor. Líder do grupo de pesquisa CNPq: Formação de Professores da Educação Básica. Representante docente da Região I no CONSUN. Consultora Terapêutica em Dependência Química. E- mail: ana-accorsi@uergs.edu.br.