A INCIDÊNCIA DE PRINCÍPIOS PENAIS NA NOVA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: EFICÁCIA DA LEI NO TEMPO E SUA ANÁLISE SOB A ÓTICA DA TEORIA DAS CLASSES

THE INCIDENCE OF CRIMINAL PRINCIPLES IN THE NEW LAW OF ADMINISTRATIVE MISCONDUCT: EFFECTIVENESS OF THE LAW IN TIME AND ITS ANALYSIS FROM THE PERSPECTIVE OF THE THEORY OF CLASSES

REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.12599890


Maria Júlia Marcondes de Moura e Souza1


RESUMO:

O presente trabalho objetiva, por meio da Teoria das Classes, desenvolvida no âmbito da Lógica Deôntico-Jurídica, analisar a possibilidade de aplicação dos princípios de Direito Penal à Lei de Improbidade Administrativa, tendo como foco as inovações promovidas pela Lei 14.230/2021 (em especial a supressão da hipótese de improbidade administrativa culposa). Para tanto, primeiramente abordar-se-á o conceito de eficácia sob o seu aspecto geral e sob a ótica do “tempo”, bem como seus impactos e sua importância no plano da realização normativa; após, adentrar-se-á nas inovações ocorridas na Lei de Improbidade, passando pela exposição dos aspectos da Teoria das Classes que auxiliam na análise das similaridades e diferenças entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador; e por fim, far-se-á uma breve análise da definição do tema da (ir)retroatividade de dispositivos da Lei 14.230/2021 pelo Supremo Tribunal Federal (“STF”) no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo nº. 843989. A pesquisa revelou que, com base na Teoria das Classes, é possível a aplicação dos princípios de Direito Penal à Lei de Improbidade Administrativa, e que o entendimento exarado pelo STF naquele julgamento não possui respaldo lógico-deôntico jurídico.

Palavras-chave: Nova Lei de Improbidade Administrativa. Eficácia da Lei no Tempo. Direito Sancionador. Teoria das Classes. Direito Penal.

ABSTRACT:

The present work aims, through the Theory of Classes, developed within the scope of Deontic-Legal Logic, to analyze the possibility of applying the principles of Criminal Law to the Law of Administrative Improbity, focusing on the innovations promoted by Law 14.230/2021 (especially the suppression of the hypothesis of culpable administrative impropriety). To do so, firstly, the concept of effectiveness will be approached from its general aspect and from the perspective of “time”, as well as its impacts and its importance in terms of normative realization; then, it will delve into the innovations that occurred in the Law of Improbity, passing through the exposition of the aspects of the Theory of Classes that help in the analysis of the similarities and differences between the Criminal Law and the Sanctioning Administrative Law; and finally, a brief analysis will be made of the definition of the topic of (ir)retroactivity of provisions of Law 14,230/2021 by the Federal Supreme Court (“STF”) in the judgment of the Extraordinary Appeal with Interlocutory Notice nº. 843989.

Keywords: New Administrative Improbity Law. Effectiveness of the Law in Time. Sanctioning Law. Class Theory. Criminal Law.

1 INTRODUÇÃO

O tema desenvolvido no presente artigo refere-se à possibilidade de aplicação dos princípios de Direito Penal à Lei de Improbidade Administrativa, considerando as premissas da Teoria das Classes, desenvolvida no âmbito da Lógica Deôntico-Jurídica.

Para o desenvolvimento do tema, primeiramente se analisou o conceito de eficácia sob o seu aspecto geral e sob a ótica do “tempo”, bem como seus impactos e sua importância no plano da realização normativa.

Após, foram analisadas algumas das inovações promovidas na Lei de Improbidade, passando pela exposição dos aspectos da Teoria das Classes que auxiliam na análise das similaridades e diferenças entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador.

Ato contínuo, foi examinada a definição do tema da (ir)retroatividade de dispositivos da Lei 14.230/2021 pelo Supremo Tribunal Federal (“STF”) no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo nº. 843989.

Foi possível concluir que, com base na Teoria das Classes, é possível a aplicação dos princípios de Direito Penal à Lei de Improbidade Administrativa, e que o entendimento exarado pelo STF naquele julgamento não possui respaldo lógico-deôntico jurídico.

2 A EFICÁCIA “LATO SENSU”

Neste primeiro momento, necessário que se proceda a um recorte que, ao mesmo tempo, possibilite o trato do conceito de eficácia de forma ampla e possibilite a compreensão e a verificação de seu alcance na organização social.

Para tanto, focaremos na “norma jurídica” enquanto norma positivada, analisando, primeiramente, o seu nascimento e integração ao ordenamento.

Dessa forma, por primeiro, pensa-se no processo de formação/organização de ideias e/ou valores que se pretende positivar, que pode partir tanto do clamor social quanto diretamente do Poder competente e responsável pelo ato de produção normativa: o Legislativo.

É necessário, ainda, que o Poder competente (dentre os legislativos municipais, estaduais e da União) possua legitimidade quanto ao trato da matéria objeto da norma e a produza por meio do devido processo legal.

A estruturação, entretanto, por si só, não é suficiente para que a norma efetivamente incida sob o comportamento dos indivíduos, sob o mundo do “ser”, e gere o impacto pretendido pela produção normativa. É necessário, também, que a norma satisfaça requisitos que a tornem válida sob os chamados aspectos técnicos-jurídicos, de eficácia e de ética.

Quanto ao aspecto técnico-jurídico, que na terminologia brasileira equivale à vigência, tem-se estabelecido pelo art. 1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro que, salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada. Significa dizer que a norma cumpre o primeiro requisito de validade mencionado acima a partir do momento em que, havendo competência subjetiva e de matéria com relação a quem a produziu, e tendo sido observado o devido processo legal, se torna de observância obrigatória, começa a viger na sociedade.

Ato contínuo, após o cumprimento dos requisitos de vigência, faz-se necessário que a sociedade efetivamente seja impactada pela norma, que a reconheça (em regra) e a incorpore em seu comportamento e/ou percepção. Tal requisito decorre, inclusive, da íntima e dependente relação entre Direito e sociedade, não havendo qualquer possibilidade de se falar em direito declarado, mas não vivido.

Importante ressaltar que o requisito do “reconhecimento” pode ser dispensável para que se concretize a eficácia de determinada norma. Isto porque, por vezes, e num cenário não propriamente ideal, normas legais se encontram em conflito com os valores do ordenamento social, dispondo nesse cenário de eficácia “compulsória”, já que seguem causando efeitos e, principalmente no caso das descritivas de condutas, sendo de observância obrigatória.

É verificável, também, situações em que a eficácia da norma é constatada a despeito da observância e efetivo cumprimento do por ela disposto. É o caso, por exemplo, da norma constitucional que garante o salário-mínimo aos trabalhadores urbanos e rurais: a Carta Magna reconhece referido Direito, o positiva com intuito de satisfação ideológica, produz efeitos sociais no sentido de “garantia”, sendo, portanto, eficaz, e não vai além.  

De toda forma, resta clara a diferença entre vigência (ou validade formal) e eficácia, sendo a primeira relacionada ao processo de produção do Direito como tal, e a segunda mais atinente ao reconhecimento do Direito no plano social.

Por fim, deve-se atenção especial também ao requisito da ética, que tendo como base o aspecto do “fundamento” da norma, e juntamente com a eficácia e a validade, confere completude e legitima a regra jurídica.

Referido aspecto se refere ao ratio juris da norma, ou seja, ao fim objetivado pela norma instituída, e assegura a percepção de que o Direito compreende uma estrutura tridimensional, composta por norma e vigência; eficácia e fato; e fundamento e valor.

3 A EFICÁCIA DA LEI NO TEMPO E SEUS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

Considerando os aspectos de validade da norma acima expostos, passa-se para a análise do momento em que, primeiramente, se encerra o seu vigor. Nesse sentido, dispõe o art. 2o da LINDB que, não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

Pela própria redação do artigo, infere-se que o encerramento do vigor da lei decorre necessariamente de uma sucessão desta por outra.

A revogação ou modificação, entretanto, não implica, em regra, na ineficácia da norma afetada, sendo plenamente possível que esta, mesmo sem vigor, continue a produzir efeitos no mundo do ser.

Dessa forma, verificam-se duas situações: é possível que haja a cessação de eficácia da norma desde o momento em que começou a viger a nova norma modificadora ou revogadora (com efeitos ex tunc), de forma que a nova norma atinge fatos ocorridos na vigência da anterior; e é possível que a eficácia da norma revogada/modificada siga sendo verificada em fatos passados, em que pese à existência de nova norma já em vigor e com eficácia.

  Os efeitos ex tunc de nova norma devem ser vistos, entretanto, com ressalvas. Isto pois, como regra, esta não poderá projetar seus efeitos (ou seja, ser eficaz) sobre o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Nestes casos, impõe-se a segunda situação mencionada no parágrafo anterior, em que a lei “antiga”, que perdeu a vigência, atua de maneira ultrativa, projetando seus efeitos por período ulterior à sua revogação/modificação.

Importante ressaltar, ainda, que em pese à regra acima, verifica-se diferenças a depender do ramo do direito sob análise: no direito penal e tributário, por exemplo, a retroatividade da lei é expressamente proibida quando desfavorável, e expressamente autorizada quando favorável ao réu e ao contribuinte.

Neste cenário, inclusive considerando a visão do Direito como “uno”, frequentemente ocorrem conflitos de direito intertemporal, em que de um lado há a possibilidade de retroatividade da norma (aqui entendida como a possibilidade de nova norma atingir fatos passados), e de outro, a necessidade (ou não) de proteção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, impondo-se que difíceis ponderações sejam realizadas pelos aplicadores do Direito.

4 A NOVA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA (14.230/2021)

A Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429/1992), promulgada durante o governo de Fernando Collor de Mello, teve papel importante no combate à corrupção no Brasil. Em nome dos princípios da moralidade, do decoro, da lealdade, e da própria legalidade, a Lei trouxe expressamente a imposição de sanções para atos de improbidade praticados por agentes públicos, pois, segundo consta da Exposição de Motivos (Nº EM. GM/SAA/0388, de 14 de agosto de 1991) de Jarbas Passarinho, Ministro da Justiça à época,

uma das maiores mazelas que, infelizmente, ainda afligem o País, é a prática desenfreada e impune de atos de corrupção, no trato com os dinheiros públicos, e que a sua repressão, para ser legítima, depende de procedimento legal adequado – o devido processo legal – impõe-se criar meios próprios à consecução daquele objetivo sem, no entanto, suprimir as garantias constitucionais pertinentes, caracterizadoras do estado de Direito

A conceituação de probidade e improbidade, analisados sob o ponto de vista apenas do vocábulo, já nos remete aos princípios mencionados acima. Probidade, do latim probitate, significa aquilo que é bom, relacionando-se diretamente à honradez, à honestidade e à integridade. A improbidade, ao contrário, deriva do latim improbitate, que significa imoralidade, desonestidade.

Do ponto de vista doutrinário, há divergência a respeito da definição de probidade e improbidade: alguns autores, como Wallace Paiva Martins Junior (2009, p. 101) e Juarez Freitas (2005, p. 5.078) sustentam que a probidade é um subprincípio da moralidade administrativa, e outros, como Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2009, p. 803) e José dos Santos Carvalho Filho (2011, p. 984) a enxergam como princípio constitucional (e que, portanto, a improbidade resulta da violação deste princípio).

Independentemente da corrente adotada, certo é que a LIA, é vista, até os tempos presentes, como instrumento rigoroso de responsabilização dos considerados Agentes Públicos e Políticos que causem dano ao erário, se enriqueçam ilicitamente, ou atentem contra os princípios da Administração Pública.

Em 26 de outubro de 2021 entrou em vigor a Lei n° 14.230/21, que modificou a antiga LIA, promovendo importantes e significativas mudanças, especialmente no que concerne à exigência da comprovação da responsabilidade subjetiva dolosa do suposto agente ímprobo.

Passou a constar, assim, logo no art. 1º da Lei que:

“Art. 1º O sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa tutelará a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social, nos termos desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)

[…]

§1º Consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)

Considerando a infinidade de situações passíveis de enquadramento na LIA e pretendendo definir com maior objetividade os critérios para a configuração do dolo, estabeleceu-se no §2º que:

§ 2º Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente.

Mesmo com a clara previsão do §1º do art. 1º, a necessidade de comprovação do dolo é mencionada em outras diversas passagens da Lei, possibilitando que se infira que a intenção do legislador era de fato conferir insignificância ao ato culposo, praticado por agente inábil, despreparado, incompetente e desastrado (REsp 213.994-0/MG, 1ª Turma, Rel. Min. Garcia Vieira, DOU de 27.9.1999), a exemplo do previsto no §3º do art. 1º:

§ 3º O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa.

Verifica-se, nesse sentido, que a alteração pretendeu consolidar entendimento já bem desenvolvido pela Doutrina e Jurisprudência, especialmente para que a Lei de Improbidade não culmine numa paralisação da atuação dos agentes públicos e na propagação de uma ideia absolutamente utópica e inalcançável de um modelo de Administração em que não há falhas, erros ou equívocos (sem dolo).

Nesse sentido, conforme bem lecionado por Fabrício Motta e Irene Patrícia Nohara (2019, p. 24), a expressão “apagão das canetas” designa:

A paralisação de decisões, por causa do temor de responsabilização, perante a Administração Pública ‘do medo’, pois, em determinados casos, tendo em vista as decisões imprevisíveis e oriundas dos mais variados órgãos de controle, os bons gestores acabavam ficando com receio de decidir e futuramente ser responsabilizados por uma decisão justa, mas que iria de encontro às orientações cambiantes de diversos dos órgãos de controle.

Dessa forma, o “receio de decidir”, em razão da invocação vertiginosa da LIA, acaba por afastar agentes bem-intencionados, que poderiam de fato fazer bom trato das verbas públicas, o que, em efeito cascata, torna o aparato público moroso, ineficiente e mais desacreditado aos olhos da coletividade.

Ainda, o foco na sanção e no controle excessivo e desproporcional dos atos dos agentes leva verdadeiro sobrepeso a um judiciário já completamente abarrotado de ações, e por estas razões, antes mesmo da edição da nova LIA já se entendia pela impossibilidade de condenação por improbidade culposa:

DIREITO SANCIONADOR. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO PELO MPF CONTRA DECISÃO MONOCRÁTICA DO MINISTRO RELATOR QUE DEU PROVIMENTO A AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL DA PARTE DEMANDADA, PARA RESTABELECER PRIMEIRO ACÓRDÃO DO TJ/RJ, QUE ABSOLVEU O RÉU DAS ACUSAÇÕES EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ALEGADA CONDUTA ÍMPROBA. (…) 3. Reafirmação do entendimento do Relator de que toda e qualquer conduta, no afã de ser encapsulada como ímproba, exige, como elementar, o apontamento de prática dolosa, maleficente e especificamente dirigida ao enriquecimento ilícito, ao dano aos cofres públicos e à lesão da principiologia administrativa, não havendo falar-se em improbidade culposa. 4. Inegavelmente, conduta dolosa, proveito pessoal ilícito, lesão aos cofres públicos e ofensa aos princípios nucleares administrativos são as elementares da improbidade administrativa. A manifestação judicial que afaste quaisquer desses elementos resulta em ausência do tipo (AgInt no Resp. 922.526/SP, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe 3.4.2019). 5. (…). A decisão agravada, que restabeleceu a absolvição, não merece reproche algum. 8. Agravo Interno do Órgão Acusador desprovido. (…). (STJ – AGINT NO ARESP 225.531/RJ – 1ªT – DJE 28/06/2019)

Referidas disposições, por óbvio, representam atenuação do caráter sancionatório da Lei, que mesmo inserida no âmbito do Direito Administrativo Sancionador1, prevê penalidades que afetam direitos fundamentais daqueles que nela são enquadrados, cabendo-nos, nesse sentido, analisar a proximidade desta espécie de jus punidiendi para com o expresso no âmbito do Direito Penal.

5 TEORIA DAS CLASSES E A PROXIMIDADE ENTRE O DIREITO PENAL E O DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR

Conforme lecionado por Clóvis Beznos ao defender a retroatividade in bonam partem da Lei 14.230/2021 (2022, P. 765-779), na seara do Direito observa-se a existência de um gênero denominado “Direito Sancionador”, que comporta espécies como o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador.

Sob esse aspecto, por primeiro, cumpre desde já transportar conhecimento da Lógica Jurídica para o entendimento do tema, especificamente no que concerne à significação das palavras e sua classificação.

Segundo Tarek Moysés Moussallem (2016, P. 252), os significados da palavra não são descobertos pelos utentes da linguagem, mas sim, atribuídos. Infere-se do entendimento do referido autor que a linguagem expressa por meio da utilização de palavras serve como ferramenta de interpretação da realidade, e não possui significado por si só: são como rótulos que atribuímos aos objetos do mundo.

Nesse sentido, no ato de significação, são observados dois tipos de significado conferidos às palavras: a conotação e a denotação.

Para o fim que se presta o presente trabalho, cumpre focarmos na conotação, por meio da qual a indicação dos critérios de uso de determinada palavra está relacionada a eleição de suas características definitórias, isto é, aquelas sem as quais uma palavra não é aplicada a determinado objeto.

O ato de definir, portanto, segundo Irving Copi (1981, P. 105), estaria relacionado à indicação do significado de um termo, de modo que toda a definição assume a estrutura lógica consistente em:

“…” (definiendum) significa “—” (definiens)

Ainda com o intuito de limitar o objeto do presente trabalho, cumpre brevemente conferir enfoque ao tipo de definição estipulativa, já que nesta se confere significado a um termo com base na liberdade de estipulação e conveniência, de modo que a definição pode ser totalmente inovadora ou até mesmo introduzir novos termos ou precisar limites daqueles já conhecidos.

 De toda forma, certo é que a definição opera por gênero próximo e diferença específica, o que culmina na brilhante conclusão de Irving Copi (1981, P. 105) segundo a qual “a classe cujos membros se dividem em subclasses é o gênero e as diversas subclasses são as espécies”.

Tarek (2016, P. 268) ainda aponta como regras lógicas para que se proceda corretamente á definição, os seguintes: a) uma definição deve estabelecer a conotação convencional do termo a definir; b) o definiens deve conter apenas termos conhecidos de antemão; c) uma definição não deve conter no definiens termos que estão no definiendum; d) uma definição não deve ser excessivamente ampla nem excessivamente estreita; e) o definiens não deve estar expresso em linguagem ambígua, obscura ou figurada; f) o definiens não deve ser negativo em significação, ao menos que o definiendum seja primordialmente negativo em sua significação.

Por meio da definição, ou seja, por meio da seleção de atributos que permitem conferir significado ao que se pretende definir, é possível procedermos ao ato de classificação, que segundo Paulo de Barros Carvalho (2021, P. 124) é

Distribuir em classes, é dividir os termos segundo a ordem da extensão ou, para dizer de modo mais preciso, é separar os objetos em classes de acordo com as semelhanças que entre eles existam, mantendo-os em posições fixas e exatamente determinadas em relação às demais classes.

Segundo o mesmo autor, os grupos de classificação recebem o nome de espécie e gêneros, este contendo aquele, podendo ainda a espécie ser definida por meio da expressão lógica E = G + De, já que seria igual ao gênero mais a sua diferença específica. A espécie conota, nesse sentido, o(s) atributo(s) previstos no gênero mais sua(s) diferença(s) específica(s).

Ainda sobre o ato de classificação, importante ressaltar que pode se dar livremente pelo sujeito de conhecimento, que seleciona as diretrizes e os critérios para a “divisão”, conforme seus propósitos e conveniência.

Feitas tais considerações, passemos, então, à afirmação do Professor Clóvis Beznos, trazida no início deste tópico, segundo a qual existiria um gênero denominado “Direito Sancionador”, que comportaria espécies como o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador.

O primeiro passo para compreendermos a veracidade da afirmação tendo como base a Lógica Deôntico-Jurídica, e mais especificamente, a Teoria das Classes, está relacionado à atribuição de definição ao gênero “Direito Sancionador”.

Seguindo as regras ditadas por Tarek e citadas anteriormente, define-se, aqui, o Direito Sancionador como expressão do poder punitivo estatal, representada pela expressão deôntica (ilícito -> [conectivo condicional] punição).

Seguindo este raciocínio e considerando a unidade do poder punitivo, concentrado nas “mãos” do Estado, o Direito Sancionador abrange tanto as relações de Direito Penal (culminadas por ilícitos penais), quanto as de Direito Administrativo Sancionador (culminadas por ilícitos administrativos), sendo estes, espécies daquele (gênero).

As diferenças entre as duas espécies aqui tratadas, impondo-nos a recordação da expressão E = G + De, estariam relacionadas ao nível de gravidade da conduta ilícita que se pretende punir, a autoridade competente para impor as sanções (em determinados casos) e seus tipos, etc.

Importe destacar, neste ponto, que segundo os critérios de diferenciação mencionados acima, estes estariam relacionados tão somente à conveniência moral e política de dado momento histórico, sendo, portanto, absolutamente passíveis de modificação. Isto pois, conforme Rafael Munhoz de Mello (2007, P. 59), “o legislador goza de ampla liberdade para a seleção de condutas que serão tipificadas como ilícito penal ou como ilícito administrativo”.

Estando, portanto, estabelecida a classificação “Direito Sancionador enquanto gênero e Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador enquanto espécies”, vale adentrar nas especificidades da nova Lei de Improbidade, objeto de análise do presente trabalho, partindo primeiramente do estabelecido em seu art. 1º, §4º, que assim prevê: “aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”.

Pela literalidade do dispositivo, não restam dúvidas de que as condutas caracterizadas como de improbidade administrativa pertencem à espécie Direito Administrativo Sancionador, que por sua vez, pertence ao gênero Direito Sancionador.

Necessário analisar, dessa forma, o que, na prática, significa para o Direito Administrativo Sancionador pertencer ao gênero Direito Sancionador, do qual também pertence o Direito Penal.

Sob esse aspecto, estabelece-se aqui que a aplicabilidade de sanções pelo detentor do ius puniendi impõe necessariamente a aplicabilidade de um regime jurídico próprio, acunhado na aplicabilidade de princípios protetivos do réu previstos na Constituição Federal e em Tratados Internacionais de Direitos Humanos.

No âmbito da nova Lei de Improbidade, o que se verificou, dentre as perspectivas possíveis, foi o afastamento do legislador para com uma ideologia punitiva rigorosa, que acabava por afastar da Administração Pública agentes bem-intencionados (conforme mencionado no tópico anterior), além de sobrecarregar o Poder Judiciário. Sobrecarga essa, inclusive, que ocorre em grande parte para que se processem atos ofensivos a princípios administrativos. Conforme levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) a partir de mais de 700 decisões colegiadas do Superior Tribunal de Justiça, entre os anos de 2005 e 2018,52,93% das ações de improbidade dizem respeito à ofensa aos princípios da administração, enquanto 37,56% tratam de prejuízo ao erário e 9,51% sustentam enriquecimento ilícito do agente público. 

Para tanto, dentre outras modificações, a que mais se destacou e é facilmente entendida como norma mais benéfica ao acusado, foi a exclusão da possibilidade de se enquadrar na Lei atos de improbidade administrativa culposos.

Sob esse ângulo e retornando aos princípios protetivos do réu, pode-se citar, dentre outros, o art. 5º, XL da Constituição Federal, que prevê que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”, e o art. 9º do Pacto de San José da Costa Rica, que dispõe:

 “ninguém poderá ser condenado por atos ou omissões que, no momento em que foram cometidos, não constituam delito, de acordo com o direito aplicável. Tampouco poder-se-á impor pena mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinquente deverá dela beneficiar-se.”

Além obviamente da proteção a direitos fundamentais, já que as punições e sanções aplicadas pelo Estado não podem se dar imoderadamente, desproporcionalmente, de forma arbitrária ou sobremaneira severa, é importante que se ressalte a conferência de importância à desvalorização de determinada conduta pelo legislador.

Ora, evidente que eventual mudança legislativa que atenue sanção ou até mesmo exclua conduta anteriormente prevista em tipo legal (penal ou administrativo) demonstra desinteresse do detentor do ius puniendi na manutenção da lógica punitiva anteriormente estabelecida.

Tal raciocínio, em assim sendo, aplica-se indiscriminadamente tanto ao Direito Penal quanto ao Direito Administrativo Sancionador, já que, segundo Heraldo Garcia Vitta (2013, P. 678),

consubstanciam ‘regramentos’ absolutos, não relativizáveis; e devido aos valores, ou princípios constitucionais, aplicam-se na seara das sanções administrativas. Decorrem do Regime Democrático de Direito, e se legitimam na dignidade da pessoa humana, fundamento da República.

Ainda, a tentativa de afastamento dos institutos por meio da interpretação literal do art. 5º, XL da Constituição, que faz referência tão somente à retroatividade da “lei penal” não deve prosperar, por primeiro em razão da necessária interpretação do Direito enquanto sistema uno (o que nos leva a classificação estabelecida neste tópico e à irradiação dos princípios de Direito Sancionador, mais detalhados adiante, por todas suas espécies) e pela fundamentação lógica de Tárek Moysés (2016, P. 263) sobre as definições legais.

Explica-se: fundamenta o autor que as definições legais não devem ser consideradas “ao pé da letra” sem análise e conferência de sentido mais aprofundada e elaborada pelo intérprete do direito, pois

as definições dadas pelo sistema de direito positivo, embora relevantes para a construção do sentido normativo, não podem ser checadas em face das seis regras estabelecidas […] para o processo definitório […]. Isso porque o legislador em sua pluralidade constitutiva (principalmente em um Estado democrático) não possui formação teórica para tal. O legislador opera em linguagem técnica (não científica), onde a vagueza e a ambiguidade se tornam constantes.

Tendo sido estabelecida a veracidade da afirmação do início deste tópico conforme a lógica, é possível concluir que os princípios de Direito Sancionador devem ser aplicados a todas suas espécies de forma equânime, sendo eles: legalidade, tipicidade, irretroatividade da norma mais prejudicial, imputação adequada, pessoalidade, proporcionalidade, prescritibilidade, non bis in idem, devido processo legal, imparcialidade, contraditório, ampla defesa, presunção de inocência, garantia da não-auto-responsabilização, inadmissibilidade de provas ilícitas, recorribilidade, definição, a priori, da competência administrativa sancionadora, motivação e duração razoável do processo.

Em que pese a consequência decorrente do raciocínio aqui exposto, materializada na aplicação da Lei 14.230/2021 de forma retroativa (por mais favorável ao acusado) aos casos em curso e até mesmo aos já findados com trânsito em julgado, desde que observado o prazo decadencial da ação rescisória, o entendimento do Supremo Tribunal Federal para definição do tema no que concerne à beneficie da exclusão do tipo culposo da Lei de Improbidade seguiu caminho diverso.

6 O JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO (ARE) Nº 843989 – TEMA 1.199 DA REPERCUSSÃO GERAL

Durante o mês de agosto de 2022, os holofotes do direito brasileiro se voltaram ao Supremo Tribunal Federal para o julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo 843989, originado de Ação Civil Pública ajuizada pelo INSS em 2006, objetivando a condenação de ex-procuradora que, supostamente, entre 1994 e 1999, teria atuado de forma negligente na defesa judicial dos interesses da Autarquia, causando prejuízos ao Instituto.

Discutia-se nos autos, resumidamente, se os atos de improbidade administrativa imputados à recorrente por alegada conduta negligente, sem demonstração do elemento subjetivo dolo, seriam prescritíveis, e se as alterações benéficas ocorridas na Lei de Improbidade deveriam retroagir para os que tivessem cometido atos de improbidade administrativa na modalidade culposa, inclusive quanto ao prazo de prescrição para as ações de ressarcimento.

O julgamento resultou em 3 (três) posicionamentos divergentes exarados pelos Ministros: André Mendonça, Dias Tóffoli e Ricardo Lewandowski votaram de forma mais permissiva, segundo a qual as beneficies da nova LIA teriam eficácia ex tunc, podendo alcançar não somente as ações em curso, mas também as já transitadas em julgado, por meio de ação rescisória. Os Ministros Alexandre de Moraes, Nunes Marques e Gilmar Mendes divergiram parcialmente da referida posição, firmando entendimento segundo o qual poderia a Lei retroagir, mas tão somente para os processos em curso. Já os Ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Carmen Lúcia adotaram posicionamento menos flexível, no sentido de que não seria possível nenhum tipo de retroatividade da eficácia da Lei.

Passaremos, a seguir, a discorrer brevemente sobre os pontos cruciais dos votos dos Ministros, a fim de analisar as fundamentações utilizadas, relacionando-as com os conceitos de vigência, eficácia e classificação tratados no presente trabalho.

Por primeiro, importante mencionar que o Ministro Relator Alexandre de Moraes, ao reconhecer a repercussão geral da matéria, já teceu importantes considerações acerca da divergência presente na doutrina brasileira quanto à retroatividade da lei mais benéfica no âmbito do Direito Administrativo Sancionador.

Segundo o Excelentíssimo Ministro, com relação ao posicionamento favorável à retroatividade, predomina o entendimento de que os princípios estabelecidos para o Direito Penal seriam absolutos e constituiriam verdadeiro regramento também para o Direito Administrativo Sancionador. Em conformidade com o entendimento, o previsto no art. 5º, XL da Constituição Federal seria totalmente compatível no caso.

Ponto igualmente relevante refere-se a precedente do próprio Supremo Tribunal Federal, que admitiu a aplicação do preceito da presunção de inocência também ao Direito Administrativo Sancionador, justamente pela sua estreita relação com a punição do Direito Penal (TRIBUNAL PLENO DO STF. MS 23.262/DF, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, DJe de 30/10/2014).

Já com relação ao posicionamento contrário à retroatividade, dispõe o Excelentíssimo Ministro que há quem defenda que as “conveniências” do Direito Penal são exclusivas deste ramo, por somente nele haver o risco de interferência no bem jurídico da “liberdade”. Dessa forma, para o Direito Administrativo Sancionador, prevaleceria o princípio tempus regit actum.

Menciona-se, nesse sentido, precedente também do Supremo Tribunal Federal, em que, ao contrário da decisão anteriormente mencionada, que consignou a possibilidade de utilização de princípio penal no âmbito do direito administrativo, exara entendimento segundo o qual a retroatividade da norma mais benéfica é exclusiva do Direito Penal (ARE 1019161 AgR, Rel. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJe de 12/5/2017).

Já em seu voto, evidencia o Excelentíssimo Ministro que a controvérsia reside exatamente na eficácia da lei no tempo, especialmente pelo seguinte trecho:

A alteração legislativa significativa, portanto, diz respeito à revogação da previsão legal de ato de improbidade administrativa culposo, anteriormente previsto na redação originária do artigo 10 da LIA, e suas consequências em relação aos atos anteriormente praticados e decisões judiciais já proferidas; uma vez que, a partir da edição da Lei 25 de outubro de 2021 – não há mais, no ordenamento jurídico, a tipificação para atos culposos de improbidade administrativa.

Nesse aspecto faz ressalva relevante, no sentido de que em que pese à ausência de tipificação para atos culposos na LIA, não está o agente “imune” de sanções na esfera civil.

Aduz, ainda, que o Direito Administrativo Sancionador não deixa de ser considerado sub-ramo do Direito Administrativo pela previsão de sanções, e consiste na manifestação do poder de punir estatal, que, apesar de também se verificar no direito penal, não é similar no sentido lógico operativo.

Reforça a regra prevista na LINDB que prevê que a Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, e diferindo a irretroatividade da não ultra-atividade. De acordo com este princípio, igualmente não será permitida a produção dos efeitos da LIA “antiga” a fatos praticados durante a sua vigência, mas cuja responsabilização judicial ainda não foi finalizada. Nesse sentido, justifica que não é possível a continuidade de uma investigação, de uma ação de improbidade ou mesmo de uma sentença condenatória com base em uma conduta não mais tipificada legalmente, por ter sido revogada.

O voto do Ministro André Mendonça, por sua vez, diverge para com o do Relator em pontos cruciais.

Primeiramente, aduz o Excelentíssimo Ministro que a possibilidade de aplicação dos preceitos do Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionador não é “automática”, e deve ser analisada norma a norma.

No caso presente, entende que, por haver intima relação entre as referidas esferas do direito no que concerne à excepcional responsabilização pela prática de ato culposo no âmbito do sistema punitivo estatal geral, devem as alterações promovidas pela nova LIA serem aplicadas aos processos em curso e aos fatos ainda não processados via ação rescisória.

Fato não mencionado no voto, mas de extrema relevância e que corrobora com a argumentação exarada no tópico anterior, é o de que a Corte Internacional de Direitos Humanos já afirmou em ao menos três oportunidades que os princípios e garantias do Direito Penal devem ser aplicados ao direito sancionatório. Isto pois, as garantias de modo geral, visam amparar os indivíduos da atuação estatal desenfreada, manifestada de forma por vezes abusiva por meio do exercício do poder punitivo.

Ainda, em conformidade com o voto do Excelentíssimo Ministro André Mendonça, há precedente da Suprema Corte que reconheceu a possibilidade de aplicação retroativa da Lei 12.433/2011 que, no âmbito da Execução Penal, mas tratando de processo de natureza administrativa para apuração de faltas disciplinares em estabelecimentos prisionais, limitou a perda do tempo remido em 1/3 em caso de falta grave.

O Excelentíssimo Ministro Gilmar Mendes, por sua vez, procedeu à manifestação de classificação diversa da aqui tratada, referenciando a obra de Ana Carolina Oliveira (Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador, 2012, p. 128) e mencionando:

Nessa linha, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) estabelece, a partir do paradigmático caso Oztürk, em 1984, um conceito amplo de direito penal, que reconhece o direito administrativo sancionador como “autêntico subsistema” da ordem jurídico-penal. A partir disso, determinados princípios jurídico-penais se estenderiam para o âmbito do direito administrativo sancionador, que pertenceria ao sistema penal em sentido lato.

Ainda, ao equiparar os institutos, mencionou o Exmo. Ministro que a similaridade não se restringiria às consequências do exercício do poder punitivo (interferência em direitos fundamentais), aqui podendo ser entendidos como atributos do gênero Direito Sancionador, sugerindo que alcança também o seu próprio conteúdo, já que a tutela da probidade administrativa é objeto de inúmeros tipos penais, assim como dos tipos abertos referentes a infrações político-administrativas.

Ainda, corroborando com o mencionado no tópico anterior com relação à prejudicialidade da interpretação literal do previsto no art. 5º, XL da Constituição, ressalta que

a retroatividade da norma penal mais benéfica ao réu consubstancia direito fundamental e como tal não comporta interpretação restritiva, na esteira do entendimento consolidado desta Corte. É dizer, se há identidade de substratos fáticos para incidência do direito – do que não se tem dúvida pelo exposto até aqui –, descabe articular com leitura textual limitadora da eficácia normativa de direito fundamental (SCHLINK, Bernard; PIEROTH, Bodo. Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: IDP, 2019, pp. 76-77)

Aspecto igualmente relevante e provavelmente o mais polêmico, que acaba por interferir na análise da possibilidade de aplicação retroativa das benesses da nova Lei de Improbidade diz respeito a um possível retrocesso no combate à corrupção em decorrência das alterações promovidas pelo Legislador.

Utilizando-se de tal argumento, o Procurador Geral da República, Augusto Aras, defendeu a inaplicabilidade retroativa, aduzindo que:

[…] O microssistema de tutela da probidade impõe ao legislador uma dupla obrigação: (i) instituir medidas eficazes de proteção da probidade e de combate à corrupção, (ii) não adotar medidas que configurem retrocesso no cumprimento do dever constitucional e internacional de prevenir e puní-la.

Nessa esteira, a “nova lei de improbidade” somente poderia retroagir se não violasse essas obrigações constitucionais e internacionais que integram o sistema jurídico de tutela da probidade administrativa. A aplicação retroativa da novel legislação não pode configurar retrocesso legislativo e enfraquecimento do microssistema de proteção a probidade.

Sob esse ponto e sobre a suposta vedação ao retrocesso, cumpre brevemente relembrar o trato acerca do assunto pelo Ministro Carlos Ayres Brito no julgamento do Recurso Extraordinário 466.343-1 – São Paulo, em que restou esclarecida a relação entre a supressão de direitos fundamentais e o chamado “retrocesso”:

“Ministro Gilmar Mendes, apenas me permito lembrar que, mais e mais, a doutrina adensa a opinião de que quando uma lei ordinária vem para proteger um tema tratado pela Constituição como direito fundamental, essa lei se torna se torna bifronte ou de dupla natureza. Ela é ordinária formalmente, porém é constitucional materialmente, daí a teoria da proibição do retrocesso. Quando se versa tutelarmente um direito fundamental, mediante lei ordinária, faz-se uma viagem legislativa sem volta porque já não se admite retrocesso.

Então, segundo as palavras da Ministra Carmen Lúcia e do Ministro Ricardo Lewandowski para dizer que estamos todos tendo a felicidade de protagonizar uma sessão histórica, em prol da efetividade da Constituição Federal, naquilo que ela tem de mais central: a afirmação dos direitos humanos”.

A despeito das eventuais divergências e em que pese a maioria dos votos ainda estarem pendentes de publicação, certo é que o Tribunal, por unanimidade, apreciando o tema 1.199 da repercussão geral, deu provimento ao Recurso Extraordinário para extinguir a ação, e, por maioria, o Tribunal acompanhou os fundamentos do voto do Ministro Alexandre de Moraes (Relator), vencidos, parcialmente e nos termos de seus respectivos votos, os Ministros André Mendonça, Nunes Marques, Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, sendo, por unanimidade, fixadas as seguintes teses: “1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei”.

7 CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, conclui-se que a análise com relação a eficácia da lei no tempo depende da compreensão dos conceitos de validade e vigência, e estes caminham juntamente na aplicação do direito ao caso concreto.

Evidente, ainda, que em virtude da dimensão do direito, da mutação legislativa constante e da infinidade de situações ocorridas no seio da sociedade, situações desafiadoras serão cada vez mais presentes no âmbito do conflito intertemporal de normas, servindo as premissas da lógica deôntico-jurídica e especialmente da Teoria das Classes, de instrumentos auxiliares de supra importância na conferência de sentido às argumentações e à própria formação do raciocínio jurídico.

No presente caso, por meio dela, verificou-se a similaridade do Direito Administrativo Sancionador e do Direito Penal, de modo que ambos, enquanto espécies, fazem parte do gênero Direito Sancionador, culminando na irradiação e compartilhamento de princípios e garantias relacionados diretamente aos atributos e à própria definição deste.

Seguindo tal raciocínio, no que concerne à aplicação das novas regras previstas na Lei 14.230/2021, especialmente com relação à retirada do tipo culposo de ato de improbidade administrativa do diploma legal, defende-se sua imediatez, inexistindo razão jurídica e lógica para que assim não se proceda, alcançando inclusive os processos com trânsito em julgado por meio de ação rescisória, quando as normas processuais assim autorizarem.


1Art. 1º, § 4º, da Lei 14.230/2021 – Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.

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1Mestranda em Direito Administrativo Pela Pontifícia Universidade Católica De São Paulo – Sp (Brasil) E Advogada. Mariajulia_marcondes@hotmail.com