A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR E O NOVO ENSINO MÉDIO HISTÓRICO CONTEXTUALIZADO E PERSPECTIVAS POSSÍVEIS

REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.11601369


Sérgio Amorim dos Santos 1
Maria Caroline Flores Ciscato 2


RESUMO

O presente artigo explora os caminhos que perpassam as propostas de revisão da Base Nacional Comum Curricular determinada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, em respeito ao comando do art. 210 da Constituição Federal. A tramitação da revisão da BNCC iniciou com amplo debate popular e acadêmico, passou por ingerências políticas e acabou refletindo o cenário político-ideológico do momento de sua aprovação. A nova BNCC estabeleceu, entre suas diretrizes político-pedagógicas, uma nova formulação para o chamado “Novo Ensino Médio”, muito criticada por um amplo conjunto de profissionais em educação pelo seu caráter tecnicista e pelo esvaziamento da formação integral do corpo discente nessa última etapa da formação básica, especialmente pela desobrigação de disciplinas como Sociologia e Filosofia. Não obstante, a BNCC do Novo Ensino Médio traz importantes oportunidades de atuação na direção de uma educação integral e inclusiva por meio da sinergia e conjunção multidisciplinar para as disciplinas de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

PALAVRAS CHAVE: Currículo. Ensino Médio. Ciências Humanas e Sociais. Filosofia.

SUMMARY

This article explores the paths that permeated the proposals for revising the National Common Curricular Base determined by the Education Guidelines and Bases Law of 1996, in compliance with the command of art. 210 of the Federal Constitution. The process of reviewing the BNCC began with broad popular and academic debate, went through political interference and ended up reflecting the political-ideological scenario at the time of its approval. The new BNCC established, among its political-pedagogical guidelines, a new formulation for the so-called “New Secondary Education”, highly criticized by a wide range of education professionals due to its technical nature and the lack of comprehensive training of the student body in this last stage. basic training, especially due to the exemption of subjects such as Sociology and Philosophy. Nevertheless, the BNCC of New Secondary Education brings important opportunities for action towards integral and inclusive education through synergy and multidisciplinary conjunction for the disciplines of Humanities and Applied Social Sciences

KEY WORDS: Curriculum. High school. Human and Social Sciences. Philosophy.. 

INTRODUÇÃO

O Ensino Médio nasceu com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96) e substituiu o antigo “segundo grau” na formatação da Educação Básica no Brasil, que hoje compreende a Educação Infantil, as 9 etapas do Ensino Fundamental e as 3 etapas do Ensino Médio. Segundo os dois primeiros artigos da primeira LDBEN “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais” e “a educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” Além disso, a Lei determina em seu art. 26 que “Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum”. A liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e a vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais são, entre outras, garantias inscritas no art. 3o da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996).

1 AS BASES DA BASE

A Base Nacional Comum Curricular está inscrita no art. 210 da Constituição Federal de 1988, que garantiu a regulamentação do BNCC no art. 26 da LDBEN. No Capítulo III desta Constituição, encontramos uma ênfase significativa dada à educação, e assim diz no art. 210 que “Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais”. Esse marco histórico representa a primeira vez que, de maneira geral, indicou-se a necessidade de estabelecer uma Base Nacional Comum Curricular na Educação Básica (Brasil, p. 137, 1988).

Os primeiros Parâmetros Curriculares Nacionais, os famosos PCNs, foram editados entre 1997 e 2000, em 3 publicações. Na primeira, direcionada para os anos iniciais do Ensino Fundamental (1o ao 5o ano), o documento refere como objetivo auxiliar o professor e a professora “na execução de seu trabalho, compartilhando seu esforço diário de fazer com que as crianças dominem os conhecimentos de que necessitam para crescerem como cidadãos plenamente reconhecidos e conscientes de seu papel em nossa sociedade” (BRASIL, 1997, p.4), a partir do compromisso de “oferecer à criança brasileira o pleno acesso aos recursos culturais relevantes para a conquista de sua cidadania” (idem). Tais recursos incluem tanto os domínios do saber tradicionalmente presentes no trabalho escolar quanto às preocupações contemporâneas com o meio ambiente, com a saúde, com a sexualidade e com as questões éticas relativas à igualdade de direitos, à dignidade do ser humano e à solidariedade”(idem).

A segunda publicação do PCN, direcionada para os anos finais do Ensino Fundamental (5o ao 9o ano) é publicada em 1998, referindo que “o papel fundamental da educação no desenvolvimento das pessoas e das sociedades amplia-se ainda mais no despertar do novo milênio e aponta para a necessidade de se construir uma escola voltada para a formação de cidadãos” (BRASIL, 1998, p.5), com o objetivo de “criar condições, nas escolas, que permitam aos nossos jovens ter acesso ao conjunto de conhecimentos socialmente elaborados e reconhecidos como necessários ao exercício da cidadania” (idem).

No ano 2000, é publicada a parte final dos PCNs, dessa vez voltada para o Ensino Médio, buscando “dar significado ao conhecimento escolar, mediante a contextualização; evitar a compartimentalização, mediante a interdisciplinaridade; e incentivar o raciocínio e a capacidade de aprender” (BRASIL, 2000, p.5), propondo para o Ensino Médio “a formação geral, em oposição à formação específica; o desenvolvimento de capacidades de pesquisar, buscar informações, analisá-las e selecioná-las; a capacidade de aprender, criar, formular, ao invés do simples exercício de memorização” (idem).

Pensando na inclusão escolar, as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, estabelecidas pela Resolução CNE/CEB nº 2/2001 (Brasil, 2001b) determinam que todos os alunos devem ser matriculados no sistema de ensino, e requerem que as escolas devem se preparar para atender educandos com necessidades especiais, visando proporcionar uma educação de qualidade para todos. A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva – PNEEPEI de 2008 (Brasil, 2008), a partir do Decreto nº 6.094/2007 (Brasil, 2007), estabelece dentre as diretrizes do “Compromisso Todos Pela Educação”, pautando a garantia do acesso a permanência no ensino regular e o atendimento às demandas educacionais dos alunos, fortalecendo a inclusão educacional nas escolas públicas.

2 A PARTICIPAÇÃO POPULAR COMO BASE

Após a instituição e implementação, em 2008, do Programa Currículo em Movimento, que buscou “melhorar a qualidade da educação básica por meio do desenvolvimento do currículo da educação infantil, do ensino fundamental e ensino médio” (Brasil, 2008), o governo Lula convoca a I Conferência Nacional de Educação, que mobilizou “cerca de 3,5 milhões de brasileiros e brasileiras, contando com a participação de 450 mil delegados e delegadas nas etapas municipal, intermunicipal, estadual e nacional, envolvendo em torno de 2% da população do País” entre 2009 e 2010. Na etapa final o documento base “Construindo o Sistema

Nacional Articulado de Educação: O Plano Nacional de Educação, Diretrizes e Estratégias de Ação“ examinava “a situação educacional brasileira e suas perspectivas (…) sob a ótica da qualidade e valorização da educação com a participação de amplos segmentos educacionais e sociais” (BRASIL, 2010, p.7) e

“serviu de base consistente para as discussões coordenadas pela Comissão Organizadora Nacional, constituída por representação do governo e da sociedade civil” (idem). Esse documento foi debatido pelos 2.416 delegados e delegadas eleitos nas etapas municipais e estaduais da Conferência, teve a proposição de 2.057 emendas “encaminhadas às seis plenárias de eixo, realizadas em 30 e 31 de março de 2010, que resultaram 694 emendas aprovadas pelos delegados e delegadas e encaminhadas para apreciação e para deliberação da Plenária Final, que aprovou 677 delas” (idem).

Os números da I CONAE apontam para o compromisso social com a educação “constituiu-se num acontecimento ímpar na história das políticas públicas do setor educacional no Brasil, que contou com intensa participação da sociedade civil, de agentes públicos, entidades de classe, estudantes, profissionais da educação e pais/mães (ou responsáveis) de estudantes”. O documento final da Conferência relaciona pelo menos cinco grandes desafios que o Estado e a sociedade brasileira precisam enfrentar:

(i) Construir o Sistema Nacional de Educação (SNE), para garantir a institucionalização e o trabalho permanente do Estado e da sociedade para garantir o direito à educação; (ii) promover de forma permanente o debate nacional, estimulando a mobilização em torno da qualidade e valorização da educação básica, que tenha como princípio os valores da participação democrática dos diferentes segmentos sociais e, como objetivo maior a consolidação de uma educação pautada nos direitos humanos e na democracia; (iii) garantir que os acordos e consensos produzidos na Conae redundem em políticas públicas de educação, que se consolidarão em diretrizes, estratégias, planos, programas, projetos, ações e proposições pedagógicas e políticas, capazes de fazer avançar a educação brasileira de qualidade social; (iv) propiciar condições para que as referidas políticas educacionais, concebidas e efetivadas de forma articulada entre os sistemas de ensino, promovam: o direito do/da estudante à formação integral com qualidade; o reconhecimento e valorização à diversidade; a definição de parâmetros e diretrizes para a qualificação dos/das profissionais da educação; o estabelecimento de condições salariais e profissionais adequadas e necessárias para o trabalho dos/das docentes e funcionários/as; a educação inclusiva; a gestão democrática e o desenvolvimento social, e (v) indicar que seus fundamentos estão alicerçados na garantia da universalização e da qualidade social da educação em todos os seus níveis e modalidades, bem como da democratização de sua gestão. (BRASIL, I Conae, 2010, p.12)

Várias das deliberações da I CONAE se concretizam em atos governamentais nos anos posteriores, como as Resoluções do Ministério da Educação que definem as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica e Infantil (2010) para o Ensino Fundamental (2011) e Ensino Médio (2012), o lançamento do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) em 2012, o Pacto Nacional de

Fortalecimento do Ensino Médio (PNFEM) em 2013 e o Plano Nacional de Educação (PNE) em 2014. Com vigência de 10 anos, o plano elenca 20 metas para a melhoria da qualidade da Educação Básica, sendo que 4 delas se referem à Base Nacional Comum Curricular (BNC).

A II Conferência Nacional pela Educação, organizada pelo Fórum Nacional de Educação criado por proposição da I CONAE, foi realizada em 2014, após etapas de conferências municipais e estaduais desde o final de 2012. Essa segunda Conferência apresentou números ainda mais impressionantes que a primeira: mobilizou cerca de 3,6 milhões pessoas propondo rumos para a educação nacional, que apresentaram 30 mil propostas de emendas ao texto orientador dos debates e elegeram 2.673 delegados e delegadas para a fase final do evento, que resultou em um documento sobre as propostas e reflexões para a educação brasileira, um importante referencial para o processo de mobilização para a Base Nacional Comum Curricular. Em 2015 acontece o I Seminário Interinstitucional para elaboração da BNCC, que reuniu todas as assessoras e especialistas envolvidas na sua elaboração e resultou em Portaria Ministerial (BRASIL, 2015) que institui a Comissão de Especialistas para a Elaboração de Proposta da Base Nacional Comum Curricular.

Em setembro de 2015, a primeira versão do BNCC foi disponibilizada e submetida à consulta pública por meio do Portal da Base, espaço criado na web pela Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação. Entre setembro de 2015 e março de 2016, 305.569 indivíduos, 4.298 organizações e 45.049 escolas em todo o território nacional se cadastraram no portal e apresentaram mais de 12 milhões de contribuições críticas que foram “sistematizadas por equipes de pesquisadores da Universidade de Brasília e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e consolidados em relatórios enviados ao Comitê que, com base nesses dados e, ainda, nos relatórios analíticos e pareceres de leitura crítica, elaboraram a segunda versão da Base Nacional Comum Curricular” ( BRASIL, 2016, p.29)” que foi publicada em maio de 2016 e deveria seguir o fluxo de submissão ao Conselho Nacional de Educação e homologação pelo Ministério da Educação.

3 A INFLUÊNCIA POLÍTICA NA BASE

A partir daqui, é preciso contextualizar o cenário político nacional, pois o fluxo de tramitação da construção da BNCC foi atravessado pelas mudanças políticas que sacudiram o país exatamente naquele período. Até aqui, o histórico resgatado se refere a um período em que o Brasil estava sob a égide política dos governos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (PT), todos de orientação progressista, pelo menos no que se refere à educação, haja vista o próprio conteúdo dos documentos produzidos. A partir de 2015, se estabeleceu o ápice de desgaste político do governo da época, combinado com uma ascensão do pensamento político reacionário que, juntos, potencializam a derrubada do governo legitimamente eleito de Dilma Rousseff (PT), e possibilitaram a ascensão de seu vice, Michel Temer (MDB), que assumiu a Presidência da República em maio de 2016 e, mesmo sendo o vice-presidente de um projeto político legitimamente eleito, reestruturou toda a linha governamental para um alinhamento político mais condizente com a orientação ideológica conservadora que havia tomado o poder.

Com um ministério formado exclusivamente por senhores brancos socialmente privilegiados, a reformulação da política governamental ficaria clara, em especial para área da educação, ao retirar sua condição de pasta independente e retomar a formulação de “Ministério da Educação e Cultura”, formação ministerial que prevaleceu entre 1953 e 1985, e delegando o comando da pasta à José Mendonça Filho (DEM-PE), líder da oposição ao governo Dilma no Congresso Nacional e coordenador do comitê “impeachment já”, nome “sem qualquer afinidade expressa com a área” (PAIVA, 2016) da educação. A própria alteração da marca do governo federal, selo usado em ações de comunicação da Presidência da República, já dava o tom das mudanças: O slogan progressista “Brasil, Pátria Educadora” é substituído pelo slogan conservador “Brasil, Ordem e Progresso”.

Suplantando a ampla participação da sociedade civil e a experiência de educadores e pesquisadores da área, que formataram a longa trajetória de debates e construção da segunda versão da BNCC, o novo governo subverteu a tramitação do processo e delegou aos gestores estaduais e municipais da área da educação, atores políticos da burocracia estatal e sem a devida intimidade acadêmica com o fazer educacional, a reformulação do texto, cujos avanços ali presentes não agradavam à visão de mundo do governo que tomava o poder. Foi delegado ao Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) a promoção de seminários estaduais com professoras, gestoras e especialistas para reabrir o debate e reformular a segunda versão da BNCC, que ocorreram açodadamente entre junho e agosto de 2016, como forma de legitimar alterações que convergissem para as aspirações ideológicas do novo governo sobre educação.

Durante esses 27 seminários estaduais, que mobilizaram pouco mais de 9 mil participantes no país inteiro, foram elaborados questionários respondidos pelos gestores políticos, reabrindo debates que já haviam sido superados nas etapas anteriores, utilizando-se de uma “metodologia comum” (sic) de participação e sistematização de sugestões. O site do MEC sobre a BNCC apresenta os questionários respondidos (chamados de relatórios) em sua forma original, bem como um Relatório Síntese das propostas de alteração da BNCC coletadas nos questionários e um “Posicionamento conjunto de Consed e Undime sobre a segunda versão da Base Nacional Comum Curricular”. Sem qualquer critério claro, pinçando as sugestões apresentadas nos questionários que aparentemente coadunam com a visão de educação desses atores políticos e desconsiderando toda a gama de debates e proposições da sociedade civil e da academia que construíram durante anos a segunda versão da BNCC, Consed e Undime formataram seu posicionamento a fim de impor sua visão de educação à BNCC, em especial em relação ao Ensino Médio, e apresentaram uma terceira versão da Base, descolada dos debates anteriores.

Apesar de algumas críticas e sugestões consistentes em relação à clareza e organização textual, a proposição central das entidades encarregadas pelo novo governo, para adequar a segunda versão da BNCC à sua visão de educação, é de enxugamento e direcionamento para o tecnicismo em detrimento do pensamento crítico e da educação integral. Essa proposta de enxugamento, que esvazia as questões basilares em relação ao sujeito que se quer formar, fica clara em uma das passagens do documento:

A sugestão de Consed e Undime é de que sejam trazidos para o texto introdutório os quatro eixos de formação utilizados no Ensino Fundamental e no Ensino Médio – Pensamento crítico e projeto de vida, Intervenção no mundo natural e social, Letramento e capacidade de aprender, Solidariedade e Sociabilidade. Esses conceitos (…) são pilares fundamentais na formação integral do indivíduo, que contemplam a visão de cidadão expressa na Constituição e ao mesmo tempo agregam sentido e significado aos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento dispostos na Base. Para que o texto abrangesse toda a educação básica, seria necessário estabelecer a correlação desses eixos também com os campos de experiência da Educação Infantil. Com esta mudança, talvez se faça desnecessária a menção aos eixos em cada área de conhecimento do EF e do EM, assim como o exercício de cruzamento dos mesmos com os objetivos de aprendizagem (BRASIL, 2016, P.38).

O grande foco de atuação das entidades formadas pelos Secretários Estaduais e Municipais de Educação, em uníssono, é a reformulação do Ensino Médio, esvaziando sua capacidade crítica e lúdica, secundarizando a formação integral e direcionando essa etapa de formação dos cidadãos para o tecnicismo e preparação para o mundo do trabalho, sem maiores preocupações com a formação cidadã, a reflexão crítica e as interseccionalidades em relação aos problemas sociais e humanos. Como demonstra o documento “Sumário Executivo” publicado pelas entidades:

EIXOS (Pensamento crítico e projeto de vida, Intervenção no mundo natural e social, Letramento e capacidade de aprender, Solidariedade e Sociabilidade): reavaliar a pertinência e localização dos eixos na organização do EM. Recomenda-se trabalhá-los nos Textos Introdutórios. FLEXIBILIZAÇÃO: é recomendada a flexibilização da Base para o Ensino Médio, podendo essa etapa oferecer aos estudantes a possibilidade de cursarem uma parte dela comum e outra parte com ênfases e percursos específicos ou integrada à educação técnica ou profissionalizante. COMPETÊNCIAS: embora não tenha sido mencionado nos Seminários, o Consed avalia que o currículo do Ensino Médio deva ser organizado por competências. (LIMA, Aléssio C. p.20)

É preciso situar também a origem da força política das entidades que tomaram a frente da formulação do BNCC após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). Em 2016, os partidos de apoio parlamentar ao novo governo de Michel Temer comandavam uma maioria confortável das prefeituras e governos de Estado do país. MDB (1.044), PSDB (799), PSD (538), PP (495) PL (297), PTB (256), DEM (268), Cidadania (122), para citar apenas os maiores, somavam o comando das prefeituras de 3.819 municípios, ou 68,6% dos 5.568 municípios brasileiros. A base de apoio mais fiel do governo anterior (PT, PDT, PCdoB e PSOL) somavam apenas 671 governos municipais, ou 12,05% do total (CAESAR, 2020). Em relação aos 27 governos estaduais, a base de apoio ao novo governo federal governava 16 estados , enquanto a base de apoio do governo deposto governava apenas 8 estados 3 da federação.

A análise desse alinhamento político é fundamental para entender os interesses privados por trás do direcionamento das decisões sobre a BNCC para as instituições representantes dos executivos municipais e estaduais, que mesmo se autodeclarando como “conselhos”, não possuem as prerrogativas constitucionais nem estão formalmente instituídos da prerrogativa de atuação como formuladores de políticas públicas na área de educação. O “Novo Ensino Médio” defendido pelas entidades Undime e Consed, está alinhado aos interesses privados e à ideologia conservadora de que a educação pública forneça mais mão de obra qualificada ao mercado de trabalho e menos cidadãos com capacidade crítica para questionar a realidade. As próprias parcerias institucionais da Undime, referidas em seu sítio na internet, denunciam esse alinhamento. Entre elas, encontram-se as fundações financiadas pelos bancos Itaú e Lemann, pela empresa Natura, pela operadora de telefonia Vivo, pela holding de negócios educacionais Santillana, entre outras fundações sem fins lucrativos.

Todavia, o Estatuto Social do Consed sofreu ingerências dos processos de mercantilização e de gerencialismo, que são elementos privatizantes da educação. Exemplo disso é a Ata da IV Reunião Extraordinária do Conselho Nacional de Secretários de Educação de 2016, a qual estabeleceu que, para a constituição do estatuto, as recomendações do The Boston Consulting Group (BCG), para revisar o modelo organizacional e de governança corporativa da entidade, deveriam ser seguidas, o que foi aprovado por unanimidade pelo Fórum de Secretários. Assim, os interesses privados atuaram não apenas nas parcerias firmadas pelo Consed para elaboração e instituição da BNCC (TPE, Instituto Unibanco e Fundação Lemann, para citar algumas), mas estão presentes desde o documento que estabelece seu funcionamento e suas regras (Estatuto Social, atualizado em 2016). Vemos, nesse cenário, empresas e organismos internacionais tirando a educação do debate e do espaço público, alterando a sua natureza de bem comum, ao articulá-la à lógica empresarial, alinhando as políticas educacionais de Estados e Municípios.(AUER, 2023. p.10)

Entre as primeiras e principais decisões do novo governo de Michel Temer, estavam o estrangulamento dos investimentos do governo com a limitação do crescimento do orçamento público por 20 anos e o anúncio de um “novo ensino médio”, tudo à revelia tanto do projeto de estado desenvolvimentista pelo qual fora eleito como vice-presidente, quanto das deliberações populares das duas Conferências de Educação e de toda a mobilização em torno da formatação da BNCC. O congelamento dos investimentos públicos foi feito por meio da aprovação, em tempo recorde, da emenda constitucional 95, pelos mesmos parlamentares que garantiram o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. A concretização do “novo ensino médio” começou com a orientação de fatiamento da BNCC.

4 A APROVAÇÃO DA BASE

A terceira versão do documento foi apresentada pelas entidades representantes dos secretários de educação, em sua esmagadora maioria pertencentes ao mesmo espectro político do novo presidente, sem o texto para o Ensino Médio, a fim de garantir tempo para usar a própria BNCC para legitimar a vontade do governo em reformular radicalmente a última etapa da Educação Básica, o Ensino Médio, transformando-a de uma etapa que primava pela educação integral, formação em cidadania e preparação para a universidade em uma etapa primordialmente tecnicista formadora de mão de obra para o mercado de trabalho capitalista. Mesmo para o Ensino Fundamental, mudanças importantes foram impostas para garantir a visão imperialista, tecnicista e conservadora do novo governo, como a diminuição significativa de referências a questões de gênero e retirada da expressão “orientação sexual”, que era mencionada em grande parte dos objetivos de aprendizagem, limitando a discussão de gênero e orientação sexual à disciplina facultativa de Ensino Religioso; a organização meramente cronológica dos conteúdos de História, minimizando seu estudo comparativo; a obrigatoriedade do ensino da língua inglesa em detrimento de outras opções de língua estrangeira; antecipação da obrigatoriedade de alfabetização do 3o para o 2o ano do Ensino Fundamental, momento em que as crianças também deverão entender os primeiros conceitos de estatística e de probabilidade.

O Conselho Nacional de Educação, responsável legal pela homologação do BNCC, também sofreu interferências a fim de acomodar as vontades do novo governo em relação à sua proposta conservadora de educação, por meio de ato do então Presidente da República, Michel Temer, assinado em 1o de julho de 2016, que revogou 12 nomeações do governo anterior. Como consequência, alterou a seu favor a correlação de forças dentro do CNE, o que redundou na troca de comando da sua Comissão Bicameral, responsável pelo “acompanhamento dos debates sobre a BNCC e a emissão de parecer conclusivo acerca da proposta a ser recebida pelo CNE” (BRASIL, 2017. p.33)”. Apresentada ao CNE, em abril de 2017, a terceira versão da BNCC formulada pela representações dos secretários municipais e estaduais de educação, o conselho convoca 5 audiências públicas regionais, realizadas entre julho e setembro de 2017, das quais participaram 1.487 representantes de instituições educacionais, organizações profissionais e pessoas interessadas no tema, resultando em 211 intervenções orais e escritas com propostas sobre a BNCC.

Em 15 de dezembro de 2017, O Conselho Nacional de Educação aprova por maioria a versão final do BNCC articulado entre o Comitê Gestor do BNCC no Ministério da Educação e a nova configuração do CNE, sem a inclusão do Ensino Médio e sem levar em consideração as proposições dos seminários regionais, como denuncia em seu pedido de vistas uma das conselheiras do CNE.

Em 2017, o MEC encaminha ao CNE a 3a versão da Base Nacional Comum Curricular, elaborada de forma autônoma pelo Comitê Gestor. Nesta nova versão, muitos limites são detectados e destacados nas audiências públicas regionais, efetivadas pelo CNE. A análise detida dessas contribuições não se efetivou e a tramitação célere da matéria na Comissão Bicameral, como destacamos, comprometeu o processo de discussão e deliberação resultando, entre outros, no pedido de vista. (BRASIL, 2017. p.38)

O próprio Parecer 15/2017 do CNE que homologou a proposta de BNCC que excluía o Ensino Médio, traz o relato dessa interferência governamental, por meio do pedido de vista de 3 conselheiras que apontaram discordância com a forma açodada como a matéria passou a tramitar no conselho e apresentaram, ao final, voto contrário à homologação da BNCC sem contemplar o Ensino Médio, que é parte consagrada da Educação Básica conforme os artigos 26 e 27 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A declaração de voto contrário de uma das conselheiras refere que:

Declaro meu voto contrário ao Parecer referente à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apresentado pelos Conselheiros Relatores da Comissão Bicameral da BNCC, José Francisco Soares e Joaquim José Soares Neto, alegando que o mesmo rompe com o princípio conceitual de Educação Básica ao excluir a etapa do Ensino Médio e minimizar a modalidade EJA, e a especificidade da educação no campo; desrespeita o princípio do pluralismo proposto pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB); fere o princípio de valorização das experiências extraescolares; afronta o princípio da gestão democrática das escolas públicas; atenta contra a organicidade da Educação Básica necessária à existência de um Sistema Nacional de Educação (SNE). Declaro, ainda, que o Conselho Nacional de Educação, ao aprovar o Anexo (documento – 3ª versão da BNCC) apresentado pelo Ministério da Educação, com lacunas e incompletudes, abdica do seu papel como órgão de Estado; fragiliza a formação integral dos estudantes, além de ferir a autonomia dos profissionais da Educação. (BRASIL, 2017. p.43)

Outra das três conselheiras que votaram contra o do CNE, declarou seu voto divergente observando que “o CNE deve exercer o papel de órgão de Estado e não de governo, como demonstrou e se manifestou neste momento ao aprovar documentos incompletos” e que “o documento relatado apresenta importantes limitações, entre elas a ruptura da Educação Básica”. Com esses argumentos, reiterou seu posicionamento contrário ao Parecer, “por ser favorável ao diálogo democrático e republicano, como princípio que fundamenta a minha trajetória de quase cinquenta anos como professora deste país”. Mesmo um dos conselheiros que votou a favor do parecer que homologou a terceira versão da BNCC, teceu críticas contundentes ao documento, ressaltando que “a não inclusão do ensino médio” prejudica “uma visão do todo da educação básica” e criticando “a exclusão das referências a gênero e orientação sexual” pois “o MEC e a maioria dos membros do CNE acabaram cedendo às pressões das milícias fundamentalistas e ultraconservadoras que se posicionaram contra a existência dessas questões na BNCC”. Criticou ainda a proposta de História nos anos finais do ensino fundamental, “uma concepção meramente factual, linear, cronológica, descontextualizada e alienante” e “a fixação de que a alfabetização deve se dar no segundo ano do ensino fundamental, já que essa decisão cabe às escolas e ao seu projeto pedagógico” e “o prazo excessivamente longo, de 7 anos, para a revisão da BNCC que, por ser aprimeira, naturalmente contém imperfeições e incompletude”.

Em 20 de dezembro de 2017, apenas 5 dias após a sua aprovação pelo CNE, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi homologada pelo ainda ministro da Educação, Mendonça Filho, sem o Ensino Médio em seu texto. Em de abril de 2018, o Ministério da Educação entregou ao Conselho Nacional de Educação a 3ª versão da Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Médio, e em dezembro do mesmo ano, após uma série de audiências públicas sobre as quais não há nenhuma referência em seu site, o MEC homologa a parte que faltava da nova BNCC, lançando seu projeto de Novo Ensino Médio. Apesar do objetivo de garantir a todos os estudantes o direito de aprender habilidades comuns e conhecimentos específicos fundamentais, sejam eles de escolas públicas ou privadas, cabe salientar que, apesar dos termos referentes à inclusão aparecerem nas competências gerais – “Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva” (Brasil, 2017, p. 9) – não há uma seção específica dedicada às práticas inclusivas ou à promoção da inclusão educacional, repetindo a escassez de tópicos específicos sobre estratégias práticas e diretrizes para a educação inclusiva das versões anteriores no sentido de incluir especificamente o público alvo da educação especial, que são os estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, altas habilidades e superdotação dentro do espaço escolar.

5 A BASE DO ENSINO MÉDIO

Segundo a BNCC, na parte específica para o Ensino Médio aprovada em 2018, a parte final da Educação Básica deixa de ser uma etapa de formação integral obrigatória para ser uma etapa de formação tecnicista obrigatória. Agora apenas as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática são obrigatórias, e todo o restante do currículo será construído com foco em Competências Gerais e Competências Específicas que serão mobilizadas por “conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (BRASIL, 2018, p.10)”.

Porém, é sabido que vivemos em um contexto social em que o ter é socialmente mais valorizado que o ser. Nessa cultura de superficialidade do papel do ser humano na sociedade, aliada a um contexto de desigualdade social e competitividade capitalista, tanto por empregabilidade quanto por acesso ao ensino superior, a juventude atravessa o ensino médio com pouca perspectiva de futuro, priorizando com facilidade o ensino profissionalizante que lhe dá alguma perspectiva, pelo menos teórica, de finalizar o ensino médio com mais ferramentas para buscar um lugar ao sol na injusta competição por trabalho que lhe garantam minimamente os meios de sobrevivência, abdicando com facilidade da formação integral humanista pouco valorizada na sociedade capitalista.

Mesmo assim, apesar de atropelar a construção democrática da BNCC, fatiando-a e delegando a construção da parte final do BNCC, o Ensino Médio, à tecnocracia ministerial e política e sua visão de mundo competitiva e conservadora, os propositores do Novo Ensino Médio não puderam suplantar por completo os diagnósticos, estudos, proposições e bases conceituais construídas ao longo de anos de debates. Ao reformular o Ensino Médio para direcioná-lo à possibilidade de um currículo mais tecnicista e alienante, se viram obrigados a deixar várias portas abertas para a possibilidade de suas novas diretrizes e até mesmo de aprofundar o currículo em direção a uma formação mais humanista e integral.

No contexto da inclusão dos estudantes que fazem parte do público alvo da educação especial, o novo ensino médio também traz preocupações importantes, pois pode-se perceber, na sua implantação, que ainda persiste a sua invisibilização na escola contemporânea, que permanece sendo um lugar de privação de oportunidades e possibilidades de realização pessoal e profissional.

O Novo Ensino Médio, embora esvazie o sistema de disciplinas obrigatórias e coloque, em seu lugar, um sistema de competências obrigatórias, por meio de um direcionamento de obrigatoriedades focadas apenas nas disciplinas de Português e Matemática, abre uma vasta gama de possibilidades multidisciplinares que proporcionam às escolas, alunos e professores, na medida de suas capacidades políticas de intervir no currículo, possibilidades quase infinitas de articular e incluir educação integral e crítica no dia a dia da formação das estudantes do Ensino Médio, por meio de ferramentas didáticas as mais variadas, conectadas às competências específicas que constam na Área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, por exemplo. Mesmo sem o compromisso curricular obrigatório de disciplinas historicamente comprometidas com a formação humanista integral, como Geografia, História, Sociologia e Filosofia, a BNCC do Novo Ensino Médio se manifesta comprometida com a educação integral, deixando para as Competências Específicas de cada Área a possibilidade de sua execução. Segundo o documento:

A organização por áreas, como bem aponta o Parecer CNE/CP nº 11/200925, “não exclui necessariamente as disciplinas, com suas especificidades e saberes próprios historicamente construídos, mas, sim, implica o fortalecimento das relações entre elas e a sua contextualização para apreensão e intervenção na realidade, requerendo trabalho conjugado e cooperativo dos seus professores no planejamento e na execução dos planos de ensino” (BRASIL, 2017, p.32)

6 A ÁREA DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS APLICADAS

A Base Nacional Comum Curricular para o Novo Ensino Médio parte das 10 Competências Gerais para a Educação Básica, que devem ser garantidas como direitos de aprendizagem a todos os estudantes. A estrutura de disciplinas obrigatórias dá lugar à uma estrutura de Competências Específicas Obrigatórias em cada uma das 4 Áreas do Conhecimento definidas no documento: Linguagens e suas Tecnologias; Matemática e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias; Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Dentro desse itinerário formativo, os alunos podem encontrar disciplinas obrigatórias e optativas que exploram diferentes aspectos das ciências humanas e sociais aplicadas. Além disso, o currículo pode incluir atividades práticas, projetos de pesquisa, estágios e outras formas de aprendizado que permitam aos estudantes aplicar os conhecimentos adquiridos em situações do mundo real. As Competências Específicas, definidas para cada área, se materializam em Habilidades definidas e descritas em um sistema codificado, que devem ser apreendidas pelos alunos e que “representa as aprendizagens essenciais a serem garantidas no âmbito da BNCC a todos os estudantes do Ensino Médio”.

A BNCC define que a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas amplia a base conceitual trabalhada no Ensino Fundamental e concentra-se na “análise e na avaliação das relações sociais, dos modelos econômicos, dos processos políticos e das diversas culturas” (BRASIL, 2017. p.471). A ideia é proporcionar uma formação mais abrangente e contextualizada, permitindo que os alunos compreendam melhor a sociedade em que vivem, desenvolvam habilidades críticas de análise e reflexão, e estejam mais bem preparados para participar ativamente da cidadania, além de contribuir para o desenvolvimento social e econômico do país.

Algumas disciplinas comuns podem incluir Sociologia, Filosofia, História, Geografia, Economia, Ciência Política, entre outras, dependendo da oferta da escola e das escolhas individuais dos estudantes. Essa diversidade de disciplinas permite que os alunos explorem diferentes áreas de interesse dentro das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, preparando-os para possíveis carreiras nas áreas de ciências sociais, humanidades, gestão, entre outras. O documento ressalta que a BNCC não é o currículo do Ensino Médio, mas define as aprendizagens essenciais a serem garantidas aos estudantes e orienta a reformulação dos currículos e a proposição de itinerários formativos considerando, em cada escola, as características regionais e culturas locais, às necessidades de formação e a aspirações dos estudantes, definindo a flexibilidade curricular como princípio, para que as escolas adotem a organização curricular que melhor responda aos seus contextos, rompendo com a centralidade das disciplinas obrigatórias, criando “situações de trabalho mais colaborativas, que se organizem com base nos interesses dos estudantes e favoreçam seu protagonismo” (p. 472), tais como laboratórios, oficinas, clubes, observatórios, incubadoras, núcleos de estudo e de criação artística. Segundo o texto:

A BNCC na área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas – integrada por Filosofia, Geografia, História e Sociologia – propõe a ampliação e o aprofundamento das aprendizagens essenciais desenvolvidas até o 9º ano do Ensino Fundamental, sempre orientada para uma educação ética. Entendendo-se ética como juízo de apreciação da conduta humana, necessária para o viver em sociedade, e em cujas bases destacam-se as ideias de justiça, solidariedade e livre-arbítrio, essa proposta tem como fundamento a compreensão e o reconhecimento das diferenças, o respeito aos direitos humanos e à interculturalidade, e o combate aos preconceitos. (p. 547)

Nessa lógica, o documento que deve orientar a formação e aplicação dos currículos no Ensino Médio reconhece a capacidade dos estudantes para questionar categorias, objetos e processos, a fim de propor e questionar hipóteses sobre as ações dos sujeitos e a identificar ambiguidades e contradições tanto em ações individuais quanto em estruturas sociais. A BNCC instiga os professores a formular currículos que possibilitem a construção e desconstrução de significados, a fim de possibilitar aos estudantes a construção de hipóteses e argumentos baseados na seleção e sistematização de dados obtidos de fontes confiáveis e sólidas do conhecimento, “colocando em prática a dúvida sistemática, elemento essencial para o aprimoramento da conduta humana” (p. 548).

Na BNCC de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas do Ensino Médio, são destacadas algumas categorias de temas para serem problematizadas no currículo: Tempo e espaço; territórios e fronteiras; indivíduo, natureza, sociedade, cultura e ética; política e trabalho; consideradas fundamentais para a investigação e aprendizagem. Ao considerar esses temas, o currículo deve possibilitar o “acesso a conceitos, dados e informações que permitam aos estudantes atribuir sentidos aos conhecimentos da área e utilizá-los intencionalmente para a compreensão, a crítica e o enfrentamento ético dos desafios do dia a dia, de determinados grupos e de toda a sociedade” (p. 550).

No tratamento dessas categorias no Ensino Médio, a heterogeneidade de visões de mundo e a convivência com as diferenças favorecem o desenvolvimento da sensibilidade, da autocrítica e da criatividade, nas situações da vida, em geral, e nas produções escolares, em particular. Essa ampliação da visão de mundo dos estudantes resulta em ganhos éticos relacionados à autonomia das decisões e ao comprometimento com valores como liberdade, justiça social, pluralidade, solidariedade e sustentabilidade. (p. 557)

A BNCC define seis Competências Específicas que devem nortear os currículos do Ensino Médio e que se desdobram, cada uma, em 4 a 6 Habilidades. Segundo a codificação definida pelo documento, as 31 habilidades que se espera que os estudantes alcancem nessa etapa final da Educação Básica podem ser propostas em qualquer um dos 3 anos do Ensino Médio. As competências e suas respectivas habilidades, a que se refere o documento, abrem a perspectiva de inúmeras atividades formativas nos campos da filosofia, sociologia, geografia e história. De cunho generalista e multidisciplinar, as competências e habilidades direcionam o currículo da área para uma formação crítica e investigativa em relação a processos sociais, políticos, econômicos, ambientais e culturais, em diferentes tempos e espaços, acerca da formação de territórios e fronteiras, da relação das sociedades com a natureza; das relações de produção, capital e trabalho; do reconhecimento e combate às diversas formas de violência e desigualdade e da participação pessoal e coletiva no debate público, promovendo reflexões sobre a desigualdade, a exclusão e o arbítrio de poder; sobre a ética socioambiental; sobre a transformação das sociedades; sobre princípios éticos, democráticos, inclusivos e solidários; sobre o respeito aos direitos humanos; sobre o exercício da cidadania e sobre um projeto de vida com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Ensino Médio, antes das alterações trazidas pela BNCC, já era palco de disputas dentro da comunidade escolar, entre os progressistas defensores de uma educação integral e humanista e os conservadores que defendiam uma educação mais tecnicista e voltada prioritariamente para capacitação profissional, o que se consolidava na disputa por carga horária entre as disciplinas que atendiam a essas duas visões de educação dentro da autonomia escolar.

Apesar dos pontos negativos óbvios, fundados nas diversas críticas, desde a interferência política e econômica na sua construção até o conteúdo generalista e tecnicista, e do esvaziamento provocado pela desobrigação de disciplinas clássicas substituídas por um sistema de competências e habilidades genéricas, a BNCC do novo Ensino Médio traz como ponto positivo oportunidades de atuação na direção de uma educação integral que vão além da perspectiva anterior, limitadas à disputa por carga horária semanal em disciplinas da área de Ciências Humanas e Sociais.

Ao oferecer uma maior flexibilidade curricular, ampliação da carga horária e a possibilidade de escolha de diferentes itinerários formativos, essa reforma pode proporcionar uma educação mais personalizada e alinhada com os interesses e aptidões de cada aluno, a integração entre teoria e prática por meio de projetos de pesquisa, estágios, laboratórios, oficinas, clubes, observatórios, incubadoras e núcleos de estudo, que podem contribuir para uma aprendizagem mais significativa e contextualizada.

Agora já em vigor e em fase final de implantação, a mesma energia desde sempre dispendida pelos docentes da área, não só para justificar a importância de suas disciplinas, mas para disputar carga horária com as demais disciplinas nos currículos escolares, poderá ser redirecionada para a conjunção interdisciplinar, com o objetivo de inserir, nos currículos escolares, conteúdos e metodologias que atendam ao cumprimento de todas as 31 habilidades exigidas pela BNCC para a área.

Não se pode negar que a implantação do Novo Ensino Médio traz consigo desafios em relação à universalização do ensino, considerando a diversidade humana e o direito à inclusão escolar. Percebe-se que as medidas que deveriam promover a inclusão ainda são restritivas e limitadas, especialmente quando se considera o aspecto humano. Com relação às práticas educacionais inclusivas, sua implementação pode resultar em ambientes educacionais verdadeiramente inclusivos e respeitosos com a diversidade de habilidades e trajetórias de aprendizagem.

Assim, não se trata mais de atuar para defender a importância e garantir espaço para as disciplinas da área, mas sim de propor ao corpo docente, às alunas e alunos, e ao currículo escolar, metodologias e conteúdos multidisciplinares que garantam, nos 3 anos do Ensino Médio, além da inclusão, o cumprimento do compromisso da BNCC do Novo Ensino Médio: que os estudantes finalizam a última etapa da Educação Básica dominando as 6 competências específicas e possuindo as 31 habilidades propostas para a àrea de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. 

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1 Mestre em Políticas Públicas (FLACSO 2024). Licenciado em Filosofia (UFPEL 2021). Especialista emGestão Pública (UFSM 2012) e em Ensino da Sociologia (UFRGS 2015). Especializando em Ensino da Filosofia (UFPEL 2024). Sociólogo (ULBRA 2017). Contador (UFRGS 2010). Servidor Público Federal (TRT/RS 1997). e-mail: sergiosamorim@gmail.com. Código ORCID 0009-0008-9758-5186.
² Arquivista (UFSM 2012). Especialista em Deficiência Intelectual (FI 2024). Especializanda em Ensino da Filosofia (UFPEL 2024). Acadêmica de Licenciatura em Educação Especial (UFSM 2024). e-mail: cciscato@gmail.com.