A INVISIBILIDADE QUE ACOMPANHA O GLAMOUR: A EXPLORAÇÃO DAS MULHERES TRABALHADORAS PELA INDÚSTRIA DA MODA NOS GRANDES CENTROS URBANOS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11541180


Nathalia Costa da Cruz1;
Raynara Yasmin Macedo Porto2;
Carlos Alberto Valcacio dos Santos3.


RESUMO: O presente artigo busca contextualizar a realidade das mulheres trabalhadoras da indústria da moda nos grandes centros urbanos, que, pelas condições de trabalho, poderiam ser facilmente enquadradas como submetidas à condições análogas à escravidão e que, no entanto, acabam sofrendo um processo de “invisibilização”. Para isso, discute-se conceitualmente o trabalho escravo contemporâneo e a sua manifestação na indústria têxtil, que tem nas mulheres a força de trabalho preferencial. Por fim, demonstra-se como essa problemática se relaciona com o fenômeno da “invibilização social das trabalhadoras”, que impacta na ausência de normas jurídicas protetivas e no agravamento da vulnerabilidade dessas mulheres, diante das recorrentes práticas de trabalho análogo à escravidão.

PALAVRAS-CHAVE: trabalho escravo contemporâneo; invisibilidade social; trabalhadoras da indústria da moda; direitos trabalhistas.

I. INTRODUÇÃO

O modo como a sociedade se organiza impacta na forma que os indivíduos se relacionam, gerando padrões de comportamento e interação social. Valores comuns são socialmente convencionados e indicam quais práticas são aceitas e quais são repelidas, quais são aquelas valorizadas e as desvalorizadas. Fato é que as práticas sociais visíveis e positivamente valoradas são apenas parcela da existência, fração do real.

Em verdade, aquilo que encontra-se sobre a penumbra, aquilo que se busca esconder, revela muito mais sobre as reais relações humanas, marcadas pela dominação de poder, do que aquilo que se pode enxergar sob a luz do dia. Em suma, nossa atenção só vem ver o que é para ser oficialmente visto, escuta tão somente o que está autorizado, percebendo poucas vezes o que está à meia-luz (DA COSTA, 2004).

Cabe aqui transcrever a metáfora inspiradora de Fernando Braga da Costa, para entender que a configuração social atual não é natural e nem total, mas apenas uma das formas de organização possíveis e que conseguimos enxergar (DA COSTA, p.13, 2021):

A distribuição da luz e das sombras sobre objetos, ambientes e corpos, não é coisa que deveríamos tomar meramente como coisa física, o corriqueiro espetáculo de como o sol ou a lâmpada faz figurar certos lados, deixando outros sob penumbra, arquitetando o que vai brilhar e o que ficará escuro. A iluminação é coisa também social. O que vemos e o que deixamos de ver, o regime de nossa atenção, é decidido segundo o modo como fomos colocados em companhia dos outros, segundo o modo como também nos colocamos e como eventualmente nos recolocamos em companhia.

O presente artigo busca jogar luz a um problema social que encontra-se na nas sombras, ou melhor, na invisibilidade, revelando o contexto de violência vivenciado por mulheres trabalhadoras da indústria da moda nos grandes centros urbanos, vítimas preferenciais do trabalho escravo contemporâneo, diante da “invisibilidade social” que estão sujeitas.

Em um primeiro momento, analisar-se o atual modelo de produção da indústria têxtil, e como este baseia-se na submissão das trabalhadoras à condições degradantes de trabalho, que incluem jornada excessiva, baixos salários, falta de benefícios e segurança precária no ambiente laboral. Busca-se, com isso, delimitar aspectos que podem enquadrar tais situações como condições análogas à de escravo.

Em seguida, discorre-se acerca do trabalho escravo contemporâneo, marcado pela restrição da liberdade dos sujeitos que vai além da mera capacidade de locomoção, traçando sua definição e características. De posse desses instrumentos conceituais, demonstrar-se que as condições de trabalho desumanas às quais as trabalhadoras da indústria têxtil estão submetidas são análogas à escravidão.

Por fim, será abordado o fenômeno da “invisibilização social” das trabalhadoras e trabalhadores, de modo geral, para, desse modo, explicar as nuances da condição de invisibilidade das mulheres trabalhadoras da indústria da moda nos grandes centros urbanos, que acarretam na ausência de normas jurídicas protetivas e no agravamento da condição de vulnerabilidade das obreiras em face das práticas de trabalho escravo.

Quanto ao caráter metodológico deste trabalho, consiste em uma pesquisa de abordagem qualitativa, com o objetivo de explicar a realidade das trabalhadoras da indústria

da moda a partir do fenômeno da invisibilidade social, inserindo a problemática da escravidão contemporânea, tão presente nas relações de trabalho desse ramo industrial. Tomando como procedimento a pesquisa bibliográfica, aplica-se o método lógico-dedutivo, para extrair de conceitos gerais repostas para um fenômeno específico.

II. DO GLAMOUR À DEGRADAÇÃO: A REALIDADE DAS TRABALHADORAS NA INDÚSTRIA DA MODA

A realidade das mulheres trabalhadoras na indústria da moda é marcada por violações de direitos e pela submissão à lógica de um sistema econômico fundado nos princípios do individualismo e da acumulação. Para entender a atual configuração social silenciadora e opressora do sexo feminino, em que as trabalhadoras são as vítimas prediletas de um mercado que se alimenta da exploração violenta da força de trabalho, faz-se necessário esse recorte de gênero. A investigação desses fatos sociais contextualizados nos permite descrever melhor o fenômeno e idealizar meios para romper esse ciclo de violência, considerando que se tratam de práticas violadoras de direitos e da própria dignidade humana.

Neste tópico, problematizar-se-á a realidade das mulheres trabalhadoras que atuam no ramo da moda nos grandes centros urbanos, tendo em vista que essa indústria, ao mesmo tempo em que ostenta glamour e a necessidade desenfreada por consumo, submete as trabalhadoras à condições degradantes de trabalho, que incluem jornadas excessivas, baixos salários, falta de benefícios e segurança precária no ambiente laboral.

Adentrando ao debate, podemos partir da constatação de que o mundo moderno é regido pela lógica do consumo, inerente ao capitalismo. Busca-se criar nos indivíduos o desejo pelo produto, incutindo a necessidade de “ter” a mercadoria desejada a qualquer custo. Esse é o mito do consumo, em que “se acredita que é possível alcançar o bem-estar e a felicidade plena por meio do consumo dos produtos que preenchem as prateleiras” (PEREIRA; DA SILVA; COUTO; SILVA, 2019, p.3)

O sistema capitalista passou por transformações, notadamente a partir da década de 80, com a descentralização da produção e negociações feitas em escala global, o que produziu reflexos na indústria da moda. A partir de então, surge um novo padrão de consumo no setor têxtil, ancorado no tripé: produção a baixo custo, rápida distribuição e preços atrativos ao público (TANJI, 2016). Diante da popularização  do modelo fast fashion4, as lojas constantemente estão repletas de novidades, contudo, os produtos tornam-se completamente descartáveis, para alimentar o hábito de compra (SIMIONATO; LENUZZA; MAZZINI, 2021).

A produção artesanal de bens de uso, como o caso de vestuários, antes da mecanização, iniciava com a contratação do produto, para que este fosse confeccionado e, posteriormente, entregue ao comprador. No modelo industrial, com a introdução e difusão de novas técnicas e inventos, passou-se a confeccionar o produto para, em seguida, vendê-lo inteiramente pronto e acabado, “pronto para usar”. Essa lógica serve de base para o modelo fast fashion, que vai além, ao acelerar e baratear ainda mais os processos produtivos, expandindo as camadas de subcontratação, aumentando o fosso social entre elas e pressionando por mais flexibilidade no ambiente de trabalho (BIGNAMI, 2014).

A produção fast fashion recebe esse nome pela velocidade em que as peças são produzidas, utilizadas e descartadas. As roupas são produzidas de forma padronizada, numa escala de massa, com tempo de vida reduzido e preços baixos. A estratégia para manter e consolidar a moda rápida é promover uma alta rotatividade de tendências, para que o estilo predominante numa estação seja considerado ultrapassado na seguinte, pressionando os consumidores a estarem sempre comprando os “novos modelos”, a fim de se manterem na “moda” (CORDEIRO, 2021).

Essa indústria crescente ainda é altamente dependente de mão de obra, considerando a necessidade de uma operadora para cada máquina de costura. A concorrência imposta pela globalização pressiona as empresas do ramo da moda a obter maior lucratividade através da exploração do trabalhador, sem observar as condições de trabalho adequadas. Nessa síntese entre a vulnerabilidade do trabalhador, a alta competitividade do setor e o anseio por maior lucratividade, forma-se o cenário ideal para ocorrência e proliferação de casos de sujeição do trabalhador a formas de trabalho degradantes (MACHADO, 2022).

O ramo da moda possui a fama de ser um dos setores que mais se valem da inobservância (e violação) dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras para potencializar o lucro e a produtividade5. O poder cultural da indústria da moda estimula o consumo desenfreado, enquanto os trabalhadores são submetidos a condições precárias de trabalho (MACHADO, 2022).

O Brasil é um importante player da indústria da moda global e integra, possuindo uma lista de escândalos envolvendo condições de trabalho precárias. Em 2020 o Brasil compôs 2,6% da produção mundial de vestuário, atrás tão somente da China (47,2%), Índia (7,1%) e Paquistão (3,1%) (UNOPS, 2022). A indústria têxtil é a segunda que mais emprega no país, no setor de transformação, sendo diretamente responsável por 1,5 milhão de empregos. Além disso, o país é considerado a maior cadeia têxtil completa do Ocidente, tendo em vista que possui produção interna da obtenção das fibras, passando por tecelagens, beneficiadoras, confecções, forte varejo e até desfiles de moda (UNOPS, 2022).

Conforme destaca o relatório Mulheres na Confecção (2022, p.25), produzido pelo Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos (UNOPS), o comércio varejista de vestuário cresceu significativamente no Brasil nos últimos 15 anos, notadamente no estado de São Paulo, considerando a tendência de surgimento de novos estabelecimentos de comércio do gênero entre 2000 e 2010, bem como de planos de expansão de grandes lojas de departamento de origem nacional ou internacional.

O processo produtivo destes grandes estabelecimentos varejistas é, em grande medida, baseado na terceirização, em que a empresa foca apenas no desenvolvimento dos desenhos das roupas e terceiriza a produção propriamente dita, colaborando para precarização do trabalho (UNOPS, 2022). Boa parte das oficinas dessas empresas subcontratadas têm instalações limitadas, pois não recebem grandes investimentos de recursos, resultando em ambientes insalubres de trabalho. As máquinas de costura utilizadas nessas produções costumam ter qualidade inferior, de primeira ou segunda mão, enquanto as máquinas mais avançadas possuem valores inviáveis para que empresas pequenas as adquiram (UNOPS, 2022).

Nesse setor, onde a prática de corte e costura é a base da produção, impossível não haver um recorte de gênero marcante, em que as mulheres são as vítimas preferenciais da indústria da moda, sob influência da concepção machista que permeia a sociedade. Em números, no Brasil, o complexo setorial têxtil de vestuário, couro e calçados emprega cerca de 2,7 milhões de pessoas e, desse total, mais de 70% são mulheres trabalhadoras. Dentre as mulheres trabalhadoras, 58% são informais (CASARA, 2021).

Para entender esse fenômeno, o conceito de trabalho deve ser ampliado e a noção de divisão sexual do trabalho deve sofrer uma reformulação, para assim contribuir com uma leitura materialista da opressão das mulheres, agora, sob uma perspectiva feminista (BEZERRA; CORTELETTI; ARAÚJO, 2020). Na interpreção de autoras materialistas francesas, “o trabalho constitui a base material das relações sociais de sexo, enquanto a subjetividade e ideologia constituem a base ideativa. Essas relações sociais se baseiam numa relação hierárquica entre os sexos, numa relação de poder, de dominação” (BEZERRA; CORTELETTI; ARAÚJO, 2020, apud KERGOAT, 2009, p. 71).

A Primeira Revolução Industrial é um exemplo da preferência por explorar a mulher trabalhadora, posto que, naquele contexto, as mulheres compunham a maioria dos trabalhadores fabris. Aproximadamente 77% da força de trabalho em 1830, na Inglaterra, era composta por mulheres e crianças, tendo em vista o preço reduzido e a mão de obra abundante, além de que as operárias eram rotuladas como dóceis e manipuláveis6. As trabalhadoras das fábricas eram submetidas à condições de trabalho insalubre e jornadas diárias estenuantes, à desigualdade salarial em relação aos homens e ao assédio sexual (CORDEIRO, 2021).

As práticas inerentes ao setor têxtil, como a produção de tecido e a confecção de roupas, historicamente foram associadas a ofícios femininos, muitas vezes tendo um menor prestígio que a alfaiataria masculina. No Censo brasileiro de 1920, as mulheres representavam 65,1% da mão de obra existente na indústria têxtil e 69,7% no setor de confecções. Esse percentual passa a sofrer um processo de redução, na medida em que a indústria vai incorporando inovações tecnológicas à produção, de modo que as mulheres passam a ocupar posições menos privilegiadas, trabalhando principalmente em domicílio (BEZERRA; CORTELETTI; ARAÚJO, 2020).

Contudo, ainda que a tecnologia venha tomando espaço das trabalhadoras, no atual cenário, conforme destacam Bezerra, Corteletti e Araújo (2020, p.13), a participação das mulheres na cadeia de produção é significativa, tendo em vista diferentes fatores que contribuem para a inserção da mulher no mercado de trabalho, cabendo ressaltar: a redução na taxa de fecundidade, o aumento do nível de escolaridade, o aumento das famílias monoparentais femininas e as mudanças sociais e culturais que envolvem as relações de gênero provocaram mudanças de concepções em relação à dependência feminina e sua posição dentro das esferas produtiva e reprodutiva.

Quanto às diferentes funções existentes na cadeia de produção têxtil, cabe detalhar que 86,4% das mulheres trabalham na etapa da costura e 35% na etapa de corte do tecido (há intersecção de funções). Ademais, dentre as mulheres trabalhadoras da indústria da moda, 32% trabalham com o produto final, 29,9% negociam e vendem aos clientes. Os produtos confeccionados pelas trabalhadoras são destinados, em sua maioria, à venda para lojas e marcas varejistas (42,1%) e para feiras (33,6%), existindo, também, aquelas trabalhadoras que possuem clientes próprios (28,9%) (UNOPS, 2022, p. 59).

Essas trabalhadoras, via de regra, são encontrados sujeitas à má alimentação, em condições precárias de higiene, dormindo em locais apertados para um grande número de pessoas e, ainda, submetidas a jornadas extenuantes de trabalho, dentre outras situações degradantes (VELOSO; ARRUDA, 2024).

Depreende-se, portanto, que o modelo de produção que move a indústria da moda baseia-se, fundamentalmente, na exploração voraz da força de trabalho, buscando reduzir custos e maximizar os lucros, diante de um mercado cada vez mais competitivo. As mulheres compõem a maior parcela da mão de obra desse ramo industrial, posto que a prática de corte e costura é historicamente associada ao gênero feminino, além de fatores sociais, como a luta dos movimentos feministas, que levaram à uma maior inserção das mulheres no mercado de trabalho.

Diante das violações de direitos humanos perpetradas contra as trabalhadoras da indústria têxtil, levadas a cabo por empresas e empregadores que atuam na industrial têxtil, tornou-se corriqueira a veiculação de notícias envolvendo o resgate de trabalhadoras e trabalhadores no local de trabalho por órgãos de fiscalização do Estado, ao se constatar as práticas de trabalho escravo contemporâneas.

III. O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO E A SUA REPRODUÇÃO NO SETOR TÊXTIL

A indústria da moda sustança-se na exploração massiva de mulheres trabalhadoras, submetidas à condições degradantes de trabalho, que, no limite, configuram o trabalho análogo à escravidão. Em vista disso, o presente tópico busca elucidar a feição que o trabalho escravo assume na contemporaneidade, descrevendo suas formas e características. Conclui-se que, pelas condições de trabalho a que estão submetidas, as trabalhadoras da indústria têxtil são vítimas preferenciais da escravidão contemporânea.

A diferença entre a forma de escravidão do passado em relação ao trabalho escravo contemporâneo é tênue, mas existe. Contudo, em essência, em ambos os períodos na história as práticas de escravidão compartilham o mesmo fim: gerar lucro para os “senhores”, a partir da exploração violenta da força de trabalho humana (referenciar).

Nesse cenário, aproximadamente 36 milhões de pessoas, em torno de 0,5% da população global, encontram-se em condição de trabalho escravo no planeta, com base em levantamento publicado no ano de 2014 pela organização de direitos humanos Fundação Walk Free (VELOSO; ARRUDA, 2024).

Em nosso contexto, a problemática e o debate em torno do trabalho escravo em pleno século XXI enseja a reflexão acerca da própria história brasileira, a construção de suas instituições e a estrutura sobre a qual a sociedade está fincada. Assim, o trabalho escravo contemporâneo revela de forma nítida o enraizamento de relações violentas de poder e exploração no tecido social que marcam nossa história, ao mesmo tempo que possibilita melhor compreender o fenômeno e os mecanismos e estratégias necessárias a seu enfrentamento (CAVALCANTI; RODRIGUES, 2023)

Cavalcanti e Rodrigues ressaltam que, no Brasil, a partir de uma construção cutural, a compreensão de escravidão remete à ausência de liberdade de ir e vir, aos grilhões, à senzala e correntes. Contudo, esse entendimento resulta em pelo menos duas impropriedades. A primeira consiste em enxergar o trabalho escravo no presente a partir das características do trabalho escravo no passado, o que limita sua identificação. A segunda impropriedade corresponde a reduzir e limitar a condição histórica de escravo à faceta da liberdade de ir e vir, o que não corresponde à totalidade dos casos de escravidão (CAVALCANTI; RODRIGUES, 2023, p.9-10).

Diante desses esclarecimentos, define-se trabalho em condições análogas à de escravo como o exercício do trabalho humano em que há restrição, em qualquer forma, à liberdade do trabalhador, e/ou quando não são respeitados os direitos mínimos para o resguardo da dignidade do trabalhador (MARAGLIA, 2008). O trabalho em condição análoga à de escravo caracteriza-se pela ocorrência de jornadas exaustivas, em condições degradantes de trabalho, pela inexistência de condições essenciais de saúde e segurança, pelo trabalho forçado e resistência para desligar-se do trabalho. Por condições degradantes pode-se entender tudo o que ofenda a integridade física e moral do trabalhador (MACHADO, 2022).

Conforme Maraglia (2008, p.151-152), a conceituação do trabalho em condições análogas à de escravo deve ser feita à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, que norteia o ordenamento jurídico brasileiro. O trabalho escravo e análogo à escravidão é a antítese do trabalho digno, e como não há liberdade sem trabalho digno e nem trabalho digno sem liberdade, é um erro partir de um conceito restritivo de trabalho em condições análogas à de escravo que considera tão somente as hipóteses de restrição do direito de locomoção. Essa forma de exploração do trabalho, em essência, ofende a dignidade da pessoa humana, substrato mínimo dos direitos fundamentais do homem, ao rebaixar a mão-de-obra à mera mercadoria descartável e que deve ser superexplorada, de onde o capital aufere lucro (MARAGLIA, 2008).

O trabalho escravo contemporâneo se produz e reproduz de diversas formas, desde o trabalhador explorado por dívidas contraídas no próprio ambiente de labor, ou mesmo por imigrantes em busca de emprego e de uma melhor condição de vida que acabam submetidos a trabalhos degradantes em troca de comida ou de um lugar para dormir (VELOSO; ARRUDA, 2024).

Muito embora o trabalho rural ainda seja o locus onde há maior proliferação da escravidão, no Brasil, o trabalho escravo urbano também é presente, notadamente nos grandes centros, onde há um grande número de imigrantes latino-americanos, principalmente bolivianos, venezuelanos e demais estrangeiros que chegam em busca de condições melhores de subsitência, mas acabam caindo nas mãos de aliciadores, recebendo salários ínfimos, trabalhando durante horas e sem direito à folga (VELOSO; ARRUDA, 2024).

Diante da conceituação de trabalho escravo contemporâneo e da identificação de seus elementos caracterizadores, podemos concluir que as mulheres trabalhadoras da indústria da moda, atuantes principalmente nos grandes centros urbanos, em face das condições degradantes de trabalho a que estão sujeitas, são vítimas das novas formas de escravidão.

Nos dias de hoje, as mulheres ainda compõem a maior parte do contingente de trabalhadores da tecelagem e confecção e, na medida em que o setor têxtil é marcado pela exploração voraz da mão de obra para obter maiores lucros, as mulheres tornam-se os alvos preferenciais do trabalho escravo, tanto no Brasil, quanto em outros países periféricos.

Há mais de 40 milhões de pessoas escravizadas hoje no mundo, sendo que 71% dos escravos são mulheres e meninas menores de idade (CORDEIRO, 2021). Uma lógica distópica move a cadeia produtiva da moda, pois, de uma lado há o glamour de possuir uma peça bem-acabada, que traz conforto, cultura e identidade, mas, na outra ponta, existe uma costureira, que tem uma existência carregada de violência, marcada por doenças graves, privação de liberdade, violência de gênero e assédio moral e sexual (CASARA, 2021).

As notícias constantes divulgadas nas mídias sociais apontam as descobertas de emprego de mão de obra escrava nas indústrias têxtil7. Conforme se extrai dos depoimentos das vítimas, as costureiras informais ou escravizadas nunca trabalham menos de 14 horas por dia, ganhando menos que os homens, apenas pelo fato de serem mulheres. Várias dormem nas dependências das oficinas e relatam terem sofrido assédio moral e sexual por parte de contratantes ou chefes de oficina. Algumas transformam a própria casa em oficina e colocam filhos e filhas menores para ajudar no trabalho. Surgem as doenças ocupacionais, logo nos primeiros anos de atividade, além das doenças provocadas por insalubridade (CASARA, 2021).

A situação piora no caso das trabalhadoras imigrantes, mais suscetíveis de serem aliciadas e exploradas por oportunistas, principalmente se estiverem em situação ilegal no Brasil (VELOSO; ARRUDA, 2024). Segundo avaliação dos fiscais do governo acostumados a atuarem em inspeções no setor, muitos brasileiros não aceitam trabalhos nesse ramo industrial, diante da condição precária de trabalho. O alvo acaba sendo imigrantes que, no novo país, buscam trabalho e o mínimo de recursos financeiros (REPÓRTER BRASIL, 2016)

Nas chamadas oficinas de costura, encontram-se diversas trabalhadores imigrantes8, na sua maior parte vindos de países como Bolívia, Paraguai e Peru, que trabalham por várias horas para receber valores próximos ao salário mínimo, sendo carentes de condições básicas de segurança e saúde. O desconhecimento das leis nacionais e a falta de documentos nacionais agrava a situação dessas pessoas, posto que a maior parte dessa migração ocorre informalmente, sem o controle das autoridades de fronteira (BIGNAMI, 2014).

Em vários casos, para chegar a São Paulo, centro urbano com maior número de mão de obra imigrante no ramo da moda, trabalhadoras e trabalhadores acabam contraindo dívidas que são descontadas dos salários ínfimos, ocasionando situações de servidão e de restrição da liberdade de locomoção (BIGNAMI, 2014).

Como ressaltado, a formação histórica e cultural da sociedade brasileira solidificou a ideia de que a escravidão beseia-se, necessariamente, na ausência de liberdade de ir e vir. No entanto, essa imagem não corresponde à realidade, conforme demonstra a análise do contexto de exploração das trabalhadoras da indústria da moda nos grandes centros urbanos, que, ainda que não viviam em senzalas, estão sujeitas a jornadas de trabalho excessivas, baixos salários, falta de benefícios e segurança precária no ambiente laboral.

Para entender e identificar as formas que a escravidão assume na contemporaneidade, deve-se partir de um conceito amplo de trabalho análogo ao de escravo, que deve ser entendido como a restrição, em qualquer forma, à liberdade do trabalhador, bem como a violação aos direitos mínimos de resguardo à dignidade do trabalhador (MARAGLIA, 2008). As trabalhadoras do setor têxtil são as vítimas preferenciais de práticas que poderiam se enquadrar como análogas à escravidão, que, no entanto, costumem passar despercebidas, em razão da invilização social que atinge as mulheres trabalhadoras.

III. O FENÔMENO DA INVIABILIZAÇÃO SOCIAL DAS TRABALHADORAS E A PROTEÇÃO JURÍDICA INSUFICIENTE

A exploração de mulheres pela indústria da moda, no limite, faz com que estas sejam subjugadas e postas em condições de trabalho análogas ao escravo. Essa problemática pode ser explicada pela inter-relação de diferentes fatores, contudo, no modelo atual de exploração do trabalho humano, o fenômeno da “invisibilidade social do trabalhador” assume um papel explicativo central, sendo uma de suas causas, ou, ao menos, um dos motivos de agravamento do problema.

Por isso, este tópico dedica-se a explicar, primeiramente, o processo amplo de invisibilização do trabalhador, o modo como se opera e suas características, elucidando como este fenômeno não ocorre por acaso, mas sim, é produto da lógica de funcionamento do capitalismo atual. À luz da conceituação ampla do fenômeno, demonstra-se como a condição de invisibilidade das trabalhadoras da indústria da moda contribui para a perpetuação e acirramento de sua exploração, tornando-as ainda mais vulneráveis às práticas de trabalho análogo à escravidão, diante da proteção jurídica insuficiente.

A invisibilização do trabalhador é um fenômeno abrangente, considerando o contingente numeroso de trabalhadores submetidos a trabalhos desvalorizados socialmente. Ainda assim, essa realidade é permeada de nuances, sendo atravessada por outros fatores que agravam a condição de certos indivíduos, que já sofrem outras formas de discriminação social, como no caso das mulheres.

Dentre os recortes possíveis de descrição do processo de invisibilização no trabalho, busca-se, nesta pesquisa, problematizar questões de gênero. Contudo, antes de adentrar nas especificidades desse recorte, cabe delinear alguns contornos gerais sobre a invisibilidade do trabalhador, como processo que marca as relações de trabalho modernas.

A conceituação de “trabalhadores invisíveis” parte de uma observação da realidade empírica, sendo uma descrição prática daquilo que se observa no mundo concreto. Trata-se de um contingente de trabalhadores e trabalhadoras que encontram-se em situação de marginalização social, desempenhando funções pouco valorizadas e pouco lembradas na sociedade, que, por aspectos histórico-culturais, são consideradas como de quase ou nenhuma dificuldade para sua execução (CASTRO, 2021).

Assim, trabalhadores invisíveis são aqueles que exercem o trabalho tido como “subalterno”, por oferecer baixa remuneração e ser desempenhado por pessoas de pouca qualificação e escolaridade, que não possuem outra opção. Comumente esse trabalho é terceirizado e se reveste de características de precariedade (MACHADO, 2022).

De forma mais clara: atribui-se o conceito de “trabalhador subalterno” àqueles e àquelas que desempenham trabalhos não qualificados e intrinsecamente subordinados, sem qualquer autonomia, sendo, por isso, descartáveis no mercado de trabalho. Esses trabalhadores desempenham funções que exigem essencialmente força física e quase nenhuma especialização técnica, muitas vezes sendo expostos à humilhação produzida por preconceitos sociais (CASTRO, 2021).

A invisibilidade do trabalhador não provoca apenas consequências sociais, como também repercute na esfera individual, na psique do sujeito. A reprodução de preconceitos sociais que segregam e ridicularizam essas pessoas geram nestas um sentimento de humilhação e inferioridade, pelo desvalor do próprio trabalho realizado.

A tomada de consciência mais aguda dos efeitos do trabalho sobre a saúde psíquica não depende apenas de uma soma de experiências singulares. Segundo Dominique Lhuilier (2012, p.19), a capacidade de reflexividade não opera por um olhar diretamente introspectivo, mas passa pela mediação de uma linguagem sobre a interioridade. Tal linguagem dá forma e fornece a informação que o sujeito adquire com sua experiência subjetiva. Contudo, a interpretação dessa experiência não é uma produção estritamente pessoal, ela supõe a formulação de significações comuns às quais cada um pode se referir para dar sentido ao que sente. Nessa esteira, a realidade psíquica é moldada a partir de uma construção coletiva que lhe fornece um quadro social de sentido e de reconhecimento. Em vista disso, o repertório de linguagem e sentido para explicar o mal-estar no trabalho emerge essencialmente em duas fontes: o “estresse” ou o sofrimento no trabalho e o assédio, vetores privilegiados de expressão da demanda social em matéria de saúde psíquica no trabalho.

Para além do conceito e das consequências sociais e individuais decorrentes da invisibilização do trabalhador, cabe ressaltar que esse fenômeno não ocorre indistintamente entre os trabalhadores, isto é, não se reproduz de forma isonômica. Há um recorte de cor, territorialidade e gênero que transpassa o problema. Com isso se quer dizer que uns são mais invisíveis do que outros, pois além de serem “trabalhadores subalternos”, também pertencem a subgrupos marginalizados socialmente. Mulheres, afrodescendentes, homossexuais, pessoas com deficiência e imigrantes são exemplos de grupos cujo processo de invisibilização é acentuado, em face dos estigmas de uma sociedade patriarcal, dominada por pessoas brancas e com prevalência de origem nacional.

A invisibilização atinge as trabalhadoras da indústria da moda, que formam um contingente de mulheres em situação de vulnerabilidade e de marginalização social. Seu trabalho de corte e costura é pouco valorizado e mal remunerado, tanto por ser uma função associada aos “trabalhadores subalternos”, como também por ser uma prática historicamente associada ao gênero feminino.

Essa condição de invisibilidade das trabalhadoras repercute na individualidade de cada uma, que já experimentam cotidianamente uma série de preconceitos e sofrem a opressão de um sistema patriarcal9. A reprodução desses estigmas sociais segregam e inferiorizam as mulheres trabalhadoras, que sofrem a humilhação social de ocuparem um lugar tido como sem valor. Somando-se a isso, o mal-estar do trabalho, provocado pelo estresse e pelo assédio sofrido, abala a psique dessas pessoas, que têm sua integridade comprometida, em face das condições de trabalho degradantes observadas na indústria da moda.

Além do dano psíquico às trabalhadoras causado pela inviabilização social, as práticas violentas de exploração da força de trabalho empregadas no setor têxtil, que vão desde jornadas de trabalho extenuantes, remuneração baixíssima, até a segurança precária no ambiente laboral atingem a integridade física dessas mulheres, sem qualquer preocupação dos empregadores. Afinal, se elas são invisíveis e facilmente substituíveis, não há motivo para se preocupar com sua saúde; ganha-se mais explorando até o limite do corpo.

Nesse cenário de violência e de violação de direitos das trabalhadoras inviabilizadas socialmente, as práticas de limitações da liberdade e as condições degradantes de trabalho que estão sujeitas, muito embora configurem o trabalho análogo à escravidão, acabam por passar praticamente despercebidas no dia a dia dos indivíduos/consumidores, bem como das autoridades estatais responsáveis pela fiscalização.

Essas “novas formas de escravidão”, que consiste no meio mais extremo de dominação do trabalhador, encontram terreno féstil no setor têxtil, marcado pela exploração massiva da mão de obra, como forma de reduzir o custo final dos produtos e almentar a competitividade. Considerando a “invisibilidade social das mulheres trabalhadoras” e que estas compõem a maior parte do contingente de trabalhadores desse ramo industrial, sua condição de vulnerabilidade se agrava, pois, ao mesmo tempo que são vítimas de práticas escravistas, estão invisíveis perante a sociedade e carentes de proteção.

A invisibilização social das trabalhadoras da indústria da moda nos grandes centros urbanos, além fomentar a reprodução de formas de trabalho análoga à escravidão, impacta no ordenamento jurídico, que silencia em relação as demandas específicas desse contigente de trabalhadoras, como também não dispôe de proteção suficiente para oferecer uma resposta correspondente ao tamanho dos problemas, quais sejam, a invisibilização social e o trabalho escravo no ramo têxtil.

O ordenamento jurídico brasileiro abomina a exploração do trabalho escravo contemporâneo. Renan Kalil e Thiago Ribeiro (2021, p.91) ressaltam que a Constituição de 1988, no artigo 1º, III, estabeleceu o princípio da dignidade da pessoa humana como valor fundamental do Estado brasileiro, irradiando para todos os ramos do direito. O artigo 3º do texto constitucional destaca que é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, assim como promover o bem de todos. O artigo 5º, III, por sua vez, prevê que ninguém será submetido a tratamento degradante. O artigo 7º, XXII, dispõe que é direito do trabalhador a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.

Ademais, o Brasil ratificou um conjunto de tratados internacionais de direitos humanos que repudiam a prática do trabalho escravo, listando-se as seguintes: a Convenção sobre a Escravatura (1926); as Convenções n. 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho1 (OIT); o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966) e a Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecido como Pacto de San José da Costa Rica (KALIL; RIBEIRO, 2021).

Na legislação infraconstitucional, a definição de trabalho escravo contemporâneo está prevista no art. 149 do Código Penal10, sendo quatro as condutas que caracterizam a redução do trabalhador à condição análoga à de escravo: trabalho forçado, servidão por dívida, jornadas exaustivas e condições degradantes. Não é necessário a configuração simultânea das para a configuração do crime, sendo suficiente, para tanto, a constatação de uma das condutas mencionadas (KALIL; RIBEIRO, 2021).

Ainda que existam instrumentos normativos no ordenamento jurídico brsileiro que repugnam o trabalho escravo, por violentar a dignidade humana, não há uma sistemática de normas protetivas direcionadas especificamente às trabalhadoras do ramo da moda. O monitoramento voluntário da cadeia de suprimentos não tem impedido a ocorrência de graves violações aos direitos das trabalhadoras, pois, no fim das contas, há uma motivação econômica por trás da exploração, e as oficinas precárias e/ou ilegais são uma peça importante da indústria do vestuário. Através delas, delegar-se a responsabilidade jurídica por padrões trabalhistas e humanos básicos aos proprietários das pequenas e médias oficinas oficinas, enquanto os atores econômicos poderosos na rede de produção se beneficiam da produção a custo baixo, quais sejam, os proprietários de grandes marcas e as gigantes varejistas (REPÓRTER BRASIL, 2016).

Além da relação entre terceirização e violações aos direitos das trabalhadoras e trabalhadores, que existe em razão da própria lógica da terceirização, no Brasil, a indústria fast fashion se beneficia de uma legislação na qual não estão estabelecidos parâmetros claros para a responsabilização de empresas no topo da cadeia produtiva, principais responsáveis pelo ciclo de exploração a qual as mulheres são submetidas e, por isso, devem ser consideradas juridicamente responsáveis por violações aos direitos humanos e trabalhistas (REPÓRTER BRASIL, 2016).

O combate ao trabalho escravo das trabalhadoras da indústria da moda passa pela produção de leis que tratem especificamente sobre essa problemática social, tanto em relação às oficinas de confecção dos vestuários, local em que a exploração das trabalhadoras acontecesse, como também no tocante à responsabilização das grandes empresas do setor têxtil, que se beneficiam com as violações de direitos e com a exploração desenfreada da força de trabalho.

Por outro lado, é essencial a formulação de políticas públicas destinadas a combater essas práticas no setor e a amparar as mulheres vítimas do trabalho escravo. A erradicação do trabalho escravo pressupõe não só a existência de uma atuação repressiva mas, também, a necessidade de enfrentamento do problema sob a perspectiva da prevenção e da assistência, para eliminação (ou ao menos minoração) das vulnerabilidades desses trabalhadores (KALIL e RIBEIRO, 2021).

O combate ao trabalho escravo contemporâneo vai além da tutela de liberdade da própria pessoa, individualmente considerada e restrita ao aspecto físico. Por se tratar de um crime que nega a condição de ser humano a certas pessoas, interessa a toda a sociedade e à coletividade de trabalhadores a superação dessa forma de exploração humana, prescindindo para sua configuração da restrição à liberdade de locomoção (CAVALCANTI; RODRIGUES, 2023).

Caminho mais árduo talvez seja encontrar uma solução para o processo de invisibilização social das trabalhadoras e trabalhadores, que mostra-se como catalizador de outras problemáticas sociais envolvendo a classe trabalhadora. A invisibilidade das trabalhadoras não é mero resultado residual imprevisto no funcionamento do sistema capitalista, ao contrário, consiste numa estratégia articulada com vistas a preservar o status quo, através da canalização de recursos provenientes do trabalho humano, em direção ao topo da pirâmide social (FISHER, 2022) .

Além das motivações encontradas nessa estrutura da sociedade, com fundamentos históricos e culturais que refletem no antagonismo de classes, no racismo estrutural, na hegemonia do patriarcado, bem como numa concepção de ambiente de trabalho desprovido de dignidade, o fenômeno da invisibilização faz parte de um movimento mais amplo de dominação da classe trabalhadora.

É fundamental abrir os olhos para o mundo ao redor, tirando da invisibilidade aquelas que precisam ser vista, escutadas e protegidas, como forma de resguardar a dignidade humana reagir às violações perpetradas por um modelo econômico violador.

IV. CONCLUSÃO

A invisibilização das trabalhadoras consiste em um fenômeno produzido pela lógica capitalista, e não acontece residualmente, mas, ao contrário, possui um planejamento e propósito, notadamente o de domesticar e desorganizar a luta coletiva da classe trabalhadora.

Esse contingente de trabalhadoras marginalizadas socialmente, desempenhando funções pouco valorizadas e com pouca qualificação são submetidas a humilhações cotidianas, passando a entronizar a ideia de que, de fato, seriam humanamente inferiores.

Esse processo não pode ser captado em seus detalhes, pois a dominação se produz e reproduz em variadas formas, objetivando docializar e desarticular a atuação coletiva dos trabalhadores, seja por meio das ideologias que falseiam a realidade, ou mesmo pelo uso da força, quando o discurso torna-se uma ferramenta insuficiente para a manutenção do controle das massas (FISHER, 2022).

Para muitos, as transformações trazidas pela “modernidade” significaram um progresso inestimável, em que a sociedade estaria caminhando para um estado de plenitude, no qual todos os problemas sociais encontrariam explicações e soluções na racionalidade da ciência. Contudo, além de assistirmos aos horrores das guerras, cujo potencial destrutivo foi amplificado pelo mesmo conhecimento científico que prometeu libertar os indivíduos das mazelas e de todas as formas de opressão, ainda presenciamos diariamente velhas práticas escravagistas, que retiram do ser humano aquilo que deveria ser inerente à condição humana: a própria dignidade.

Diante dessa realidade que se impõe, jogar luz à vivência das mulheres trabalhadoras da indústria da moda, invisibilizadas socialmente e vítimas das mais variadas formas de exploração, não é apenas discorrer sobre fatos sociais invisíveis aos nossos olhos. Revelar o contexto de violência e de violação de direitos ao qual estas mulheres estão submetidas é um primeiro passo na direção de um caminho que leve ao fim desta exploração. Descrever essa problemática e as suas possíveis causas pode orientar a ação política, possibilitando a criação de medidas destinadas à solução do problema.

O Direito, como conjunto de normas que busca regular o comportamento humano, ao mesmo tempo em que projeta o modelo de sociedade ideal a ser construída, mostra-se como uma importante ferramenta de proteção dessas mulheres trabalhadoras vítimas da exploração da indústria da moda cada vez mais voraz.

Por meio de normas jurídicas protetivas, que exijam dos empregadores condições básicas aptas a garantir a dignidade das trabalhadoras no ambiente de trabalho, bem como que punam aqueles que violem seus direitos e garantias, é possível trazer à luz quem hoje se encontra na escuridão.

Esse não é um problema apenas das mulheres trabalhadoras invisíveis, ou somente dos trabalhadores, no geral. A construção de uma sociedade que tenha como pilar o respeito e a proteção à dignidade humana interessa a todos, tendo como norte o ideal de Estado Demcrático de Direito, declarado no texto constitucional.


4Para esse modelo de produção, as roupas devem ser fabricadas com agilidade, para todos os gêneros e idades, em grande quantidade e com preços acessíveis à classe média. Atualmente, estima-se que cerca de 20% da indústria têxtil nacional opera conforme essa lógica. Baseia-se na maciça terceirização da cadeia produtiva (REPÓRTER BRASIL, 2016)
5O massacre do Rana Plaza é um exemplo da exploração voraz do trabalhador pela indústria têxtil. O edifício localizado em Daca, capital de Bangladesh, comportava quatro fábricas de roupa com cerca de 5000 empregados, quando desabou após negligência dos proprietários do estabelecimento, diante de avisos constantes sobre rachaduras no prédio. O acidente levou à morte de 1127 trabalhadores, em sua maioria mulheres, e cerca de 2500 feridos. As empresas que operavam a fábrica produziam roupas para as marcas Zara, Walmart, Carrefour, H&M, Primark, entre outras (CORDEIRO, 2021).
6No final do século XIX ganhou força a denominada primeira grande onda feminista, que se propogou por diferentes países, sendo composta por muitas dessas trabalhadoras das indústrias têxteis. Como exemplo da relevância desse movimento de trabalhadoras, cabe pontuar que o estabelecimento do dia internacional da mulher em 8 de março é uma homenagem à greve das operárias da indústria têxtil que aconteceu na Rússia, em 1917. Elas lutavam contra a fome, contra o Czar Nicolau II e pelo fim da participação do império na I Guerra Mundial (CORDEIRO, 2021).
7Em reportagem de France Júnior (2022), é relatado um caso concreto de exploração da mão de obra em condições de escravo, envolvendo uma marca famosa no mercado. Na reportagem, relata-se que, “[e]nquanto os estilistas da Program, que diz ser a ‘maior rede plus size do Brasil’, viajavam para os maiores centros de moda mundiais ‘em busca de inspiração e novas ideias’, os costureiros bolivianos que produziam peças para a marca eram submetidos a tratamento desumano. A empresa foi condenada pela Justiça em março do ano passado [2021], mas o cativeiro dos trabalhadores resgatados não acabou: vítimas de possível servidão por dívidas, jornadas diárias de 16 horas de trabalho e até privação de alimentos, eles ainda não receberam nenhuma indenização. O resgate aconteceu em setembro de 2020, em uma oficina de costura no bairro Casa Verde Alta, em São Paulo, quando fiscais encontraram três trabalhadores em condições análogas à escravidão. Entre eles estava uma mulher, no sétimo mês de gestação, impedida de acessar serviços de saúde. ‘Quando os patrões descobriram que ela estava grávida, não queriam deixar ela parar de trabalhar’, revelou à Repórter Brasil um dos bolivianos resgatados, que é o pai da criança. Segundo o relatório de fiscalização, a família precisava compensar aos finais de semana as horas em que a grávida saía da oficina para fazer o pré-natal. Em uma ocasião em que precisou ser atendida na emergência de uma maternidade e, com dores, não pôde trabalhar, a mulher foi penalizada com restrição de alimentação: ela e suas três filhas receberam apenas chá como jantar em uma noite, somente o café da manhã no dia seguinte e, no terceiro dia, o jejum foi total”.
8Na pesquisa realizada pelo UNOPS (2022, P.45), na amostra coletada de 140 entrevistadas para este estudo, 69,3% são brasileiras e 30,7% refugiadas e migrantes. Entre as entrevistadas refugiadas e migrantes, mais de 90% são bolivianas, existindo, também, entrevistadas do Chile, Haiti, Peru, Venezuela e Iêmen. Mais da metade das entrevistadas respondentes residem no Brasil há mais de 10 anos, e mais de 25% residem no país entre um e cinco anos, sendo que apenas 2,3% delas estão no Brasil há menos de 12 meses.
9Ideologia que altera a realidade, ao naturalizar a desigualdade entre os sexos, promovendo a supremacia dos homens em detrimento das mulheres (MIGUEL, 2022).
10Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:  Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

VII. REFERÊNCIAS

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1Graduando do curso de direito pelo Centro Universitário do Estado Pará (CESUPA)
2Graduando do curso de direito pelo Centro Universitário do Estado Pará (CESUPA)
3Mestre em Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional – CESUPA/PA