ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE E O PAPEL DO SENADO FEDERAL: UMA ANÁLISE À LUZ DA SISTEMÁTICA DOS PRECEDENTES VINCULANTES

REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.11510029


Marcelo Bezerra Fernandes Filho
Dr. Bento Herculano Duarte Neto


Resumo 

O presente estudo tem como objetivo analisar as mudanças ocorridas no direito constitucional brasileiro a partir da abstrativização do controle difuso de constitucionalidade, enfatizando seus respectivos impactos, à luz da sistemática dos precedentes vinculantes. Dessa forma, com o intuito de promover uma maior segurança jurídica e maior efetividade aos preceitos constitucionais, a jurisprudência passou a estender a eficácia erga omnes, típica do controle abstrato de constitucionalidade, ao controle difuso, que inspirado no modelo norte-americano, originariamente tinha seus efeitos produzidos de forma restrita às partes integrantes do processo. Nesse sentido, a referida alteração trouxe impactos diretos no que concerne à separação dos poderes, uma vez que a Suprema Corte entendeu que houve uma mutação constitucional no artigo 52, inciso X, da Constituição Federal, que alterou de forma substancial a participação do Senado Federal no controle de constitucionalidade. Este trabalho analisa criticamente o papel do Senado Federal à luz da sistemática dos precedentes vinculantes, avaliando sua eficácia e efetividade na consolidação da jurisprudência constitucional. Por meio de uma análise teórica, o artigo busca contribuir para o entendimento do complexo sistema de controle de constitucionalidade brasileiro e suas implicações na segurança jurídica e na estabilidade das decisões judiciais.

Palavras-chave: Controle de constitucionalidade. Senado Federal.

Abstract

The present study aims to analyze the changes that have occurred in Brazilian constitutional law following the abstraction of diffuse constitutional control, emphasizing their respective impacts in light of the system of binding precedents. Thus, in order to promote greater legal certainty and effectiveness to constitutional principles, jurisprudence began to extend the erga omnes effect, typical of abstract constitutional control, to diffuse control, which, inspired by the North American model, originally had its effects limited to the parties involved in the process. In this sense, the aforementioned change brought direct impacts regarding the separation of powers, since the Supreme Court understood that there was a constitutional mutation in Article 52, item X, of the Federal Constitution, which substantially altered the participation of the Federal Senate in constitutional control. This work critically analyzes the role of the Senate in light of the system of binding precedents, evaluating its effectiveness and efficiency in consolidating constitutional jurisprudence. Through a theoretical analysis, the article seeks to contribute to the understanding of the complex Brazilian system of constitutional control and its implications for legal certainty and the stability of judicial decisions.

Key-words: Constitutionality control. Federal Senate.

1 INTRODUÇÃO

O neoconstitucionalismo, também conhecido como novo constitucionalismo ou constitucionalismo contemporâneo, é a fase atual do desenvolvimento do constitucionalismo. Ele emergiu na segunda metade do século XX, no período pós Segunda Guerra Mundial, após os horrores perpetrados pelo regime nazista.

A razão fundamental para o surgimento do neoconstitucionalismo está enraizada no contexto histórico do século XX. Durante a primeira metade desse século, prevalecia o positivismo jurídico, uma corrente que via o direito como algo estritamente formal e neutro, separado de considerações éticas e morais. Essa abordagem permitiu que os nazistas distorcessem o ordenamento jurídico para legitimar suas práticas atrozes.

Assim, o neoconstitucionalismo surge como uma resposta a essa crise do positivismo jurídico. Ele representa uma mudança de paradigma, indo além da visão formalista e neutra do direito, para reconhecer as dimensões éticas e morais das normas jurídicas. Nesse novo paradigma, a Constituição não é apenas um conjunto de regras, mas sim um marco normativo que reflete valores e princípios fundamentais da sociedade.

No contexto do neoconstitucionalismo, a Constituição adquire uma força normativa especial, tornando-se a lei suprema que governa as ações de todos os poderes do Estado. Além disso, o neoconstitucionalismo destaca o papel do Poder Judiciário na proteção dos direitos e princípios constitucionais, conferindo-lhe um papel mais ativo e intervencionista na revisão da constitucionalidade das leis e ações governamentais.

Em virtude do maior protagonismo judicial na análise da constitucionalidade dos mais diversos preceitos e o aumento da da judicialização no Brasil, surge a necessidade de maior segurança jurídica na interpretação e aplicação das normas constitucionais.

Dessa forma, a abstrativização do controle difuso de constitucionalidade consiste no fenômeno em que os efeitos da decisão no controle abstrato de constitucionalidade sejam transportados para o controle difuso de constitucionalidade, de forma que as decisões sobre a constitucionalidade de leis e atos normativos tenham eficácia erga omnes e vinculante a todos os casos semelhantes, não se limitando as partes que integram o processo.

No entanto, a abstrativização do controle difuso também gera debates sobre a separação de poderes e o papel do Judiciário na elaboração e aplicação do direito, especialmente em virtude da mudança do papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade. Alguns críticos argumentam que essa prática pode representar uma excessiva concentração de poder nas mãos dos tribunais, enquanto outros defendem que ela é necessária para garantir a efetividade das normas constitucionais.

2 – EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

No estudo do direito constitucional, é muito comum a referência aos casos mais emblemáticos quando se fala do contexto histórico e a evolução do controle de constitucionalidade, como o caso Marbury Vs. Madison, que ocorreu nos Estados Unidos no ano de 1803.

Todavia, conforme Braga (2023), a doutrina costuma apontar antecedentes do controle de constitucionalidade desde a Antiguidade Clássica, entendendo-se por antecedentes alguns aspectos históricos que estão ligados aos marcos do controle de constitucionalidade, aos princípios que regem a ideia do controle de constitucionalidade, como, por exemplo, a hierarquia das leis.

2.1 O CASO MARBURY VS. MADISON

O caso Marbury vs. Madison marca um momento crucial na história jurídica dos Estados Unidos. 

No final do mandato de John Adams como presidente, uma lei foi aprovada criando cargos de juiz de paz, sendo William Marbury um dos nomeados. No entanto, Marbury não recebeu sua carta de nomeação antes de Thomas Jefferson assumir a presidência e James Madison se tornar Secretário de Estado. Com isso, Marbury moveu uma ação na Suprema Corte, alegando que Madison deveria entregar sua nomeação. O Chefe de Justiça John Marshall, após adiar a decisão por um ano, emitiu um voto histórico. Ele reconheceu o direito de Marbury à nomeação, mas também declarou que o mandado de segurança usado por Marbury era inválido porque a lei que o criou excedia os poderes da Constituição. 

Assim, embora Marbury tivesse direito à nomeação, ele não tinha um remédio legal correspondente. Esse caso estabeleceu o princípio de que é responsabilidade do judiciário determinar a constitucionalidade das leis e deixou claro que a Constituição é a lei suprema da nação.

2.2 O MODELO AUSTRÍACO DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

O modelo americano de controle de constitucionalidade, que foi tratado  anteriormente, foi disseminado e, posteriormente, refinado, resultando em um outro modelo de controle de constitucionalidade sob a influência de diversos autores, especialmente Hans Kelsen. Notavelmente, a partir dos ensinamentos contidos em sua obra “Teoria Pura do Direito”, Kelsen contribuiu para a Constituição da Áustria de 1920, que passou por uma reforma em 1929, introduzindo um modelo distinto de controle de constitucionalidade.

Nesse novo modelo, o controle é abstrato, ou seja, realizado sem um caso concreto subjacente, e concentrado, sendo exercido por um único tribunal – que seria um tribunal constitucional – e não por todos os juízes. Na perspectiva de Kelsen, a lei inconstitucional é apenas anulável, não sendo considerada nula, e a decisão de inconstitucionalidade produz efeitos erga omnes, uma vez que não há um caso concreto, sendo a lei examinada em abstrato. Além disso, os efeitos da decisão são geralmente não retroativos (ex nunc) ou aplicados no futuro, a partir de um determinado prazo. No modelo proposto por Kelsen, o acórdão do tribunal constitucional tem uma natureza constitutiva negativa, anulando a lei a partir da decisão, em vez de declarar sua nulidade.

3. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL

De acordo com Barroso (2022), a Constituição de 1988 manteve o sistema eclético, híbrido ou misto, combinando o controle por via incidental e difuso (sistema americano), que vinha desde o início da República, com o controle por via principal e concentrado, implantado com a EC n. 16/65 (sistema continental europeu). Trouxe, todavia, um conjunto relativamente amplo de inovações, com importantes consequências práticas.

Vale ressaltar que no Brasil, a doutrina categoriza o controle de constitucionalidade como híbrido também devido à combinação do controle político, exercido precipuamente pelos Poderes Executivo e Legislativo, com o judicial, que será o foco principal desta análise.

3.1 O CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE

Inspirado no modelo austríaco, que foi adotado por grande parte dos países europeus, o controle concentrado de constitucionalidade é assim classificado em virtude da concentração de julgamentos em um único órgão jurisdicional, diferentemente do modelo americano em que o controle é exercido de forma difusa pelos diversos órgãos que exercem jurisdição.

No âmbito da Constituição Federal de 1988, o controle concentrado de constitucionalidade é desempenhado no plano federal pelo Supremo Tribunal Federal, tendo como parâmetro superior a Constituição da República, por meio da ação direta de inconstitucionalidade, da ação de inconstitucionalidade por omissão, da ação declaratória de constitucionalidade e pela arguição de descumprimento de preceito fundamental. No plano estadual, por sua vez, o controle concentrado é exercido pelos Tribunais de Justiça, tendo como parâmetro superior a Constituição do Estado, por meio da representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais.

Assim, é por meio do controle de constitucionalidade por ação direta ou por via principal que é exercido o controle concentrado. Portanto, consiste em atividade atípica de jurisdição, uma vez que como regra, para provocar o judiciário para a resolução de um conflito é necessário a existência de um caso concreto, ou seja, de um litígio subjetivo entre as partes.

Conforme as lições de Barroso (2022), a ação direta destina-se à proteção do próprio ordenamento, evitando a presença de um elemento não harmônico, incompatível com a Constituição. Trata-se de um processo objetivo, sem partes, que não se presta à tutela de direitos subjetivos, de situações jurídicas individuais. No caso específico da inconstitucionalidade por omissão, a declaração é igualmente em tese, em pronunciamento no qual se reconhece a inércia ilegítima do órgão encarregado de editar norma exigida pelo ordenamento.

3.2 O CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

De acordo com a análise histórica realizada por CUNHA (2012, p. 322), o controle difuso de constitucionalidade, como já tivemos a oportunidade de sublinhar, teve origem no caso Marbury Vs. Madison, julgado pela Suprema Corte norte americana em 1803, a partir da incontestável argumentação esgrimida pelo justice John Marshall a respeito da supremacia da Constituição em face das leis em geral e da necessidade de garantir o texto constitucional por meio de um controle atribuído aos órgãos do Poder Judiciário (judicial review of legislation).

No Brasil, esse modelo de controle foi consagrado, pela primeira vez, na Constituição de 1891, por influência norte-americana, sendo recepcionado pelas Constituições que se seguiram, encontrando hoje o seu fundamento no art. 102, inciso III, da Constituição de 1988. [..] Vale dizer, o exame da constitucionalidade da conduta estatal pode ser agitado, incidenter tantum, por qualquer das partes envolvidas numa controvérsia judicial, perante qualquer órgão do Poder Judiciário, independe de instância ou grau de jurisdição, por meio de uma ação subjetiva (ou peça de defesa) ou de um recurso. Pressupõe a existência de um conflito de interesses, no bojo de uma ação judicial, na qual uma das partes alega a inconstitucionalidade de uma lei ou ato que a outra pretende ver aplicada ao caso. Enfim, desde que se possa deduzir uma pretensão acerca de algum bem da vida ou na defesa de algum interesse subjetivo, pode o interessado arguir, em sede concreta, a inconstitucionalidade como seu fundamento jurídico.

Nesse sentido, o controle difuso de constitucionalidade é exercido, em regra, por meio de um incidente processual, ou seja, ele ocorre no desempenho normal da função jurisdicional, na aplicação e interpretação das normas pelo magistrado.

Nas palavras de Barroso (2022), a arguição incidental de inconstitucionalidade é também denominada via de defesa ou de exceção porque, originalmente, era reconhecida como argumento a ser deduzido pelo réu, como fundamento para desobrigar-se do cumprimento de uma norma inconstitucional. A parte, em lugar de atacar o ato diretamente, aguardava que a autoridade postular-se judicialmente sua aplicação, pedindo então ao juiz que não aplicasse a lei reputada inconstitucional. Tal limitação da arguição de inconstitucionalidade a uma tese de defesa não subsiste, mas o réu, por certo, continua a poder utilizar o argumento em sua resposta a uma demanda.

Também o autor de uma ação pode postular, em seu pedido inicial ou em momento posterior, a declaração incidental de inconstitucionalidade de uma norma, para que não tenha de se sujeitar a seus efeitos. Com a multiplicação das ações constitucionais e dos mecanismos de tutela preventiva (provimento liminar, medidas cautelares, tutela antecipada), esta ter-se-á tornado a hipótese mais corriqueira. 

Assim, o controle difuso de constitucionalidade pode ser exercido em qualquer processo, desde que ocorra no bojo da análise de uma situação concreta. Além disso, por força do princípio da reserva do plenário, para declarar a inconstitucionalidade de uma norma deve ser respeitado o quórum de maioria absoluta, conforme dispõe o artigo 97 da Constituição Federal de 1988.

Porém, em relação à eficácia da decisão que declara a inconstitucionalidade pela via difusa, há apenas a repercussão inter partes. Ou seja, a coisa julgada formada no processo subjetivo apenas alcança as partes que estavam no processo, não alcançando o efeito erga omnes, como ocorre no controle concentrado.

Todavia, conforme será explicado adiante, esse cenário foi alterado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

4. A SISTEMÁTICA DOS PRECEDENTES VINCULANTES

A análise do sistema de precedentes vinculantes no Brasil é particularmente interessante, especialmente quando consideramos sua inspiração no sistema de Common Law, predominante em países como os Estados Unidos e o Reino Unido. No Brasil, um país de tradição civilista, a adoção de elementos típicos do Common Law, como o sistema de precedentes vinculantes, marca uma evolução significativa na maneira como o direito é interpretado e aplicado.

Com a promulgação do Código de Processo Civil de 2015 (CPC), o ordenamento jurídico brasileiro passou a dar uma maior relevância ao sistema de precedentes. Nesse sentido, o art. 926 do CPC dispõe que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

De acordo com Didier (2017), o referido dispositivo prevê, assim, deveres gerais para os tribunais no âmbito da construção e manutenção de um sistema de precedentes (jurisprudência e súmula), persuasivos e obrigatórios, sendo eles: a) o dever de uniformizar sua jurisprudência; b) o dever de manter essa jurisprudência estável; c) o dever de integridade; e d) o dever de coerência. Todos eles são decorrência de um conjunto de normas constitucionais: dever de motivação, princípio do contraditório, princípio da igualdade e segurança jurídica. Mas isso não elimina a relevância de sua previsão no plano infraconstitucional. A consagração legislativa explicita diretamente o comportamento exigido dos tribunais na atividade de elaboração e desenvolvimento de um direito judicial.

Dessa forma, ao estabelecer um microssistema de precedentes vinculantes, o CPC impõe a necessidade de observância da jurisprudência por parte dos operadores do direito. Trata-se de previsão crucial para garantir estabilidade e previsibilidade ao sistema jurídico, inclusive como forma de evitar a judicialização em massa e o abuso do uso da jurisdição estatal. Além disso, a observância dos precedentes vinculantes gera uma maior eficiência e economia processual, pois permite que os tribunais utilizem seu tempo analisando casos novos e complexos, em vez de revisitar causas já decididas.

Nesse sentido, conforme o art. 927, I, do CPC, os juízes e os tribunais observarão as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade.

Todavia, no estudo do controle de constitucionalidade brasileiro, observamos uma tendência marcante de abstrativização do controle difuso, principalmente mediante a evolução do papel do recurso extraordinário. Historicamente, o recurso extraordinário foi concebido como uma ferramenta para a salvaguarda de direitos em casos específicos. Entretanto, ao longo dos anos, essa ferramenta começou a ser empregada de maneira mais ampla, objetivando a discussão de questões de alto interesse público que transcendem os interesses das partes envolvidas.

Nessa perspectiva, a transformação veio afetar o sistema jurídico de forma mais significativa com a introdução do conceito de repercussão geral pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, que exigiu que o Supremo Tribunal Federal (STF) analisasse a importância das questões constitucionais que possuem impactos que vão além do caso concreto. Isso implica que, hoje, o recurso extraordinário serve não apenas para resolver disputas individuais, mas para estabelecer teses jurídicas que atuam como norteadores para a aplicação do direito em casos futuros.

Dessa forma, os precedentes vinculantes surgem nesse contexto como instrumento essencial para a consolidação dessa nova abordagem. Quando o STF decide sobre uma matéria com repercussão geral, sua decisão não só resolve a questão específica, mas também estabelece um precedente obrigatório para todos os outros casos semelhantes. Isso garante uma maior uniformidade e previsibilidade nas decisões judiciais, contribuindo significativamente para a estabilidade do nosso sistema jurídico.

A prática de estabelecer precedentes vinculantes pelo STF, assim, promove uma abstrativização do controle difuso, aproximando seus efeitos aos do controle concentrado. Isso é visível principalmente na maneira como as decisões do STF em recurso extraordinário têm sido utilizadas para delinear diretrizes claras e obrigatórias que devem ser seguidas por todas as instâncias judiciais.

Essa evolução no recurso extraordinário e na prática dos precedentes vinculantes demonstra uma maturação do nosso sistema jurídico, onde a supremacia constitucional é assegurada de forma mais eficaz e abrangente, garantindo assim a coerência e a integridade na aplicação do direito em todo o território nacional.

5. A ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE E O PAPEL DO SENADO FEDERAL

Conforme já analisado, com o passar do tempo, parte da doutrina e da jurisprudência passaram a defender que há uma tendência de aproximar os efeitos do controle concentrado de constitucionalidade ao controle difuso. Tal premissa se baseia principalmente na necessidade de garantir a supremacia da constituição e a segurança jurídica.

Ou seja, a abstrativização do controle difuso, também chamada de objetivação do recurso extraordinário, consiste em conceder eficácia erga omnes e efeito vinculante às decisões proferidas no julgamento de Recurso Extraordinário e Habeas Corpus, atribuindo efeitos próprios do controle concentrado de constitucionalidade.

Nesse sentido Andrea Alves dos Santos (2008) explica que o referido instituto tem como objetivo possibilitar a aplicação dos efeitos erga omnes e vinculante (típicos do controle abstrato) às decisões dele emanadas. Têm-se como argumentos justificadores de tal tendência: a força normativa e a supremacia da Constituição, a função institucional do STF como guardião e intérprete máximo da Constituição e a dimensão política de suas decisões, e a economia, efetividade e celeridade do processo. Ou seja, com a tese da abstrativização, o Recurso Extraordinário, antes destinado apenas ao controle concreto de constitucionalidade, deixa, em determinados casos, de ser utilizado como mais um grau de jurisdição às partes na lide privada, para se tornar mais objetivo, na defesa da ordem constitucional.

5.1 O PAPEL DO SENADO FEDERAL E A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL NO ARTIGO 52, INCISO X, DA CF/88

Para compreender a presente discussão, faz-se necessário conhecer o teor do dispositivo constitucional que trata da participação do Senado Federal no controle de constitucionalidade. Assim, nos termos do artigo 52, inciso X, da Constituição Federal de 1988, compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Trata-se de previsão inspirada no sistema americano, que foi inserida no direito brasileiro a partir do ano de 1934.

Conforme ensina Barroso (2022), a razão histórica — e técnica — da intervenção do Senado é singelamente identificável. No direito norte-americano, de onde se transplantara o modelo de controle incidental e difuso, as decisões dos tribunais são vinculantes para os demais órgãos judiciais sujeitos à sua competência revisional. Isso é válido inclusive, e especialmente, para os julgados da Suprema Corte. Desse modo, o juízo de inconstitucionalidade por ela formulado, embora relativo a um caso concreto, produz efeitos gerais. Não assim, porém, no caso brasileiro, onde a tradição romano-germânica vigorante não atribuía eficácia vinculante às decisões judiciais, nem mesmo às do Supremo Tribunal. Desse modo, a outorga ao Senado Federal de competência para suspender a execução da lei inconstitucional teve por motivação atribuir eficácia geral, em face de todos, erga omnes, à decisão proferida no caso concreto, cujos efeitos se irradiavam, ordinariamente, apenas em relação às partes do processo.

Nesse sentido, a jurisprudência do STF entendeu que o referido dispositivo sofreu uma mutação constitucional. Ou seja, no cenário atual, o papel do Senado Federal é de dar mera publicidade às decisões proferidas pelo plenário do STF, uma vez que a eficácia erga omnes e o efeito vinculante resulta da própria decisão da corte.

Assim, o referido papel desempenhado pelo Senado Federal se mostrava incompatível com os princípios da celeridade, segurança jurídica e da economia processual, notadamente porque se trata de um ato discricionário. 

Nas palavras de Barroso (2022), com a criação da ação genérica de inconstitucionalidade, pela EC n. 16/65, e com o contorno dado à ação direta pela Constituição de 1988, essa competência atribuída ao Senado tornou-se um anacronismo. Uma decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, seja em controle incidental ou em ação direta, deve ter o mesmo alcance e produzir os mesmos efeitos. Respeitada a razão histórica da previsão constitucional, quando de sua instituição em 1934, já não há lógica razoável em sua manutenção. Também não parece razoável e lógica, com a vênia devida aos ilustres autores que professam entendimento diverso, a negativa de efeitos retroativos à decisão plenária do Supremo Tribunal Federal que reconheça a inconstitucionalidade de uma lei. Seria uma demasia, uma violação ao princípio da economia processual, obrigar um dos legitimados do art. 103 a propor ação direta para produzir uma decisão que já se sabe qual é.

Dessa forma, o referido dispositivo constitucional foi objeto de polêmica e discussão quanto à sua extensão e aplicação. No bojo da Reclamação 4.335/AC, o Ministro Gilmar Mendes dispos acerca da natureza jurídica da atuação do Senado Federal, concluindo que o Senado Federal não revoga o ato declarado inconstitucional, até porque lhe falece competência para tanto. Cuida-se de ato político que empresta eficácia erga omnes à decisão do Supremo Tribunal proferida em caso concreto. Não se obriga o Senado Federal a expedir o ato de suspensão, não configurando eventual omissão ou qualquer infringência a princípio de ordem constitucional. Não pode a Alta Casa do Congresso, todavia, restringir ou ampliar a extensão do julgado proferido pelo Supremo Tribunal Federal. (STF – Reclamação 4.335/AC, Rel. Min. Gilmar Mendes – Dje 22/10/2014)

Um dos objetivos dessa mudança de paradigma foi reduzir o aumento desenfreado de recursos submetidos à apreciação do STF que tinham como objeto demandas de interesse meramente particular, destituídas de qualquer relevância social. 

De acordo com Moreira Alves (1997, p. 269, apud MENDES, 2015, p. 988), no passado, quando se falava em crise do Supremo Tribunal Federal – e que, na verdade, era mais propriamente a crise do Recurso Extraordinário – em face da multiplicidade de causas que iam chegando anualmente numa progressão que de aritmética já se estava tornando quase uma progressão geométrica, ele. pouco a pouco, tomou certas iniciativas para tentar conter a marcha evolutiva desses números para que pudesse atuar realmente como Corte Suprema, como grande Corte da Federação. Por isso, se nós volvemos as vistas para o passado, veremos que houve uma série de providências, ora de natureza legislativa, ora de construção jurisprudencial, ora de emendas constitucionais e, até mesmo, de atuação do Poder Constituinte originário, para tentar fazer com que a Corte pudesse manter-se no seu papel de grandeza de Corte da Federação e, consequentemente, não sucumbir diante da avalanche de recursos e de processos, muitos dos quais diziam respeito a questões de pouco valor em face dos magnos problemas constitucionais da federação. 

6- CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve por escopo trazer uma breve análise sobre a evolução do controle de constitucionalidade no Brasil, sob a perspectiva da sistemática dos precedentes vinculantes, que ganha maior relevância com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015.

Como restou evidenciado, o  controle de constitucionalidade no direito brasileiro sofreu forte influência dos modelos norte americano e europeu. Ocorre que com a adoção do modelo híbrido surge a necessidade de adaptar o sistema jurídico, de forma que a formação do precedente vinculante no controle de constitucionalidade deve respeitar a segurança jurídica, bem como os demais preceitos constitucionais. 

Dessa forma, a repercussão geral é um instrumento crucial para a sustentabilidade do modelo de controle de constitucionalidade no Brasil. Ela não apenas otimiza o trabalho do STF, mas também reforça a importância de uma jurisdição constitucional focada em questões de grande impacto social e jurídico, contribuindo para a estabilidade e previsibilidade do ordenamento jurídico e para a consolidação de uma sociedade verdadeiramente fundada nos princípios constitucionais.

No que concerne o papel do Senado Federal, a mutação constitucional relativa ao art. 52, inciso X, da Constituição Federal tem como principal motivação a adequação da jurisprudência e da atuação dos poderes com a necessidade de construir uma jurisprudência íntegra, coerente e estável, bem como garantir uma maior segurança jurídica na aplicação dos preceitos constitucionais.

Embora o Senado Federal exerça um papel de grande relevância ao dar publicidade às decisões proferidas pelo STF no controle difuso de constitucionalidade, é necessário reconhecer a necessidade de garantir uma maior efetividade, celeridade e estabilidade à prestação jurisdicional, tendo em vista os princípios do devido processo legal, do acesso à justiça e da isonomia. Além disso, a aplicação da jurisprudência do STF não pode depender da discricionariedade dos parlamentares, sob pena de manifesta ofensa ao princípio da máxima efetividade das normas constitucionais.

Portanto, a mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal, interpretada à luz dos precedentes vinculantes, demonstra uma evolução positiva no sistema jurídico brasileiro. Ela reflete uma adaptação necessária às demandas por uma justiça mais ágil, consistente e eficaz, respeitando o princípio da supremacia da Constituição e fortalecendo as decisões do STF no controle de constitucionalidade. Esse ajuste interpretativo garante que a Constituição viva e respire através de suas interpretações, adaptando-se aos desafios contemporâneos do direito e da sociedade.

REFERÊNCIAS

CUNHA JR., Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. Salvador. Editora JusPodivm. 2012.

SANTOS, Andrea Alves dos. Abstrativização do controle concreto de constitucionalidade. Disponível em http://www.lfg.com.br 08 de outubro de 2008.

DIDIER JUNIOR, Fredie. Sistema Brasileiro de Precedentes Judiciais Obrigatórios e os Deveres Institucionais dos Tribunais: Uniformidade, Estabilidade, Integridade e Coerência da Jurisprudência. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 64, n. 64, p. 135-147, abr. 2017.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. São Paulo. Editora Saraiva. 2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n° 4.335/AC. Relator: Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF, 20 de março de 2014. Publicado no DJe em 22 out. 2014. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2381551. Acesso em 08/05/2024

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraivajur, 2022.

BRAGA, Francisco. Direito Constitucional Grifado. Salvador: Juspodivm, 2023.