A ESPECIALIDADE DE MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE: UM OLHAR DO AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11375706


Lara David Fernandes,
Lays Costa Silva,
Renato Costa Soares


RESUMO:

Introdução: O Agente Comunitário de Saúde (ACS) é o profissional atuante na Atenção Primária à Saúde (APS) e tem dentre suas atribuições a orientação às famílias quanto ao acesso e utilização adequada dos serviços de saúde. Objetivo primário: Compreender a percepção dos ACS sobre a especialidade de medicina de família e comunidade (MFC) em uma unidade da APS com programa de residência em MFC no município do Rio de Janeiro-RJ. Metodologia: O presente estudo trata-se de uma pesquisa descritiva e qualitativa centrada em entrevistas semiestruturadas. A pesquisa foi realizada no município do Rio de Janeiro, em unidade básica de saúde (UBS). Foi submetida à análise e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro-RJ. Resultados: A análise dos dados coletados evidenciou que os ACS reconhecem a APS como estratégia para reduzir demandas hospitalares. Os entrevistados não consideram a medicina de família e comunidade como uma especialidade, mas reconhecem que o atendimento desse profissional é mais abrangente e humanizado. A inclusão do programa de residência na APS foi reconhecida como benéfica, porém a rotatividade dos residentes ao final dos 2 anos foi um aspecto negativo, assim como suas atividades acadêmicas. Considerações finais: Destaca-se a necessidade de treinamento para os ACS a fim de compreenderem melhor o papel da MFC como especialidade, sendo esse o alicerce para a elaboração de um projeto de intervenção visando a educação permanente.

Palavras-chave: Atenção Primária à Saúde; Estratégia Saúde da Família; Agentes Comunitários de Saúde; Medicina de Família e Comunidade.

1 INTRODUÇÃO

A Atenção Primária à Saúde (APS) é o primeiro nível de atenção em saúde, tendo como objetivo desenvolver uma ação integral na saúde individual e coletiva e é a porta de entrada do sistema de saúde e centro de comunicação com toda a rede de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS). Se caracteriza por um conjunto de ações que abrange a promoção, a proteção, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde2.

Nesse contexto a Estratégia de Saúde da Família (ESF), é o modelo assistencial da Atenção Básica (AB), que se fundamenta no trabalho de equipes multiprofissionais em um território, composta pelos médicos e enfermeiros (sejam generalistas ou especialistas em saúde da família e comunidade), auxiliares de enfermagem, dentistas e os agentes comunitários de saúde (ACS). Esses profissionais devem conhecer o território e a população pela qual eles são responsáveis, realizar um cuidado longitudinal e fazer vínculo com os usuários e suas famílias, sendo capazes de resolver a maior parte dos problemas de saúde do território, tornando tais serviços acessíveis à população. Além disso, devem estar atentos aos vários fatores do processo saúde-doença e às relações entre o contexto social, familiar, econômico, dentre outros, no processo de adoecimento2,8.

O ACS é o profissional atuante na APS desde o Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde (PNACS), lançado em 1992, sendo a base para a criação do Programa de Saúde da Família (PSF) e, posteriormente, a ESF, além de ser um dos principais elos na relação entre o sistema de saúde e o paciente. Dentre suas atribuições estabelecidas pelo Ministério da Saúde (MS), duas merecem destaque: orientar as famílias quanto ao acesso e utilização adequada do serviços de saúde e informar os demais membros da equipe da ESF acerca da dinâmica social da comunidade, suas necessidades e disponibilidades, ou seja, agem de ambos os lados, unindo-os conforme suas necessidades3,6,9.

O médico de família e comunidade (MFC), por sua vez, é o especialista com uma formação específica para atuar na APS, estabelecendo uma relação com as pessoas mesmo antes de existir processo de adoecimento. Ele está apto a lidar com a maioria dos problemas de saúde, ainda que o indivíduo precise ser encaminhado para um outro nível de atenção. Espera-se que a APS seja resolutiva e cerca de 80 a 90% dos agravos possam ser abordados sem a necessidade de encaminhamento para os outros setores. Para tal especialidade tem-se a opção de realização do programa de residência médica, que compreende um período de dois anos, com o total de 5760 horas de atividades teórico-práticas, que corresponde ao período de aprendizado durante a atuação nas unidades básicas de saúde3,7.

A partir da vivência prática dos pesquisadores do presente projeto, residentes do segundo ano do programa de residência em medicina de família e comunidade no município do Rio de Janeiro-RJ, em processo de ensino-aprendizagem em equipes de saúde da família e com proximidade e trabalho conjunto com os ACS, atuando em uma UBS que faz parte do programa de residência há uma década, foi observado empiricamente que muitos desses profissionais (ACS) aparentemente não compreendiam o papel a especialidade de MFC, assim como o funcionamento do programa de residência em sua unidade de atuação.

As orientações feitas aos pacientes sobre a importância da avaliação pelo especialista focal, o desconforto decorrente da rotatividade esperada pelos residentes médicos e a “incompreensão” do papel do residente e suas atividades para além do atendimento no consultório (tais como: sessões clínicas, aulas e turnos de oficinas/procedimento) foram alguns dos pontos que os pesquisadores observaram e que os levaram ao seguinte questionamento: como o ACS vê interpreta a especialidade de medicina de família e comunidade e qual sua percepção do papel do programa de residência em uma unidade básica de saúde?

Portanto, a presente pesquisa busca compreender a percepção dos ACS sobre a especialidade de MFC em uma unidade de APS no município do Rio de Janeiro-RJ. Como objetivo secundários buscar-se-á entender a percepção do ACS de saúde sobre o papel e as potencialidades da APS; e, por fim, elencar possíveis entraves na visão dos ACS a respeito das atividades dos residentes de MFC na rotina de uma UBS.

2 METODOLOGIA
2.1 Desenho da pesquisa:

Um estudo descritivo tem como objetivo expor as características de uma determinada população ou fenômeno, utilizando técnicas padronizadas de coleta de dados10. Em relação a abordagem de uma pesquisa, a análise qualitativa é válida principalmente ao elaborar deduções específicas sobre um acontecimento ou uma variável precisa1. Considerando os objetivos expostos, esta pesquisa trata-se, portanto, de um estudo descritivo e com abordagem qualitativa centrada em entrevistas semiestruturadas, com a combinação de perguntas fechadas e abertas.

2.2 Participantes da pesquisa:

pesquisa foi realizada em uma UBS no município do Rio de Janeiro e a unidade onde o estudo foi realizado conta com um total de 29 ACS. Não foi determinado um número específico de participantes para a pesquisa devido à abordagem do problema a ser estudado, que exige uma análise combinada entre o objetivo e o subjetivo, elementos que não podem ser quantificados por meio de números. Como a pesquisa visa analisar a percepção dos indivíduos envolvidos buscou-se uso da amostragem em pesquisa por saturação, onde houve a suspensão da inclusão de novos participantes quando as informações fornecidas por esses pouco acrescentavam no material já obtido, não mais contribuindo significativamente para o aperfeiçoamento da reflexão teórica4. Dito isso, nove pessoas participaram da pesquisa.

Foram incluídos os ACSs que possuíam um tempo mínimo de experiência de 1 ano na função, uma vez que, com esse período de trabalho, o ACS adquire um melhor entendimento de suas habilidades e funções na APS. Além disso, o tempo mínimo de 1 ano estipulado auxilia a diminuir o viés, pois novos profissionais podem apresentar um maior entusiasmo e também serem mais suscetíveis a elementos externos (como por exemplo pressão da comunidade), tendo uma maior influência sobre suas respostas.

Foram excluídos os ACS das equipes dos pesquisadores, a fim de diminuir o viés de confirmação e falta de confidencialidade, uma vez que o agente de saúde pode não se sentir confortável em expressar sua opinião abertamente. Também não participaram da pesquisa os ACS que estavam em licenças ou afastamentos.

A fim de minimizar vieses, os pesquisadores realizaram treinamento de acadêmicos de medicina, que possuem pouca ou nenhuma relação com os agentes de saúde, e eles foram os responsáveis pela realização das coletas de dados. Apesar do reconhecimento da inevitabilidade de viés é essencial destacar a importância dos resultados da pesquisa para o contexto da unidade, que podem servir de base para a implantação de um projeto de intervenção que auxiliará na criação de propostas mais assertivas e direcionadas às reais necessidades da equipe e da comunidade atendida.

2.3 Técnica de coleta de dados:

Os dados foram coletados por meio de entrevistas semi estruturadas apoiadas em um roteiro com perguntas previamente elaboradas. Essas perguntas têm como principal objetivo explorar a percepção dos ACS sobre o tema. Dessa forma, o roteiro foi produzido de modo que permita a maleabilidade do diálogo, fazendo com que novos assuntos possam ser trazidos pelo participante como forma de enriquecimento do estudo.

Para fins de realização de busca de bases para referencial teórico, foram realizadas pesquisas nas plataformas Scielo, Lilacs, PubMed e BVS, usando os descritores “Atenção Primária à Saúde”, “Estratégia Saúde da Família”, “Agentes Comunitários de Saúde” e “Medicina de Família e Comunidade”, usando os termos também na tradução para o inglês, para ampliar a busca.

2.4 Análise de dados:

Após a coleta iniciou-se a fase de análise e interpretação de dados. A análise é uma etapa de organização e sumarização dos dados de forma que possibilite fornecer respostas para o problema proposto. Por outro lado, a interpretação procura sentidos mais amplos das respostas, sendo essa busca realizada mediante a sua ligação a outros conhecimentos obtidos anteriormente5.

Na fase de análise de dados, existem técnicas que devem ser aplicadas de modo a organizar/estruturar o material coletado e para esta pesquisa optamos pela a análise de conteúdo, que organiza-se em torno de 3 pólos cronológicos: a) pré-análise: que é a fase de organização propriamente dita, que tem por objetivo tornar operacionais e sistematizar as ideias iniciais. b) exploração do material: esta fase consiste em operações de codificação e categorização do material c) tratamento dos resultados obtidos e interpretação, que fundamenta-se em transformar os resultados brutos em produtos significativos e válidos1.

2.5 Considerações éticas:

Os pesquisadores seguiram rigorosamente o cumprimento dos critérios éticos estabelecidos pela Resolução nº 510 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) para a realização deste estudo com seres humanos. O consentimento voluntário e a privacidade dos participantes foram protegidos e garantidos por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido elaborado especificamente para essa pesquisa. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da SMS do Rio de Janeiro – RJ.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
3.1 Perfil dos participantes:

amostra foi composta por 9 ACS, tendo uma média de 47 anos de idade, variando entre 38 e 54 anos. O tempo de atuação como ACS na APS variou entre 6 e 12 anos, sendo que 67% dos entrevistados possuem 10 ou mais anos de atuação. Dos entrevistados, 4 participantes não possuem nenhuma experiência laboral prévia como profissional na área da saúde, 2 possuem técnico de enfermagem, porém nunca trabalharam na área, 2 relataram já ter trabalhado na área administrativa na saúde e 1 participante relata ter trabalhado por 10 anos como cuidador. As entrevistas ocorreram entre os meses de setembro e outubro de 2023, conforme previsto em cronograma. Abaixo segue uma tabela com o perfil dos participantes:

Tabela 1. Perfil dos participantes da pesquisa

Código de IdentificaçãoIdadeExperiência prévia na saúdeTempo de atuação com ACSTempo de atuação na unidade
Participante 149Administrativo8 anos8 anos
Participante 242Não12 anos12 anos
Participante 360Estágio12 anos12 anos
Participante 447Não10 anos10 anos
Participante 554Administrativo6 anos2 anos
Participante 643Cuidador12 anos12 anos
Participante 740Curso técnico9 anos9 anos
Participante 838Não12 anos12 anos
Participante 952Não12 anos12 anos
Fonte: elaborado pelos autores, 2023.
3.2 Percepção do ACS sobre o papel da Atenção Primária à Saúde.

Em relação a percepção dos ACS sobre as potencialidades da APS, foi observado um padrão de respostas destacadas abaixo:

  • Diminuir as demandas em hospitais e emergências;
  • Resolver demandas mais simples;
  • Agilizar o sistema priorizando quem realmente precisa;
  • Atendimento de pessoas vulneráveis;
  • Atenção primária como cuidado;
  • Acompanhamento da família ao longo do tempo;
  • Acompanhamento da gestante e do bebê;
  • Cuidado com doenças crônicas;
  • Prevenção e promoção da saúde.

Tais achados revelam um entendimento sólido e abrangente sobre o papel da APS, que transcende o simples atendimento médico. Primeiramente, observa-se o reconhecimento da APS como uma estratégia eficaz para diminuir as demandas nos hospitais e emergências e a resolução de demandas mais simples. Essa compreensão reflete a capacidade da APS em lidar com questões de saúde de forma preventiva, evitando complicações que poderiam levar a internações hospitalares.

Participante 2: “Tem demandas que a gente consegue resolver aqui que não precisa ir para emergência, assim, diminui o atendimento das emergências em hospitais maiores. Fora o acompanhamento e a prevenção de doenças

A agilidade no sistema, ao priorizar quem realmente precisa, destaca a eficiência da APS em atender às necessidades essenciais da comunidade, considerando seu papel na regulação do cuidado com solicitação de exames e encaminhamentos com indicações precisas. Fica evidente o entendimento quanto à resolutividade dos profissionais da APS, como dito em uma das entrevistas: “os médicos aqui conseguem resolver muita coisa aqui que não tem necessidade de encaminhar” (entrevistado 2). Destaca-se ainda o atendimento da população mais vulnerável elucidando questões como o acesso e equidade em saúde.

Os ACSs compreendem a APS como cuidado, indo além do tratamento pontual de doenças, destacando a integralidade, longitudinalidade, a abordagem familiar e acompanhamento de doenças crônicas. A ênfase na prevenção e promoção da saúde denota o reconhecimento da importância da APS no cuidado do indivíduo e seu papel central no SUS.

Em síntese, a percepção dos ACS sobre as potencialidades da APS revela uma compreensão abrangente e integrada do papel dessa abordagem na promoção da saúde e prevenção de doenças, evidenciando uma visão holística que vai além do tratamento pontual.

3.3. A especialidade de Medicina de Família e Comunidade sob a ótica do ACS: uma análise comparativa com as especialidades médicas focais.

Participante 2: “A APS é prevenção de saúde, então não tem cabimento colocar os especialistas na unidade. Que aí não vai ser mais denominado como atenção básica, né?”

Durante a análise de dados observou-se que nenhum ACS considera o médico de família e comunidade como um especialista e isso pode ocorrer devido à natureza mais abrangente dessa área de atuação, o que pode gerar desafios na percepção de tal especialização. Esse fato ressalta a importância da comunicação e colaboração entre esses profissionais para garantir orientação mais assertiva à comunidade assistida.

Outro ponto importante evidenciado pelas respostas foi que a maioria considera o atendimento do médico da APS como mais humanizado, com enfoque na prevenção e acompanhamento longitudinal tanto do usuário quanto da família quando comparado a outros especialistas. Durante as entrevistas surgiram afirmativas quanto a preferência dos próprios entrevistados em serem atendidos nas clínicas das famílias devido a maior atenção que receberam quando comparado ao atendimento realizado por outras especialidades, incluindo da rede particular.

Participante 3: “Na estratégia de saúde da família, é aquele mais camaradinha, é o amigo da família, né? Que já te conhece ali, que conhece toda a tua família”.

Um terço dos entrevistados, acreditam que a presença de outros especialistas focais, como pediatras e ginecologistas, seria benéfica, visto que os usuários solicitam, em sua maioria, estes atendimento e que, portanto, diminuiria o tempo de espera de acesso, além de aumentar o contentamento da população quanto aos atendimentos. Todavia, a maioria, dois terços dos ACS, considerou que não há necessidade da presença de outros especialistas no âmbito da APS e nem acesso direto a eles nos hospitais e ambulatórios, e que o fluxo de acesso a essas outras especialidades deveria continuar sendo a partir da APS, reconhecendo o potencial do MFC.

3.4 O programa de residência em Medicina de Família e Comunidade: desafios e contribuições na oferta de serviços a partir do olhar do ACS.

Um terço dos entrevistados citaram a importância da residência no desenvolvimento dos médicos que atuarão na APS. Por outro lado, os ACS também citaram diversos desafios com a presença da residência na unidade. O desafio quase unânime referido pelos ACS é a perda de vínculo com a saída dos residentes após 2 anos, eles mencionam a grande dificuldade da população em entender essa dinâmica da residência.

Participante 5: “O problema é que eles não estão sempre na clínica. Tem a parte da aula, tem a parte da hora que eles não estão atendendo e tudo mais (…) diminui a quantidade de atendimento.”

Outro desafio frequentemente apontado pelos agentes são as atividades externas dos residentes (principalmente do segundo ano), que interferem na oferta de atendimento para a população e dificultam as marcações de consultas nas agendas. Segundo os ACS há a necessidade de maior autonomia dos residentes frente à equipe e aos atendimentos, uma vez que a atividade do residente está muito atrelada a do preceptor(a). Por último, um dos participantes relatou a presença da residência como uma experiência ruim com mais pontos negativos que positivos. Apesar disso, a maioria reconhece que os turnos protegidos dos residentes são para estudos e aperfeiçoamento.

Participante 9: “Porque a residência é essa coisa toda, esses detalhes todos, essas possibilidades todas, esse conhecimento todo. É sempre conhecimento. E tem as aulas. Às vezes a gente marca uma agenda, por exemplo, agenda é corrida, a gente marca uma agenda e aí tem que desmarcar.”

Por outro lado, destaca-se as potencialidades do programa de residência pois a presença do residente na APS auxilia na dinâmica da unidade, traz novos conhecimentos e trocas de experiências. Outros pontos positivos também foram avaliados nas respostas como: residentes auxiliam em diminuir as demandas, melhoram a qualidade dos atendimentos e contribuem na organização da equipe como um todo.

4.   CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das análises dos dados, foi possível observar que o ACS compreende a relevância da APS no cuidado longitudinal, além de ter percepção quanto a sua importância na base do cuidado, visando promoção de saúde e prevenção de doenças. No que diz respeito sobre a importância da especialidade de medicina de família e comunidade foi observado que os entrevistados não a entendem como especialidade, apresentando falas como “não deveriam existir especialistas na atenção primária” (Entrevistado 3). Por outro lado, os ACS em sua maioria, têm a percepção de que não são necessárias outras especialidades nas UBS, pois entendem que os médicos atuantes são capazes de resolver a maioria das demandas da comunidade.

A falta de familiaridade com a amplitude da prática do médico de família e comunidade, sobretudo, em uma unidade com programa de residência médica há mais de uma década, pode resultar em uma visão limitada de sua especialização e destaca a importância da comunicação e compreensão mútua entre os médicos e ACS. A colaboração eficaz entre esses profissionais é fundamental para construção de um processo de trabalho colaborativo na atenção primária.

Outro ponto da discussão está relacionado à presença do programa de residência de MFC na unidade estudada e foi citado como ponto negativo a quebra de vínculo com a equipe e principalmente com o paciente, referindo-se ainda a grande rotatividade de residentes. Essa realidade pode gerar desconfiança, desinteresse por parte dos usuários e sensação de abandono, ressaltando a importância de estratégias para preservar a continuidade do cuidado e fortalecer a relação médico-paciente.

Em contrapartida, foi apontado como positivo a presença da residência, a possibilidade de um número maior de médicos na unidade e, à vista disso, viabilizar maior número de agendamentos de consultas e melhor organização das equipes. Ainda como positivo, foi abordado a troca de experiência e conhecimentos que a residência permite, principalmente entre os próprios residentes, contribuindo para sua formação e crescimento como médicos de uma APS.

Vale ressaltar que devemos considerar os ACS enquanto sujeitos sócio-históricos, que se constituem a partir do território e das lógicas em que estão inseridos e, também, reconhecer que eles têm uma identidade comunitária e realizam tarefas que não se restringem apenas ao campo de saúde, uma vez que se relacionam diretamente e diariamente com a população do território, como morador ou como profissional de saúde8.

A partir dessa análise e considerando os achados da presente pesquisa observamos a importância do treinamento dos ACS como forma de muni-los de conhecimentos acerca do papel do MFC e as potencialidade do programa de residência médica de modo que os habilite no contínuo processo de interação cotidiana com os usuários, uma vez que suas falas e ações têm efeito mediante a comunidade. Portanto, esse profissional deve saber orientar quanto ao funcionamento da ESF e sobre os profissionais que nela atuam.

Os dados gerados pela pesquisa estão sendo utilizados como alicerce para a elaboração de um projeto de intervenção com objetivo de educação permanente a ser realizado na unidade no ano de 2024. Espera-se ainda a busca de mecanismos de ajustes possíveis na rotina da unidade estudada com objetivo de minimizar os impactos negativos citados (como, por exemplo, expansão da agenda da preceptoria). Além disso, espera-se fomentar pesquisa nessa área em vista da escassez de estudos com essa temática.

REFERÊNCIAS

  1. Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011.
  2. Campos RLM, Território e promoção da saúde: aproximações entre o pensamento decolonial, o urbanismo e a saúde coletiva na atuação dos Agentes Comunitários de Saúde [tese]. São Paulo: Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, Instituto de Saúde – ISPROD; 2022.
  3. Farias CCMV, Paiva CHA. O trabalho do agente comunitário de saúde e as diferenças sociais no território. Trab. Educ. Saúde. 2020;18(s1):e0025183.
  4. Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cad. Saúde Pública. 2008;24(1):17-27.
  5. Gil, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas; 1999
  6. Ministério da Saúde (MS). Saúde da Família: uma estratégia para a reorientação do modelo assistencial. Brasília: MS; 1998.
  7. Nunes MO, et al. O agente comunitário de saúde: construção da identidade desse personagem híbrido e polifônico. Cad. Saúde Pública. 2002.
  8. Santos KPB. Atuação sistêmica do médico de família: uma visão segundo o modelo bioecológico do desenvolvimento humano. Rev. Saúde em Debate. 2019.
  9. Samudio JLP, et al. Agentes Comunitários de Saúde na atenção primária no Brasil: multiplicidade de atividades e fragilização da formação. Rev. Fiocruz Trab. Educ. Saúde. 2017;15(Sep-Dec).
  10. Prodanov CC, Freitas EC. Metodologia do Trabalho Científico: Métodos e Técnicas da Pesquisa e do Trabalho Acadêmico. Novo Hamburgo: Feevale; 2013.