ANÁLISE EQUITATIVA DA GRATUIDADE DE JUSTIÇA NO JUDICIÁRIO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11194356


  Lourrainy Cristina Bento da Silva1
Fernando Augusto Torres dos Santos2


RESUMO

A análise equitativa da gratuidade de justiça no judiciário é um tema essencial para garantir o acesso efetivo à justiça para todos os cidadãos, independentemente de sua condição econômica. No Brasil, a gratuidade de justiça é um direito assegurado constitucionalmente e regulamentado pela Lei nº 1.060/50 que foi revogada pelo Código de Processo Civil de 2015. Nesse sentido, o objetivo desse estudo é discutir a equidade na concessão da gratuidade de justiça no Poder Judiciário. A partir disso, compreender que há distinções conceituais importantes a serem consideradas: a justiça gratuita refere-se à isenção de despesas processuais e extraprocessuais necessárias para o andamento do processo; a assistência judiciária envolve o patrocínio gratuito da causa por um advogado; e a assistência jurídica é mais ampla, incluindo consultoria e orientação jurídica, além da representação em juízo. Em relação a metodologia utilizou-se uma pesquisa bibliográfica e documental, buscando, artigos, teses e dissertações. Os resultados da pesquisa sobre a análise equitativa da gratuidade de justiça no judiciário demonstram a importância de se considerar a igualdade substancial no acesso à justiça.

Palavras-chave: Análise equitativa. Gratuidade de Justiça. Judiciário.

ABSTRACT

The equitable analysis of legal aid in the judiciary is an essential topic to ensure effective access to justice for all citizens, regardless of their economic status. In Brazil, legal aid is a constitutionally guaranteed right and regulated by Law No. 1,060/50, which was revoked by the Code of Civil Procedure of 2015. In this sense, the aim of this study is to discuss equity in the granting of legal aid in the Judiciary. From this perspective, it is important to understand that there are important conceptual distinctions to be considered: legal aid refers to the exemption from procedural and extra-procedural expenses necessary for the progress of the process; legal assistance involves the free sponsorship of the cause by a lawyer; and legal aid is broader, including legal counseling and guidance, as well as representation in court. Regarding the methodology, a bibliographic and documentary research was used, seeking articles, theses, and dissertations. The results of the research on the equitable analysis of legal aid in the judiciary demonstrate the importance of considering substantive equality in access to justice.

Keywords: Equitable Analysis. Free Access to Justice. Judiciary.

1.INTRODUÇÃO

A garantia do acesso à justiça, independentemente das condições financeiras dos cidadãos, é um dos pilares fundamentais de um sistema jurídico democrático e igualitário. Nesse contexto, a gratuidade de justiça emerge como um princípio essencial, consagrado em diversos dispositivos legais, incluindo a Constituição Federal de 1988, a Lei n. 1.060/1950 e os Códigos Civil e de Processo Civil (Ruiz, 2018).

Entretanto, a concessão desse direito não é absoluto e está sujeita a critérios de avaliação, podendo apresentar desafios e questões relacionadas à equidade e imparcialidade. Diante dessa complexidade, torna-se relevante uma análise equitativa da gratuidade de justiça no âmbito do Poder Judiciário.

Considerando esse cenário, surge a necessidade de investigar como a gratuidade de justiça é concedida e distribuída, de forma equânime e justa, no contexto judiciário. Portanto, a seguinte questão problema se coloca: como se manifesta a equidade na concessão da gratuidade de justiça no Poder Judiciário?

Com base nessa indagação, duas hipóteses podem ser levantadas para orientar a pesquisa: a primeira sugere que a análise equitativa da gratuidade de justiça revelará disparidades na concessão desse benefício, possivelmente influenciadas por fatores socioeconômicos, geográficos ou culturais específicos. Enquanto a segunda hipótese postula que a implementação de critérios transparentes e uniformes para a concessão da gratuidade de justiça poderá contribuir para uma distribuição mais equitativa desse benefício entre os usuários do sistema judiciário.

Dessa forma, o objetivo geral deste estudo consiste em discutir a equidade na concessão da gratuidade de justiça no Poder Judiciário. Para alcançar esse objetivo, os objetivos específicos incluem a análise das legislações pertinentes que abordam a gratuidade de justiça, identificando os critérios utilizados para sua concessão, bem como a investigação das possíveis disparidades na aplicação desses critérios.

A justificativa para a realização deste estudo reside na importância de assegurar que a gratuidade de justiça seja concedida de maneira justa e equitativa, garantindo assim o acesso igualitário de todos os cidadãos ao sistema judiciário. A análise equitativa desse processo não apenas contribui para a melhoria do sistema judiciário como um todo, mas também reforça os princípios democráticos e de igualdade que fundamentam a sociedade brasileira.

Assim, em relação a metodologia foi realizada uma revisão bibliográfica e documental. . De acordo com Gil (2002), a pesquisa bibliográfica é desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos. Embora em quase todos os estudos seja exigido algum tipo de trabalho dessa natureza, há pesquisas desenvolvidas exclusivamente a partir de fontes bibliográficas.

Dessa maneira, foi feito um levantamento da bibliografia e documentos que versam sobre justiça gratuita e equidade na justiça. A busca se deu os bancos de teses e dissertações do CAPES, SCIELO, e Biblioteca virtual do Supremo Tribunal Federal. Serão utilizados os descritores “Justiça Gratuita; equidade, judiciário”, como critério de inclusão, após o levantamento das bibliográficas ocorreu uma leitura primária dos trabalhos encontrados.

2. DO ACESSO A JUSTIÇA

O conceito de justiça tem sido objeto de reflexão e debate ao longo da história da filosofia e do direito. Hans Kelsen, em sua obra “O Problema da Justiça” (1998), explora a complexidade do conceito de justiça em contextos legais e morais. Kelsen argumenta que a justiça não é um conceito absoluto e que sua interpretação pode variar de acordo com o sistema jurídico e as normas culturais.

Ele enfatiza a importância de se entender a justiça dentro do contexto de um sistema jurídico específico, considerando sua estrutura e ordenamento. Nancy Fraser, em “Sobre Justiça” (2012), apresenta uma perspectiva crítica e feminista sobre a justiça. Ela discute a necessidade de abordar não apenas a justiça distributiva, que trata da distribuição equitativa de recursos, mas também a justiça reconhecimento e a justiça representação. Fraser argumenta que a justiça deve levar em consideração as identidades e as necessidades das diversas partes da sociedade, garantindo que todas sejam reconhecidas e representadas de maneira adequada.

Assim, a Constituição Federal de 1988 é frequentemente referida e reconhecida por muitos estudiosos como a Constituição Social, devido ao seu compromisso e densidade em valores voltados para a transformação das estruturas tanto econômicas quanto sociais da sociedade (Streck, 2014).

Dessa forma, é possível afirmar que a sociedade passou por diversas mudanças que levaram a ajustes significativos – ou não – no texto constitucional, buscando torná-lo cada vez mais próximo da realidade social.

Nesse sentido, os direitos e garantias fundamentais ganharam destaque especial na Constituição de 1988, dedicando um título específico a uma extensa e densa lista de direitos. Uma característica singular desta Constituição é a colocação dos direitos fundamentais logo no início do documento, destacando sua importância e indicando novos caminhos para o país. Além disso, desde o artigo 1º, a dignidade da pessoa humana foi estabelecida como fundamento da sociedade brasileira.

De acordo com  Sarlet (2004), a Constituição, apesar de seu caráter compromissário, proporciona uma unidade de sentido, valor e aplicação prática ao sistema de direitos fundamentais, os quais se baseiam na dignidade da pessoa humana, sendo está concebida como fundamento e fim da sociedade e do Estado. Dessa forma, o princípio da dignidade humana atua como a base central do sistema de liberdades constitucionais e, portanto, dos direitos fundamentais.

 É nesse contexto que o direito ao acesso à Justiça foi incluído na Constituição de 1988, no artigo 5º, inciso XXXV, destacando-se como um direito fundamental de todos os sujeitos submetidos à Carta Magna.

No entanto, o acesso à Justiça vai além do seu sentido literal, abrangendo o direito a um processo legal e equitativo, ao juiz natural, à celeridade processual, à ciência dos atos processuais, ao julgamento justo e à fundamentação das decisões, assim como à obtenção de uma decisão eficaz (Souza; Seixas, 2013).

Bulos (2015), por outro lado  afirma que o direito ao acesso à justiça é um elemento constitucional fundamental do processo, também conhecido como o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, garantindo a todos o acesso aos tribunais para buscar proteção preventiva ou reparatória a direitos individuais, coletivos, difusos e até mesmo individuais homogêneos.

 Marmelstein (2011) destaca vários princípios constitucionais voltados para a proteção judicial, sintetizados no dispositivo constitucional mencionado, tais como o acesso à Justiça, a inafastabilidade da tutela judicial, o direito de petição e de ação, e o direito à tutela efetiva, rápida e adequada.

E, Didier Júnior (2005) reconhece a complexidade em definir o acesso à Justiça, mas ressalta sua importância como o meio pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e resolver seus litígios sob a proteção do Estado.

Já o autor, Cretella Júnior (1991) explica que o acesso aos tribunais é concebido como um direito de defesa contra atos dos poderes públicos e um direito de proteção do particular perante violações de seus direitos por terceiros.

E, Bulos (2015) destaca que o princípio do direito de ação objetiva garantir que todo indivíduo tenha o direito de ser ouvido por um tribunal independente e imparcial, estabelecido por lei, para defender seus interesses ou enfrentar acusações penais.

 Então, entende-se que o acesso à Justiça não se limita apenas ao direito de ter uma demanda apreciada por um juiz imparcial, mas também engloba o acesso a uma ordem jurídica justa, composta por princípios e regras que permitam aos cidadãos influenciar a decisão judicial e materializar seus direitos de forma razoável (Schiavi, 2014). Em suma, o acesso à Justiça abrange uma série de princípios e direitos previstos na Constituição e na legislação brasileira, conforme explicado pelos estudiosos mencionados anteriormente.

2.1 A justiça como equidade

A teoria da justiça como equidade, proposta por John Rawls (2016), tem como foco central a realização ou maximização do bem comum. Ela estabelece princípios garantidores que, pelo menos teoricamente, buscam a igualdade material entre os indivíduos. Rawls defende a necessidade de um consenso sobre princípios fundamentais, estabelecido por representantes de cada grupo, que delimitam os termos de cooperação social para governar uma sociedade democrática constitucional.

Abreu (2006) explica o conceito de justiça como equidade, destacando que se trata do procedimento que assegura a igual oportunidade para todos escolherem os princípios de justiça que melhor representam o que é razoável para cada um, sem influências que possam distorcer a igualdade fundamental entre todos. Em outras palavras, a posição original e o véu da ignorância são instrumentos que permitem, ao menos no âmbito do pensamento, emergir a igualdade substantiva dos cidadãos como parâmetro para a construção do político.

Para que esse consenso seja equitativo, garantindo que os princípios básicos da estrutura social sejam justos, Rawls (2016) estabelece elementos fundamentais: a posição original, o véu da ignorância e os dois princípios da justiça (princípio da igual liberdade e princípio da diferença.

A posição original é uma situação hipotética na qual os indivíduos podem concordar sobre quais princípios devem reger sua sociedade. Rawls (2016) define a posição original como o ponto inicial apropriado para garantir que os consensos estabelecidos sejam equitativos. Isso delineia o conceito de justiça como equidade. Segundo ele, uma concepção de justiça é mais razoável do que outra quando pessoas racionais, na posição original, escolhem seus princípios de justiça preferindo-os aos de outras concepções.

O véu da ignorância é uma condição na qual ninguém conhece as circunstâncias individuais, como posição na sociedade, classe social, sexo, religião, raça, ou a parte que terão na distribuição de bens e talentos naturais.

 Rawls (2016) descreve que essa condição visa anular os efeitos das circunstâncias específicas que poderiam favorecer alguns em detrimento de outros. As partes atrás do véu da ignorância são forçadas a avaliar os princípios apenas com base em considerações gerais, sem conhecimento de seus próprios benefícios ou desvantagens individuais.

Rawls propõe dois princípios da justiça: o princípio da igual liberdade, que garante a todos igualdades em direitos e liberdades básicas, e o princípio da diferença, que está ligado à distribuição dos bens primários. Esse último permite desigualdades somente se resultarem em vantagens para todos, especialmente para os menos favorecidos. Rawls (2016) enuncia estes princípios da seguinte forma:1.Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. 2.As desigualdades sociais e econômicas devem ser estruturadas de forma a serem (a) consideradas vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.

Góes e Paes (2017), por outro lado resumem esses princípios, explicando que devem ser escolhidos com base no consenso entre os membros da sociedade sobre o que é justo e injusto, garantindo assim a justiça e igualdade na distribuição dos bens primários e nos direitos fundamentais.

2.2 Precedentes Judiciais e o Direito com integridade

Quando discutimos os precedentes judiciais e sua força, é crucial destacar que, para que uma decisão judicial seja considerada um precedente com autoridade, é necessário que ela se torne um paradigma. Isso significa que a riqueza de sua tese jurídica é formada pelos princípios fundamentais extraídos da legislação, os quais servem como guias para futuras situações conflituosas semelhantes.

É importante salientar que um verdadeiro precedente judicial não nasce com a intenção de se tornar um precedente. Em outras palavras, a decisão judicial é proferida com o propósito de resolver o caso em questão através de uma norma (uma interpretação jurídica do texto legal aplicável) criada especificamente para aquele caso. No entanto, ela se torna um precedente devido à autoridade e qualidade dos fundamentos jurídicos apresentados, sendo elevada ao status de decisão paradigmática para casos futuros.

O autor Horta (2017) esclarece sobre os fundamentos determinantes, que são as razões jurídicas que resolvem uma cadeia de eventos de forma íntegra e coerente com o ordenamento jurídico. É nesses fundamentos que os precedentes devem ser buscados, e a falta deles ou sua substituição por outros compromete sua aplicação. As normas contidas nos precedentes devem ser formuladas como enunciados universais que preveem determinadas consequências normativas à luz de certos fatos operativos.

De acordo com Marinoni (2017), nem toda decisão constitui precedente. Ele explica que um precedente é uma decisão com certas características específicas, principalmente a capacidade de se tornar um paradigma para orientar os jurisdicionados e os magistrados. Assim, enquanto toda decisão judicial deriva de uma decisão anterior, nem toda decisão se torna um precedente. É importante observar que o precedente trata de questões de direito – ou, conforme o common law, de um point of law – e não de questões de fato.

Dentro da doutrina dos precedentes judiciais, é inegável a segurança e maior liberdade ao tratar de assuntos que dizem respeito aos próprios indivíduos (Góes; Paes, 2017), pois a tese paradigmática é respeitada nas decisões futuras sobre casos semelhantes.

Já o autor Didier Júnior (2016) destaca a relação entre cláusulas gerais e precedentes judiciais, explicando que a cláusula geral reforça o papel da jurisprudência na criação de normas gerais. Ele enfatiza que a reiteração da aplicação de uma mesma ratio decidendi (núcleo normativo do precedente judicial) dá especificidade ao conteúdo normativo de uma cláusula geral, permitindo ao juiz fundamentar sua decisão em casos precedentes julgados.

De acordo com Zaneti Júnior (2016)  o precedente judicial como a solução jurídica argumentativamente explicitada pelo intérprete a partir da unidade fático-jurídica do caso precedente. Ele continua explicando que quando um tribunal estabelece uma regra de direito aplicável a determinados conjuntos juridicamente relevantes, essa regra deve ser seguida e aplicada em todos os casos futuros com fatos ou circunstâncias semelhantes.

Dentro desse contexto de respeito aos precedentes judiciais, a teoria do direito como integridade, desenvolvida por Dworkin, se encaixa perfeitamente. Essa teoria busca garantir coerência entre as decisões judiciais, o que resulta em estabilidade nos princípios aplicáveis a casos análogos, segurança jurídica para os jurisdicionados, e justiça e equidade (Franzé; Tavares, 2019).

Segundo o  autor Dworkin (1999), as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade.

A partir disso, a justiça nesse contexto, refere-se ao resultado correto do sistema político: a distribuição adequada de bens, oportunidades e outros recursos. Equidade é a questão da estrutura correta desse sistema, que distribui a influência sobre as decisões políticas de forma adequada (Dworkin, 1999). O devido processo legal adjetivo é uma questão dos procedimentos corretos a serem seguidos.

3. CONTEXTO HISTÓRICO DA JUSTIÇA GRATUITA NO BRASIL

Desde os primórdios da colonização portuguesa no Brasil, a proteção dos desfavorecidos diante dos tribunais era vista como um ato de benevolência, influenciado por preceitos religiosos marcantes (Alves, 2006).

Com a promulgação da Constituição de 1824, no Brasil, as principais leis compiladas eram as “Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas”. Apenas esta última apresentava disposições que se assemelhavam à garantia de assistência jurídica gratuita (Andrade, 2004).

Nas Ordenações Filipinas, Livro III, uma disposição peculiar permitia que um indivíduo economicamente desfavorecido, ao declarar sua pobreza e recitar uma oração em favor do rei, fosse dispensado do pagamento das custas judiciais. Essa prática refletia uma forma de assistência aos mais pobres da época (Andrade, 2004).

Já no Livro I das mesmas Ordenações, em um trecho específico, o réu carente em processo criminal estava isento das despesas judiciais até que estivesse em condições financeiras para arcar com elas. Ao contrário dos tempos atuais, não havia um prazo determinado para que o Estado pudesse reaver essas custas, como o período de cinco anos que é comumente estabelecido atualmente (Andrade, 2004).

Durante o período colonial no Brasil, os colonizadores introduziram a prática de que os advogados deveriam oferecer assistência aos pobres que a solicitassem, considerando isso como uma obrigação moral inerente à profissão jurídica (Garcia, 2002).

Curiosamente, a primeira Constituição brasileira não abordava a questão da assistência jurídica gratuita, nem estabelecia a criação de instituições como as Defensorias Públicas. As Constituições subsequentes de 1891 e 1937 também não mencionaram esse aspecto.

De acordo com a análise de Garcia (2002), nos primórdios do Brasil, a assistência jurídica aos necessitados estava profundamente ligada aos ideais abolicionistas.

Nesse contexto, a falta de regulamentação da assistência jurídica representava um obstáculo significativo para o exercício da cidadania pela população, especialmente para os escravos libertos. Costa Neto (2013), que também era um abolicionista destacado, propôs que o acesso à justiça fosse enfatizado como um meio de garantir a justiça e defendeu a implementação de um sistema de assistência jurídica, tendo o Instituto dos Advogados do Brasil como responsável, embora não tenha obtido apoio suficiente do Poder Legislativo para concretizar essa proposta.

Durante o Império do Brasil, foi estabelecido o cargo de Advogado dos Pobres , cuja função era defender os réus criminais pobres e recebiam remuneração do Tesouro público. Assim, surgiram os primeiros  Defensores Públicos do Brasil, embora essa prática tenha sido extinta em 1884 (Costa Neto, 2013)..

Com a Proclamação da República em 1889, a assistência jurídica gratuita recebeu um novo ímpeto. Logo em 1890, o governo provisório emitiu o Decreto nº 1030, que estabelecia uma comissão para patrocinar gratuitamente os pobres em questões criminais e civis. Este decreto, no entanto, carecia de consistência e foi substituído em 1897 pelo Decreto nº 2547, que criou um serviço público de assistência jurídica para os pobres no Distrito Federal (à época, o Rio de Janeiro), definindo os critérios para sua aplicação.

Em 1930, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) foi criada e assumiu a responsabilidade pela prestação de assistência jurídica, transformando-a de um dever moral dos advogados em uma obrigação institucionalizada. O não cumprimento dessa obrigação acarretava sanções pela OAB, conforme estabelecido no Artigo 91, que determinava que a assistência jurídica ficava sob jurisdição exclusiva da Ordem nos âmbitos federal, estadual e territorial.

Com a promulgação da Constituição de 1934, uma importante mudança foi introduzida no panorama jurídico brasileiro, especialmente no que diz respeito à assistência judiciária. Este texto vigorou por apenas três anos, mas teve um impacto significativo.

No Capítulo II – Dos Direitos e Garantias Individuais”, o Artigo 113 estabeleceu que  A União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando para esse efeito órgãos especiais e assegurando a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos.

Essa inclusão da assistência judiciária como um direito garantido constitucionalmente, juntamente com a criação de órgãos para sua prestação, incluindo a isenção de taxas judiciais, marcou uma evolução importante. O princípio do acesso à justiça e da assistência judiciária passou a ser considerado um direito fundamental para todos os cidadãos de forma democrática. Assim, o termo  benefício em relação à assistência judiciária tornou-se inadequado, sendo substituído por direito , uma vez que a Constituição dedicava um capítulo específico a esse tema.

Com a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1946, o mesmo princípio foi mantido, embora com redação ligeiramente diferente. O “Capítulo III – Dos Direitos e Garantias Individuais”, no Artigo 141, § 35, afirmava que “O Poder Público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos necessitados”.

No entanto, alguns estudiosos, como Andrade (2004), argumentam que houve um retrocesso em relação à Constituição de 1934, pois a questão da assistência judiciária foi deixada para legislação ordinária, não sendo prevista a criação de órgãos específicos para esse fim, como era o caso da Constituição anterior.

Em 1950, foi promulgada a Lei n. 1060, que estabelecia normas para a concessão de assistência judiciária aos hipossuficientes, e essa lei ainda está em vigor, embora tenha passado por várias modificações ao longo dos anos para tornar mais acessível aos seus beneficiários (Brasil, 1950).

As Constituições de 1967 e a Emenda Constitucional de 1969 mantiveram a disposição em relação à assistência judiciária, prevendo que seria concedida aos necessitados na forma da lei. Isso gerou certa ambiguidade quanto à responsabilidade pela prestação da assistência, mas a Lei 1.060/50 deixava claro que era dever do Estado, tanto federal quanto estadual, concedê-la (Romero Júnior, 2016).

Durante o período de vigência da Constituição de 1969, muitos estados começaram a providenciar a instalação de serviços específicos de assistência judiciária, embora de forma mais ou menos dependente de outros órgãos da administração pública.

Foi somente com a Constituição de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã”, que a denominação  Defensoria Pública  foi mencionada pela primeira vez. O Artigo 134 estabeleceu que a Defensoria Pública é uma instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbida da orientação jurídica e da defesa dos necessitados em todos os graus. O Artigo 5º, LXXIV, garante que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (Brasil, 1988).

Essa Constituição trouxe avanços significativos no tema da assistência jurídica, principalmente ao prever que ela deve ser integral, abrangendo não apenas demandas judiciais, mas também orientação jurídica, atuação em ações coletivas e mediação, ampliando assim o acesso à justiça para todos os cidadãos.

3.1 O direito à justiça gratuita

O acesso à justiça gratuita é um elemento crucial para assegurar a equidade na participação no sistema judicial. Além de facilitar o acesso à assistência legal sem custos, o privilégio da justiça gratuita exime a parte beneficiária de arcar com despesas processuais, honorários advocatícios e outros encargos associados ao procedimento judicial (Barros, 2023).

Assim, é importante destacar atual Código de Processo Civil de 2015, que regula a matéria em questão, não estabelece critérios objetivos para a concessão do benefício da gratuidade de justiça (Brasil, 2015)[3]. Portanto, cabe ao Poder Judiciário interpretar o conceito jurídico insuficiência de recursos de acordo com as particularidades de cada caso específico.

É nesse sentido, Fraser (2009), apresenta uma perspectiva crítica e feminista sobre a justiça. Ela discute a necessidade de abordar não apenas a justiça distributiva, que trata da distribuição equitativa de recursos, mas também a justiça reconhecimento e a justiça representação. Fraser  (2009) argumenta que a justiça deve levar em consideração as identidades e as necessidades das diversas partes da sociedade, garantindo que todas sejam reconhecidas e representadas de maneira adequada.

3.2 Dos critérios para concessão da justiça gratuita e os seus efeitos

O primeiro passo para uma abordagem racional dos pressupostos para a concessão do benefício da gratuidade judiciária é estabelecer critérios claros para a aplicação da norma e determinar suas consequências, de modo a alcançar o objetivo de garantir direitos sem gerar desigualdades injustificadas.

Em casos extremos, é importante evitar que a gratuidade de justiça seja utilizada de forma indevida, possibilitando que ações sejam propostas sem que o litigante assuma o risco processual, o que caracteriza um verdadeiro abuso de direito e desvio de finalidade na aplicação da norma (Núñez, 2018).

Historicamente, a concessão do benefício da gratuidade de justiça tem sido associada à condição de hipossuficiência econômica, considerando-se necessitado todo aquele cuja situação financeira não lhe permita arcar com as custas do processo e os honorários advocatícios sem comprometer o próprio sustento ou o de sua família, conforme previa o parágrafo único do artigo 2º da Lei 1.060/50, que foi revogada Núñez, 2018).

Mesmo durante a vigência da Lei 1.060/50, parcialmente substituída pelo novo código processual civil que regulamenta a gratuidade judiciária, muitos Tribunais de Justiça[4] optaram por adotar critérios objetivos para a concessão do benefício, como, por exemplo, a análise da renda líquida do requerente, visando estabelecer um padrão decisório. Contudo, conforme jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça, concluiu-se que essa não seria a solução mais apropriada, tendo em vista a falta de previsão legal para tais critérios e a necessidade de avaliar os elementos específicos presentes nos autos de cada caso.

3.3  As diferenças entre Assistência Jurídica, Assistência Judiciária e Justiça Gratuita

Os conceitos de justiça gratuita e assistência judiciária são frequentemente confundidos como sinônimos, embora na realidade sejam distintos. Como observado por Castro (1987), essa confusão tem origem nos próprios textos legislativos, que utilizam as duas expressões de forma intercambiável, como se tivessem o mesmo significado.

O autor Fonseca (2021) traz o conceito de justiça gratuita, assistência judiciária e assistência jurídica, para o autor, o termo mais utilizado pela doutrina e jurisprudência é justiça gratuita, mas todos se referem ao atendimento às pessoas que necessitam de apoio legal. Vamos explorar as diferenças conforme as normas legais:

a) Justiça gratuita: Refere-se à isenção das despesas processuais e extraprocessuais, contanto que estas últimas sejam necessárias para o andamento do processo (Fonseca, 2021).

b) Assistência judiciária: Envolve o serviço gratuito de representação em juízo para a parte que solicita e tem deferida essa assistência. Em outras palavras, é o patrocínio gratuito da causa por um advogado (Fonseca, 2021).

c) Assistência jurídica: É um conceito mais abrangente e gratuito, pois inclui não apenas a assistência judiciária, mas também a consultoria e orientação jurídica. Isso significa que além de receber representação gratuita em juízo, a pessoa também pode receber orientações e consultas jurídicas sem custos (Fonseca, 2021)

É essencial esclarecer que existe uma clara distinção entre a relação assistido/prestador de assistência judiciária e cliente/advogado. Na primeira relação, ao contrário da segunda, não há uma escolha mútua: o assistido não escolhe seu representante legal, mas procura o órgão prestador de assistência judiciária porque este oferece um serviço gratuito (Grinover, 1999). Por sua vez, o órgão prestador atende o carente porque é sua função, diferentemente do advogado privado, que representa o cliente de acordo com os interesses deste.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando o tema abordado sobre o acesso à justiça e a análise equitativa da gratuidade de justiça no Poder Judiciário, torna-se evidente a importância de compreender a justiça dentro de um contexto mais amplo, que envolve não apenas o acesso aos tribunais, mas também a garantia de um processo legal e equitativo.

A partir das reflexões apresentadas sobre o conceito de justiça, percebemos que ele não é absoluto, variando de acordo com o contexto cultural e jurídico. A Constituição Federal de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã”, consagrou o acesso à justiça como um direito fundamental, refletindo um compromisso com a transformação das estruturas econômicas e sociais da sociedade brasileira.

O acesso à justiça, conforme abordado por diversos estudiosos, vai além do seu sentido literal, englobando diversos aspectos, como o direito a um processo equitativo, ao juiz natural, à celeridade processual e à fundamentação das decisões. É fundamental destacar que o acesso à justiça é um elemento essencial para a concretização dos direitos fundamentais e para a garantia da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da nossa ordem jurídica.

Nesse contexto, a teoria da justiça como equidade, proposta por John Rawls, surge como uma abordagem que busca garantir a igualdade material entre os indivíduos, estabelecendo princípios que visam ao bem comum e à distribuição equitativa de recursos. Essa teoria ressalta a importância de se alcançar um consenso sobre os princípios fundamentais que regem a sociedade, considerando as diversas identidades e necessidades dos seus membros.

Ao considerarmos os precedentes judiciais e o direito como integridade, percebemos a importância da coerência e da estabilidade nas decisões judiciais, garantindo a segurança jurídica e a justiça para os jurisdicionados. Os precedentes judiciais servem como guias para futuras situações conflituosas semelhantes, garantindo a igualdade de tratamento e a aplicação consistente das normas jurídicas.

Portanto, ao analisarmos o acesso à justiça sob a perspectiva da equidade, reconhecemos a necessidade de um sistema jurídico que garanta a todos os cidadãos o acesso efetivo à justiça, promovendo a igualdade de oportunidades e a realização dos direitos fundamentais, conforme preconizado pela nossa Constituição e pelos princípios da justiça como equidade e do direito como integridade.

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[3] Para que os destinatários da decisão judicial compreendam a interpretação dada a um conceito jurídico indeterminado no contexto do caso concreto, é essencial que o intérprete-julgador utilize expressões adicionais, como enunciados de interpretação, para esclarecer o significado atribuído ao conceito e para justificar o motivo específico de sua aplicação aos fatos do caso em questão (Núñez, 2018).

[4] BRASIL. AgRg no REsp 1486056/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06/04/2017, DJe 20/04/2017


1 Acadêmica de Direito. Artigo apresentado à Faculdade Fimca de Porto Velho como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito, Porto Velho/RO, 2024. E-mail: cristinalourrainy@gmail.com

2Professor Orientador. E-mail: fernando.torres@fimca.com.br.