THE ESSENCE OF THE CONSTITUTION AND JUDICIAL ACTIVISM: INTERPRETATION OR DENATURATION OF JUDICIARY ACTIVITY?
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11095690
Doralúcia Azevedo Rodrigues1,
Gabriela Martins Carmo2
RESUMO
O artigo em tela tem o escopo de analisar a teoria da essência da Constituição, formulada por Ferdinand Lassale, assim como discorrer sobre os efeitos do ativismo judicial no atual contexto brasileiro, para ao final explorá-lo com base na argumentação teórica de Lassale. Portanto, o presente estudo é relevante visto que trata de uma temática atual que muito interfere na vida de todos os brasileiros: o ativismo judicial. Para alcançar o objetivo pretendido o trabalho foi dividido em três tópicos : A teoria da essência da Constituição de Ferdinand Lassalle; Ativismo judicial do STF: interpretação Constitucional legítima ou Desnaturação da atividade do judiciário?Justificação do ativismo judicial sob o prisma da Teoria de Ferdinand Lassale. Ademais a metodologia utilizada foi de ordem bibliográfica, tendo a problemática sido respondida por meio da utilização de método indutivo, que possibilitou criar um entendimento concreto por meio de embasamentos abstratos. Ao final do estudo, concluiu-se que o Supremo Tribunal Federal embora não seja um representante eleito do povo tem exercido justamente a função de através de suas interpretações manter em conformidade a Constituição Real com a Constituição Escrita, não permitindo que esta vire uma folha de papel.
Palavras-chave: Essência da Constituição. Ativismo Judicial. Separação de Poderes. Supremo Tribunal Federal. Fatores reais de poder.
ABSTRACT
The article in question has the scope to analyze the theory of the essence of the Constitution, formulated by Ferdinand Lassale, as well as to discuss the effects of judicial activism in the current Brazilian context, to finally explore it based on Lassale’s theoretical argumentation. Therefore, the present study is relevant since it deals with a current theme that greatly interferes in the lives of all Brazilians: judicial activism. To achieve the intended objective, the work was divided into three topics: Ferdinand Lassalle’s theory of the essence of the Constitution; STF Judicial Activism: Legitimate Constitutional Interpretation or Misrepresentation of the Judiciary’s Activity? Justification of Judicial Activism Under the Prism of Ferdinand Lassale’s Theory. Furthermore, the methodology used was of a bibliographic nature, with the problem having been answered through the use of an inductive method, which made it possible to create a concrete understanding through abstract foundations. At the end of the study, it was concluded that the Federal Supreme Court, although not an elected representative of the people, has precisely exercised the function of, through its interpretations, keeping the Royal Constitution in conformity with the Written Constitution, not allowing it to turn into a blank page paper.
Keywords: Essence of the Constitution. Judicial activism. Separation of Powers.Federal Court of Justice. Real power factors.
1. INTRODUÇÃO
Em meados do século XIX, o autor Ferdinand Lassale desenvolveu a brilhante obra “O que é uma Constituição?”, por meio da qual concluiu que, em essência, a Constituição de um país é caracterizada pela soma dos fatores reais de poder que regem uma nação.
Nesse contexto, trazendo a referida teoria para a atualidade que permeia o Estado Brasileiro, percebe-se que o fator real de poder caracterizado pelo Poder Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal – STF, tem ganhado cada vez maior relevância em sua atividade interpretativa que, por vezes, acaba sendo contra legem e decidindo em prol dos anseios sociais, que não são totalmente atendimentos pelos membros dos Poderes Executivo e principalmente Legislativo, em sua função legiferante.
Em suma, a justificativa para o presente estudo consiste na pertinência do tema no cenário atual, haja vista que a Constituição brasileira possui cerca de 34 (trinta e quatro) anos de vigência, porém, além de possuir mais de 100 (cem) emendas em seu texto originário, é de notória relevância a ocorrência da reinterpretação de seus dispositivos pelo Supremo, o que é retratado pelo ativismo judicial.
Ante o exposto, exsurge a seguinte pergunta-chave “A Teoria da essência da constituição de Ferdinand Lassalle justifica o ativismo judicial do STF?”, que se relaciona com as subperguntas: No que consiste a Teoria da essência da Constituição de Ferdinand Lassalle? O que é o ativismo judicial e com ele têm ocorrido nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal? O Supremo Tribunal Federal pode ser considerado um dos fatores reais de poder de Ferdinand Lassalle?
Partindo-se destes questionamentos, o presente trabalho divide-se em três tópicos principais:A teoria da essência da Constituição de Ferdinand Lassalle; Ativismo judicial do STF: interpretação Constitucional legítima ou Desnaturação da atividade do judiciário?Justificação do ativismo judicial sob o prisma da Teoria de Ferdinand Lassale.
O primeiro tópico objetiva discorrer sobre a Teoria da Constituição com base na argumentação teórica de Ferdinand Lassalle. Neste tópico se conceitua o que é uma Constituição para Ferdinand Lassale e o que são fatores reais de poder. Também se analisa qual a diferença de uma Constituição real para uma constituição escrita que por vezes não passa de, nos termos do autor, uma “folha de papel”.
Em seguida, no segundo tópico, traz-se o conceito do ativismo ou protagonismo judicial, assim como apresenta-se as posições antagônicas favoráveis e desfavoráveis ao referido instituto. No decorrer do tópico, são apresentadas as lições de autores como Barroso (2012), Mendes (2021) e Ramos (2010).
Ademais, expõe-se casos emblemáticos nos quais houve ativismo judicial, a fim de suprir possíveis omissões legislativas ou até mesmo atuar como se legislador fosse, com decisões contra legem, com a alegada finalidade de efetivar princípios do Estado Democrático Brasileiro, tais como a máxima efetividade dos direitos fundamentais, isonomia e proporcionalidade.
Finalmente, o terceiro tópico trata de explicar se é possível correlacionar a atual tendência de ativismo judicial no âmbito do STF com a argumentação teórica produzida na obra de Ferdinand Lassale. Assim, verifica-se se o STF é considerado um fator real de poder constituído pelo Poder Judiciário, e, se sim, se ele pode, através de sua função interpretativa, suprir necessidades sociais que surjam no decorrer do tempo e que não estejam diretamente abarcadas pelo texto legal.
Para tanto, foi realizada uma pesquisa de ordem bibliográfica, tendo a problemática sido respondida por meio da utilização de método indutivo, que possibilitou criar um entendimento concreto por meio de embasamentos abstratos.
Consoante será demonstrado com maior profundidade no decorrer dessa pesquisa, foi possível concluir pela relevância das decisões jurisprudenciais no atual contexto da sociedade brasileira para o fim de respeitar os direitos fundamentais do principal fator real de poder, consistente no povo, que é dotado de soberania conforme o próprio texto constitucional.
Ademais, conclui-se que embora a Teoria de Ferdinand Lassalle embase o ativismo judicial, ainda assim também pode-se fazer a crítica que também foi observado que tais decisões poderão ocasionar certa insegurança jurídica, mormente porque o Brasil não é um país pautado no common law, e tem seus preceitos jurídicos estabelecidos em textos escritos.
2. A TEORIA DA ESSÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO DE FERDINAND LASSALLE
A obra “O que é uma Constituição?” foi escrita por Ferdinand Lassalle em 1862 com o texto de duas conferências que ele fez em Berlim, em um agrupamento de cidadãos da cidade. Vale salientar que Ferdinand Lassalle era um socialista alemão que participou da revolução de 1848 de seu país tendo sido, inclusive, considerado o fundador do partido socialista alemão, o maior partido socialista da Europa.
Desta forma, a obra surgiu em um contexto bem específico, entretanto, a mesma visa a explicar a teoria conceitual de uma Constituição de forma atemporal. Ou seja, as ideias desenhadas pelo jurista alemão Ferdinand Lassalle se aplicam a qualquer Constituição, de qualquer país, em qualquer tempo da história.
Na obra, Ferdinand Lassalle inicia explicando que seu objetivo é desvendar propriamente no que consiste uma Constituição, já esclarecendo de início que a definição que ele busca não é a concepção simplesmente jurídica. Lassale esclarece que a Constituição não é simplesmente um pacto jurídico entre o rei e seu povo que estabelece os princípios básicos de um país e que se ater a esta resposta é enfrentar a questão apenas de forma superficial (LASSALLE, 2004, p. 37).
Sua missão nesta obra não é reconhecer os aspectos externos de uma Constituição, mas sim, a essência constitucional. Ou seja, descrever o que todas as Constituições possuem em sua concepção e essência. Para alcançar tal objetivo ele demonstra como uma definição estritamente jurídica é frágil, e, para isso, ele inicia a diferenciação entre uma Constituição e uma lei.
Tanto a lei como a Constituição necessitam de uma promulgação legislativa embora todos possam concordar que a Constituição não se configura em uma simples lei. Ademais, o povo não costuma reclamar quando o Poder Legislativo está emanando leis, mas quando surge a possibilidade de uma modificação constitucional todos tendem a ter receio de mudanças legais.
Nesse sentido, uma Constituição se diferencia por alguns aspectos: primeiro, a lei Constitucional tem que ser mais profunda que as demais leis; segundo, ela deve constituir o fundamento para a existência das outras lei; terceiro, as normas constitucionais são normas necessárias ao povo, já que ela possui uma força ativa para conduzir as demais leis. (LASSALLE, 2004, p. 40).
Tais peculiaridades já demonstram que a Constituição não se configura algo simples e que o critério de “pacto jurídico entre povo e rei” decai como fonte conceitual de uma Constituição já que toda lei, constitucional ou não, é um pacto nesse sentido.
Lassale então traz os fundamentos que forjam a Constituição e que as diferenciam das demais leis infraconstitucionais: os fatores reais de poder.
Estes fatores reais de poder ele define a priori como: a monarquia; a aristocracia; a burguesia; os banqueiros e a classe trabalhadora (juntamente com a pequena burguesia). Embora esses fatores ele tenha criado diante da realidade que vivia, que já não é exatamente a mesma que se vive no Brasil hoje, ainda assim faz-se importante analisar cada um desses pontos para se verificar mais à frente as similitudes com a realidade atual brasileira.
Quanto à monarquia, Lassalle traz a lembrança da importância e do impacto do rei na constituição por conta da obediência do exército ao monarca e ressalta (2004, p.43) : “ como os senhores vêem, um rei a quem obedecem o Exército e os canhões é um fragmento da Constituição”. Já no que tange a aristocracia, o jurista lembra o quantos esses nobres influenciam o rei e o exército, o que termina por deixar o exército por vezes também à sua disposição recaindo na mesma lógica do rei.
Sobre a burguesia, Ferdinand Lassalle explica que o grande capital produzido por esta classe que movimenta o comércio e o setor industrial são fundamentais para o funcionamento de toda a economia do país. Assim, excluir a burguesia do fator de poder seria desconsiderar que ela movimenta o país e gera empregos para a classe proletária que é quem compõe a maior parte da sociedade.
No que tange aos banqueiros, a lógica é muito semelhante a da burguesia. O governo para funcionar necessita de grandes quantidades de dinheiro e por vezes os impostos pagos pelo povo não geram capital de giro o suficiente ( e de forma imediata) para pagar contas do Estado. Nesse cenário, surgem os bancos para financiar tais valores e ajudar o governo a manter a economia funcionando.
Desta feita, se forem retirados os bancos a economia do país tende a parar de funcionar, e é por isso que eles também devem ser considerados fatores reais de poder de uma constituição, já que são fundamentais em um país. Vale salientar que é justamente esse o critério que o jurista utiliza para caracterizar um fator real de poder para a Constituição: seu caráter fundamental para o funcionamento da Nação.
Por fim, mas definitivamente não menos importante, Ferdinand Lassalle explica que a classe trabalhadora e a pequena burguesia são um fator real de poder, isto porque eles constituem a maioria da nação e um fragmento que embora tenha menor poder aquisitivo possui a capacidade de fazer um país parar de funcionar adequadamente.
Portanto, a classe mais humilde também é considerada um fragmento da Constituição ou um fator real de poder.
Conforme Lassale (2004, p. 48): “Eis aqui o que é, em essência, a Constituição de um país: os somatórios dos fatores reais de poder que vigoram nesse país”. Ou seja, na realidade brasileira este tema importa para que se perceba que diferentes classes sociais e instituições são o que formam a real Constituição Brasileira.
Sobre este ponto específico, convém sugerir alguns possíveis fatores reais de poder na realidade brasileira atual: o Poder Executivo, o Poder Legislativo, o Poder Judiciário, a população, os grandes empresários, os bancos, dentre outros. Dentro da complexa sociedade que o Brasil está inserido, cada um desses atores sociais ou dessas instituições possuem uma força vital para o funcionamento geral do país.
E por quê é importante refletir quais são esses fatores reais de poder no Brasil? Para poder refletir se a Constituição escrita corresponde à Constituição real do país. E é por isso que convém ressaltar o escrito de Lassale ainda sobre a Constituição Real:
Vimos, senhores, que relação guardam entre si as duas Constituições de um país, essa Constituição real e efetiva, formada pelo somatório de fatores reais e efetivos que vigoram na sociedade, e essa outra Constituição escrita, à qual, para distingui-la da primeira, daremos o nome de folha de papel. (LASSALLE, 2004, p. 53)
Dessa forma, Lassale começa a distinguir a Constituição real que seria a formada pelos fatores já explicados da Constituição escrita, mostrando que a mais importante é a Constituição real. Ele frisa que a Constituição escrita por vezes é imposta e representa apenas uma folha de papel. Ainda sobre a temática, Lassalle aduz que:
Todos os países sempre têm e tiveram uma Constituição Real e efetiva e não há nada mais equivocado nem que leve a deduções mais desencaminhadas do que essa ideia tão extensa de que as constituições são uma característica peculiar dos tempos modernos. Não há tal coisa. Do mesmo modo e pela mesma lei de necessidade que todo corpo tem de uma constituição, sua própria constituição, boa ou má, estruturada de um modo ou de outro, todo país tem necessariamente, uma Constituição , real e efetiva, pois não se concebe país algum em que não imperem determinados fatores reais de poder, quaisquer que sejam. (LASSALLE, 2004, p. 55)
Desta forma, o jurista supracitado deixa clarividente que todo país possui sim uma Constituição, ainda que esta não seja escrita, posto que esta é fundamental para a existência de um país. Ademais, como já comentado, ele explica que por vezes a Constituição escrita não representa efetivamente os fatores reais de poder de uma nação, o que é um problema, pois esta deveria sempre representar um resumo da Constituição Real com seus princípios e instituições.
Inclusive, esta reflexão serve para gerar uma nova análise: em que situações uma Constituição escrita deve ser modificada? A resposta mais racional a este questionamento é: quando houver alguma modificação nos fatores reais de poder. Ou seja, se algumas das classes ou instituições que constituem os fatores reais de poder tiverem uma modificação substancial a Constituição real irá ser modificada e consequentemente a escrita deveria ser também. (LASSALLE, 2004, p. 57)
Para exemplificar, Lassalle traz a situação da constituição feudal e de como essa foi se modificando com o absolutismo e a da revolução burguesa. Ademais, o autor aduz que:
Nessas condições, eu já dizia, não há mais do que uma alternativa: ou o Governo toma a si a reforma da Constituição para pôr a Constituição escrita sintonizada com os fatores materiais de poder da sociedade organizada, ou esta, com seu poder inorgânico, se levanta para demonstrar mais uma vez, que é mais forte e mais pujante que o poder organizado, deslocando fatalmente os recursos organizados de poder desta sociedade, ou seja, os fundamentos sobre os quais a Constituição repousa, transplantando-a para a esquerda, com o mesmo empuxo e o mesmo grau de desvio que o Governo lhes imprimiria para a direita, sob uma ou outra forma, em caso de triunfo. (LASSALLE, 2004, p.75)
Um ponto que fica claro na explanação de Ferdinand Lassalle é que ele entende que a Constituição é uma carta política que deve sempre estar afinada com o que a sociedade de fato é se não esta deve ser reformada. Ele não acredita que a Constituição escrita deva ser um estímulo ao dever-ser, e sim, o próprio ser.
Inclusive, sobre esse ponto ele recebe duras críticas de Konrad Hesse que afirma o contrário, que “a Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas, também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas” (HESSE, 1991, p. 15).
E este é um ponto sensível na Teoria da Constituição de Lassale quando a trazemos para a realidade Brasileira, porque a Constituição do Brasil é considerada programática. Para além dessa classificação que já indica que ela é cheia de projeções futurística e metas, tem que se levar em consideração também que um dos fatores reais de poder que se tem aqui, o Supremo Tribunal Federal – STF, o órgão guardião da Constituição, faz muitas interpretações que causam verdadeiras mutações Constitucionais.
A questão é que pode o Supremo Tribunal Federal, sendo só um desses fazer este tipo de interpretação da Constituição, quando ele é um órgão não eleito e é apenas um dos fragmentos da Constituição? É justamente para analisar se isto é devido ou não sob o prisma da Teoria de Ferdinand Lassale que o próximo tópico deste trabalho visa analisar se o ativismo judicial brasileiro consiste em uma nova interpretação constitucional, ou, na verdade, uma nova constituição.
3. ATIVISMO JUDICIAL DO STF: INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL LEGÍTIMA OU DESNATURAÇÃO DA ATIVIDADE DO JUDICIÁRIO
Conforme já introduzido, o Supremo Tribunal Federal é o órgão responsável por fiscalizar e interpretar o cumprimento dos preceitos da Constituição Federal de 1988, a “Constituição Cidadã”. Embora não tenha seus Ministros eleitos pelo povo, como é o caso dos Poderes Executivo e Legislativo (tidos como Poderes propriamente políticos), o protagonismo do judiciário tem sido evidente.
Nesse sentido, o Supremo vem alternando momentos de maior e menor ativismo judicial ao longo de sua história, “compreendendo que a discricionariedade das medidas políticas não impede o seu controle judicial, desde que haja violação a direitos assegurados pela Constituição” (MENDES, 2021, p. 826).
Após esses breves apontamentos, é importante trazer a conceituação do ativismo judicial, o qual, para Luis Roberto Barroso, está associado a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e das finalidades da Constituição, interferindo no espaço de atuação do Executivo e Legislativo (BARROSO, 2012, p. 6). O mesmo autor continua, expondo que:
A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas. (BARROSO, 2012, p. 6)
Por ser o Brasil um país que adota o civil law, no qual a jurisprudência não é a principal fonte do Direito, o protagonismo do Poder Judiciário pode ser visto por meio de uma dupla perspectiva: uma forma legítima de interpretação constitucional ou uma extrapolação dos limites da função do Poder Judiciário, adentrando até mesmo na competência dos demais Poderes.
Sobre a Separação dos Poderes, segundo José Afonso da Silva, destacam-se os seguintes fundamentos: (i) especialização funcional, pois cada órgão é especializado no exercício de determinada função; (ii) independência orgânica, sendo necessário que cada órgão seja independente, sem subordinação, devendo atuar num plano horizontal (SILVA, 1987, p. 73).
Para parcela da Doutrina, é justificável “a recusa dos tribunais de se manterem dentro dos limites jurisdicionais estabelecidos para o exercício de seus poderes” (MARSHALL, 2002, p. 201). Sob um viés eidético, haja vista que o ativismo judicial busca efetivar importantes princípios do Estado Democrático Brasileiro, a exemplo da máxima efetividade dos direitos fundamentais, isonomia e proporcionalidade. (MARSHALL, 2002, p. 201). Todavia, para autores como Elival da Silva Ramos:
As práticas ativistas são negativas, pois consiste “no exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Para Ramos, tais práticas importam na desnaturação da atividade típica do Poder Judiciário, em detrimento dos demais Poderes (RAMOS, 2010, p. 129).
Sem buscar esgotar a matéria e opinar sobre qual das posições doutrinárias é a mais coerente, certo é que, no Brasil, o protagonismo judicial tem ganhado relevância não só na comunidade jurídica, como também na mídia, fazendo com que os próprios Ministros e as suas decisões se tornem reconhecidos nacionalmente.
A interpretação constitucional, seja ela entendida como legítima ou ilegítima, por possivelmente extrapolar a Separação de Poderes, tem, de certa forma, garantido anseios de alguns dos fatores reais de poder, eis que, embora a Constituição Federal seja analítica e escrita, seu texto não acompanhou nem previu expressamente todas as possibilidades jurídicas que permeiam a vida da população.
Cabe registrar ainda que as instituições como o Poder Executivo e o Legislativo estão passando por um momento de crise e descrédito, sobremaneira em razão do lastro de corrupção que assola o país, o que acaba por legitimar que o Poder Judiciário, tido como “imparcial”, adentre em matérias legislativas como forma de efetivar direitos fundamentais constitucionais (JACINTO e MAIA, 2019).
Nessa toada, é importante mencionar alguns casos de ativismo judicial relevantes na história brasileira.
Por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI n.º 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n.º 132, o STF proferiu decisão histórica reconhecendo a homoafetiva, mesmo sem previsão legal, utilizando-se da mutação constitucional, para atender um anseio da sociedade para o qual o legislativo se manteve inerte.
Outro caso emblemático sobre tema que recentemente ressurgiu foi quando o STF, por meio da ADI n.º 4543, declarou a inconstitucionalidade do voto impresso, previsto no artigo 5º da Lei 12.034/2009, que altera as Leis nº 9.096/1995 (Lei dos Partidos Políticos), 9.504/1997 (Lei Eleitoral) e 4.737/1965 (Código Eleitoral), com base em princípios como a vedação ao retrocesso. Sem adentrar no mérito da referida decisão, sabe-se que esse julgado interfere em nítidos interesses políticos, o que demonstra como o protagonismo do STF pode intervir na esfera dos demais Poderes.
Por fim, cabe ainda citar dois casos polêmicos, nos quais o STF interviu em matéria de Direito Penal: a criminalização de homofobia como racismo e a possibilidade de interrupção na gravidez em caso de feto anencéfalo.
Primeiramente, a criminalização da homofobia como racismo ocorreu por meio do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO n.º 26 e do Mandado de Injunção – MI n.º 4733. Na votação, ficou vencido o Ministro Marco Aurélio, para o qual:
A Lei do Racismo não pode ser ampliada em razão da taxatividade dos delitos expressamente nela previstos. Ele considerou que a sinalização do STF para a necessária proteção das minorias e dos grupos socialmente vulneráveis, por si só, contribui para uma cultura livre de todo e qualquer preconceito e discriminação, preservados os limites da separação dos Poderes e da reserva legal em termos penais.3 (STF, 2022, online)
Ademais, o reconhecimento da possibilidade de interrupção da gravidez em caso de feto anencéfalo, sem necessidade de prévia decisão judicial, foi resultado do julgamento da ADPF n.º 54.
Nesse contexto, em contraditoriedade ao julgamento, merece destaque o Parecer do ex-Ministro do STF Néri da Silveira, proferido em resposta à consulta da União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro, que defende não ser admissível que:
No bojo de procedimento de controle concentrado de constitucionalidade de normas, as quais explicitamente regulam instituto jurídico penal, com contornos específicos, se venha a instituir hipótese outra excludente de punição:
[…] quando o legislador, de forma inequívoca e estrita, alinha os casos em que o crime em referência não se pune, máxime, na espécie, diante da existência de proposta legislativa em exame no Congresso Nacional. Não tenho como possível, desse modo, o Poder Judiciário fixar juízo, de natureza normativa, antecipando-se à deliberação dos outros Poderes Políticos, a tanto competentes, excluindo em decisão, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, do âmbito de incidência de normas infraconstitucionais anteriores à Constituição vigente, a situação em foco que, de resto, em princípio, está envolta em questões de fato pendentes de comprovação técnica complexa.4
Outro caso similar a este último foi o julgamento do Habeas Corpus n.º 124.306, cuja decisão não é vinculante, no qual se decidiu que o aborto realizado até o primeiro trimestre de gestação não é ilícito, pautando-se na violação à autonomia da mulher, ao direito à integridade física e psíquica, aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, ao direito à igualdade de gênero, dentre outros fatores.
Segundo leciona o ex-ministro do STF, Néri da Silveira, em seu Parecer proferido em resposta à consulta da União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro sobre o tema debatido na ADPF n.º 54, que tratou da interrupção da gestação quando constatado que o filho sofre de anencefalia,
Isso posto, cientes de que o presente trabalho não esgota por inteiro o assunto, bem como somente discutirá o ativismo judicial sob o prisma da teoria de Lassalle no próximo tópico, é inegável que o protagonismo do Judiciário trouxe avanços que conformam os anseios dos fatores reais de poder ao contexto jurídico, porém, para tanto, faz-se necessária a imposição de limites concretos, a fim de que o Supremo não ultrapasse sua própria competência constitucional.
4. JUSTIFICAÇÃO DO ATIVISMO JUDICIAL SOB O PRISMA DA TEORIA DE FERDINAND LASSALE
A Constituição Federal de 1988, para possuir consonância com a teoria de Ferdinand Lassale, necessita estar em harmonia com os fatores reais de poder, ou seja, não pode destoar da realidade social. Logo, a Constituição deve ser apta a reger as relações entre o público e o privado, além de permitir a efetivação do mínimo necessário para uma vida digna aos cidadãos, vez que o poder emana do povo.
É possível correlacionar a atual tendência de ativismo judicial no âmbito do Supremo Tribunal Federal com a argumentação teórica produzida na obra de Ferdinand Lassale, vez que o fator real de poder constituído pelo Poder Judiciário pode, através de sua função interpretativa, suprir necessidades sociais que surjam no decorrer do tempo e que não estejam diretamente abarcadas pelo texto legal.
Nessa esteira, consoante o escólio de Daniel Mitidiero:
[…] a Corte Suprema visa à promoção da unidade do Direito tanto para resolver uma questão jurídica de interpretação controvertida nos tribunais como para desenvolver o Direito diante das novas necessidades sociais, outorgando adequada solução para questões jurídicas novas. (MITIDIERO, 2017, p. 79)
Ou seja, o Supremo Tribunal Federal tem essa função de guardião da Constituição e a exerce através das interpretações que faz da Lei. E aqui já foi falado que o Poder Judiciário é considerado um dos fatores reais de poder. Diante disso, retoma-se a uma pergunta dos tópicos anteriores e questiona-se: pode o Supremo Tribunal Federal, quando ele é um órgão que não foi eleito, ser um dos fragmentos da Constituição? Pode o Supremo Tribunal Federal ser considerado um dos fatores reais de poder de Ferdinand Lassalle?
Tendo em vista que como Corte Suprema do Poder Judiciário Brasileiro, torna-se assim o próprio STF um representante do Poder Judiciário que é sim um dos fatores reais de poder no país, especialmente quando se considera que ele é o próprio guardião da Constituição escrita.
Por tudo isso, sim, o STF pode e deve ser considerado um dos fatores reais de poder da Constituição Real, afinal, a última palavra interpretativa sobre ela advém dele. Então é fácil perceber que a Teoria da Constituição de Ferdinand Lassalle justifica o ativismo judicial, mas aqui cabem algumas ressalvas como a que é feita por Jacintho e Maia :
Nesse passo, é possível visualizar tanto na excessiva produção legislativa, quanto no ativismo judicial, vontades e interesses subjacentes de inequívoco jogo político, mormente quando se percebe que ao povo, legítimo detentor do poder, consoante a própria Constituição, fora relegado o papel de mero espectador. Em outras palavras, a atuação proativa de um órgão nos demais poderes da República, deveria, ou poderia, ser feita mediante a provocação da participação popular. (JACINTHO; MAIA , 2019, p. 388)
E de fato é importante sempre se considerar que o principal detentor do poder constitucional deveria ser o próprio povo. Assim, é importante lembrar que embora o STF seja um fragmento da Constituição, ele deve sempre buscar representar os interesses populares, posto que onze cidadãos não eleitos mas organizados não devem conter mais poder do que toda uma sociedade. Especialmente porque é importante que o ativismo judicial seja uma exceção , e não uma regra, para que não se gere insegurança jurídica.
5. CONCLUSÃO
Conforme explicado na introdução deste estudo, objetivava-se responder alguns questionamentos: No que consiste a Teoria da essência da Constituição de Ferdinand Lassalle? O que é o ativismo judicial e com ele têm ocorrido nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal? O Supremo Tribunal Federal pode ser considerado um dos fatores reais de poder de Ferdinand Lassalle? E dessa forma responder ao questionamento : A Teoria da essência da constituição de Ferdinand Lassalle justifica o ativismo judicial do STF?.
Desta forma, se esclareceu aqui que a Teoria da Constituição de Ferdinand Lassalle consiste em afirmar que a Constituição mais importante é a real e não a escrita, e que, esta Constituição Real teria que ser composta pelos fatores reais de poder para não ser apenas uma “folha de papel”.
Esclareceu-se também que o ativismo judicial é um fenômeno de uma participação mais ampla e intensa do Judiciário que visa garantir Direitos e que causa uma certa interferência na função do poder legislativo. Viu-se também que o ativismo mantém a Constituição escrita mais próxima da Constituição Real, mas que ele pode gerar insegurança jurídica.
No que tange ao terceiro questionamento : O Supremo Tribunal Federal pode ser considerado um dos fatores reais de poder de Ferdinand Lassalle? Entendeu-se nessa análise que sim, já que este é considerado a guarda da Constituição e o responsável por interpretá-la.
E, por fim, assim embasado nas demais reflexões supracitada, pode-se concluir que a Teoria da Essência da Constituição justifica sim o ativismo Judicial do STF. Primeiro porque o Supremo Tribunal Federal também é um fator real de poder, e depois porque este tem mantido viva a Constituição Real em conformidade com a Constituição escrita do povo Brasileiro.
Vale salientar apenas de forma derradeira que mesmo assim o ativismo judicial deve ser visto com cautela e diante de casos excepcionais para não gerar uma insegurança jurídica no país, terminando por fazer com que o STF tenha o poder de subverter a vontade dos demais fatores reais de poder da sociedade.
REFERÊNCIAS
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HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.
JACINTHO, Jussara Maria Moreno; MAIA, Eduardo Gomes Ribeiro Maia.ATIVISMO JUDICIAL: VONTADE DE PODER OU VONTADE DE CONSTITUIÇÃO? UMA LEITURA DO INSTITUTO À LUZ DO DIÁLOGO HESSE-LASSALE. Disponível em: <https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/revistadireito/article/view/14033/10535> Acesso em 22 dez. 2022.
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1Mestranda em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza – UNIFOR.
2Mestre em Direito, Processo e Desenvolvimento pela Unichirstus. Doutoranda em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza – UNIFOR.