PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11069240


Fernando Carneiro de Castro1
Vitor Martins Cortiço2


Resumo

O princípio da insignificância no direito penal brasileiro refere-se à possibilidade de o magistrado absolver o réu de pena quando o fato tiver escassa ofensividade social ou lesividade jurídica. Esse princípio fundamenta-se na ideia de que o direito penal deve reprimir apenas condutas realmente lesivas, especialmente quando capazes de causar prejuízos relevantes. Através dele, o Estado não deve exercer a sanção penal em casos onde sua intervenção não se justifica, em razão da pequenez do ilícito. O objetivo principal da pesquisa é analisar o princípio da insignificância no ordenamento jurídico brasileiro, investigando a sua evolução histórica, fundamentos teóricos e práticos, bem como as principais controvérsias e desafios relacionados à sua aplicação. Propõe-se, assim, investigar como os tribunais brasileiros têm utilizado o princípio da insignificância em suas decisões, quais são os critérios adotados para avaliar a insignificância da conduta e como esses critérios têm sido aplicados na prática.

Palavras-chaves: princípio da insignificância; direito penal brasileiro; aplicação jurisprudencial.

 Abstract

The principle of insignificance in Brazilian criminal law refers to the possibility of the magistrate acquitting the defendant of the penalty when the fact has little social offensiveness or legal harm. This principle is based on the idea that criminal law should only repress conduct that is truly harmful, especially when it is capable of causing significant damage. Through this principle, the state should not impose criminal sanctions in cases where its intervention is not justified, due to the smallness of the offense. The main objective of this research is to analyze the principle of insignificance in the Brazilian legal system, investigating its historical evolution, theoretical and practical foundations, as well as the main controversies and challenges related to its application. It is thus proposed to investigate how Brazilian courts have used the principle of insignificance in their decisions, what criteria have been adopted to assess the insignificance of conduct and how these criteria have been applied in practice.

Keywords: principle of insignificance; Brazilian criminal law; jurisprudential application.

1. INTRODUÇÃO

No âmbito do direito penal brasileiro, o princípio da insignificância é uma ferramenta relevante para a análise da proporcionalidade da intervenção estatal diante de condutas aparentemente transgressoras. Fundamentado na premissa de que o direito penal deve se restringir a reprimir apenas condutas verdadeiramente lesivas, o princípio da insignificância visa a proteger os cidadãos da sanção penal em situações em que a ofensividade social ou a lesividade jurídica do fato são mínimas.

O objetivo geral da pesquisa é analisar o princípio da insignificância no ordenamento jurídico brasileiro. Como objetivos específicos, investigamos a evolução histórica do princípio da insignificância no direito penal brasileiro, desde suas origens até sua consolidação atual. Além disso, analisamos os fundamentos teóricos que embasam o princípio da insignificância, destacando sua relação com outros princípios e valores do ordenamento jurídico. Também examinamos as práticas jurisprudenciais dos tribunais brasileiros no que diz respeito à aplicação do princípio da insignificância, identificando os critérios adotados para avaliar a insignificância de uma conduta e os padrões utilizados na tomada de decisões.

Nesse contexto, torna-se imperativo investigar como os tribunais brasileiros empregam o princípio da insignificância em suas decisões, quais critérios são adotados para avaliar a insignificância de uma conduta e como esses critérios são aplicados na prática judiciária.

Ao examinar esses aspectos, compreendemos melhor a essência e os limites desse princípio fundamental do direito penal, bem como seu impacto na garantia dos direitos individuais e na preservação da ordem pública.

A pesquisa é realizada por meio da revisão de literatura, valendo-se das principais plataformas de busca de artigos e livros, como o Google Acadêmico e o Scielo, para reunir o arcabouço teórico necessário. Além disso, consultamos os sites dos Tribunais Superiores do STF e STJ para identificar qual é a posição e os critérios predominantes nessas cortes. Estabelecemos um limite temporal dos últimos 50 anos, que, todavia, será excepcionalizado diante de obras clássicas.

2. TRAJETÓRIA HISTÓRICA E ASPECTOS CONCEITUAIS DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

A doutrinação do princípio da insignificância percorre um caminho histórico ligado ao desenvolvimento do corpus juris penal, emergindo como um contraponto ao poder discricionário estatal e à rigidez normativa.

Conforme analisado por Florenzano (2018), sua origem se remete ao cerne do princípio da legalidade, o qual estabelece que não é possível configurar um delito sem a devida submissão a uma previsão legal, nem é admissível impor uma pena sem a prévia e específica previsão normativa, erigindo, dessa forma, uma sólida barreira contra o exercício arbitrário do poder punitivo.

Não obstante, Silva (2008), em uma meticulosa análise histórica, suscita questionamentos sobre a origem histórica da norma à luz do Direito Romano. Ao estabelecer uma relação entre o Princípio da Insignificância e a evolução do Princípio da Legalidade.

 Conforme proposto pelos jusfilósofos do Iluminismo, ou ao interpretá-lo como uma reinterpretação da máxima mínima non curat praetor, concebida pelo pensamento liberal e humanista dos juristas renascentistas, torna-se evidente que sua gênese não se alinha necessariamente ao contexto romano (Silva, 2008).

Com efeito, sua essência encontra uma ressonância mais sólida com o pensamento jurídico dos humanistas que lutavam contra o absolutismo e a rigidez da lei penal.

No curso contínuo do tempo, observa-se um crescente interesse em estabelecer uma sólida fundamentação normativa para a determinação do ilícito, o que desencadeou um amplo e profundo debate sobre a relevância das condutas e das sanções no contexto jurídico.

Mesmo quando formalmente subsumidas às categorias da tipificação criminal, condutas de mínima lesividade surgem como desafios prementes à efetivação da norma penal, uma vez que sua insignificância não se mostra suficiente para justificar a intervenção estatal (SANTOS, 2018).

Logo, este questionamento sobre a proporcionalidade da resposta penal diante de atos considerados de pequena gravidade tem ecoado nos corredores do direito, levando à reflexão sobre a adequação das medidas punitivas em relação à sua finalidade de proteção social e à preservação da dignidade humana.

Praxedes (2019) ressalta que a saga histórica desse princípio está impregnada da incansável persistência de figuras proeminentes, a exemplo de Claus Roxin, cujo árduo trabalho incessante culminou na sua consolidação e aprimoramento.

Sob a influência dos desafios enfrentados no período pós-Segunda Guerra Mundial, especialmente no âmbito dos delitos econômicos de menor magnitude, Roxin insurgiu como uma figura seminal, deixando um legado de contribuições substanciais para o avanço tanto teórico quanto prático deste instituto jurídico (Praxedes, 2019).

Deste modo, esse engajamento foi importante para a compreensão e a aplicação efetiva do princípio da insignificância, promovendo assim uma maior justiça e equidade no sistema penal.

A origem histórica deste princípio continua a ser objeto de acalorados debates entre os eruditos jurídicos. Enquanto alguns sustentam sua ascendência no Direito Romano, outros indicam seu surgimento em contextos mais contemporâneos, como uma resposta às demandas sociais e econômicas do período pós-conflito mundial.

No epicentro dessa encruzilhada de perspectivas, Hass e Chaves Junior (2013) atribuem a primogenitura deste princípio ao Direito Romano, por meio do brocardo “minima non curat praetor”.

Na tessitura histórica daqueles tempos, tal brocardo sugeria que o pretor não deveria se envolver em questões delitivas de ínfima relevância, evidenciando, assim, a emergência inicial do conceito de insignificância no contexto jurídico romano, o qual ressalta a importância de reconhecer as raízes históricas do princípio da insignificância e sua continuidade ao longo da evolução do direito (Hass; Chaves Junior, 2013).

Após os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial, no campo da Filosofia do Direito, surge um movimento de transcendência do paradigma jus positivista, com o objetivo de integrar avaliações axiológicas à estrutura normativa como uma resposta às atrocidades e injustiças presenciadas durante o conflito, buscando uma abordagem mais holística e ética na concepção e aplicação do direito.

Neste contexto, de acordo com a análise de Praxedes (2019), observa-se uma reaproximação entre as ciências jurídicas e sociais, como Sociologia e Economia, que catalisa o surgimento de um novo modelo de apreensão do Direito.

Sob essa nova perspectiva, os conceitos jurídicos são interpretados à luz de suas funcionalidades na sociedade, transcendendo, assim, a abordagem tradicionalmente lógico-positivista, em favor de uma compreensão interdisciplinar, melhorando a compreensão da evolução do direito, reconhecendo sua interconexão com outros aspectos da vida social e cultural (Praxedes, 2019).

Estevam (2018) atribui a instauração desse movimento a Claus Roxin. Segundo o autor, a essência do Direito Penal reside na salvaguarda subsidiária dos bens jurídicos. Consequentemente, ações que resultem em lesões ínfimas aos objetos jurídicos protegidos pela norma penal devem ser consideradas como irrelevantes no âmbito penal. A aplicação desse princípio conduz à tipificação de eventos penalmente atípicos, fortalecendo assim a noção de proporcionalidade e justiça na aplicação do direito penal.

Nesse cenário, delinearam-se as primeiras diretrizes do princípio da insignificância como elementos excludentes da tipicidade, os quais foram posteriormente integrados ao ordenamento jurídico vigente.

Como observado por Silva e Leite (2023), sob a tutela intelectual de Roxin, advogou-se pela adoção de uma interpretação restritiva, que se mostrou categórico para a atualização da função constitucional do Direito Penal e sua natureza fragmentária.

Nessa linha de pensamento, tal abordagem concentrou-se conceitualmente apenas no âmbito de punibilidade essencial para a proteção do bem jurídico, promovendo assim uma maior congruência entre os preceitos legais e os princípios constitucionais, e resguardando a proporcionalidade na aplicação das sanções penais (Silva; Leite, 2023).

Nota-se que essa evolução doutrinária, além de conferir uma nova roupagem ao Direito Penal, também assentou as bases para uma compreensão mais sólida e equilibrada das relações entre o poder estatal e o indivíduo, garantindo, assim, uma maior efetividade aos princípios fundamentais da justiça e da proporcionalidade.

Dentro desse contexto, emerge com destaque o denominado Princípio da Insignificância, que, em uma vasta gama de tipos penais, possibilita a exclusão, desde o início, de danos de pequena magnitude.

Piloni e Franco (2019) enriquecem este período histórico ao salientarem que, a partir da era iluminista, a modernidade testemunhou o surgimento de uma ciência dedicada à racionalização do Direito Penal, contrapondo-se aos abusos do poder punitivo estatal.

 As práticas violentas e arbitrárias na definição e punição de condutas criminosas, ao término do século XVII, foram objeto de revisão e gradual substituição pela dogmática penal, a qual passou a estabelecer parâmetros claros para a interpretação e aplicação da lei, promovendo, desse modo, uma maior segurança jurídica e equilíbrio no sistema penal (Piloni; Franco, 2019).

Silva e Leite (2023) ressaltam que, embora tenha sido reconhecido como parte integrante do ordenamento jurídico nacional, o princípio da insignificância foi mencionado pela primeira vez em um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) durante o Habeas Corpus nº 66.869-1/PR, em dezembro de 1988.

Nessa ocasião, a defesa solicitou o trancamento de uma ação penal movida contra sua cliente, argumentando a ausência de justa causa para a persecução penal devido à insignificância da lesão relatada no laudo pericial, marcando assim o advento do reconhecimento e aplicação do princípio da insignificância nos tribunais brasileiros.

É perceptível que a evolução do princípio da insignificância no âmbito do direito penal tem sido forjada pelo contexto histórico e pela imperatividade de harmonizar o poder estatal com os direitos individuais.

As distintas perspectivas acerca de sua origem evidenciam a complexidade e a profundeza dos debates jurídicos, espelhando a diversidade de abordagens e interpretações que permeiam essa temática.

3. PRINCÍPIOS CONEXOS

A dignidade da pessoa humana, consagrada como princípio basilar da ordem constitucional brasileira, revela-se como o sustentáculo sobre o qual se erguem os pilares do Estado Democrático de Direito.

Explicitamente prevista no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), essa dimensão ético-jurídica transcende o mero enunciado normativo, assumindo a essência indelével que informa toda a atividade estatal e, em especial, a atuação do sistema penal.

 Nesse contexto, a dignidade humana não se restringe a um conceito abstrato ou a uma mera diretriz jurídica, mas constitui-se como o núcleo axiológico que permeia todas as relações jurídicas, pautando a conduta dos agentes estatais e orientando a aplicação das normas.

De maneira que adquire uma relevância ainda mais premente no âmbito penal, onde se desvelam as tensões entre o poder punitivo do Estado e os direitos individuais relacionados à liberdade do cidadão.

É nessa seara que o princípio da dignidade humana se revela como um escudo protetor contra quaisquer excessos estatais, funcionando como um contraponto indispensável diante da vulnerabilidade inerente à condição de pessoa privada de liberdade.

Sob essa ótica, ressoam as palavras de Mello (2002), que destacam a função singular desse princípio como salvaguarda contra a desumanização do indivíduo no contexto penal.

Portanto, a dignidade da pessoa humana não se limita a uma mera diretriz normativa, mas constitui-se como o substrato axiológico que informa e dá sentido a todo o ordenamento jurídico, pois seu respeito e proteção não devem ser vistos como meras opções discricionárias, mas sim como deveres inarredáveis do Estado e de todos aqueles que atuam no campo do Direito.

 A ponderação do princípio da dignidade da pessoa humana emerge como uma necessidade no âmbito da imposição de penas, convocando a uma reflexão constante sobre sua pertinência e, principalmente, sobre sua justa medida

O princípio da proporcionalidade emerge como uma resposta aos horrores perpetrados durante os anos sombrios da Segunda Guerra Mundial. Dias (2009) destaca que, como se a história, ainda ecoando os clamores daqueles que sofreram sob regimes desumanos, compelisse a adotar uma abordagem mais humanitária e equitativa nos sistemas jurídicos.

Marques (2010), ao ressaltar a origem desse princípio, evoca as feridas ainda abertas pela violação sistemática dos direitos fundamentais durante aquele período catastrófico da história. Consolidado constitucionalmente, tanto na Alemanha quanto em outras nações, ele representa um compromisso ético e moral de evitar a repetição de tais atrocidades.

No contexto brasileiro, o princípio da proporcionalidade assume a responsabilidade de evitar punições que ultrapassem o limite necessário, transcendendo de uma natureza meramente jurídica para tornar-se um lembrete de que o Estado deve exercer seu poder punitivo com sensibilidade e justiça (Marques, 2010).

É um chamado para que se reconheça o valor inerente a cada indivíduo, mesmo aquele que tenha cometido transgressões à lei, e para reafirmar nossa humanidade compartilhada, fundamentada no respeito mútuo.

No emblemático caso em uma de suas primeiras aplicações pelo Supremo Tribunal Federal, em 1993, ao suspender uma lei que exigia a presença do consumidor no momento da pesagem de botijões de gás para entrega, como observado por Gomes (2003), tornou-se evidente a relevância do princípio da proporcionalidade no controle de constitucionalidade das leis no Brasil.

 Assim, a partir dessa decisão, vislumbra-se que ele funciona como um escudo contra medidas legislativas excessivas ou desproporcionais, destacando sua essencialidade na proteção dos direitos individuais e na preservação do equilíbrio entre os poderes estatais.

No escopo desta análise, ressalta-se a função do princípio da proporcionalidade no universo do direito penal, especialmente no contexto desta pesquisa, que leciona contra os possíveis excessos perpetrados tanto pelo legislador quanto pelo magistrado durante a fase de dosimetria penal.

É essencial que a vasta gama de interpretações e definições que circundam o princípio da proporcionalidade. Segundo Bitencourt (2018), este princípio é a essência da aplicação justa e equilibrada da lei, garantindo uma correlação adequada entre a conduta criminosa e a pena aplicada, sem prejudicar a dignidade humana ou violar a integridade física e psicológica dos condenados.

Logo, esse princípio não apenas serve como critério e parâmetro de valor, mas também possibilita a avaliação da aplicabilidade de medidas legislativas, administrativas ou judiciais específicas, permitindo analisar a adequação e a necessidade de uma determinada medida, bem como verificar se alternativas menos impactantes poderiam ser adotadas em substituição às medidas implementadas pelo governo (Bitencourt, 2018).

Ressalta-se que a vedação ao excesso ao debater o princípio da proporcionalidade visa evitar a imposição de sanções desproporcionais e garantir a proteção adequada dos direitos resguardados pela norma penal, em vista de os direitos fundamentais não se limitarem à imposição de restrições; também servirem como escudo contra abusos estatais.

Conforme destacado por Marques (2010), no cenário jurídico em questão, o princípio da proporcionalidade é uma ferramenta para avaliar tanto os excessos cometidos pelo Estado quanto a ausência de proteção dos direitos fundamentais, permitindo a identificação e declaração de inconstitucionalidade de leis penais que transgridam preceitos constitucionais.

Portanto, no momento de proferir uma sentença, o magistrado leve em conta não apenas os dispositivos legais aplicáveis, mas também os princípios fundamentais que regem o sistema jurídico, todos intrinsecamente vinculados à dignidade da pessoa humana.

Quando uma pena é aplicada de forma desproporcional em relação à gravidade do delito, isso não apenas viola preceitos legais, mas também agride diretamente a dignidade dos envolvidos no processo judicial. Menciona-se também o princípio da lesividade, que clama por uma análise da relação entre os ônus e os benefícios decorrentes da imposição da pena criminal.

Segundo Silveira (2010), essa premissa impõe a necessidade de equilibrar o bem jurídico protegido pela norma penal com os bens jurídicos afetados pela aplicação da sanção penal, levando em conta também o estigma social frequentemente associado às condenações criminais.

Nesse contexto, desponta o princípio da intervenção mínima como um guardião seletivo dos valores mais preciosos à sociedade, zelando pela preservação criteriosa da ordem jurídica. A simples cogitação de ignorar essa salvaguarda, expondo tais valores às forças caóticas da transgressão, evoca reminiscências de um passado sombrio, anterior à consolidação do Estado Soberano (Veiga; Bach, 2014).

Sob os ensinamentos de Feldens (2018), nos dias atuais, é inadmissível conceber a punição ou a proteção de bens jurídicos que já tenham sido afetados por outras áreas do direito. É como negar a própria essência da justiça, relegando a sociedade a um estado de vulnerabilidade intolerável.

Portanto, a atuação do direito penal deve ser conduzida com extrema sensibilidade, reservando sua intervenção para aquelas condutas que verdadeiramente abalam os pilares fundamentais da sociedade. Conforme enfatizado por Bitencourt (2018), isso constitui o âmago do princípio da Intervenção Mínima, o princípio da última ratio.

Quando medidas civis ou administrativas se mostrarem capazes de restaurar a ordem violada, é por meio delas que se deve buscar a solução, reservando o recurso penal para os casos em que todas as outras alternativas se mostrarem ineficazes, evocando um sentimento inegável de urgência e imprescindibilidade (Bitencourt, 2018).

Há também o princípio da fragmentariedade ao lado da intervenção mínima onde se estabelece que somente condutas que representem ataques intoleráveis a bens jurídicos relevantes merecem a intervenção do sistema penal. Logo, o direito penal só deve intervir em uma parcela dos bens jurídicos, especialmente nos mais importantes (Feldens, 2018).

 Nesse contexto, o princípio da insignificância é como um desdobramento lógico da fragmentariedade, pois reconhece que condutas de mínima relevância ou insignificantes não devem ser objeto de intervenção penal (Feldens, 2018).

No entanto, a fragmentariedade também pode ser observada de forma inversa, ou “às avessas”. quando o direito penal perde o interesse em punir uma conduta que inicialmente seria considerada criminosa, devido à mudança dos valores sociais. Em outras palavras, o crime deixa de existir porque a incriminação se tornou desnecessária. Nesses casos, os demais ramos do direito, como o civil, o administrativo ou o regulatório, são considerados suficientes para resolver o problema sem a necessidade de intervenção penal (Feldens, 2018).

Paralelamente à fragmentariedade, surge o princípio da subsidiariedade, que estabelece que o direito penal deve ser a última instância, a última ratio de maneira que se outros ramos do direito forem capazes de resolver um conflito social de forma satisfatória, o direito penal não deve ser acionado.

Assim, a intervenção penal fica condicionada ao não uso dos demais ramos do direito, funcionando como um “soldado de reserva” que só é convocado quando todas as outras alternativas se mostram insuficientes ou ineficazes.

Portanto, considerando a preeminência da liberdade pessoal na constituição e a necessidade de justificar qualquer restrição a essa liberdade, incluindo aquelas decorrentes de sanções penais, é possível inferir que a restrição da liberdade pessoal pode ser elevada conforme a importância do bem constitucional violado.

4. A JURISPRUDÊNCIA E O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM CASO DE FURTO

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por intermédio de sua Quinta Turma, tem reiteradamente reforçado os mesmos fundamentos que há anos são consolidados pela Corte, evidenciando que nos casos de furto, especialmente quando envolvem majorantes e qualificadoras relacionadas ao repouso noturno, concurso de agentes e reincidência, a aplicação da causa de exclusão de tipicidade é afastada.

Este entendimento é ilustrado pela seguinte decisão:

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. FURTO MAJORADO PELO REPOUSO NOTURNO E QUALIFICADO PELO ROMPIMENTO DE OBSTÁCULO E CONCURSO DE PESSOAS (ART. 155, § 1º E § 4º, INCS. II E IV DO CP). PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. AGRAVO DESPROVIDO.

[…] III – Não se aplica o princípio da insignificância ao furto qualificado por escalada, arrombamento ou rompimento de obstáculo ou concurso de pessoas, durante o repouso noturno, dada a especial reprovabilidade da conduta. Agravo regimental desprovido. (STJ – AgRg no HC: 721216 SC 2022/0028140-8, Data de Julgamento: 25/10/2022, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 04/11/2022)

Observa-se que, em casos de delitos patrimoniais, o STJ adota o critério de 10% do salário-mínimo vigente à época dos fatos como parâmetro para a aplicação do Princípio da Insignificância

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a análise abrangente dos temas abordados neste estudo, concluiu-se que foi possível inferir conclusões expressivas para a ciência jurídica, em particular no âmbito do Direito Penal.

A diversidade de perspectivas sobre sua origem e aplicação refletiu a complexidade dos debates jurídicos contemporâneos, com o objetivo de promover uma atuação estatal ponderada e proporcional.

O princípio da insignificância, enquanto ferramenta de interpretação restritiva, visou evitar excessos punitivos e preservar a integridade do sistema jurídico, refletindo os valores fundamentais de um Estado Democrático de Direito e garantindo os direitos individuais dos cidadãos.

No segundo capítulo, a dignidade da pessoa humana foi analisada como princípio basilar do ordenamento constitucional brasileiro, permeando todas as relações jurídicas, especialmente no contexto do sistema penal.

Destacou-se sua relevância como escudo protetor contra os excessos estatais, garantindo a integridade dos direitos individuais diante do poder punitivo do Estado. A aplicação dos princípios da proporcionalidade e da insignificância no contexto penal emergiu como necessária para assegurar uma justiça equilibrada e respeitosa aos direitos fundamentais dos cidadãos.

Reflexões sobre a pena revelaram sua complexa função retributiva, preventiva e ressocializadora, corroborando a importância de uma abordagem contextualizada e sensível por parte dos magistrados. Ao proferir sentenças, deve-se considerar não apenas os dispositivos legais, mas também os princípios fundamentais que regem o sistema jurídico, todos intrinsecamente vinculados à dignidade da pessoa humana.

As jurisprudências estudadas forneceram um panorama consistente sobre a aplicação do princípio da insignificância em diferentes contextos criminais. Destacaram-se as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que reiteraram a inaplicabilidade desse princípio em casos de violência doméstica contra a mulher, bem como em crimes contra a administração pública.

Ademais, a jurisprudência demonstra a complexidade na aplicação do princípio da insignificância em crimes patrimoniais, especialmente no que diz respeito ao furto. O STJ estabeleceu critérios específicos, como o valor do objeto subtraído em relação ao salário mínimo vigente e a presença de circunstâncias agravantes, para determinar a aplicação desse princípio.

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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 721.216/SC. Data de Julgamento: 25 out. 2022. Quinta Turma. Data de Publicação: DJe 04 nov. 2022.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 713.415/SC. Relator: Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA. Data de Julgamento: 22 fev. 2022. Quinta Turma. Data de Publicação: DJe 25 fev. 2022.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.803.359/MG. Processo nº 2019/0076743-2. Relator: Ministro Joel Ilan Paciornik. Data de Julgamento: 06 fev. 2020. Quinta Turma. Data de Publicação: DJe 14 fev. 2020.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Habeas Corpus nº 333.195/MS. Relator: Ministro Ribeiro Dantas. Quinta Turma. Julgado em: 12 abr. 2016. Publicado em: DJe 26 abr. 2016.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso em Habeas Corpus nº 133043. Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA. Segunda Turma. Julgado em: 10 maio 2016.

TEIXEIRA, Tiago Augusto Eguchi; SILVA, Tiago Souza; OLIVEIRA, Marcelo Lima. A aplicação do princípio da insignificância no direito penal brasileiro. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, v. 8, n. 10, p. 1629-1641, 2022.


1Graduando em Direito pela Unievangélica.

2Professora de Direito pela Unievangélica