O DIREITO À CULTURA E PROTEÇÃO AOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11069203


Fabrício Carneiro de Castro1
Aline de Assis Rodrigues do Amaral Muniz2


Resumo

O presente estudo aborda a proteção dos direitos dos povos indígenas no Brasil e o Direito à cultura, com ênfase na legislação nacional relacionada a essa questão, destaca-se a necessidade de um tratamento legal diferenciado que reconheça as tradições e regras próprias dessas comunidades, garantindo o exercício efetivo de seus direitos, mesmo em situações que desafiam o interesse do Estado ou de forças econômicas, o arcabouço legal brasileiro e internacional resguarda os direitos indígenas, incluindo a consulta prévia e o respeito à ocupação tradicional de terras, no entanto, ainda há desafios na efetivação desses direitos, especialmente em relação à Declaração Universal dos Direitos Indígenas. O estudo também destaca avanços recentes na legislação brasileira, e a tendência de políticas de proteção e promoção dos direitos indígenas em substituição a abordagens integracionistas e assistencialistas, Dessarte, evidencia-se um longo caminho ainda a ser traçado.

Palavras-chaves: Cultura; Indígena; Direitos Brasileiros.

 Abstract

This study addresses the protection of the rights of indigenous peoples in Brazil and the Right to culture, with an emphasis on national legislation related to this issue, highlighting the need for differentiated legal treatment that recognizes the traditions and rules specific to these communities, guaranteeing the exercise effective of their rights, even in situations that challenge the interest of the State or economic forces, the Brazilian and international legal framework for protecting indigenous rights, including prior consultation and respect for traditional occupation of lands, however, there are still challenges in the realization of these rights, especially in relation to the Universal Declaration of Indigenous Rights. The study also highlights recent advances in Brazilian legislation, and the trend of policies to protect and promote indigenous rights in replacement of integrationist and welfare approaches, therefore, there is a long way to go.

Keywords: Culture; Indigenous; Brazilian Rights.

1. INTRODUÇÃO

No Brasil, a proteção dos direitos culturais e a preservação da diversidade étnica têm sido temas centrais no contexto jurídico e social, especialmente quando se trata dos povos indígenas, essas comunidades, detentoras de uma rica e ancestral cultura, enfrentam desafios constantes em relação à garantia de seus direitos e à preservação de suas tradições em um cenário marcado por conflitos socioambientais e disputas territoriais.

Dessarte, este estudo se concentra na análise do direito à cultura e na proteção dos povos indígenas no Brasil, considerando os aspectos legais, sociais e culturais que permeiam essa temática, foi dada uma ênfase particular à relação entre a preservação da cultura indígena e as políticas públicas, bem como aos desafios enfrentados pelas comunidades indígenas no exercício de seus direitos culturais.

O objetivo deste trabalho foi investigar como o direito à cultura é garantido e protegido no contexto dos povos indígenas no Brasil, analisando os mecanismos legais, as políticas públicas e os desafios enfrentados por essas comunidades.

Ao passo que foram os objetivos específicos: analisar a legislação brasileira relacionada aos direitos culturais dos povos indígenas, investigar as políticas públicas voltadas para a preservação da cultura indígena, identificar os principais desafios enfrentados pelos povos indígenas na proteção de sua cultura, avaliar o impacto das decisões judiciais e das medidas governamentais na promoção dos direitos culturais dos povos indígenas.

O problema da pesquisa residiu na seguinte problemática: Como o direito à cultura é garantido e protegido no Brasil, especialmente no contexto dos povos indígenas, e quais são os principais desafios enfrentados por essas comunidades nesse processo?

Este estudo utilizou uma abordagem qualitativa, com foco na revisão de literatura, foram consultadas fontes acadêmicas, legislação pertinente, documentos governamentais e relatórios de organizações não governamentais para analisar o panorama atual da proteção dos direitos culturais dos povos indígenas no Brasil. A análise foi realizada a partir de uma perspectiva crítica, buscando compreender as nuances e complexidades dessa questão e identificar possíveis lacunas ou áreas de melhoria nas políticas e práticas existentes.

2. ASPECTOS HISTÓRICOS DOS INDÍGENAS NO BRASIL

Compreender o passado dos povos indígenas brasileiros é realmente um desafio complexo devido à escassez e fragmentação das evidências históricas à medida que retrocedemos no tempo, recentemente, acadêmicos têm questionado a teoria da migração pela Beríngia como a única explicação para a ocupação das Américas. No início do século XVI, estima-se que havia uma vasta diversidade de povos indígenas, totalizando milhões de indivíduos. A chegada dos portugueses marcou o início da exploração e invasão de suas terras, resultando no desaparecimento de muitas comunidades devido a conflitos, doenças e escravidão (STRASSBURGUER, 2020).

A chegada dos primeiros navegadores portugueses ao território brasileiro em 22 de abril de 1500 é frequentemente retratada como um marco histórico positivo. No entanto, para os nativos que testemunharam esse evento, foi uma experiência de perplexidade e confusão. Eles viam as grandes embarcações e os forasteiros brancos como entidades celestiais ou malignas, desencadeando uma mistura de admiração, medo e incompreensão em relação aos recém-chegados (FIGUEIREDO, 2013).

O início do contato entre os portugueses e os nativos foi um momento de intensa curiosidade e admiração mútua, os habitantes locais ficavam fascinados pelos objetos e tecnologias trazidos pelos europeus, enquanto estes se encantavam com a diversidade da natureza brasileira e as habilidades dos povos indígenas, essa interação inicial foi marcada por uma troca cultural e comercial, onde ambos os grupos buscavam compreender e explorar as novidades trazidas pelo encontro (FIGUEIREDO, 2013).

Contudo, conforme explica Vila (2021), as disparidades culturais logo se evidenciaram, levando os colonizadores a tentarem impor seus costumes e religião aos indígenas. A imposição cultural por parte dos colonizadores, visando a assimilação dos nativos aos padrões europeus, resultou em conflitos e resistência por parte dos indígenas.

A realocação das aldeias para áreas urbanas, sobretudo para receber instrução religiosa, foi uma estratégia para promover a catequização e a aculturação dos povos autóctones, e, embora tenha sido adotada com a intenção de integrar os indígenas à sociedade colonial, evidencia as disparidades culturais e as tensões subjacentes que marcaram esse período histórico (VILA, 2021).

Paralelamente, a crescente demanda por mão de obra nas colônias portuguesas resultou na escravização dos povos indígenas. Inicialmente, essa prática era justificada como uma forma de compensação por bens materiais obtidos pelos colonizadores. Contudo, à medida que a colonização avançava, a escravização dos nativos tornou-se sistemática e generalizada, refletindo uma política de exploração e dominação (VILA, 2021).

Assim, a mão de obra indígena foi explorada nas fazendas e nos litorais, sustentando a economia colonial, enquanto expedições e bandeiras buscavam riquezas e escravizavam os nativos, circunstâncias que moldaram profundamente a história do Brasil e a trajetória dos povos indígenas.

De Sá (2019), explica que a transição do período pré para o pós-colonial revelou-se através das mudanças socioeconômicas e culturais, como a evolução da cerâmica dos povos Tupi e que serve como exemplo para identificar como um marcador das interações entre os indígenas e os colonizadores europeus. Sob a influência destes últimos e impulsionados por suas próprias tradições, os artesãos indígenas passaram a desenvolver peças mais elaboradas esteticamente, evidenciando sua adaptação às novas circunstâncias trazidas pela colonização.

Entretanto, diante da resistência dos nativos ao regime de escravidão, os portugueses optaram pela mão de obra africana devido à sua menor tendência à deserção. Os confrontos entre colonos e indígenas levaram à conquista territorial gradual pelos portugueses, provocando uma transformação substancial na cultura e tradições dos povos indígenas (NEUMANN, 2022).

A chegada dos europeus ao Brasil, como explica Neumann (2022), desencadeou um período de profunda transformação para os povos indígenas, marcado pela propagação de doenças contagiosas até então desconhecidas em suas comunidades, tais como varíola, sarampo, tuberculose, gripe e coqueluche, dizimaram populações inteiras, incapazes de resistir devido à falta de imunidade.

Assim, esse impacto devastador resultou em mortes em massa e teve consequências duradouras para a demografia e a cultura dos povos originários. Ademais, a ausência de tratamentos médicos adequados e a falta de assistência exacerbaram ainda mais a situação, deixando um legado sombrio que ecoa ao longo dos séculos, moldando o curso da história e deixando marcas indeléveis na trajetória dos povos indígenas (NEUMANN, 2022).

Diante dessas devastadoras realidades, é inegável que contribuíram para a mudança da demografia e da dinâmica social das comunidades indígenas, apesar de sua profunda contribuição cultural para a formação da identidade brasileira, essas comunidades frequentemente enfrentaram marginalização e prejuízos como resultado do processo de miscigenação, esse fenômeno histórico não apenas moldou a estrutura social do país, mas também influenciou profundamente a maneira como as culturas indígenas foram percebidas e integradas na sociedade brasileira contemporânea  (NEUMANN, 2022).

Conforme explica Sakamoto (2020), apesar da predominância dos africanos como principal fonte de mão de obra escrava para os colonos, os povos indígenas também foram submetidos a esse sistema de dominação até sua abolição formal em 1888, e que não apenas evidencia a extensão da exploração e opressão enfrentadas pelos povos indígenas, mas também destaca a persistência de práticas desumanas e injustas ao longo da história do Brasil. A escravização dos indígenas representou um capítulo sombrio e muitas vezes esquecido da história do país, marcado por séculos de sofrimento e luta por liberdade e justiça.

 Deste modo, diante dos desafios impostos pela colonização e pela ameaça à posse de suas terras, os povos indígenas enfrentaram inúmeros conflitos e sofreram consequências devastadoras, entre elas, destacam-se o despovoamento de comunidades, massacres e uma luta contínua pela preservação de sua cultura e território, esses eventos históricos não só deixaram marcas profundas nas comunidades indígenas, mas também influenciaram significativamente o curso da história e a configuração social do Brasil (SAKAMOTO, 2020).

A chegada da Corte ao Rio de Janeiro, em 1808, não provocou mudanças nessa dinâmica, permanecendo a distinção entre os índios considerados “mansos” e “selvagens”. Os indígenas aldeados continuaram a buscar os direitos concedidos pela Coroa portuguesa, utilizando estratégias de acordos e negociações como meio de influência (GREGÓRIO, 2011)

Nesse cenário histórico, a forja da identidade indígena dentro das aldeias coloniais foi como um processo não apenas nos vínculos comunitários às suas estruturas sociais, mas como uma manifestação resiliente e proativa de resistência política, não apenas se revelando como uma forma de preservar as tradições ancestrais e culturais dos povos indígenas, mas também se transformava em um instrumento poderoso de reivindicação de direitos e de enfrentamento das injustiças perpetradas contra essas comunidades historicamente marginalizadas (GREGÓRIO, 2011).

Deve-se ressaltar que a influência dos positivistas ortodoxos nas discussões sobre a evolução dos povos indígenas no Brasil desencadeou a criação do Serviço de Proteção ao Índio em 1910, um marco histórico como o pioneiro órgão estatal dedicado à proteção dos indígenas. Posteriormente, em 1967, o SPI foi sucedido pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que assumiu a responsabilidade por políticas indigenistas, demarcação de terras e registros (GREGÓRIO, 2011).

O Estatuto do Índio, instituído pela Lei nº 6.001 de 1973, estabeleceu as normas jurídicas que regem os direitos dos povos indígenas, reconhecendo sua identidade étnica e cultural.

A partir das disposições desse estatuto e da realização de processos demarcatórios de terras, foi possível observar uma recuperação populacional dos povos indígenas, que haviam sofrido declínio em decorrência de diversas adversidades desde o início do processo colonizador europeu em 1500, essa proteção legal e o reconhecimento de seus direitos territoriais representaram um marco crucial na história dessas comunidades, permitindo-lhes reconstruir suas vidas e culturas de forma mais autônoma e sustentável (GREGÓRIO, 2011).

Nesse contexto, desde sua concepção original, o Estatuto do Índio teve por finalidade garantir a proteção legal dos indígenas e promover sua integração progressiva e harmoniosa à sociedade nacional, resguardando seus usos, costumes e tradições.

Com a chegada dos europeus ao Brasil, desencadearam-se uma série de eventos que tiveram um impacto profundo nos povos indígenas, a imposição cultural e religiosa dos europeus gerou tensões e resistência por parte dos indígenas, que lutaram tenazmente para preservar suas tradições e territórios (SAKAMOTO, 2020).

Além disso, a demanda por mão de obra nas colônias resultou na escravização sistemática dos povos indígenas, contribuindo significativamente para a exploração e dominação colonial, esta prática desumana perpetuou um ciclo de opressão que afetou profundamente as comunidades indígenas e sua estrutura social (GREGÓRIO, 2011).

Mesmo com a chegada da Corte ao Brasil em 1808, o cenário de degradação não foi amenizado, a distinção entre os povos indígenas permaneceu inalterada, e mesmo após o término formal da escravidão, eles continuaram a enfrentar inúmeros desafios de ordem socioeconômica e cultural, esses desafios persistem até os dias atuais, destacando a necessidade contínua de reconhecimento, respeito e proteção dos direitos dos povos indígenas.

3. A CULTURA

Ao longo dos séculos, a definição de cultura tem passado por transformações significativas. De acordo com John Thompson (1995), no século XIX, o termo estava mais ligado ao acúmulo de conhecimentos acadêmicos e preferências estéticas, sendo utilizado para distinguir a cultura europeia das demais, já no século XX, o conceito ampliou-se para abranger um conjunto mais abrangente de elementos, como crenças, valores, princípios, ações, discursos e objetos diversos, que caracterizam uma sociedade, sem estabelecer hierarquias entre eles.

É relevante destacar que o termo “cultura” tem suas raízes no sentido original relacionado ao cultivo de algo.  Francisco Humberto Cunha Filho (2004) propõe a identificação de sete definições distintas de cultura, que abrangem desde sua compreensão como produção intelectual até sua expressão simbólica e material:

(1) aquele que se reporta ao conjunto de conhecimentos de uma única pessoa; mais utilizado para referir-se aos indivíduos escolarizados, conhecedores das ciências, línguas e letras, embora, ultimamente, também se direcione a focar o saber do dito “homem popular”; (2) um segundo que confunde expressões como arte, artesanato, e folclore, como sinônimas de cultura, algo que muito nos lembra figuras da linguagem como a sinédoque e a metonímia, vez que se percebe claramente a substituição do todo pela parte, do continente pelo conteúdo; (3) outro que concebe cultura como o conjunto de crenças, ritos, mitologias e demais aspectos imateriais de um povo; (4) mais um que direciona o significado de cultura para o desenvolvimento e acesso às mais modernas tecnologias; (5) ainda o que distingue o conjunto de saberes, modos e costumes de uma classe, categoria, ou de uma ciência (cultura burguesa, cultura dos pescadores, cultura do Direito…); (6) outro vinculado à semiótica, retratador do conjunto de signos e símbolos das relações sociais; (7) por último, em nossa modesta lista, aquele que se reporta a toda e qualquer produção material e imaterial; de uma coletividade específica, ou até mesmo de toda a humanidade. (CUNHA FILHO, p. 22-23)

Concorda-se com a visão de Thompson (1995, p. 165) de que o estudo dos fenômenos culturais pode ser entendido como o estudo do mundo sócio-histórico constituído como um campo de significados, ele propõe uma concepção de cultura que evolui ao longo do tempo, identificando quatro definições distintas: a clássica, a descritiva, a simbólica e a estrutural, Thompson enfatiza a importância de entender a cultura como fenômenos simbólicos inseridos em contextos estruturados, onde as formas simbólicas carregam os traços das condições sociais de sua produção.

A análise das formas simbólicas em contextos estruturados, segundo Thompson, requer uma “hermenêutica da profundidade”, esse método de interpretação envolve três cuidados básicos: análise sócio-histórica, análise formal ou discursiva e interpretação/reinterpretação, a primeira parte trata das condições sociais de produção, circulação e recepção das formas simbólicas, identificando as instituições sociais e a distribuição de poder e recursos, a segunda parte aborda os objetos e expressões simbólicas em si, enquanto a terceira parte envolve a construção mais criativa e crítica, com a possibilidade de conflitos de interpretação (CUNHA FILHO, 2004).

As leis de incentivo à cultura, conforme o Plano Nacional de Cultura (Lei nº 12.343, de 2 de dezembro de 2010), abordam o termo “cultura” de forma abrangente, incluindo diversas áreas como artes cênicas, música, artes visuais e digitais, literatura, audiovisual e patrimônio cultural material e imaterial, a análise dos direitos culturais a partir da concepção estrutural de cultura será abordada na seção seguinte.

4. CULTURA X JURISPRUDÊNCIA

Passa-se a analisar alguns casos:

DIREITO CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL. PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. LIBERDADE RELIGIOSA. LEI 11.915/2003 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. NORMA QUE DISPÕE SOBRE O SACRIFÍCIO RITUAL EM CULTOS E LITURGIAS DAS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA. COMPETÊNCIA CONCORRENTE DOS ESTADOS PARA LEGISLAR SOBRE FLORESTAS, CAÇA, PESCA, FAUNA, CONSERVAÇÃO DA NATUREZA, DEFESA DO SOLO E DOS RECURSOS NATURAIS, PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE E CONTROLE DA POLUIÇÃO. SACRIFÍCIO DE ANIMAIS DE ACORDO COM PRECEITOS RELIGIOSOS. CONSTITUCIONALIDADE. 1. Norma estadual que institui Código de Proteção aos Animais sem dispor sobre hipóteses de exclusão de crime amoldam-se à competência concorrente dos Estados para legislar sobre florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição (art. 24, VI, da CRFB). 2. A prática e os rituais relacionados ao sacrifício animal são patrimônio cultural imaterial e constituem os modos de criar, fazer e viver de diversas comunidades religiosas, particularmente das que vivenciam a liberdade religiosa a partir de práticas não institucionais. 3. A dimensão comunitária da liberdade religiosa é digna de proteção constitucional e não atenta contra o princípio da laicidade. 4. O sentido de laicidade empregado no texto constitucional destina-se a afastar a invocação de motivos religiosos no espaço público como justificativa para a imposição de obrigações. A validade de justificações públicas não é compatível com dogmas religiosos. 5. A proteção específica dos cultos de religiões de matriz africana é compatível com o princípio da igualdade, uma vez que sua estigmatização, fruto de um preconceito estrutural, está a merecer especial atenção do Estado. 6. Tese fixada: É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana. 7. Recurso extraordinário a que se nega provimento.

(STF – RE: 494601 RS – RIO GRANDE DO SUL, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 28/03/2019, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-251 19-11-2019)

O caso discutido envolveu a constitucionalidade da Lei 11.915/2003 do Estado do Rio Grande do Sul, que trata do sacrifício ritual de animais em cultos e liturgias das religiões de matriz africana, a questão central era conciliar a proteção ao meio ambiente com a liberdade religiosa e os costumes culturais das comunidades religiosas afro-brasileiras (BRASIL, 2019).

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a norma estadual se enquadra na competência concorrente dos Estados para legislar sobre proteção do meio ambiente, incluindo a fauna, e não viola a Constituição Federal, a prática do sacrifício animal em rituais religiosos foi reconhecida como parte do patrimônio cultural imaterial e dos modos de vida de diversas comunidades religiosas, especialmente as não institucionais (BRASIL, 2019).

A decisão destacou a importância da liberdade religiosa e da proteção da diversidade cultural, afirmando que a dimensão comunitária dessa liberdade é digna de proteção constitucional, além disso, ressaltou-se que a laicidade do Estado não impede a proteção de práticas religiosas, desde que não haja imposição de dogmas religiosos no espaço público (BRASIL, 2019).

A tese fixada pelo STF foi no sentido de que a lei de proteção animal, ao permitir o sacrifício ritual de animais em cultos das religiões de matriz africana, resguarda a liberdade religiosa e é constitucional, essa decisão representou um avanço na garantia dos direitos culturais e religiosos das comunidades afro-brasileiras, combatendo o preconceito estrutural e promovendo a igualdade perante a lei (BRASIL, 2019).

Agora passa-se a explorar especificamente a respeito da situação dos indígenas:

DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO ADMINISTRATIVO. TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS PELOS ÍNDIOS. PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA. ART. 231 DA CF/88. DEMARCAÇÃO. MARCO TEMPORAL. ESBULHO RENITENTE. NÃO CONFIGURAÇÃO. 1. Preliminar de nulidade da sentença rejeitada. 2. A configuração de “terra tradicionalmente ocupada pelos indígenas”, bem da União suscetível de demarcação, cuja posse e fruição são asseguradas às comunidades indígenas a elas vinculadas, à exclusão de qualquer outro, conforme previsto no art. 231 e parágrafos da Constituição da Republica, dado o requisito temporal fixado pelo STF, exige que ditas terras estivessem sendo tradicionalmente ocupadas pelos indígenas na data de 05 de outubro de 1988, ou que, não sendo mais por eles ocupadas naquela data em face de desalojamento coercitivo, tenham sido por eles ocupadas no passado e fossem, quando da promulgação da Constituição de 1988, objeto de efetiva disputa possessória entre índios e não índios, configurando-se, assim, o “esbulho renitente”. Precedentes desta Corte. 3. Não demonstrada, na hipótese, qualquer tipo de resistência dos Xetá – ou mesmo sua permanência no local – à época da promulgação da Constituição, havendo indícios de que o estabelecimento da parte autora na área ocorreu de forma pacífica muito antes do indigitado marco temporal, mantém-se a sentença que declarou a nulidade de todos os atos relativos ao Processo Administrativo FUNAI/BSB n.º 08620.003478/1999-10 e, por consequência, a inexistência de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios sobre o imóvel rural denominado Fazenda São Francisco, de propriedade da parte autora.

(TRF-4 – APL: 50003821020114047004 PR 5000382-10.2011.4.04.7004, Relator: VÂNIA HACK DE ALMEIDA, Data de Julgamento: 11/12/2018, TERCEIRA TURMA)

O caso trata da disputa envolvendo terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, conforme estabelecido no artigo 231 da Constituição Federal de 1988, a questão central é a configuração dessas terras e a aplicação do marco temporal para sua demarcação, levando em consideração a presença ou não dos indígenas no local até 5 de outubro de 1988 (BRASIL, 2018).

A decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) rejeitou a preliminar de nulidade da sentença e confirmou que a ocupação tradicional indígena deve ser comprovada até a data estipulada, isso significa que as terras precisavam estar sendo ocupadas pelos indígenas nessa data, ou, se houve desalojamento coercitivo anteriormente, deveria haver uma disputa possessória efetiva entre indígenas e não indígenas, caracterizando o “esbulho renitente” (BRASIL, 2018).

No caso em questão, não foi demonstrada resistência dos Xetá, nem sua permanência na área na data estabelecida pela Constituição, pelo contrário, houve indícios de que a ocupação da área pela parte autora ocorreu pacificamente muito antes do marco temporal mencionado (BRASIL, 2018).

Portanto, a sentença declarou a nulidade de todos os atos relativos ao processo administrativo da FUNAI e a inexistência de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios sobre o imóvel rural em questão, denominado Fazenda São Francisco, que era de propriedade da parte autora (BRASIL, 2018).

Essa decisão afeta os direitos dos indígenas ao limitar a possibilidade de demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por eles, exigindo uma comprovação específica da ocupação até uma data pré-determinada, o que pode dificultar o reconhecimento e a proteção de seus territórios ancestrais.

HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. TORTURA. CRIME EM RAZÃO DE COSTUMES INDÍGENAS. DISPUTA DE TERRAS INDÍGENAS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. TIPICIDADE. ORDEM NÃO CONHECIDA. 1. Compete à Justiça Federal o processamento e o julgamento da ação penal quando a motivação do delito envolve questões intrínsecas de direitos e cultura indígenas, como ocorre na hipótese. 2. Nos termos do art. 57 do Estatuto do Índio, não é permitido aos líderes de grupos tribais a imposição de sanções de caráter cruel ou infamante, nem de pena de morte contra seus membros, sendo típica, portanto, a conduta que impôs à vítima intenso sofrimento físico, como forma de aplicar castigo. 3. Fixado pelas instâncias ordinárias, com amplo arrimo no acervo probatório, que a vítima – indígena sob sua autoridade – foi submetida a intenso sofrimento físico, não há como ilidir essa conclusão, pois demandaria revolvimento de provas e fatos, não condizente com a via estreita do remédio constitucional, que possui rito célere e desprovido de dilação probatória. 4. Habeas corpus não conhecido.

(STJ – HC: 208634 RS 2011/0127383-5, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 14/06/2016, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/06/2016)

Neste caso de habeas corpus, a competência da Justiça Federal foi reconhecida devido à motivação do crime envolver questões intrínsecas de direitos e cultura indígenas, a disputa de terras indígenas e a imposição de sanções dentro da comunidade tribal são aspectos que demonstram como a cultura indígena pode influenciar o contexto jurídico (BRASIL, 2016).

A tipicidade do crime de tortura foi reconhecida com base no artigo 57 do Estatuto do Índio, que proíbe a imposição de sanções cruéis ou infamantes pelos líderes de grupos tribais, nesse sentido, a conduta que impôs à vítima intenso sofrimento físico como forma de aplicar castigo foi considerada típica (BRASIL, 2016).

É importante ressaltar que as instâncias ordinárias, ao analisarem o caso, basearam sua decisão em um amplo acervo probatório, que incluiu elementos relacionados à cultura e aos costumes indígenas, portanto, a conclusão de que a vítima foi submetida a intenso sofrimento físico foi mantida, sem que fosse necessário revisar as provas apresentadas (BRASIL, 2016).

Esse caso demonstra como a cultura indígena e seus parâmetros, conforme estabelecidos no Estatuto do Índio, são considerados no processo judicial, especialmente quando estão em jogo direitos e questões específicas relacionadas às comunidades indígenas, a competência da Justiça Federal para julgar crimes envolvendo essas questões reflete a necessidade de garantir a proteção dos direitos e a preservação da cultura dos povos indígenas dentro do sistema jurídico (DONATO DOS REIS, 2017).

Diante de tudo isso, fica claro que o reconhecimento e a proteção do direito à cultura dos povos indígenas são fundamentais para promover a diversidade cultural e garantir a preservação de tradições ancestrais, respeitar a cultura indígena não significa apenas reconhecer suas práticas e costumes, mas também garantir que suas comunidades sejam tratadas com dignidade e tenham seus direitos plenamente respeitados, isso inclui o direito à autodeterminação, à gestão de seus territórios, à proteção de seus modos de vida tradicionais e à participação ativa na tomada de decisões que os afetam.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proteção dos direitos dos povos indígenas é um tema de extrema relevância no contexto jurídico nacional e internacional, diante da riqueza cultural e da diversidade étnica dessas comunidades, torna-se imperativo garantir um tratamento legal diferenciado que reconheça e respeite suas tradições e normas próprias, no entanto, observa-se que, mesmo diante do arcabouço legal existente, os povos indígenas continuam enfrentando desafios significativos para o exercício pleno de seus direitos, especialmente em situações que conflitam com interesses econômicos, políticos ou territoriais do Estado ou de outras comunidades.

A legislação internacional e brasileira relativa aos povos indígenas tem avançado significativamente, reconhecendo a necessidade de proteger seus direitos e preservar sua cultura, dessarte, ainda há lacunas e desafios a serem superados, especialmente no que diz respeito à efetiva garantia do exercício desses direitos, a Declaração Universal dos Direitos Indígenas representa um marco importante nesse sentido, consagrando diversos direitos e estabelecendo parâmetros para a atuação estatal em relação às comunidades indígenas.

Assim sendo medidas como a garantia ao uso exclusivo da biodiversidade em terras indígenas demonstram um avanço na garantia de direitos reais e na valorização da cultura dessas comunidades, no entanto, ainda persistem desafios, especialmente no que se refere à implementação efetiva de políticas de proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas.

Portanto, é fundamental que o Estado brasileiro e a comunidade internacional continuem trabalhando em conjunto para garantir a proteção integral dos direitos dos povos indígenas, reconhecendo sua importância cultural, histórica e social, e respeitando sua autonomia e autodeterminação, somente assim será possível promover uma sociedade mais justa e inclusiva, onde todos os povos e culturas sejam respeitados e valorizados.

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1Graduando em Direito pela Unievangélica.

2Professora de Direito pela Unievangélica.