ESTUDO DE CASOS DE REPERCUSSÃO NACIONAL NO BRASIL E O RITO SACRIFICIAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10824808


Rodrigo de Araujo Alcantara Barbieri


RESUMO

Existem crimes que chocam e geram grande repercussão nacional, inclusive com relação à punibilidade de seus agentes que, em muitos casos é trazido pela mídia e sociedade como a figura de um “inimigo” que não deveriam gozar dos mesmos direitos dos demais indivíduos pela sua condição de seres perigosos e danosos. Neste contexto, existem casos notórios no Brasil como o caso Henry Borel e o do incêndio da Boate Kiss. O estudo possui por objetivo analisar os crimes de grande repercussão no Brasil sob a ótica do rito sacrificial e o significado desses casos além do direito, sob uma ótica da vingança como restaurador do equilíbrio social. Para entendermos melhor os conceitos e aspectos da repercussão desses crimes serão analisados estudos sobre os julgamentos mais emblemáticos no Brasil nos últimos tempos, bem como tais crimes repercutem na sociedade. Para isso a metodologia adotada foi a mista, através de pesquisa documental e teórica, produzido mediante pesquisa qualitativa e com amparo em metodologia de revisão bibliográfica.

Palavras-chave: Rito sacrificial. Crimes. Repercussão. Expiação. 

1. INTRODUÇÃO

Crimes que provocam grande comoção e podem repercutir em mais crueldade como forma de reparação, cabendo ao Judiciário trazer uma pena que venha a garantir os direitos inalienáveis e irrenunciáveis do ser humano e ao mesmo tempo trazer para a sociedade o apaziguamento e a restauração da ordem.

A pesquisa possui por tema analisar como os crimes de grande repercussão repercutem no âmbito do Direito Penal brasileiro e da sociedade e como tais crimes vêm sendo enfrentados pelo Judiciário, assim como o rito sacrificial objetiva eliminar o sentimento de vingança e desviar a violência, atuando como apaziguador social.

As hipóteses que se apresentam na presente pesquisa dizem respeito a como no Brasil a violência é regulada pelo Judiciário, como essa instituição deve agir para prevenir atos de vingança sem que para isso seja necessário recorrer ao rito sacrificial.

O marco teórico se dará da análise dos teóricos sobre os assuntos relacionados ao tema, através de ampla pesquisa de base bibliográfica e documental. Justifica-se a escolha do tema porque os crimes de grande repercussão reverberam na esfera social trazendo um sentimento de necessidade de vingança e de rito sacrificial.

O estudo será dividido em três seções, com cada uma abordando temas específicos dentro da temática ampla da pesquisa. Sendo assim, após a introdução, na primeira seção se estudará os casos de crimes de grande repercussão no Brasil e seu significado além do direito, analisando-se os crimes que mais repercutiram e repercutem na sociedade brasileira.

Na segunda seção se analisará o rito sacrificial e a expiação como potencial de apaziguar a sociedade, analisando-se o sacrifício, a crise mimética e a figura do bode expiatório.

Por fim, na terceira e última seção se analisará, de maneira específica, os crimes de maior repercussão no Brasil e o papel da celeridade como componente de justiça nos julgamentos desses crimes, assim como o papel do sacrifício moderno como expiação e apaziguação social.

2. OBJETIVOS

O objetivo deste estudo é voltado para analisar como os crimes de grande repercussão reverberam na sociedade um desejo de vingança através de ritos de sacrifício e como o Judiciário tem o papel de apaziguar e mesmo combater essa tendência de pagar violência com violência na sociedade.

2.1 Objetivo Geral

O estudo possui por objetivo geral analisar os crimes de grande repercussão no Brasil e como o Direito e o sacrifício lidam com o problema da violência. 

2.2 Objetivos Específicos

Os objetivos específicos nascem do objetivo geral, a partir do ponto que é constatado uma problemática e no presente caso o estudo deve analisar a repercussão na sociedade de crimes de grande repercussão e identificar como o Judiciário e a sociedade devem lidar com esses crimes e seus responsáveis

a) discorrer sobre os crimes de grande repercussão no Brasil; 

b) analisar esses crimes sob o viés de seus significados além do direito;

 c) apontar como tais crimes repercutem na sociedade; 

d) discorrer sobre o rito sacrificial e a expiação como potencial apaziguador, e por fim 

e) analisar esses casos sob o ponto de vista do sacrifício moderno.

3. METODOLOGIA

Será realizado um levantamento bibliográfico e documental sobre os crimes de grande repercussão no Brasil e como a sociedade e Judiciário enfrentam a problemática relacionada, motivo pelo qual foi adotada a metodologia mista, de cunho teórico e documental, sendo o primeiro através de uma revisão de literatura referente à produção científica do tema em questão, buscando-se assim analisar fontes de pesquisas diversas, como em sites de produções científicas e busca da literatura. 

Em especial a obra do pensador francês René Girard servirá como embasamento para a presente pesquisa, eis que o autor produziu conteúdos de grande significado e que ainda em época atual se revelam importantes, como a teoria mimética e a teoria do bode expiatório.

A revisão de literatura é uma metodologia que proporciona a síntese do conhecimento e a incorporação da aplicabilidade de resultados de estudos significativos na prática (Hernández-Sampieri, 2006). Foram ainda realizadas pesquisas documentais de crimes ocorridos no Brasil e seus julgamentos.

4. DESENVOLVIMENTO

4.1 ANÁLISE DE CASOS: ALCANCE E SIGNIFICADO ALÉM DO DIREITO

Na antiguidade a justiça se relacionava de maneira direta com a religião, sendo com o tempo e a modernidade substituída pela positivação através de leis e códigos que vieram a trazer maior proteção aos direitos dos homens.

 Entretanto, essa substituição acabou deslegitimando o que em época pretérita se não era permitida, era ao menos aceita: a violência.

Assim, existe na atualidade, a exemplo de na antiguidade, um grande interesse por crimes, em especial os cujas características como cometidas contra crianças despertam maior interesse da sociedade. Neste âmbito, ressalte-se que se vive na atualidade em um mundo globalizado onde as informações são propagadas de forma rápida, e muitas vezes, vê-se na mídia delitos que possuem uma grande repercussão midiática na sociedade e que causam um grande clamor social, fazendo que a sociedade participe de forma indireta, no desfecho e julgamento do caso concreto (FREITAS, 2018).

Importante esclarecer que a violência se encontra presente em todas as culturas e sociedades, assim como o sacrifício, que é apontado como um instrumento de prevenção contra a violência, sendo um mecanismo que permite que toda a sociedade seja protegida de sua própria violência e ânsia de justificar um “bode expiatório”. Assim, o rito sacrificial permite expulsar do meio social toda a forma de violência que ameaça a sociedade (MIGUEL, 2021).

Assim, o rito sacrifical, na figura do bode expiatório, permite que a sociedade, de maneira figurada e simbólica, venha a expurgar a violência que existe não apenas no âmbito social como de forma intrínseca dentro de cada um (FIGUEIREDO, 2014). Indo além, a ânsia por vingança e violência surge quando existe a sensação de ausência de medidas protetivas e de formas de se fazer justiça, buscando a sociedade, muitas vezes, atos punitivos para punir e indicar seu desacordo com o modo como a justiça vem agindo, o que acaba por perpetrar a violência em uma extensão de atos de vingança (MIGUEL, 2021).

E essa exacerbação da violência tem um componente muito relevante na sociedade contemporânea, que é a mídia, em especial a mídia sensacionalista que explora a violência como uma atração. Assim, importante se explanar brevemente sobre o papel que a mídia tem no alcance e repercussão de crimes, mas para isso deve-se falar em liberdade de informação, que tem a ver com a relação entre a liberdade de expressão e o direito de informar (LAURENTIIS; THOMAZINI, 2020). 

O clamor midiático, segundo palavras de Patrícia Vanzolini, traz o descaso à proporcionalidade e força a punição de condutas que podem se revelar de maneira desproporcional aos fatos, muitas vezes sob o argumento da liberdade de expressão (FIGUEIREDO, 2014).

Na liberdade de expressão as ideias são reguladas e combatidas por outras ideias, não pelo poder ou pela força. No entanto, esse direito não deve ser cerceado, por ser um elemento constitutivo da liberdade de expressão, eis que quando há limitação ao direito dos ouvintes ao acesso à informação, sua autonomia discursiva resta comprometida de forma automática, não podendo nem o poder público cercear tal direito por ofensa à sua autonomia (LAURENTIIS; THOMAZINI, 2020).

Assim, encontrar um equilíbrio entre a liberdade de expressão e de informação e os direitos mais fundamentais do homem se revela na atualidade um desafio do Estado e do Direito (FREITAS, 2018). Na atualidade se entende que o governo não pode mais interferir no processo de informação e comunicação, a não para garantir a efetivação de tais direitos e solucionar celeumas como o conflito entre direitos fundamentais.  No entanto, a liberdade de informação não pode cercear outros direitos como o de expressão, devendo ser a liberdade de expressão defendida, e não será a censura ou o poder do Estado que pode interferir em tal direito (LAURENTIIS; THOMAZINI, 2020).

A ausência de informação pode ser considerada uma das piores maneiras de privação de liberdade (ou de uma ditadura), eis que a partir do momento que a sociedade se encontra desinformada, torna-se fácil exercer sobre essa sociedade uma relação de dominação, podendo ocorrer o favorecimento, o apadrinhamento e a manipulação. Por tal motivo, a informação se revela como um direito social. Entretanto, não se deve esquecer, em prol da liberdade de informação, dos danos que a exposição pode causar.

A imprensa e a informação jornalística no Brasil têm sua regulamentação no art. 220, caput, §1º da Constituição Federal. Estes direitos são garantidos constitucionalmente porque não é incomum que tais direitos sejam suprimidos, como inclusive ocorreu na história brasileira com a ditadura militar e a censura imposta na época. Assim, os Estados totalitários colocam a imprensa e a mídia em perigo, motivo pelo qual existe uma tutela sobre as mesmas (LAURENTIIS; THOMAZINI, 2020).

Mas o alcance e significado dado aos crimes de grande repercussão têm um significado além do direito e das leis, possuindo todo um conteúdo subjetivo. Sob o argumento de combate à criminalidade a justiça pode fundamentar e dar lastro à espetacular demanda por punição que grassa na sociedade atual (FIGUEIREDO, 2014).

A seguir serão analisados os casos de grande repercussão no Brasil.

4.2 Casos de grande repercussão

A seguir se analisará crimes de grande repercussão, que são aqueles que de imediato ganham grande destaque na mídia e grande interesse da população, seja pelas suas características ou pessoas envolvidas, como é o caso de filhos que matam os pais ou vice-versa, ou ainda crimes que tenham como vítimas crianças. 

Um exemplo de crime de um caso que vem repercutindo muito no cenário nacional é o caso Henry Borel, um crime de grande repercussão por suas características como a vítima ser uma criança e os autores terem sido a mãe e o padrasto do menor. Na atualidade os réus aguardam o júri popular, e o caso segue sendo de grande repercussão não apenas no âmbito do sistema judiciário e penal, como ainda na mídia e na sociedade como um todo. 

4.2.1 Processo Nº: 0066541-75.2021.8.19.0001 (Caso Henry Borel);

Na madrugada de 08 de março de 2021, Henry (menor impúbere) deu entrada no Hospital Barra D’Or, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, já em óbito. Sua genitora, a professora Monique, e seu namorado, o vereador e médico Dr. Jairinho, não deram muitas explicações aos profissionais de saúde que atenderam a criança, se limitando a alegar que se tratava de mal súbito.

Sobre o caso em tela, resta salientar que o aludido crime contribuiu inclusive com inovações na legislação, sendo inspiração para a Lei nº 14.344, de 24 de maio de 2022, referente a prevenção e enfrentamento da violência doméstica contra a criança e o adolescente (CRUZ, 2022).

A investigação apontou que o menino foi morto por espancamento no apartamento em que morava com a mãe e o padrasto, em um claro caso de violência doméstica que inclusive era sofrida pelo menino há tempos, o que restou evidente pelas abundantes lesões identificadas pelos médicos no atendimento à criança (BISNETA; OLIVEIRA, 2022). Com a confirmação da morte do menino, o namorado da sua mãe fez contato com um executivo da área de saúde pedindo que um médico do hospital fizesse o atestado de óbito, sem a realização da necropsia no Instituto Médico Legal. O pedido não foi atendido e os médicos que realizaram o atendimento do caso orientaram seu genitor que realizasse um boletim de ocorrência na polícia por se tratar de um caso suspeito, uma vez que existiam indícios da prática de crime (CRUZ, 2022).

A necropsia atestou laceração hepática e hemorragia interna provocadas por ação contundente, o que fez com que a mãe e o vereador fossem presos, por ter a investigação constatada que a violência física e psicológica contra Henry já vinha ocorrendo há pelo menos um mês, com nada tendo sido feito para protegê-lo e para que a tragédia fosse evitada. Nesse contexto, inflada pela perplexidade de parte da população brasileira com o caso, nasceu a Lei nº 14.344/2022 denominada de Lei Henry Borel, que cria mecanismos de enfrentamento à violência doméstica familiar contra a criança e o adolescente, nos moldes da Lei Maria da Penha (CRUZ, 2022).

Nem é preciso dizer que o caso ganhou grande repercussão no país, por ser a vítima uma criança e pelo grau de violência que restou constatado, inclusive irá ao ar nesta data um programa televisivo sobre o caso, após a questão ser decidida pelo STF após o programa ter sido suspenso sob a alegação de poder influenciar a opinião pública, eis que o processo ainda pende de julgamento e a defesa do padrasto buscava preservar a imparcialidade dos julgadores.

Com relação ao Processo, crimes que correm na justiça contra os autores desse crime,  foi ajuizada ação penal contra a mãe e o padrasto de Henry com a denúncia dando ao acusado como incurso nas penas do art. 121, § 2º, incisos I, III, IV e § 4º, do Código Penal brasileiro; do artigo 1º, inciso II, c/c § 4º, incisos I e II, da Lei n. 9.455/97, por três vezes; do artigo 347, parágrafo único, e do artigo 344, do Código Penal, tudo c/c com artigo 61, inciso II, alíneas “f” e “h”, e na forma do artigo 69, todos do Código Penal. Já à mãe foram imputadas as condutas previstas no artigo 121, § 2º, incisos I, III e IV e § 4º, c/c artigo 13, § 2º, alínea “a”, ambos do Código Penal; no artigo 1º, inciso II, c/c § 2º e § 4º da Lei n. 9.455/97, por duas vezes; e nos artigos 299, caput, 347, parágrafo único, e 344, tudo c/c artigo 61, alíneas “e”, “f” e “h”, e na forma do artigo 69, todos do Código Penal.  

Ambos os réus foram pronunciados e enquanto o réu aguarda julgamento preso a ré aguarda em liberdade. 

ii. Processo Nº: 274/08 (Isabella Nardoni);

Outro caso de crime contra criança que chocou o Brasil foi o da menina Isabella Nardoni. Isabela era filha de Alexandre Jatobá, tinha cinco anos de idade quando foi jogada do sexto andar de um edifício em São Paulo, em 29 de março de 2008, pelo pai e pela madrasta Ana Carolina Jatobá, em um homicídio triplamente qualificado (art. 121, § 2°, incisos III, IV e V). O pai cumpre pena de 31 anos, 1 mês e 10 dias, com agravantes pelo fato de Isabella ser sua descendente, e a madrasta pena de 26 anos e 8 meses de reclusão, ficando caracterizado como crime hediondo (FREITAS, 2018).

Esse caso teve grande repercussão nacional, tendo sido considerado um crime monstruoso por toda sociedade brasileira, inclusive sendo a mídia apontada como tendo ultrapassado os limites de informação e desrespeitado os direitos fundamentais dos réus. Esse crime teve o total envolvimento da população, com multidões com cartazes na porta da delegacia clamando por justiça, e que abraçaram a causa. Nesse caso muito se discutiu se o envolvimento da população não veio a interferir no julgamento dos réus, com a prisão preventiva sendo fruto do clamor popular e com a condenação do casal muito comemorada pela população (FREITAS, 2018).

Ambos os condenados cumprem pena em presídio conhecidos por abrigar presos por crimes de grande repercussão, onde inclusive cumpriu prisão Suzane Richthofen, o que demonstra que mesmo dentro das penitenciárias o clamor social e a busca por vingança podem desaguar em violência.

iii. Processo Nº: 052.02.4354-8 (Suzane Richthofen)

O caso do assassinato dos pais de Suzane Richthofen foi outro crime de grande repercussão no Brasil e que foi exaustivamente explorado pela mídia. Teóricos apontam que a dramatização em cima do caso atuou no convencimento dos jurados de que os acusados eram culpados e assim desejar que justiça fosse feita (FREITAS, 2018).

Caso Richthofen é a denominação pela qual ficou conhecido o homicídio, a investigação e o julgamento das mortes de Manfred e Marísia Von Richthofen, assassinados pelos irmãos Daniel e Cristian Cravinhos a mando da filha do casal, Suzane Von Richthofen. Suzane e Daniel se conheceram no ano de 1999 quando iniciaram um relacionamento, que não tinha o apoio das famílias, em especial dos Richthofen, que proibiram o romance. Suzane, Daniel e Cristian então criaram um plano para assassinar o casal Richthofen simulando um latrocínio. Em 31 de outubro de 2002, Suzane abriu a porta da mansão da família em São Paulo para que os irmãos Cravinhos pudessem acessar a residência, onde se dirigiram ao quarto do casal e os mataram com marretadas na cabeça (JAMSEN, 2021).

Esse foi outro caso que pela violência explícita e frieza dos réus causou uma grande comoção social e mesmo a revolta da população, que até na atualidade acompanha o caso e os passos dos envolvidos com grande interesse. Muitos alegam que Suzane possui um distúrbio mental grave enquanto outros defendem a completa falta de valores da condenada. O processo n. 052.02.4354-8 do I Tribunal de Júri da Cidade de São Paulo-SP condenou os réus, sendo que na atualidade Suzane cumpre sua pena em regime semiaberto (FREITAS, 2018).

iv. Processo Nº: 001/2.20.0047171-0 (Boate Kiss)

Em 27 de janeiro de 2013 a Boate Kiss, localizada na área central de Santa Maria, cidade do Rio Grande do Sul, sediou a festa universitária denominada “Agromerados”. No palco, se apresentava a Banda Gurizada Fandangueira, quando um dos integrantes disparou um artefato pirotécnico, e com suas centelhas atingiu parte do teto do prédio, que era revestido de espuma, que veio a pegar fogo, com o incêndio se alastrando rapidamente e causando a morte de 242 pessoas e deixando 636 feridos (CÔRREA, 2022).

Assim, um incêndio de grande proporção na boate Kiss causou a morte de 242 pessoas e deixou mais de 600 feridos, produzindo um dos piores desastres no Brasil, em que muitas vítimas ficaram feridas gravemente em decorrência da inalação dos gases tóxicos e, em função da propagação das chamas, tiveram queimaduras. A maior parte das vítimas era composta de estudantes universitários, com idades entre 18 e 31 anos (RIGHI et al. 2022).

 O Ministério Público é o autor da ação penal. Inicialmente, aos quatro foi imputada a prática de homicídios e tentativas de homicídios, praticados com dolo eventual, qualificados por fogo, asfixia e torpeza. No entanto, as qualificadoras foram afastadas e eles respondem por homicídio simples (242 vezes consumado e 636 vezes tentado) (CÔRREA, 2022).

Esse foi outro caso de grande comoção popular no Brasil, sendo inclusive material de obras literárias e audiovisuais como a da obra intitulada “Todo dia mesma noite” da Autora Daniela Arbex. Naquele mesmo ano foram decretadas as prisões temporárias dos sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann e dos músicos da banda, que haviam tocado naquela noite, Luciano, Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. O júri que havia condenado os réus restou anulado pela 1ª Câmara Criminal do TJRS e revogada a prisão dos quatro réus (CÔRREA, 2022).

i. – Processo Nº: 1502389-57.2019.8.26.0602

Trata-se de um roubo, onde, para evadir-se do local os criminosos subtraíram um veículo. Em diligência os agentes policiais lograram êxito em localizaram a motocicleta roubada e ao efetuarem a abordagem efetuaram disparos de arma de fogo contra o condutor do veículo, que veio a óbito. 

Ao se verificar, ainda no local da abordagem, constatou-se que o condutor alvejado se tratava da vítima da ação criminosa, mas não do roubador, sabendo-se tratar de Milton Expedito do Nascimento. O presente caso teve grande repercussão porque a vítima dos disparos dos agentes policiais no momento da abordagem se tratava de um importante membro da comunidade, que inclusive utilizava ações sociais e o “rap” na busca por afastar as pessoas da criminalidade.

Por ser a vítima uma pessoa “engajada” dentro da comunidade em que residia, a repercussão do caso foi grande, e até na atualidade verifica-se existir reportagens e ações de grupos que lutam contra as desigualdades sobre o fato, assim como a família de Milton ainda hoje procura por justiça.

A outra vítima do roubo do veículo que acabou em tragédia em seu depoimento relatou que se sentiu constrangido pelos agentes policiais após a morte de Milton Expedito do Nascimento, o que revela uma possível ação na busca por deturpar os fatos, tendo em vista que a vítima foi alvejada sem sequer ter realizado qualquer ação contra os policiais que o abordaram.

Na época do crime os policiais envolvidos foram afastados, e após inquérito e processo criminal o policial autor dos disparos que vitimaram Milton foi absolvido nos termos dispostos no artigo 386, inciso VI do Código de Processo Penal, que dispõe sobre circunstâncias que excluem o crime ou isentem o réu de pena. O crime na época, e ainda na atualidade, teve e tem grande repercussão nacional, por ter a família, a comunidade onde a vítima era engajada socialmente e a sociedade se sentido injustiçada com o resultado do julgamento dos agentes policiais que foram responsáveis pela morte de Milton.

Mesmo o Estado tendo sido condenado a pagar à família de Milton uma indenização, a sensação de injustiça ainda permeia os familiares e a sociedade, evidenciando que a política de segurança pública no Brasil precisa ser revista urgentemente. 

ii. – Processo Nº: 1500258-76.2020.8.26.0052

O presente caso trata de uma abordagem policial a um veículo, que se evadiu e houve perseguição, momento em que o aludido veículo veio a colidir e dois indivíduos desembarcaram efetuando disparos de arma de fogo contra os policiais, que revidaram, baleando um dos indivíduos que veio a óbito, enquanto o outro se evadiu. 

Ressalte-se que os indivíduos que estavam no veículo, que posteriormente foi constatado ter sido roubado recentemente, após a abordagem policial, empreenderam tiros contra os agentes, em uma clara atitude criminosa.

Posteriormente foi constatado que o veículo tinha sido roubado com a proprietária e outra pessoa, para as quais foi dado voz de assalto e praticado violência contra as pessoas que estavam no veículo. Pelos fatos apurados constata-se que os indivíduos envolvidos na ação que culminou com o óbito de um deles, se tratam de pessoas contumazes no crime.

No entanto, fica a dúvida se toda a ação poderia ter tido um fim diferente, em que o autor do crime não precisasse ser alvejado e vir a óbito, restando a dúvida sobre como a abordagem policial pode trazer à luz um grave problema de segurança pública no Brasil.

5. O RITO SACRIFICIAL E A EXPIAÇÃO COMO POTENCIAL APAZIGUADOR

5.1. O sacrifício

Segundo o dicionário Houaiss a palavra “sacrifício” resguarda seu significado em:

“Ato, ou efeito de sacrificar(se). 1- oferenda ritual a uma divindade que se caracteriza pela imolação real ou simbólica de uma vítima ou pela entrega da coisa ofertada (de animais). 2. Pessoa ou coisa sacrificada (Isaac foi o s. oferecido a Abraão). 3. Renúncia voluntária ou privação voluntária ou privação voluntária por razões religiosas, morais ou práticas ( a vida de atleta exige grandes)(fez grandes s. pela democracia). 4. Privação financeira em proveito de alguém ( é capaz de qualquer s. para dar conforto à família). 5 missa espírito de s. tendência a sacrificar-se ou a ceder sem benefício imediato. Ir para s. (…). “ pg. 1692.

O sacrifício remete às sociedades mais primitivas e está presente em praticamente todas as religiões antigas hindus, monoteístas. Do latim a palavra vem do sacrificium de sacrum (sagrado). O sagrado do latim é o sacer – o que não pode ser tocado ou maculado (MORFAUX, 2005).

O sagrado “sacer” se converte na figura do “homo sacer”, da Roma antiga. O homo “sacer” é um ser cujos direitos são suspensos e, nessa condição, não pode ser imolado, condenado, julgado legalmente, ele está fora da lei, mas se alguém o matar não comete delito (TEIXEIRA, 2015). Giorgio Agamben destaca na sua obra “homo sacer” a interpretação de Keréniyi:

O homo Sacer não pode ser objeto de sacrifício, de um “sacrificium” por nenhuma outra razão além desta, muito simples: aquilo que é Sacer já está sob posse dos deuses, e é de modo particular propriedade dos deuses ínferos, portanto não há necessidade de torná-lo tal com uma nova ação” (AGAMBEN, 2007).

Giorgio Agamben mostra a ambiguidade do “homo sacer” em uma vida insacrificável, mas, ao mesmo tempo, matável, vida sacra. 

Em Rudolf Jhering, o “homo sacer” nunca alcançava um fim expiatório, o seu delito em geral ultrajava os deuses, não qualquer delito, mais uma série de delitos. Para o autor não se tratava de uma pena, pois a pena reconciliava e purificava o delinquente, visando a reconciliação com os deuses e os homens (Jhering, 1934). No homo sacer a sacralidade é atrelada a vida humana, mesmo que ele não seja sacrificável.

No âmbito do sacrifício, a violência tem papel preponderante, constando dois tipos de violência: a violência sacrificial e a violência não sacrificial, sendo a primeira empregada por meio de um rito, linguagem da experiência religiosa, para desviar um problema desagregador do centro de uma comunidade, ao passo que o segundo tipo é aquela violência que causa crises, desordem e inflama os ânimos de uma sociedade já violenta. Ou seja, existe a violência que desintegra e inflama os ânimos que precisa ser expulsa através de uma violência ritualística e sacrificial. A violência ritualística empregada no sacrifício desvia a crise e a culpa para uma vítima terceira em vista do expiar dos problemas, através do derramar do sangue (MIGUEL, 2021).

Assim, Patrícia Vanzolini elucida que o sacrifício é apontado por René Girard como importante estratégia de gerenciamento da violência, instituindo o sagrado, que por sua vez, institui o Direito (FIGUEIREDO, 2014).

5.2 A crise mimética

Antes de se explanar sobre a crise mimética, teoria desenvolvida pelo pensador René Girard, é importante se discorrer brevemente sobre o mimetismo, que no contexto ecológico é a imitação, a adaptação de um organismo para se confundir com indivíduo de outra espécie. Já no sentido figurado é o processo através do qual um ser se ajusta de forma a imitar outro (MIGUEL, 2021). 

O desejo mimético é condutor da exacerbação da violência e do conflito e para a solução dessa violência maior, recorre-se à vítima sacrificial, cuja função é recriar, sob outras bases, a coesão social ao buscar restabelecer o convívio social e conduzir à paz. Ao articular dessa maneira violência e paz, é perceptível como ele foge a posturas que negam uma ou outra face da religião, mas busca articular ambas. No entanto, a imitação também é desagregadora e traz a violência e à rivalidade, quando a situação de violência é resolvida por um ato violento com toda essa violência sendo direcionada ao denominado bode expiatório (PIEPER, 2021).

O pensador francês René Girard afirmava que o ser humano aprende através da imitação, sendo a mímesis que cria condições do homem habitar um mundo com sentido a partir de onde se pensa, age e fala. Já na crise mimética, o que importa é a rivalidade e nos ritos sacrificiais as vítimas, devem sofrer, por ser ela considerada responsável por toda a crise mimética (PIEPER, 2021).

Patrícia Vanzolini, embasada em Girard, destaca os sistemas de trocas das sociedades como a base de interação e progressão destas sociedades, e por conseguinte, a diferenciação de diferentes culturas é base importante para a diferenciação e não ocorrência da crise mimética.

“As trocas instituem diferenças, mas, antes de tudo, elas exigem diferenças, exigem que os envolvidos atuem em papeis diferenciados”.

A perda das diferenças perverte o sistema de trocas tornando-o disfuncional, as trocas passam a produzir e a reproduzir indistinção. A essa situação chama-se “crise.” Crises são fenômenos sociopolíticos de indiferenciação. O cenário cataclísmico das catástrofes é o protótipo natural da situação de crise – o dilúvio, o fogo, a peste – todos esses retratos espelham o horror da confusão, tudo vira o mesmo, todos os entes perdem seus contornos e as formas que os individualizam.

 No âmbito social o resultado da crise é o esgarçamento das relações e a corrosão das instituições suportadas pelo sistema, ou seja, a desagregação da cultura, o limiar hobbesiano, o estado de natureza” (Figueiredo, 2014)”.

Em um exemplo atual pode-se citar a perseguição popular que ocorreu contra os acusados dos crimes acima citados, como no caso Nardoni ou do caso Richthofen em que a população cobra de maneira reiterada que a justiça venha a se efetivar.

5.3 O bode expiatório

Conforme já explanado, o sentimento de justiça anda de mãos dadas com o sentimento de vingança, e quando é eleito um bode expiatório que deve receber a expiação pelos seus atos, a sociedade se sente novamente em equilíbrio (MIGUEL, 2021). Assim, o bode expiatório é uma figura simbólica, não obstante bem real, usada para aplacar, apaziguar a sociedade em sua ânsia de justiça e vingança.

Na sociedade atual, em que a religião e o direito foram separados, a violência precisa ser canalizada através de uma válvula de escape, que surge na figura do bode expiatório, um membro da comunidade que canaliza e polariza todos os sentimentos maléficos dispersos, atraindo a violência através da máxima de “todos contra um”, o que por sua vez apazigua a violência do todo e a tensão interna de cada um (FIGUEIREDO, 2014).

Assim, autores de grande repercussão tornam-se a figura materializada do mal e da violência, que deve ser expurgada e assim trazer o equilíbrio social e instaurar a ordem em uma espécie de gestão da violência, em um modelo proposto por Girard (FIGUEIREDO, 2014). Interessante fazer uma análise prática dessa figura do bode expiatório, através do estudo de casos de grande repercussão.

6. BREVE ANÁLISE SOBRE OS CASOS.

6.1 A celeridade dos casos

O sentimento de que a justiça tem sido feita caminha junto com a celeridade, eis que em casos em que o julgamento de crimes, em especial os de grande repercussão, é demorado, pode ocorrer o sentimento de injustiça e desequilíbrio, motivo pelo qual a justiça busca sempre a celeridade dos julgamentos, mesmo que nem sempre essa pode ser obtida (MIGUEL, 2021).

Importante esclarecer que a celeridade é um princípio no ordenamento jurídico pátrio. Inclusive tal direito está garantido constitucionalmente por força do artigo 5º, LXXVII, da Constituição Federal, introduzido em 2004 pela Emenda Constitucional nº 45, que veio a assegurar a todos, a razoável duração do processo bem como os meios que venham a garantir que sejam tais processos mais céleres (SANTOS, 2020).

A falta de celeridade pode desembocar em violência, eis que pode ocorrer o uso de sua propriedade para expulsar a vingança, que quando desencadeada gera violência (MIGUEL, 2021). Desde tempos anteriores à lei maior de 1988 a justiça no Brasil possui a problemática da morosidade processual, que remonta na justiça desde a época romana, que já tinha a celeridade processual como meta. No Brasil, não obstante os princípios e garantias fundamentais e normas infraconstitucionais, apenas com a recente Emenda Constitucional n.º 45/2004 que acresceu ao texto original do art. 5.º da Carta Magna o inciso LXXVIII, que assegura a razoável duração do processo bem como os meios que garantam a celeridade desta tramitação (SANTOS, 2020).

A resolução dos litígios judiciais em tempo razoável ainda se constitui em desafio no Brasil. O processo excessivamente dilatado se traduz em onerosidade tanto em termos financeiros como no que se relaciona a acreditar no judiciário e na justiça, eis que a morosidade vem a afetar tanto a equidade quanto a eficiência do sistema judicial. Por outro lado, o excesso de tempo do processo judicial dificulta o acesso ao Poder Judiciário e vem a enfraquecer a democracia e a capacidade do Estado tutelar os direitos fundamentais (FIGUEIREDO FILHO, 2020).

Neste sentido, cabe destacar que os casos de repercussão no Brasil possuem uma morosidade acompanhada diariamente pelos espectadores que anseiam por uma resposta célere do Estado. 

6.2 O sacrifício Moderno

É mister realizar, antes de passar ao sacrifício moderno uma análise sobre as funções e finalidade das penas, e para isso deve-se analisar a denominada “teorias das penas” (FIGUEIREDO, 2014).

Tais teorias podem ser separadas em dois grupos, sendo o primeiro denominado teoria positiva, justificacionista ou legitimadora, e o segundo grupo teorias negativas, agnósticas ou deslegitimadoras. Os modelos justificacionistas se dividem entre teorias preventivas, retributivas e mistas, esta última compondo as duas primeiras.

 Todas essas teorias, não obstante não serem propriamente semelhantes, têm em comum entender a pena como positiva, entendendo que apesar da natureza violenta intrínseca a ela, possui sua virtude pelo bem que propicia à sociedade, o que legitima sua aplicação pelo Estado (FIGUEIREDO, 2014).

Já as teorias negativas não reconhecem na pena nenhuma virtude, compreendendo-a como um simples exercício de violência, não existindo, por isso, legitimidade para a sua aplicação, motivo pelo qual não existe um direito de punir, e sim um poder de punição. Assim, o Direito Penal, pelo seu poder de punição, não possui nenhuma finalidade, e enquanto ciência da punição tem como única finalidade a limitação do exercício daquele poder (FIGUEIREDO, 2014).

Assim, a teoria retributiva é vista como arcaica, sendo apenas uma retribuição da violência e vista como arcaica e obsoleta, enquanto a teoria preventiva é vista como uma evolução, cuja finalidade é a prevenção de que sejam realizados novos delitos, em uma perspectiva utilitarista da pena. Essa justificação da pena se mantém até os dias atuais (FIGUEIREDO, 2014).

Assim, entende-se, mesmo que em conceitos diversos, que o Direito penal previne crimes, seja ameaçando com a pena ou reforçando valores sociais. Essa prevenção no Brasil vem positivada pelo Código Penal em seu artigo 59, sendo a prevenção de delitos oficialmente considerada como propósito fundamental da aplicação da pena. Entretanto, a teoria preventiva não é estável, e sua instabilidade se evidencia como parte fundamental de uma estratégia de dominação e não por meio da redução de crimes, mas sim da produção da delinquência, em um claro potencial autoritário (FIGUEIREDO, 2014). 

O argumento de combate à criminalidade é argumento para práticas abusivas de punição, e a pretexto da prevenção mantêm-se punições muitas vezes mesmo quando a pena se revela inidônea como prevenção, ou seja, para evitar seu cometimento. Muitas vezes valorizam-se mais o clamor midiático do que o caráter preventivo da pena, o que redunda em um tratamento cruel e impessoal, em um modelo autoritário e desproporcional da pena, em um verdadeiro sacrifício moderno (FIGUEIREDO, 2014). 

Assim, as funções e finalidades da pena devem ser analisadas sob a luz da obra de René Girard, autor que melhor analisou a relação entre a violência e o sagrado, a partir de sua teoria mimética (FELIPE, 2018). O autor se apoiou em seus estudos, sobretudo em mitologias e literatura clássica, através das quais formulou a hipótese do desejo mimético, premissa da teoria do bode expiatório, já analisada no presente estudo (FIGUEIREDO, 2014).

O sacrifício sempre esteve entre as ritualísticas do ser humano, como a imolação de animais e sacrifícios ligados a religiões e a teologia. Entretanto, em época contemporânea, outro tipo de sacrifício se revela, o sacrifício moderno, ou seja, a necessidade de que seja imolada uma vítima, de forma simbólica, para que dessa forma, também de forma simbólica, seja restaurado o equilíbrio e a paz social (BARREIRA, 2015).

Assim, o sacrifício moderno é utilizado como uma forma de apaziguação social. A violência que se encontra estocada no seio da sociedade é transferida para o bode expiatório, que se torna a vítima do sacrifício moderno, se tornando essa vítima o inimigo do povo e o bode expiatório.

Relatos recentes de práticas com recursos de castigo físico e uso da tortura evidenciam algo que parece escapar do domínio das instituições, em uma sociedade já modernizada com relação a seus aparatos de repressão, trata-se de verdadeira “justiça pelas próprias mãos”, o que deixa clara a persistência do que poderia ser designado por crueldade, em contexto de legitimidade institucional e vigilância. Em outra perspectiva, dotada do princípio da tortura e do castigo como punição, os linchamentos vêm a emergir como prática coletiva, utilizada desde longo tempo na história (BARREIRA, 2015).

Mas mesmo o linchamento simbólico que ocorre através do rito sacrificial deve ser analisado além do Direito Penal, de forma que a busca pela justiça não venha resultar na injustiça contra o bode expiatória, através de penas que vão além do justo (FIGUEIREDO, 2014).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dentro do contexto da sociedade moderna a violência e sua apaziguação na busca pelo equilíbrio social e pela restauração da ordem devem ser analisadas sob o viés do rito sacrificial. Neste âmbito, o presente trabalho buscou analisar as questões acima sob os mais diversos pontos de vista e sob à do estudo de crimes de grande repercussão.

René Girard, um grande pensador francês, em sua obra explica muito bem conceitos como a imitação, a violência e o bode expiatório. A imitação acompanha o homem desde o seu nascimento, tendo em vista que é através dela que o ser humano aprende conceitos básicos de sobrevivência, tanto no âmbito de suas necessidades físicas como de sua necessidade de existir dentro de uma sociedade.

É através da imitação que aprendemos e coexistimos, sendo esta uma das bases da sociedade, desde tempos remotos. Da mesma forma, a violência é, mesmo que muitos tenham dificuldade de aceitar essa realidade, um sentimento que existe em maior ou menor proporção dentro de cada um, sendo muitas vezes esse sentimento reforçado dentro das sociedades e núcleos sociais. Porém, mesmo sendo intrínseca ao homem, a violência não é legitimada, seja pela sociedade seja pela Justiça, que se positiva através do Direito e pune atos de violência, na busca pelo equilíbrio social.

Mas essa violência precisa de um escapismo, de uma forma de se validar, sem que para isso necessariamente seja o homem autor de atos violentos, e como fazer isso de uma forma, digamos, saudável? Através do bode expiatório, ou seja, uma figura através da qual o ser humano vem a expurgar, a legitimar de forma simbólica, ou não, a violência que existe dentro de si e que não pode ser legitimada.

No contexto de crimes de grande repercussão, o bode expiatório, legitimado pelo social e pelo filosófico, passa a ser o autor desses crimes, de forma que toda a violência é direcionada para essas figuras, que se tornam mais que os autores desses crimes, a figura materializada do mal e da violência, e que deve ser expurgada. Assim, um exemplo bastante simples da materialização do bode expiatório é no linchamento, onde a violência desproporcional acaba sendo, por momentos dentro da efetivação desse crime, legitimada, mesmo que de uma forma negativa e contra a própria Justiça.

Girard expõe muito bem esses conceitos em suas obras, e trazendo seus pensamentos para o momento atual, contemporâneo, tem-se que os crimes de grande repercussão, como o nome mesmo diz, ganha uma repercussão que faz de cada homem um paladino, onde simbolicamente expurga sua violência interna na busca por justiça pelas vítimas e na punição de seus algozes.

Transfere-se para os autores de crimes de grande repercussão o ódio e a violência que ameaçam a união e a vida em sociedade através de uma punição sacrificial através de um efeito catártico que, em tese, restaura o equilíbrio social ao expurgar os sentimentos negativos como a violência através do sacrifício desses atores, motivo pelo qual, tirando atos extremos como o linchamento, exige-se a punição exemplar, na busca pela restauração da ordem social e da pacificação social.

Nesse cenário, o Direito Penal assume mais do que o papel de inibidor de crimes, como bem apontado por Patrícia, como ainda um papel social de pacificação através dos rituais de julgamento e punição. Entretanto, deve-se aqui apontar para os perigos desta forma de expurgo, eis que os componentes da figura de bode expiatório de pessoas que cometem crimes, especialmente crimes de grande repercussão, é que validar o sofrimento desses atores vai na contramão dos direitos mais fundamentais do homem e que devem ser acessíveis a todos os homens.

Assim, em busca do equilíbrio social pode-se violar direitos dos criminosos, em um efeito perverso, não obstante atingir a função social. Por tais motivos, deve a pena e o Direito Penal pesar e buscar o equilíbrio de seus sistemas punitivos, de forma que a justiça seja feita em todos os sentidos, não só com relação à sua função social.

A teoria do bode expiatório, que afirma que sentimentos que prejudicam ou trazem ameaça ao equilíbrio social, como a violência, devem ser expurgados através de ritos sacrificiais como na figura do bode expiatório, e levado ao âmbito do Direito penal, deve merecer uma atenção especial, de forma que, para se fazer justiça, não se cometa uma injustiça. 

O equilíbrio entre Direito e Justiça é uma busca constante, e os casos de grande repercussão no Brasil e o acendimento que a busca pelo bode expiatório traz torna necessário que se analise a pena e o Direito penal de uma maneira mais ampla, e assim, justa.

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