RELATO DE EXPERIÊNCIA ESTUDO DE CASO: A IMPORTÂNCIA DA INTERSETORIALIDADE DA REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10810841


Deiza de Souza de Oliveira1
Glacielli Thaiz Souza de Oliveira2


Resumo

Este trabalho foi elaborado com base na experiência vivenciada durante o período de estágio extracurricular em uma Vara Cível de Justiça do Estado do Amazonas. O relato de experiência apresentado é resultado do estudo de caso de uma família com um grupo de irmãos menores de idade, que supostamente estariam sendo explorados pelo genitor para trabalho infantil. Devido a complexidade da situação em que os irmãos encontravam-se, a Vara de justiça responsável pelo caso oficializou órgãos municipais e estaduais bem como o Conselho Tutelar para reuniões da rede de proteção onde foram apresentadas e discutidas, em comum acordo, estratégias e prováveis soluções das demandas que o caso exigia. Nesse sentido, busca-se descrever sobre a importância da intersetorialidade para que a Rede de Proteção Social à Criança e ao Adolescente alcance o seu objetivo que é garantir e assegurar os direitos dos mesmos conforme estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Palavras-chave: Criança e Adolescente; ECA; Rede de Proteção; Serviço Social

Introdução

Através de um relato de experiência, pretende-se abordar a importância da comunicação intersetorial entre os órgãos que compõem a Rede de Proteção Social à Criança e ao Adolescente. Com a finalidade de ampliar os resultados positivos no que se refere aos direitos da criança e do adolescente estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e garantir a eficácia na abordagem dos sujeitos envolvidos (requerente e requerido) no caso.

Para conhecimento do caso estudado, faz-se necessário um breve relato do contexto em que o grupo de irmãos se encontrava: Inicialmente a avó paterna obteve legalmente, após denunciar os genitores ao Conselho Tutelar (CT), a guarda de seus netos, um grupo de três irmãos, sendo uma que das crianças é pessoa com deficiência. Conforme a denúncia da avó ao CT, os genitores consumiam abusivamente bebidas alcoólicas e substâncias ilícitas, o que ao final resultava em agressões físicas e verbais presenciadas pelos filhos do casal. Tal situação levou ao término da relação conjugal dos genitores. A genitora saiu da casa onde residia com os filhos, o companheiro e a sogra. As crianças, sob a guarda da avó, continuaram a residir na mesma casa com o genitor. Após um tempo da separação do casal, a genitora, por meio de terceiros, soube que supostamente seus filhos, principalmente o que necessita de cuidados especiais, eram explorados pelo genitor por meio do trabalho infantil em via pública (sinaleiro) e em local de grande movimento comercial (shopping) com o intuito do mesmo usar o dinheiro adquirido com a exposição das crianças para o uso abusivo de drogas.

A genitora, por sua vez, acionou o Conselho Tutelar responsável pela área de abrangência onde as crianças residiam com a avó paterna, formalizou denúncia em desfavor do genitor, constituiu advogado e procurou a Vara Cível de justiça na qual havia transitado o processo de guarda requerido pela avó anteriormente e efetuou denúncia ao órgão judicial. Com o intuito de averiguar a denúncia efetuada pela genitora, o Serviço Social da Vara, em visita técnica domiciliar à residência da avó paterna, constatou a veracidade da denúncia (o próprio genitor confirmou que “usava” as crianças para “pedir” dinheiro, pois não estava trabalhando, mas negou o fato de ser usuário de substâncias ilícitas). Diante do olhar técnico da profissional de serviço social observou-se que diante das várias aglutinações e ramificações da conjuntura sócio familiar e das conjunturas sociais que estavam permeadas por cenários de violências e inseguranças sociais ocorria a materialização de um cenário que implicava diversas expressões da questão social.

Sendo necessário, naquele momento, a articulação intersetorial com a rede de proteção por meio de reunião presencial com integrantes da rede de proteção (CREAS e Conselho Tutelar), contatos telefônicos com CMEI (onde as crianças estudavam), Setor PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), APAE para estudo de caso e construções e sugestões coletivas de ações e intervenções efetivas no sentido de promover com os equipamentos responsáveis pela execução das políticas públicas atendimento às crianças.

A rede de proteção mencionou que já acompanhava o núcleo familiar e conheciam as vicissitudes que acometiam o contexto familiar, a equipe do CREAS e o Conselho Tutelar de referência do território da família paterna sinalizaram que naquele momento a avó paterna (guardiã legal das crianças) não exercia ações protetivas com os netos. Quanto à genitora, a mesma também recebeu o Serviço Social em visita técnica domiciliar, onde foi constatado que mesmo enfrentando dificuldades, recuperou-se da dependência química e oferecia condições de proporcionar às crianças os cuidados necessários ao seu bom desenvolvimento e bem-estar. Após relatórios tanto do Serviço Social quanto da Psicologia (também acompanhou o caso), foi decidido pela guarda unilateral das crianças à genitora e expediu-se mandado de busca e apreensão das crianças com ordem de restrição ao genitor. Atualmente as crianças estão com a genitora e recebem acompanhamento da Rede.

De forma simplificada pode-se afirmar que a Rede de Proteção Social à Criança e ao Adolescente é o conjunto de instituições, organizações e mecanismos que trabalham em conjunto para garantir a segurança, bem-estar e desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes. O objetivo principal dessa rede é prevenir situações de violência, abuso, negligência e exploração, além de promover os direitos e necessidades específicas desse grupo.

Segundo BRASIL (2021), a Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), define as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos, em condição peculiar de desenvolvimento, que demandam proteção integral e prioritária por parte da família, sociedade e do Estado, prevê a integração operacional dos órgãos e instituições públicas e entidades da sociedade civil, visando à proteção, à responsabilização por ação ou omissão de violação dos direitos, à aplicação dos instrumentos postulados pelo sistema e à interação entre os atores desse sistema.

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.[…]

Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.

Pode-se destacar alguns direitos e deveres incubidos a determinados componentes da Rede de Proteção Social:

1.           Família: A família é a base para o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes. A rede de proteção deve apoiar e fortalecer as famílias, fornecendo recursos, orientação e educação para melhorar suas habilidades parentais.

2.           Escolas: As escolas desempenham um papel fundamental na detecção de sinais de abuso, negligência ou problemas emocionais em crianças e adolescentes. Professores e funcionários escolares devem ser treinados para identificar esses sinais e encaminhar casos apropriados para as autoridades competentes.

3.           Serviços de saúde: Profissionais de saúde, como médicos e enfermeiros, podem identificar sinais de abuso físico, negligência ou problemas de saúde mental em crianças e adolescentes. Eles desempenham um papel importante ao relatar e encaminhar casos para a intervenção adequada.

4.           Assistência Social: Os profissionais de assistência social podem fornecer apoio às famílias que enfrentam desafios, como pobreza, desemprego ou problemas familiares. Eles também podem coordenar serviços e recursos para atender às necessidades das crianças e dos adolescentes.

5.           Órgãos de proteção: Instituições governamentais, como conselhos tutelares, Ministério Público e Juizado da Infância e Juventude, têm a responsabilidade legal de garantir a proteção dos direitos das crianças e adolescentes. Eles podem intervir em situações de risco, tomar medidas legais e

coordenar os esforços da rede de proteção.

6.           Organizações não governamentais (ONGs): Existem várias ONGs que trabalham para promover os direitos e o bem-estar das crianças e adolescentes. Elas oferecem serviços de aconselhamento, abrigo, educação e advocacia para garantir que os direitos desses grupos sejam respeitados.

7.           Comunidade: A comunidade em geral também desempenha um papel importante na rede de proteção. Vizinhos, amigos e outros membros da comunidade podem denunciar situações de risco e apoiar famílias em necessidade.

8.           Meios de comunicação: Os meios de comunicação têm o poder de aumentar a sensibilização sobre questões relacionadas à infância e à adolescência e de influenciar a opinião pública sobre a importância da proteção dos direitos desses grupos.

No entanto é de fundamental importância que essa rede de proteção funcione de forma coordenada e integrada, compartilhando informações, recursos e expertise para garantir o melhor interesse das crianças e dos adolescentes. A legislação e políticas de proteção à infância também desempenham um papel importante ao fornecer um quadro legal para as ações da rede de proteção.

Métodos

O presente estudo trata-se de um relato de experiência baseado na vivência da acadêmica discente do curso de graduação em Serviço Social pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) em uma Vara Cível do Tribunal de Justiça do estado do Amazonas. O estudo de caso foi realizado no segundo semestre do ano de 2023. No decorrer desse período, foram realizadas visitas técnicas domiciliares, visita técnica ao CRAS, contato telefônico com instituições e coordenadores de programas assistenciais tais como: o Conselho Tutelar, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), unidade de educação infantil, Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), Instituição de Acolhimento (especializada no acolhimento de crianças e adolescente portadoras de necessidades especiais), bem como a escuta qualificada das partes envolvidas no processo, entrevista individual semi estruturada com as partes envolvidas, a elaboração de laudos sociais com pareceres e a oficialização de órgãos e instituições que integram a Rede de Proteção Social para reunião presencial na Vara Cível na qual tramitava o processo em questão.

Com a finalidade de garantir os direitos das crianças, esses negligenciados ou cumpridos parcialmente pela família paterna, foi elaborado um plano de ação entre os órgãos participantes da reunião de Rede e firmado o compromisso em fornecer relatório a justiça informando a evolução do contexto familiar, psicológico, educacional e social em que as crianças e a genitora se encontravam, clarificando questões como: 1) As crianças estão frequentando a escola? 2) A genitora está trabalhando? 3) A criança com deficiência está recebendo os cuidados necessários para seu desenvolvimento e bem-estar? 4) O genitor está cumprindo a ordem de restrição imputada pela justiça? 5) Quais os planos futuros da genitora em relação aos filhos?

Resultados e Discussões

Segundo o UNICEF Brasil (2023), ao menos 32 milhões de meninas e meninos (63% do total) vivem na pobreza, em suas múltiplas dimensões: renda, educação, trabalho infantil, moradia, água, saneamento e informação. Mas com o funcionamento dos CRAS e CREAS, houve um aumento considerável na oferta de serviços socioassistenciais e na forma de desenvolver a assistência social com constante busca de aprimoramento para melhor atendimento e acolhimento dos usuários, materializando as ofertas propostas pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS) por meio da Proteção Social Básica e da Proteção Social Especial.

Infelizmente crianças e adolescentes são vítimas cada vez mais frequentes de casos de violência, negligência ou violação dos seus direitos básicos principalmente no meio familiar. Esses casos são constantemente atendidos pelos profissionais de órgãos e instituições voltados aos direitos da criança e do adolescente, mas para que haja êxito no atendimento, na abordagem e na garantia desses direitos é necessário que os órgãos e instituições que atuam como Rede de Proteção trabalhem em total sintonia entre si, obviamente cada um dentro do seu objetivo, para que as decisões a serem tomadas para garantir a proteção e a restituição do bem-estar em prol dos assistidos sejam eficazes.

Em relação ao caso estudado e relatado neste trabalho, nota-se que inicialmente não houve comunicação intersetorial entre os órgãos e as instituições da Rede de Proteção, pois mesmo cientes do contexto social em que as crianças se encontravam não buscaram uma articulação em conjunto e atuaram de forma individual e fragilizada. Infelizmente essa não é uma realidade isolada, por esse motivo é imprescindível que haja o alinhamento, e principalmente, que haja comunicação entre os setores e serviços disponibilizados pela Rede.

A importância da comunicação intersetorial entre as unidades inseridas na Rede de Proteção é de grande relevância, exigindo reuniões para discussões e avaliações de métodos usados para a garantia dos direitos dos atores envolvidos nas demandas que surgem, incluindo não somente as crianças e os adolescentes, mas toda a sua família. Tem-se por exemplo o resultado do caso em estudo, como foi fundamental a articulação da Rede de Proteção após reunião de Rede com o judiciário para a mudança do contexto em que os irmãos se encontravam. Mesmo sendo a primeira reunião de Rede realizada na Vara, solicitada pela assistente social responsável pelo caso, houve um impacto positivo, pois pela primeira vez, a Rede de Proteção Social à Criança e ao Adolescente atuou de forma integrada, se articulou e tratou das questões envolvendo a genitora, o genitor e as crianças. Sobre os resultados da articulação da Rede, pode-se elencar:

1.  O grupo de irmãos voltou ao convívio com a genitora;

2.  As crianças estão frequentando a escola;

3.  A criança PCD está em acompanhamento especializado;

5. As crianças estão em lugar propício a um bom desenvolvimento físico, mental, social e educacional (o genitor tem ordem de restrição, não pode manter nenhum tipo de contato com as crianças ou a genitora);

6. A genitora está trabalhando e recebe acompanhamento especializado.

Como visto, o êxito no desfecho do caso só foi possível devido à intervenção da Rede de Proteção que atuou de forma sincronizada.

Conclusão

Diante da realidade apresentada, é notória a necessidade de potencializar a intersetorialização entre os órgãos que formam a Rede de Proteção Social à Criança e ao Adolescente, como uma ação de responsabilidade social. Nesse sentido, é imprescindível a troca de informações e experiências, a busca de novas ferramentas e estratégias para alcance do objetivo esperado, tendo em vista a missão de garantir e promover os direitos da criança e do adolescente.

Não  há  como  manter     uma   infância    e adolescência protegidas sem pensarmos em Rede de Proteção. Ela vai cuidar daqueles indivíduos, intitulados socialmente como “o futuro do país”. Quanto mais a rede for efetiva em garantir os direitos estabelecidos no ECA, maior a probabilidade de termos adultos saudáveis psicológica e socialmente. Ainda há necessidade de avanço na área da proteção à criança e ao adolescente, por esse motivo é muito importante que haja um fluxograma elaborado em conjunto entre os envolvidos na rede.

Contudo, mesmo com o êxito obtido no caso apresentado, cada caso demandado apresenta sua singularidade e exige abordagem diferenciada, métodos e recursos apropriados para identificar as necessidades dos usuários da Rede. Essas medidas auxiliam na elaboração, execução e acompanhamento eficaz do progresso dos resultados de um plano de intervenção.

Por fim, ressalta-se que a experiência vivida no decorrer do estudo do caso foi de grande relevância para a formação acadêmica, visto que é de extrema importância o acadêmico obter, na prática e não somente na teoria, experiências que mostram a realidade fora da sala de aula, contribuindo para uma formação genuína preparando o futuro profissional para atuar de forma humanizada e dentro das diretrizes que regem a profissão no campo de atuação.

Referências

BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. O Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/crianca-e-adolescente/publicacoe s/o-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente>. Acesso em: 10 de out. de 2023

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TAU, Felipe. Rede de Proteção. Criança Livre de Trabalho Infantil, 15 de Ago. de 2018. Disponível em: <https://livredetrabalhoinfantil.org.br/conteudos-formativos/glossario/rede-de-proteca o/>. Acesso em: 6 de out. de 2023.

CANAL PROTEJA. Rede de proteção a crianças e adolescentes – Entrevista com Dr.Jean Von Hohendorff. YouTube, 14 de nov. de 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Hi86P-519e4&t=189s>

UNAS Heliópolis. A importância de uma Rede de Proteção à Crianças e Adolescentes. YouTube, 5 de ago. de 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=t2Yb-ns67L4


1 Discente do Curso de Serviço Social / UFAM
2 Assistente Social (TJAM) / Dra. em Tecnologia