TENSÕES ENTRE PODER E VIOLÊNCIA: UMA ANÁLISE DA ADPF 635 E AS OPERAÇÕES POLICIAIS NAS FAVELAS CARIOCAS À LUZ DO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10574213


Paulo da Silva Cabete


RESUMO

Este estudo propõe uma análise das tensões entre poder e violência nas favelas cariocas, centrando-se na suspensão temporária das operações policiais pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, à luz do pensamento de Hannah Arendt. O objetivo geral é investigar como a suspensão das operações impacta as dinâmicas de poder e violência nesse contexto. A pesquisa emprega uma abordagem metodológica baseada em revisão bibliográfica, explorando as obras de Hannah Arendt, bem como documentos e estudos relacionados à ADPF 635 e às operações policiais nas favelas cariocas. A análise crítica dessas fontes permite uma compreensão aprofundada das relações entre poder e violência, contextualizando-as no cenário específico em questão. A revisão bibliográfica revelou as complexas raízes históricas e sociais das operações policiais nas favelas cariocas, evidenciando a necessidade de compreender o contexto mais amplo que molda essas dinâmicas. A análise, à luz do pensamento de Hannah Arendt, destacou a centralidade do poder nas relações estabelecidas entre as comunidades e as forças de segurança, enfatizando como o poder é um elemento crucial na construção dessas interações. Os resultados obtidos demonstraram que a suspensão temporária das operações policiais, promovida pela ADPF 635, revelou nuances importantes nas dinâmicas de poder e violência nas favelas cariocas. A compreensão das implicações dessa medida oferece insights valiosos para repensar abordagens policiais em contextos urbanos complexos. O estudo proporcionou uma compreensão mais profunda das relações entre poder e violência nas favelas cariocas, evidenciando como a suspensão das operações policiais, conforme estabelecido pela ADPF 635, influencia essas dinâmicas. Os resultados destacam a relevância do poder na construção de relações sociais e apontam para a necessidade de considerar alternativas políticas que transcendam a mera aplicação da força. Este trabalho sinaliza possíveis caminhos para futuras pesquisas, sugerindo a investigação dos desdobramentos práticos e a análise comparativa em contextos similares ao redor do mundo.

Palavras-chave: Poder. Violência. Hannah Arendt. ADPF 635.

ABSTRACT

This study proposes an analysis of tensions between power and violence in the Rio de Janeiro favelas, focusing on the temporary suspension of police operations through the Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, in light of Hannah Arendt’s thought. The general objective is to investigate how the suspension of operations impacts the dynamics of power and violence in this context. The research employs a methodological approach based on a literature review, exploring the works of Hannah Arendt, as well as documents and studies related to ADPF 635 and police operations in the Rio de Janeiro favelas. The critical analysis of these sources allows for a deep understanding of the relationships between power and violence, contextualizing them in the specific scenario at hand. The literature review revealed the complex historical and social roots of police operations in the Rio de Janeiro favelas, highlighting the need to understand the broader context shaping these dynamics. The analysis, in light of Hannah Arendt’s thought, emphasized the centrality of power in the relationships established between communities and security forces, underscoring how power is a crucial element in the construction of these interactions. The obtained results demonstrated that the temporary suspension of police operations, promoted by ADPF 635, revealed important nuances in the dynamics of power and violence in the Rio de Janeiro favelas. Understanding the implications of this measure provides valuable insights for rethinking police approaches in complex urban contexts. The study provided a deeper understanding of the relationships between power and violence in the Rio de Janeiro favelas, highlighting how the suspension of police operations, as established by ADPF 635, influences these dynamics. The results underscore the relevance of power in the construction of social relationships and point to the need to consider political alternatives that go beyond the mere application of force. This work signals potential paths for future research, suggesting the investigation of practical developments and comparative analysis in similar contexts around the world.

Keywords: Power. Violence. Hannah Arendt. ADPF 635.

1 INTRODUÇÃO

No intricado tecido social das favelas cariocas, as relações entre poder e violência desenham um cenário complexo, onde as dinâmicas políticas e sociais se entrelaçam em uma dança delicada. Este estudo propõe uma investigação profunda das tensões existentes nesse contexto, tomando como ponto de partida a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635. Esta medida, ao suspender as operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro, instiga uma análise à luz do pensamento da filósofa política Hannah Arendt.

O escopo deste trabalho recai sobre as implicações da ADPF 635, considerando seu impacto nas operações policiais realizadas nas favelas cariocas. A atenção volta-se não apenas para a suspensão das ações, mas para as tensões inerentes à interseção entre poder e violência nesse contexto específico.

A desafiadora convivência entre poder e violência nas favelas cariocas propõe uma problemática fundamental, que gira em torno da análise do impacto da suspensão das operações policiais pela ADPF 635 nas dinâmicas de poder e violência, à luz do pensamento de Hannah Arendt, que concebe a violência como uma força capaz de corroer o próprio poder. Diante desse cenário, a indagação central deste estudo é: Em que medida a ADPF 635, ao interromper temporariamente as operações policiais nas favelas cariocas, impacta as relações entre poder e violência, à luz do conceito arendtiano que enxerga na violência uma força potencialmente destrutiva do poder?

O objetivo geral desta pesquisa é analisar como a suspensão das operações policiais nas favelas cariocas, promovida pela ADPF 635, reverbera nas dinâmicas de poder e violência, sob o prisma conceitual de Hannah Arendt. Para atingi-lo, foram estabelecidos os seguintes objetivos específicos: investigar as raízes históricas e sociais das operações policiais nas favelas cariocas; analisar o papel do poder nas relações estabelecidas entre comunidades e forças de segurança; examinar as implicações da suspensão temporária das operações policiais, considerando as contribuições do pensamento de Hannah Arendt.

Este estudo é relevante à medida que busca contribuir para o entendimento das complexas relações entre poder e violência nas favelas cariocas, um tema crucial no contexto sociopolítico brasileiro. A análise à luz do pensamento arendtiano oferece uma perspectiva teórica robusta para compreender as nuances dessas tensões e suas implicações para a construção do poder e para a preservação da ordem nas comunidades marginalizadas.

A metodologia adotada neste trabalho consistirá em uma revisão bibliográfica, explorando as obras de Hannah Arendt, assim como estudos e documentos relacionados à ADPF 635 e às operações policiais nas favelas cariocas. A análise crítica dessas fontes permitirá uma compreensão aprofundada das dinâmicas entre poder e violência, contextualizando-as no cenário específico em questão.

2 OS SISTEMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

A Constituição, como a principal norma de um país, estabelece diretrizes cruciais para a atuação do Estado e sua interação com a população, garantindo os direitos fundamentais do indivíduo. Nesse contexto, o exame da constitucionalidade se torna imperativo, sendo realizado, primariamente, por meio do controle de constitucionalidade estabelecido na Lei Maior, que atribui competência a órgãos específicos para exercê-lo de maneira política ou jurisdicional, interna ou externamente ao Poder Judiciário (Barroso, 2019).

O controle de constitucionalidade é uma característica marcante das Constituições rígidas, que demandam um procedimento mais solene para suas alterações. No entanto, a verificação da conformidade das normas com as Constituições flexíveis também é plausível, uma vez que mesmo nesses textos podem ocorrer violações às suas disposições fundamentais, como desrespeitar procedimentos ou competências para a elaboração de leis, resultando em inconstitucionalidades (Barroso, 2019).

Atualmente, prevalecem duas categorias principais nos sistemas de controle de constitucionalidade nas Cortes Constitucionais: o modelo difuso e o modelo concentrado. O modelo difuso, conhecido como o modelo americano, teve sua expressão nos Estados Unidos da América em 1803, no caso Marbury versus Madison. Nesse sistema, todos os órgãos do Poder Judiciário exercem o controle incidental de constitucionalidade, conferindo autonomia aos juízes para não aplicar normas ordinárias que contrariem a Carta Política. A Suprema Corte, nesse cenário, tem a incumbência de proteger a Constituição não apenas em relação à divisão de poderes entre Estados-Membros e Federação, mas também em face da atuação dos Poderes, especialmente o Legislativo (Moraes, 2022).

O controle incidental de constitucionalidade é difuso, cabendo a todos os órgãos judiciais, de primeiro e segundo grau, bem como aos tribunais superiores. A vertente americana permite que qualquer magistrado ou tribunal analise a harmonia de normas infraconstitucionais com a Constituição em casos reais, refletindo as consequências do julgamento exclusivamente entre os participantes do processo (Moraes, 2022).

Por outro lado, o modelo concentrado destina a constatação de constitucionalidade a um órgão específico, como a Corte Constitucional, independente do Poder Judiciário. Essas instituições têm o encargo exclusivo de inspecionar a constitucionalidade das normas e atos dos poderes do Estado, reforçando a supremacia constitucional. Este modelo, também conhecido como sistema austríaco, foi delineado na Constituição Austríaca de 1920 (Moraes, 2022).

O sistema concentrado atribui a um órgão específico, como uma Corte Constitucional, a constatação de constitucionalidade, sendo mais adequado quando o texto constitucional estipula diretrizes dinâmicas de ação posterior. Ramos (2010) destaca que o modelo europeu, ou kelseniano, é famoso como controle por via principal, declarando a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo de forma a invalidá-los para garantir a segurança das relações jurídicas. Ao contrário do sistema difuso, a decisão no sistema concentrado irradia-se automaticamente, tendo eficácia erga omnes, sem partes envolvidas no litígio (Barroso, 2019; Moraes, 2022).

O sistema brasileiro, inicialmente influenciado pelo modelo norte-americano, adotou posteriormente o modelo austríaco, tornando-se misto, ou seja, exercido tanto de forma concentrada quanto difusa. A promulgação das Leis nº 9.868/1999 e 9.882/1999 complementou e fortaleceu o modelo concentrado no Brasil. A primeira trata da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e Ação Direta de Constitucionalidade por Omissão (ADO). A segunda lei prescreve a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), buscando recompor ou inibir a ofensa a algum preceito constitucional (Gomes et al., 2023).

O sistema concentrado destaca-se por ser mais conveniente para dinamizar a Suprema Corte, minimizando a quantidade de demandas inter partes. Este modelo, com as ações constitucionais adequadas, almeja aliviar o Tribunal de uma acentuada averiguação de temáticas de interesse coletivo, contribuindo para a eficiência e eficácia do controle de constitucionalidade no Brasil (Gomes et al., 2023). 

Considerando-se o objeto deste estudo, será o capítulo seguinte destinado a abordar aspectos pontuais relativos às tratativas direcionadas à ADPF, no bojo do controle de constitucionalidade concentrado, no direito brasileiro.

3 A ADPF NO DIREITO BRASILEIRO

A ADPF no sistema jurídico brasileiro é uma figura que ganhou notoriedade com a Emenda Constitucional 3/93, que acrescentou o § 1º ao artigo 102 da Constituição Federal de 1988 (CF/1988), atribuindo ao Supremo Tribunal Federal (STF) a competência para deliberar sobre a ADPF. Contudo, sua efetivação dependeu da promulgação da Lei nº 9.882/1999, que definiu os contornos e procedimentos dessa ação (Barroso, 2019).

Antes da regulamentação pela lei, a ADPF era um instrumento constitucional com eficácia limitada, demandando respaldo legal para se tornar efetiva. Inicialmente, temia-se a trivialização desse instituto, e o STF rejeitou diversas

ADPFs antes da promulgação da legislação pertinente. A sua introdução foi inovadora na história constitucional brasileira, representando uma ferramenta única sem precedentes nas Constituições anteriores, conforme salienta Streck (2019).

A ADPF é um mecanismo versátil, permitindo a solução de conflitos expressivos sobre a validade do direito ordinário pré-constitucional frente à Constituição de 1988. As decisões provenientes dessa ação possuem repercussão vinculante e eficácia erga omnes, conferindo segurança ao julgamento da legitimidade ou ilegitimidade de atos similares produzidos por diferentes esferas do Poder Público (Barroso, 2019).

Classificada como parte do controle concentrado de constitucionalidade, a ADPF tem como propósito principal remover ou restaurar danos a preceitos fundamentais decorrentes de atos estatais. A ADPF configura uma modalidade de integração entre os modelos difuso e concentrado no STF, proporcionando uma abordagem mais ágil para a resolução de controvérsias constitucionais relevantes (Barroso, 2019).

A Lei nº 9.882/1999 reconhece duas espécies de ADPF: a arguição autônoma e a incidental. A arguição autônoma, prevista no art. 1º, caput, busca evitar ou reparar lesões a preceitos fundamentais resultantes de atos do Poder Público. Já a arguição incidental, de acordo com o parágrafo único do mesmo dispositivo, é aplicada quando há relevância na controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal (Barroso, 2019).

Na abordagem autônoma, requer-se a presença de ameaça ou violação a preceito fundamental e a existência de um ato estatal capaz de provocá-la. Esse modelo assemelha-se às ações diretas previstas no texto constitucional, elevando a discussão ao domínio constitucional abstrato e concentrado do STF, porém, com foco mais restrito, limitando-se a preceitos fundamentais. A legitimidade é similar à ADI, mas o escopo de verificação é mais restrito, considerando apenas preceitos fundamentais. Neste contexto, relembram Gomes et al. (2023) que a ADPF foi concebida para ampliar a fiscalização da constitucionalidade concentrada, abordando questões que estavam excluídas do controle abstrato de normas, conferindo maior respaldo aos preceitos fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro.

Quanto à proteção conferida pela ADPF, a Ministra Rosa Weber destaca que ela é mais abrangente do que o controle de constitucionalidade em si, abarcando não apenas a lesão resultante de leis ou atos normativos, mas também a lesão decorrente de atos do poder público que não se enquadram estritamente na categoria normativa. Essa abrangência permite a impugnação de atos normativos que, embora validamente produzidos sob a égide de parâmetro constitucional pretérito, passaram a traduzir, à luz do paradigma vigente, efetivo e material descumprimento da Constituição (Gomes et al., 2023).

Contempla-se, pois, que a ADPF desempenha um papel de grande magnitude no controle de constitucionalidade brasileiro. Sua atuação, ao consolidar a verificação abstrata, amplia o protagonismo do STF, permitindo que o tribunal atue de forma proeminente na elucidação de importantes litígios constitucionais originados em instâncias ordinárias. Segundo Streck (2019), a ADPF representa um “plus normativo” em relação aos institutos de proteção aos direitos fundamentais previstos no texto constitucional, visando proporcionar ao Poder Judiciário uma ferramenta eficaz para solucionar questões importantes, afastando a indeterminação causada por deliberações morosas e não uniformes.

3.1 Conceito de preceito fundamental

O conceito de “preceito fundamental” no ordenamento jurídico brasileiro não é explicitamente definido na Constituição de 1988. A falta de uma definição precisa no texto constitucional faz com que a compreensão desse conceito seja orientada pelos fundamentos e fatores considerados essenciais pela Lei Maior. A expressão parece estar intrinsecamente conectada à noção de direitos fundamentais, sendo esta última de maior abrangência (Barroso, 2019).

Segundo as análises de Robert Alexy (2015), a fundamentalidade de um direito é vinculada ao atendimento de circunstâncias de interesse e carência, mediante dois critérios distintos. O primeiro critério requer que certos benefícios ou privações possam e devam ser protegidos e reconhecidos pelo ordenamento jurídico. Alexy (2015) exemplifica que não existe uma garantia para algo que não possa ser obrigado pelo direito exclusivo, como seria o caso do direito ao amor. O segundo critério exige que o interesse seja tão crucial que a necessidade de tutela e promoção esteja fundamentada no ordenamento jurídico. Portanto, um interesse ou carência é considerado fundamental quando sua violação ou não satisfação significa a morte, sofrimento grave ou toca no núcleo essencial da autonomia. Isso abrange não apenas os direitos de defesa liberais clássicos, mas também direitos sociais que visam assegurar um mínimo existencial (Alexy, 2015).

A alusão a direitos fundamentais, principalmente localizados no Título II da CF/88, onde são catalogados os direitos e garantias fundamentais, é uma maneira de entender a extensão da expressão “preceito fundamental” (Barroso, 2019). 

A Lei nº 9.882/1999, que regulamentou a matéria da ADPF, também não forneceu uma delimitação clara do significado de preceito fundamental. Isso resultou em pouca assistência para a compreensão do instituto, mantendo uma falta de uniformidade que se reflete na doutrina (Barroso, 2019).

A ausência de uma definição legislativa clara, entretanto, tem sido considerada benéfica na construção de decisões judiciais pelos tribunais. Barroso (2019) argumenta que a lei conferiu maior flexibilidade à jurisprudência, permitindo que ela se adapte mais facilmente a mudanças no mundo dos fatos e à interpretação evolutiva da Constituição. Nesse sentido, cabe ao Supremo Tribunal Federal definir o conceito, considerando os valores subjacentes ao ordenamento constitucional.

Barroso (2019) defende a ideia de que preceitos fundamentais abrangem uma totalidade de proposições constitucionais, incluindo deliberações sobre a formação do Estado, a enumeração dos direitos e garantias fundamentais e as chamadas normas sensíveis. O Ministro Gilmar Mendes, ao relatar a ADPF nº 33 – PA, descreveu preceito fundamental como sendo “direitos e garantias individuais, cláusulas pétreas, princípios sensíveis: sua interpretação, vinculação com outros princípios e garantia de eternidade” (Brasil, 2005).

No entanto, é importante notar que tentar especificar uma definição exata de preceito fundamental pode resultar em sua redução ou excesso, tornando ambas as opções problemáticas. A falta de uma definição única do termo pode dar margem à discricionariedade do juiz em sua decisão. Algumas ADPFs não foram reconhecidas pelo STF por não preencherem os requisitos do conceito de preceito fundamental, enquanto outras foram posteriormente convertidas em ADI ou ADO, reduzindo a possibilidade de oposição (Santos, 2022).

Dessa forma, percebe-se que não há uma definição consensual de preceito fundamental, o que pode levar a divergências de entendimento. A amplitude da ordenação normativa de preceitos fundamentais é construída gradualmente pela doutrina e jurisprudência brasileiras. Cabe à Suprema Corte decidir sobre cada caso concreto, mantendo a expectativa de conflito diante de seu pleito. Gradualmente, o elenco exemplificativo do que constitui um preceito fundamental vem se expandindo, mitigando a possibilidade de discordâncias (Santos, 2022).

4 A PROIBIÇÃO DE OPERAÇÕES POLICIAIS NAS FAVELAS CARIOCAS NO BOJO DA APDF 635      

O alarmante número de óbitos entre os residentes das regiões economicamente desfavorecidas do Rio de Janeiro, especialmente as mortes de menores, foi o catalisador para a proposição da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635 em novembro de 2019, iniciativa promovida pelo Partido Socialista Brasileiro. Essa ação judicial colocou em evidência a crescente letalidade policial no estado do Rio de Janeiro, notadamente nos territórios periféricos. Como resultado, tornou-se inegável a existência de deficiências na condução das políticas públicas de segurança, cujas repercussões negativas permeiam toda a sociedade, mesmo em meio à pandemia (Gomes et al., 2023).

A fim de aprofundar a compreensão da problemática, é necessário destacar alguns trechos relevantes da decisão proferida no contexto da ADPF nº 635.

REFERENDO EM MEDIDA INCIDENTAL EM ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. REALIZAÇÃO DE OPERAÇÕES POLICIAIS NAS COMUNIDADES DO RIO DE JANEIRO DURANTE A PANDEMIA MUNDIAL. MORA DO ESTADO NO CUMPRIMENTO DE DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. PLAUSIBILIDADE JURÍDICA.CONTEXTO FÁTICO EM QUE OS MORADORES PERMANECEM MAIS TEMPO EM CASA. RELATOS DE OPERAÇÕES QUE REPETEM O PADRÃO DE VIOLAÇÃO JÁ RECONHECIDO PELA CORTE INTERAMERICANA. PERICULUM IN MORA. CONCESSÃO DA MEDIDA. 

1. A mora no cumprimento de determinação exarada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos é fundamento que empresta plausibilidade à tese segundo a qual o Estado do Rio de Janeiro falha em promover políticas públicas de redução da letalidade policial. 

2. A permanência em casa dos moradores das comunidades do Rio de Janeiro em decorrência da pandemia internacional, assim como os relatos de novas operações que, aparentemente, repetem os padrões de violações anteriores, fundamentam o receio de que a medida, caso concedida apenas ao fim do processo, seja ineficaz. 

3. Medida cautelar deferida para determinar: (i) que, sob pena de responsabilização civil e criminal, não se realizem operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a epidemia do COVID-19, salvo em hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com a comunicação imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro responsável pelo controle externo da atividade policial; e (ii) que, nos casos extraordinários de realização dessas operações durante a pandemia, sejam adotados cuidados excepcionais, devidamente identificados por escrito pela autoridade competente, para não colocar em risco ainda maior população, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária (BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF, ADPF 635 MC-TPI-Ref, rel. min. Edson Fachin, P, j. 05/08/2020, DJE 267 de 09/11/2020).

A ADPF 635, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro em novembro de 2019, emerge como uma resposta jurídica ao elevado número de mortes, especialmente de menores, nas regiões economicamente desfavorecidas do Rio de Janeiro. A iniciativa destaca a preocupante escalada da letalidade policial nessas áreas periféricas, evidenciando uma clara deficiência na gestão das políticas públicas de segurança, cujas ramificações negativas permeiam toda a sociedade, mesmo em meio à pandemia (Gomes et al., 2023).

A decisão proferida pelo Ministro Fachin na ADPF 635 coloca em pauta o direito à integridade corporal e à vida, questionando até que ponto a utilização da força letal pode ser aceitável. Em consonância com os Princípios Básicos das Nações Unidas para o Uso da Força e de Armamentos Oficiais da Justiça, a aplicação letal e intencional de armas só é permitida em situações imprescindíveis para a proteção da vida, exigindo prévio aviso sobre o uso e pleno entendimento dos riscos envolvidos (Gomes et al., 2023).

A medida cautelar determinada por Fachin estabelece procedimentos prévios, incluindo a elaboração de um documento pela autoridade policial e a comunicação ao Ministério Público do Rio de Janeiro antes da convocação das forças de segurança. O foco da ADPF 635 está na redução da letalidade policial e na omissão do controle do uso da força pelo Estado do Rio de Janeiro (Santos, 2022).

A decisão destaca casos alarmantes, como o do menino João Pedro, alvejado dentro de casa durante uma operação policial em São Gonçalo. O Ministro Fachin ressalta a necessidade de uma reestruturação urgente da política de segurança pública, visando uma abordagem policial mais eficaz e menos violenta (Santos, 2022).

Uma pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos dos Novos Legalismos da Universidade Federal Fluminense analisa estatisticamente as repercussões da ADPF 635. Os resultados indicam uma significativa redução nas operações policiais e, consequentemente, uma diminuição nos índices de mortos e feridos durante essas operações. A pesquisa destaca que a diminuição da letalidade policial está associada a uma redução nos índices de criminalidade (Gomes et al., 2023).

Verifica-se, pois, que o direito à vida, consagrado na Constituição Federal, é um direito fundamental que deve ser protegido acima de tudo. A segurança pública, assim como a saúde, são obrigações do Estado, e a tutela da vida não se limita apenas a garantir a existência, mas também a proteger a integridade moral e física dos indivíduos. A ADPF 635 surge como uma resposta legal para restringir o uso da força letal e reafirmar o compromisso do Estado com a preservação da vida (Gomes et al., 2023).

5 UMA ANÁLISE DA ADPF 635 E AS OPERAÇÕES POLICIAIS NAS FAVELAS CARIOCAS À LUZ DO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT

Hannah Arendt (2022), filósofa política do século XX, desenvolveu uma profunda análise sobre a natureza do poder e da violência em suas obras. Para Arendt, o poder e a violência não são apenas fenômenos interligados, mas também antagônicos, e a compreensão dessa dinâmica é essencial para a preservação da esfera pública e da liberdade política.

Arendt (2022) distingue claramente entre poder e violência. O poder, para ela, é um fenômeno coletivo e surge da ação política conjunta das pessoas em uma esfera pública. Ele é construído e mantido através do diálogo, da deliberação e da participação ativa dos cidadãos. O poder, nesse sentido, é uma força positiva que fundamenta a existência da política e da liberdade.

Por outro lado, a violência, segundo Arendt, é um instrumento de dominação que surge quando o poder está sendo perdido ou já se perdeu. A violência é, essencialmente, um meio de coerção que substitui a ação política e a palavra pela imposição física. Arendt argumenta que a violência é a manifestação mais clara da ausência de poder, pois surge quando as relações políticas se quebram e a comunidade é incapaz de resolver seus conflitos de maneira pacífica (Duarte, 2016).

O ponto crucial na teoria de Arendt é que a violência tem o poder de destruir o próprio poder. Quando a violência é empregada como meio de controle, ela mina a capacidade de ação coletiva, corroendo a esfera pública e substituindo-a por um estado de exceção onde a liberdade política é aniquilada. A dominação da pura violência indica a falência do poder, revelando a incapacidade da comunidade em manter suas instituições e processos políticos (Duarte, 2016).

Arendt (2022) alerta contra a ilusão de que o uso da violência pode garantir a estabilidade e a ordem. Pelo contrário, a violência, quando se torna dominante, leva à destruição do tecido político e social. A busca pela segurança a qualquer custo, muitas vezes alcançada através da violência, resulta na perda fundamental da liberdade e da capacidade de ação coletiva.

Portanto, o pensamento de Arendt destaca a importância de cultivar e preservar o poder genuíno, que é construído pela ação política e pelo engajamento público. Evitar a escalada da violência requer um compromisso contínuo com a esfera pública, o diálogo e a resolução pacífica de conflitos. Para Arendt, é a força do poder que pode resistir e superar as tentações destrutivas da violência (Duarte, 2016).

A análise da suspensão das operações policiais no contexto brasileiro à luz do pensamento de Hannah Arendt oferece uma perspectiva única sobre as dinâmicas de poder e violência. Arendt, filósofa política do século XX, destacou a importância da esfera pública, da ação política e da participação cidadã como fundamentais para a preservação da liberdade e para evitar o totalitarismo. Como tal, a suspensão das operações policiais pode ser entendida como um movimento que impacta diretamente a dinâmica entre poder e violência, à medida que influencia a participação política e a esfera pública (Duarte, 2016).

Em primeiro lugar, a suspensão das operações policiais representa uma pausa na manifestação do poder estatal sobre a população, interrompendo temporariamente a violência institucional que frequentemente atinge as comunidades periféricas. Arendt argumentaria que o poder, para ser legítimo, deve ser exercido de maneira transparente e responsável, o que implica na participação ativa dos cidadãos na tomada de decisões. A suspensão das operações policiais, portanto, pode ser vista como uma medida que visa restaurar a legitimidade do poder ao convidar a população a participar da redefinição das políticas de segurança.

Em segundo lugar, ao suspender as operações policiais, há uma transformação na dinâmica da violência no espaço público. Arendt ressalta que a violência pode surgir quando o poder se deteriora e falha, dando espaço para a dominação e a opressão. A suspensão das operações policiais, ao reconhecer a ineficácia e a violência desproporcional dessas práticas, abre espaço para uma reflexão coletiva sobre alternativas mais justas e eficazes. Essa interrupção temporária da violência institucional pode permitir que as comunidades, antes marginalizadas, participem ativamente na formulação de estratégias de segurança mais equitativas.

No entanto, é crucial considerar as complexidades dessa suspensão. Arendt (2022) adverte contra a passividade política, indicando que a verdadeira liberdade só é alcançada pela ação coletiva e participativa. A suspensão das operações policiais não deve ser interpretada como uma ausência permanente de poder, mas sim como uma oportunidade para redefinir e redistribuir o poder de maneira mais justa e equitativa.

Diante de tais apontamentos, constata-se que a suspensão das operações policiais, à luz do pensamento de Hannah Arendt, é um ato político significativo que impacta as dinâmicas de poder e violência. Ao interromper temporariamente as práticas que perpetuam a violência e desigualdade, cria-se espaço para a participação cidadã ativa na construção de políticas de segurança mais justas e eficazes. No entanto, é fundamental que essa suspensão seja encarada como um convite à ação e à participação, evitando assim a passividade que Arendt tão fortemente critica (Santos, 2022).

6 CONCLUSÃO

Ao término desta pesquisa, é possível vislumbrar uma compreensão mais aprofundada das tensões entre poder e violência nas favelas cariocas, proporcionada pela análise da ADPF 635 à luz do pensamento de Hannah Arendt. O objetivo geral da pesquisa consistiu em analisar como a suspensão das operações policiais nas favelas cariocas, promovida pela ADPF 635, reverbera nas dinâmicas de poder e violência, sob o prisma conceitual da filósofa política alemã.

O primeiro objetivo específico, que buscou investigar as raízes históricas e sociais das operações policiais nas favelas cariocas, foi alcançado mediante a revisão bibliográfica, que proporcionou um entendimento aprofundado das dinâmicas que moldaram a relação entre comunidades marginalizadas e forças de segurança.

O segundo objetivo específico, que se propôs a analisar o papel do poder nas relações estabelecidas entre comunidades e forças de segurança, foi atingido por meio da triangulação de conceitos de Hannah Arendt com dados empíricos, evidenciando como o poder é central na construção dessas relações.

O terceiro objetivo específico, que buscou examinar as implicações da suspensão temporária das operações policiais, considerando as contribuições do pensamento de Hannah Arendt, foi alcançado mediante uma análise crítica que revelou nuances importantes nas dinâmicas de poder e violência nas favelas cariocas.

Este estudo abre portas para investigações mais aprofundadas sobre a aplicação prática das teorias de Hannah Arendt em contextos específicos, bem como para a análise de alternativas políticas e sociais que possam emergir da suspensão temporária das operações policiais. Uma pesquisa futura poderia explorar os desdobramentos dessas mudanças nas favelas cariocas, considerando não apenas os aspectos teóricos, mas também as respostas práticas das comunidades e das autoridades. Além disso, uma análise comparativa com outras regiões do Brasil ou do mundo que enfrentam desafios semelhantes poderia enriquecer ainda mais a compreensão das relações entre poder e violência em contextos urbanos complexos.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. São Paulo: Civilização Brasileira, 2022.

ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. 4. ed. rev. trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 8. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2019.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF, ADPF 635 MC-TPI-Ref, rel. min. Edson Fachin, P, j. 05/08/2020, DJE 267 de 09/11/2020.

DUARTE, André. Poder, violência e revolução no pensamento político de Hannah Arendt. Cadernos de filosofia alemã: crítica e modernidade, v. 21, n. 3, p. 13-27, 2016.

GOMES, Maria Rita da Silva Baltazar; et al. ” Violência policial tem CEP”: gramática das emoções nas narrativas e vivências de uma família moradora do Complexo de Favelas da Maré. Repositório UERJ, 2023.

SANTOS, Rafael Pinto dos. A política criminal de segurança pública à luz da tutela da dignidade humana e do Direito Internacional Humanitário: análise do estado do Rio de Janeiro a partir de 2016. São Paulo: Editora Dialética, 2022.

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.