OS DESAFIOS DO ENSINO SUPERIOR PARA O ALUNO INDÍGENA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10530786


Ionah Beatriz Beraldo Mateus1


INTRODUÇÃO:

A motivação em pesquisar o pedagogo indígena visa encontrar respostas capazes de aprimorar a formação desses profissionais e produzir reflexões afim de orientar uma nova postura, uma mudança no conteúdo e na formação das políticas públicas em andamento. A formação do pedagogo indígena, pode ser vista nesse contexto, como uma forma de garantir os direitos à diversidade cultural e promover a autonomia dos saberes tradicional.

Dados do Instituto Semesp, divulgados em 19 de abril/2023 revelam que a participação de povos indígenas no ensino superior brasileiro aumentou 374%entre os anos de 2001 e 2021. O Semesp é o centro de inteligência analítica que representa as instituições de ensino superior no Brasil. É responsável por estudos e pesquisas realizadas anualmente, como o Mapa do Ensino Superior no Brasil, considerado essencial para a compreensão da educação superior.

A décima primeira edição do Mapa do Ensino Superior de 2022 revelam dados e estatísticas baseados no Censo Educacional de 2019, que demonstram ainda, crescimento de 66% da população indígena no pais, comparado ao Censo Demográfico de 2010. A pesquisa mostra que em 2010 havia 896 mil pessoas no Brasil que se declaravam indígenas. Destes, um total de 572 mil, ou seja,  63,8 por cento viviam na área rural e 325 mil (36,2 por cento) na área urbana. Em 2022 o Censo revela o aumento dessa população para mais de 1,4 milhão.

Ainda há poucos estudos direcionados à educação superior indígena. Logo, o surgimento de profissionais indígenas, e em especial pedagogos, é uma novidade que precisa ser referenciada para que se abra um campo crítico de avaliações e proposições para as instituições formativas e para as sociedades indígenas e não-indígenas.

OS DESAFIOS DO ENSINO SUPERIOR PARA O ALUNO INDÍGENA

A atual presença de alunos indígenas nas universidades públicas do Paraná, aponta para a necessidade de ruptura das tradicionais estruturas acadêmicas e tensiona cada vez mais, a necessidade de dar respostas às demandas relacionadas a esses alunos. Para Gehrke, Sapelli e Faustino (2019) os baixos índices de estudantes indígenas que concluem os cursos exigem mudanças e inovação. O processo lento e burocrático de formação superior, impacta negativamente na consolidação de instituições públicas interculturais.

Historicamente, a educação superior no Brasil, foi criada e aperfeiçoada para atender aos interesses políticos e desenvolvimentistas das classes dominantes. As duas primeiras faculdades de medicina do país foram criadas com a vinda da família real para o Brasil, em 1808. Alves (2008, p. 12) esclarece que:

Quando Dom João VI chegou ao Brasil, uma de suas primeiras providencias foi lançar bases para a edificação do ensino superior no país. Antes disso, a fundação de faculdades na América Portuguesa era proibida pelo Alvará Regio. Se em outras áreas coloniais da América as universidades surgiram ainda no século XVI, aqui, durante muito tempo, os filhos da elite precisavam ir para a Europa para complementarem seus estudos.

Portanto, a criação dessas faculdades estava destinada aos portugueses que acompanhavam a família real e não havia relação alguma com o desejo de popularizar a educação ou comprometer o ensino superior com a diversidade de conhecimentos existentes na colônia. Dessa forma, e seguindo a mesma direção da exploração colonial, tanto indígenas, afro-brasileiros como também a população mais pobre do país, estiveram à margem da educação superior no Brasil.

A educação nas populações indígenas tem seu marco inicial no período colonial. Sua proposta inicial tinha como objetivo difundir aspectos religiosos da igreja católica. Ao longo dos anos, esses aspectos foram incorporados ao cotidiano das comunidades indígenas, na tentativa de aproximá-los do estilo de vida e dos bens de consumo da sociedade capitalista.

Apenas por volta de 1990, houve o ingresso dos indígenas na educação superior, por meio de convênios entre a FUNAI e instituições privadas e comunitárias. Em 1996, ocorre uma importante conquista, que foi o reconhecimento da Educação Escolar Indígena como modalidade específica da educação básica no Brasil por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A partir dela, houve a ampliação da oferta da educação básica específica, bilíngue, comunitária e intercultural para as populações indígenas. Tal conquista possibilitou o acesso simultâneo e progressivo de jovens indígenas para educação superior nas últimas duas décadas no Brasil.

Nesse contexto, no Paraná em 2001, a Lei 13.134/2001 foi reconhecida como outra conquista para os indígenas através da garantia de reserva 3 de vagas suplementares nas universidades públicas brasileiras. No entanto, somente em 2003 entrou em vigor a lei nº 10.639, que alterou a lei 9.394/1996 e estabeleceu nas diretrizes e bases da educação nacional a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro Brasileira no currículo oficial da rede de ensino. A inclusão do indígena, no entanto, aconteceu apenas cinco anos depois em 2008 com a lei 11.645. No encalço dessas conquistas, em 29 de agosto de 2012, foi criada a lei Federal nº 12.711, que garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas 59 universidades federais e 38 institutos ferais de educação para o ingresso de negros, negras e indígenas.

No entanto, a inserção do aluno indígena nos espaços acadêmicos trouxe vários desafios, tendo em vista as dificuldades das Universidades em dialogar com esses povos. Segundo Silva e Ferreira (2017, p.62) “a cultura indígena é permeada de tradições, histórias, costumes e processos sociais bastante distintos da cultura capitalista”. Essas particularidades exigem uma comunicação intercultural que compreenda a dinâmica dos saberes indígenas com os conhecimentos da graduação.

Embora o ensino superior venha trabalhando para a construção da interculturalidade, como forma de minimizar as barreiras de acesso para as minorias marginalizadas, nos cursos da área de educação, permanece o predomínio do currículo tradicional.

De acordo com Arroyo (2013, p. 128) qualquer concepção educacional que adote um currículo que não permita a vivencia entre mestres e alunos encontra-se na perspectiva tradicional. Para o autor:

A vivencia curricular precisa ser construída na relação professores-alunos e na capacidade de mobilizar interesses, conceitos e competências que são questionados em seus significados diante das tensões advindas das experiências geracionais, sociais, étnicas, raciais, de gênero, do campo e da periferia (ARROYO, 2013, p.129).

Nesse sentido, é possível observar que a maioria das Instituições de Ensino Superior (IES) baseia-se em concepções curriculares tradicionais que provocam a subordinação dos saberes indígenas e com isso, impossibilita a produção de conhecimento desses povos.

A necessidade formação de professores indígenas no Paraná é inquestionável, uma vez que, há interesse por parte deles e há poucos docentes indígenas formados. O número reduzido de professores indígenas, demonstrado nas pesquisas de Menezes, Faustino e Novak (2021), revelam que,  haviam naquele ano, apenas 68 professores indígenas formados atuando nas escolas.

Acreditamos ainda que, professores, pedagogos e gestores escolares sendo também indígenas, podem assumir e escolher o sistema educativo empregado em suas escolas, visando o fortalecimento a interação da cultura destes povos.

Segundo Amaral (2010, p.50), o ambiente acadêmico regular, é marcado pela exclusão dos interesses da comunidade indígena. Deparam-se coma ausência de projetos pedagógicos que consigam complementar o mínimo dos elementos da interculturalidade indígena. Esse fato, acarreta ainda obstáculos para os indígenas recém-formados, especialmente no que diz respeito ao enfretamento em adquirir saberes hegemônicos da sociedade capitalista, e ao mesmo tempo a tarefa de aplica-los junto aos povos indígenas que desejam manter suas tradições educacionais. Gehrke, Sapelli e Faustino (2019, p.6) ressaltam as principais dificuldades enfrentadas pelos alunos indígenas que tentam frequentar instituições regulares de ensino superior:

A dificuldades de permanência nas cidades, que são distantes das Terras Indígenas, exigindo mudança de domicílio, que implica em despesas com altos valores de aluguel e distanciamento da família extensa e da comunidade; ou o uso de transporte coletivo, que chega a tomar quatro horas diárias, representando deslocamento diário, principalmente em períodos de chuva.

Ao realizar pesquisas sobre a trajetória de estudantes indígenas, Amaral (2010) constata que seu ingresso na educação superior pública é marcado por um “duplo pertencimento”. De acordo com o conceito do autor, os novos estudantes precisam ser capazes de construir uma articulação entre dois mundos: o étnico-comunitário e o acadêmico. Nisso se constitui o duplo pertencimento que envolve os saberes, as regras próprias, os costumes, as tradições e toda gama de diferentes características dos povos indígenas, juntamente, com o meio acadêmico. O meio universitário requer do estudante o conhecimento de normas e lógicas institucionais específicas da sociedade capitalista no Brasil.

Para Amaral (2010, p.42) “o duplo pertencimento expõe o estudante indígena a todas as possibilidades de perversidade, exclusões e conflitos interculturais”. Para superação desse quadro na vivencia acadêmica, é necessário conhecer e explorar tais dificuldades. É preciso revelar tais desafios para que a partir deles, se construa ambientes verdadeiramente inclusivos e democráticos.

Cabe ressaltar que a inclusão das singularidades indígenas é complexa e ampla, exigindo um redirecionamento didático-pedagógico capaz de ser aplicado na formação e consolidação dos saberes do pedagogo e que possa responder aos desafios da interculturalidade e promoção das humanidades.

Assim, tanto pedagogos indígenas como não-indígenas podem ser beneficiados pela formação transcultural que segundo Freire (2001) impacta positivamente na educação, uma vez que conseguirão integrar os diversos saberes e além disso, agregar conhecimentos reconhecidos pela comunidade indígena, sem que isso represente uma dualidade cultural e sim aspectos essenciais e complementares da formação profissional.

Contudo, observa-se que os cursos de graduação ainda estão longe de contribuir para a atuação de profissionais da educação nos contextos interculturais e às realidades plurais como as que pertencem os saberes e práticas tradicionais dos povos indígenas.

Nesse sentido e de acordo com Freire (1979, p.21)

 A pedagogia potencial aplicada na formação e consolidação dos saberes do educador deve responder aos desafios da interculturalidade e promoção das humanidades, que possuem reflexos diretos nas diversas estancias do ensino e do cuidado, de acordo com as reminiscências e patrimônios que envolvem esses grupos.

A consolidação dos saberes do educador, exige o reconhecimento mínimo quanto as diferenças dos povos indígenas, em relação ao aspecto histórico, político, social, cultural, econômico, linguístico, ecológico, para então compreender as práticas pedagógicas no contexto indígena.

Nesse sentido, as lacunas existentes entre indígenas e não indígenas no ambiente acadêmico, podem ser superadas com a prática diária da educação intercultural que evidencia as necessidades dos indivíduos em enxergar e confrontar suas próprias fronteiras culturais em direção ao outro, em relação ao diferente.

Ademais, tão ou mais importante que sensibilizar as instituições de educação superior para os desafios enfrentados pelos estudantes indígenas no meio acadêmico, é inserir o docente nos debates interculturais. Nesse sentido, acreditamos que a investigação sobre a formação do pedagogo indígena pode oferecer ricas práticas pedagógicas, agregando valor à docência, tornando-a inclusiva, ética e emancipatória.

REFERENCIAIS PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS

Dentre os vários desafios impostos para os povos indígenas, está a qualificação escolar e a formação do professor indígena. A proposta de escola indígena de qualidade – bilíngue, intercultural e específica, só será possível a partir do momento que os próprios povos indígenas estiverem a frente de todo o processo da prática escolar.

Nos últimos anos, a escola deixou de ser uma imposição da sociedade nas terras indígenas e tornou-se uma reivindicação das comunidades indígenas para construírem novas formas de se relacionar com os conhecimentos e com a sociedade. No entanto, a demanda não é de uma escola qualquer. Trata-se de um projeto específico, construído junto com as lideranças e comunidades indígenas, capaz de relacionar os conhecimentos acumulados pela humanidade e suas práticas aos conhecimentos tradicionais e seus costumes.

Neste contexto é possível observar que tal escola também não possui qualquer professor. É o professor indígena que em muitas ocasiões, faz a mediação da sua comunidade com o mundo exterior. Por isso, seu perfil é diferente em cada comunidade. Mas, alguns traços gerais podem ser identificados para sua caracterização profissional:

O professor indígena é reconhecido e se reconhece como membro de uma das sociedades indígenas do país, distinta, por um lado, da sociedade mais ampla, brasileira, e, por outro, também de outras sociedades indígenas do Brasil e do resto do mundo. E a ele estão conferidos direitos e deveres definidos nos últimos anos em textos diversos de caráter normativo (Diretrizes MEC, 1993; RCNEI, 1996, 1998; Resolução CNE nº 14/99).

De modo geral, é possível afirmar que os professores indígenas são mediadores das relações sociais que se estabelecem dentro e fora da aldeia. É como se assumissem o papel de interprete entre as culturas e sociedades diferentes. Tal responsabilidade também os coloca em muitas situações conflituosas na qual, são porta da voz da escola e também da comunidade. São os “choques culturais” relacionados a “fidelidade” entre os conhecimentos tradicionais, orientações religiosas, filosóficas e valores de seu povo e os conhecimentos universais transmitidos pela escola. A eles cabe a difícil tarefa de protagonizar a reflexão crítica sobre os diversos tipos de conhecimentos existentes e os ensinados nas escolas.

Os professores indígenas também são os incentivadores das novas gerações para a pesquisa dos conhecimentos tradicionais junto aos mais velhos. Auxiliam na difusão dos etnosaberes como forma de garantir sua continuidade e existência. São responsáveis também por estudar, pesquisar e compreender seu próprio povo.

Sendo assim, o professor indígena tem o complexo papel de transitar entre dois mundos: nas relações da sua comunidade e na sociedade geral. Nesse processo, o professor indígena precisa ser um profundo conhecedor destas realidades tão distintas. E este é o maior desafio na formação destes docentes.

Ao pensar na formação de professores indígenas, a primeira questão a se pensar é sobre a participação da comunidade. Os povos indígenas são comunitários e organizam seu modo de vida a partir do coletivo. Portanto, a formulação de uma proposta pedagógica também precisa ser coletiva. Também é preciso conhecer e identificar a história da comunidade, da escola, a situação atual, os problemas no ponto de vista da comunidade, o que esperam da escola no futuro etc. A partir dessas informações iniciais será possível planejar com maior clareza o perfil profissional a ser desenvolvido.

No entanto, gostaríamos de ressaltar que a atuação na escola indígena, exige uma formação específica para a educação intercultural e bilíngue. Além disso, essa formação precisa estar a serviço das comunidades indígenas, ou seja, é necessário desenvolver competências, valores e atitudes relevantes para que os docentes indígenas atuem em conformidade com as necessidades de seu povo. Além de estar atento as necessidades da comunidade, o professor indígena precisa dominar o conteúdo científico e transformá-lo em conhecimentos uteis para sua cultura.

Com o objetivo de oferecer subsídios aos programas da educação escolar indígena, a elaboração de currículo, definição dos materiais didáticos e orientações aos professores, o MEC publicou, em 1998, o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas – RCNEI. Segundo este documento, as escolas devem assumir as seguintes características: comunitárias, intercultural, bilíngue, específica e diferenciada.

O documento orienta o trabalho educativo diário junto às comunidades indígenas e tem caráter geral e abrangente. Com o objetivo de fomentar a pluralidade cultural e considerando os princípios da equidade entre todos os brasileiros, o referencial é pensado como sugestões de trabalho. Ressalta que seus fundamentos e orientações não devem ser aplicados em programas “fechados” como grades, e sim, adaptados a cada situação, de cada escola, em particular.

O Referencial Curricular Nacional para as escolas Indígenas está dividido em duas partes. A primeira, chamada de Para Começo de Conversa – é voltada para os técnicos das secretarias estaduais e municipais de ensino. Reúne os fundamentos políticos, históricos, legais e antropológicos que fundamentam a proposta de educação escolar indígena. A proposta é pensada como um projeto futuro, expresso pela “escola que queremos”, no diálogo com as comunidades indígenas e suas organizações. A segunda parte – Ajudando a Construir os Currículos das Escolas Indígenas – fornece referencias para a prática pedagógica dos professores (índios e não índios), ligadas diretamente à implementação e ao aprimoramento das escolas indígenas. Nessa parte, o documento dirige-se mais objetivamente, para a realidade das salas de aula e dos cursos de formação de professores indígenas.

Findadas as orientações pedagógicas, o RCNEI traz também instruções sobre os Temas Transversais, considerados relevantes para as comunidades escolares indígenas. A escolha e elaboração dos temas, segundo o próprio documento, foi feita por um grupo de professores índios com a participação de consultores. Os seis temas apresentados são:

1. Terra e conservação da biodiversidade: relacionada com a vida, saúde e existência dos povos indígenas. A terra é apresentada como “a mãe” que a todos nutre e alimenta. O desenvolvimento do tema busca conscientizar e reconhecer as inúmeras contribuições dos índios, para a conservação da fauna e da flora, devido a seus conhecimentos ancestrais.

2. Auto sustentação: discute questões relativas à sobrevivência dos povos indígenas, devido a depredação dos recursos naturais. Envolve a valorização da terra, dos territórios e das culturas como forma de garantir a manutenção da vida de índios e não índios.

3. Direitos, lutas e movimentos: diz respeito aos direitos indígenas, conquistados tanto pela Constituição de 1988, como outros textos legais nacionais e internacionais. Os textos referem-se ao fortalecimento dos movimentos indígenas para o diálogo com a sociedade, com o poder público e da representatividade de todas as etnias do país. O objetivo desta discussão é fazer valer os direitos já conquistados e conquistar novos como: a demarcação dos territórios, controle dos recursos naturais, assistências na saúde, educação, transporte e comunicação e comerciais para colocação dos produtos indígenas no mercado.

4. Ética: retrata a maneira de agir e de comportar-se das comunidades indígenas, que preocupam-se em não prejudicar o outro e nem a si mesmo. Toma por base os valores e os princípios morais das diversas comunidades, para provocar a reflexão do respeito as diferentes culturas ainda que não se concorde com elas. Ressalta que, a ética indígena baseia-se em valores como: solidariedade, generosidade, hospitalidade e respeito às coisas sagradas (mitologia, religiosidade, natureza).

5. Pluralidade cultural: aborda a diversidade de culturas existentes em diferentes grupos humanos e expõe a imensa pluralidade de sociedades indígenas existentes. Propõe que os professores pesquisem com os alunos, a cultura a qual pertencem e estimulem elementos esquecidos e desvalorizados pela escola.

6. Saúde e educação: expressa a luta dos povos indígenas pela defesa e bem-estar em seus modos de vida. Busca valorizar os conhecimentos indígenas acumulados ao longo dos séculos, demonstrando como cuidam da saúde e lidam com as doenças, para manter a comunidade com boa saúde física e mental. Relaciona ainda a saúde com o equilíbrio do ser humano e seu meio ambiente.

A partir das instruções do RCNEI, que tem como objetivo instruir os processos educativos, para os envolvidos de forma mais direta com a escola indígena (professores, técnicos, secretarias e gestores), existe ainda, um movimento federal de regulamentação da educação escolar indígena (GRUPIONI, 2008). Assim, em 1999, o Conselho Nacional de Educação elaborou um parecer e uma resolução, fixando diretrizes curriculares para a escola indígena, a serem seguidos em todas as instituições do país.

As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena foram aprovadas por meio do Parecer 14/99 em 14 de setembro de 1999. Dividido em capítulos, o Parecer apresenta os fundamentos da educação escolar indígena, determina a estrutura e os funcionamentos das escolas e propões ações concretas, para o desenvolvimento desta modalidade educacional. Também institui diretrizes e definições para a oferta da educação escolar indígena, para a formação do professor indígena e para o currículo, necessariamente flexível.

A Resolução 3/99 fixa a Diretrizes Nacionais para o Funcionamento das Escolas Indígenas. Com isso, cria-se, no âmbito da educação básica, a categoria “escola indígena” que reconhece as normas e os artigos jurídicos próprios. Este passo garante a autonomia pedagógica e curricular das escolas indígenas, para que possam definir seus objetivos de ensino e aprendizagem, atendendo as variadas realidades de cada escola. Na Resolução a escola indígena é definida por sua “localização em terras habitadas pelas comunidades indígenas”, para “atendimento exclusivo” com “ensino ministrado nas suas línguas maternas” (Artigo 2º).  Quanto a organização e gestão, leva-se em consideração as estruturas sociais, as práticas socioculturais e religiosas, as formas de produção de conhecimento, os processos e os métodos de ensino aprendizagem e as atividades econômicas. Sobre os materiais didáticos, eles devem ser produzidos de “acordo com o contexto sociocultural de cada povo” (Artigo 3º). Para Grupioni (2008), a definição aponta para o rompimento dos sistemas de ensino que tratava as escolas indígenas como uma extensão das escolas urbanas ou rurais, submetendo-as a calendários, programas e matérias que pouco ou, em nada, se adequavam a realidade indígena.

Outra conquista representada pela Resolução 3/99 é a garantia de uma formação específica para os professores indígenas. Tal formação deve conter programas diferenciados que devem ser oferecidos pelo Estado, com normas de regularização da situação profissional, e da carreira própria para o magistério indígena, realizando concursos públicos específicos para o ingresso nessa carreira.

Por meio destas resoluções definiu-se, a responsabilidade e a competência de oferta da educação escolar indígena, sendo para isso, estabelecido o regime de colaboração entre União, Estados e Municípios. No entanto, estabeleceu-se que, cabe à União legislar, definir políticas públicas, apoiar técnica e financeiramente os sistemas de ensino, com o provimento de programas de educação intercultural e de formação de professores indígenas. Aos Estados, cabe a responsabilidade de “oferta e execução escolar indígena, diretamente ou, por regime de colaboração com seus municípios, integrando as escolas indígenas como unidades autônomas e específicas no sistema estadual” (Artigo 9). Também é dever do Estado, prover as escolas com recursos humanos, materiais e financeiros, além de outras necessidades que possam decorrer. Cada secretaria de estado da educação também deve criar uma instancia específica e interinstitucional, com a participação de professores e das comunidades indígenas, para planejar e executar a educação escolar indígena diferenciada (Artigo 10).

A conquista de uma educação diferenciada, até tornar-se direito dos povos indígenas no Brasil, percorreu um longo caminho. O tratamento na forma de leis e normas foi elaborado paulatinamente, com o esforço coletivo de pesquisadores, arqueólogos, educadores e obviamente com a pressão ativa dos movimentos indígenas, professores indígenas, comunidades e lideranças organizadas, para atender suas necessidades, determinações e prerrogativas. Neste percurso, a história da educação escolar indígena não é, e nunca foi linear. O direito ao uso das línguas maternas e processos próprios de aprendizagem constantes, iniciou com a Constituição de 1988, passando para a construção LDB, do Plano Nacional de Educação, para enfim, conquistar o detalhamento do funcionamento das escolas em Terras Indígenas.

Vale destacar, que alguns textos normativos parecem considerar “superada” a luta entre as culturas, no processo de colonização. Conforme pode ser avaliado no seguinte trecho das diretrizes para educação indígena: “Esse dialogo pressupõe que a inter-relação entre as culturas, o intercâmbio entre as mesmas as contribuições recíprocas são processos aos quais todas as sociedades são e foram submetidas ao longo de sua história. (BRASIL,1994, p. 11).” O trecho citado compara o processo de interculturação indígena aos processos de outras culturas. Entretanto, considera a colonização, como um processo “normal”, de trocas e contribuições recíprocas, pelo qual todas as sociedades são e foram submetidas, ao longo da história.

Todavia, é de conhecimento geral, que as populações indígenas só conseguem o direito de existência, quando isto torna-se lei. E não é qualquer existência, mas sim com suas vontades, hábitos e costumes extirpados. Em uma análise das documentações citadas, até aqui, pode-se destacar algumas orientações gerais como: reconhecimento das diferenças e adequação do processo ensino/aprendizagem as comunidades; educar com base nos valores de respeito e tolerância ao diferente; aceitação e valorização das diferentes comunidades escolares; currículo amplo, diversificado e adequado às necessidades individuais e socioculturais, metodologias variadas para personalizar os conteúdos da aprendizagem, promover interação e a participação das comunidades. Tais orientações são legitimas e importantes, mas ainda é preciso, que os saberes tradicionais ocupem lugar, de igual valor, aos conhecimentos científicos; com gestão participativa, em que as decisões sejam tomadas junto das comunidades de alunos, de professores e de gestores indígenas.

Quando a diversidade é respeitada tanto dentro, como fora, da área educacional, a emancipação humana e a conquista de uma sociedade mais justa, torna-se mais real e possível. No entanto, vale ressaltar o quanto este processo é complexo, pois a valorização e o reconhecimento das diferenças, como meio de individuação humana, requerem um olhar atento, crítico e amplo.

A educação pode contribuir para o reconhecimento da diversidade humana em suas relações humanas-culturais-sociais, bem como, nas divergências impostas pelo sistema social, que dificulta o acesso à moradia, ao trabalho e às demais dimensões da vida. É certo que a escola pode contribuir em relação a diversidade humana, seja cultural, étnica, religiosa e em suas inúmeras expressões de particularidades. Ela permite acesso ao conhecimento, as reflexões, as informações, as pesquisas, as discussões, aos relatos de experiências, promovendo análises e sínteses. Inclusive, a educação crítica e revolucionária, está sempre atenta à diversidade e às diferenças, posicionando-se contra opressões e preconceitos, em suas múltiplas facetas.

No entanto, a escola enquanto instituição social, só pode agir dentro de seus limites. Ela não tem alcance para resolver as questões   como a precariedade das Terras Indígenas, que ainda hoje estão sem a devida demarcação. Isto sem contar, a falta de acesso a moradias dignas, a saúde, a alimentação e a educação. Portanto, entender criticamente que tais problemas não podem ser resolvidos via educação, é fundamental. Isto porque, as funções das políticas públicas pertencem as diferentes esferas governamentais. Não é demais frisar o quanto a história brasileira é marcada pela violência e o extermínio que os povos originários sofreram no domínio dos europeus e dos colonizadores. Esta conformação, ao longo da ocupação geográfica do vasto território do país, constituiu mais do que diversidades culturais. Ela gerou, sobretudo, desigualdades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Transcorridas duas décadas de políticas de acesso ao ensino superior, de investimentos públicos, debates, estudos e discussões, apenas 300 professores indígenas atuam nas escolas das aldeias. O baixo número de docentes indica que este modelo de ingresso ao ensino superior, não é suficiente para garantir a formação de professores indígenas.  Não se trata de desvalorizar as inúmeras ações, lutas, investimentos e conhecimentos promovidos nestas décadas. Mas falta ainda, que as políticas governamentais de acesso ao ensino superior, voltadas às populações indígenas, considerem o sentido coletivo ou comunitário presente no cotidiano das aldeias. Além de ser, uma diferença fundamental de perfil individual ou profissional que, conforme destaca Amaral (2010), os estudantes indígenas carregam consigo as vivencias, os pertencimentos, as expectativas e as necessidades coletivas de sua aldeia ou comunidade. Paladino (2012, p.13) também afirma que:

Ademais, existe ainda um número imenso de estudantes indígenas que não tem nenhum tipo de apoio institucional, sendo sustentados exclusivamente pela rede familiar ou comunitária. Não existe até hoje uma política de governo destinada a estimular a permanência de indígenas no ensino superior. As ações de permanência existentes são planejadas e desenvolvidas por iniciativas das próprias universidades ou em convênios e acordos.

Diante desse contexto, a formação de pedagogos indígenas ganha maior valor, pois a busca por cursos das áreas de Direito, Enfermagem e Pedagogia, indica a preocupação das comunidades indígenas em preparar lideranças capazes de representar os interesses e os direitos de seus povos. Há ainda, o real interesse de se apropriarem do conhecimento científico para galgarem conquistas mais justas, nas questões específicas como a luta pela terra e o direito a saúde e a educação. Nesse sentido, a discussão sobre as políticas de inserção das populações indígenas no Ensino Superior, é fundamental para que aumentem as oportunidades destes povos, tanto no âmbito nacional como no Paraná, o estado pioneiro no Brasil, na oferta de vagas sobressalentes nas instituições de Ensino Superior públicas para as populações indígenas.

 Denota-se que este é um processo em curso e que tal debate precisa avançar muito. A aprovação da Lei de Cotas para Universidades Federais pode qualificar o debate a medida que, para viabilizar as condições materiais e pedagógicas de permanência de todos no Ensino Superior, deve gerar inclusive reflexões não apenas sobre o acesso, mas também sobre as formas concretas de oferecer a permanência de estudantes da classe trabalhadora e de diferentes grupos culturais que não têm condições financeiras de arcar com os custos dos estudos. Para estes, “não se pode atribuir a responsabilidade exclusiva pelo seu desempenho e formação, pois as construções que estão se inserindo são de ordem social (NOVACK, 2014, p. 135).

Vale ressaltar que, a educação baseada em direitos culturais é um processo historicamente novo no Brasil e ainda em construção. No caso dos povos indígenas, a luta por seus territórios e pela sua sustentabilidade são questões prioritárias e só recentemente, as universidades se oferecem como mecanismos de apoio para que alcancem tais objetivos. Entretanto, o apoio destas instituições precisa extrapolar as garantias legais. É significativo observar que as instituições de ensino, as reformas educacionais e a legislação analisada até aqui, fundamentam-se em uma sociedade de classes que as mobilizações educacionais são guiadas por preocupações e competições econômicas. Portanto, é um modelo de organização social que não interessa aos povos indígenas.

Segundo Baniwa (2012, p.71) “o modelo de escola convencional trazida e implantada pelos portugueses é totalmente estranho às culturas indígenas, mas aos poucos foi sendo necessária para a vida pós-contato”.  Portanto, se hoje, a escola é um mal necessário nas comunidades indígenas, é preciso garantir minimamente as melhores condições de permanência e conclusão dos cursos, pelos indígenas. Para tanto, Baniwa (2012) afirma que é preciso interpretar melhor o significado de qualidade de educação nas aldeias, e o que os povos indígenas anunciam como requisito para se relacionarem com a sociedade nacional em condições mais iguais.

Referencias :

Alves, G. 200 anos de ensino superior. Revista de História, São Paulo. n.159, p.11-34, jun/dez.2008.

Amaral,W. R. As trajetórias dos estudantes indígenas nas universidades estaduais do Paraná: sujeitos e pertencimentos. 2010. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010.

Arroyo, M. G. Currículo, território em disputa. Rio de Janeiro: Editora Vozes; 2013.

BANIWA, Gersem. Os saberes indígenas e a escola: é possível e desejável uma escola indígena diferenciada e intercultural? Belo Horizonte:XV ENDIPE, 2012.

Brasil. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB. 9394/1996.

____ Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar / Elaborado pelo comitê de Educação Escolar Indígena. – 2 ed. Brasília: MEC/ SEF/DPEF, 1994. 24 p. (Cadernos de Educação Básica. Série Institucional.

Freire, P. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1979.

Freire, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro : Paz e Terra; 2001.

Gehrke, M.; Sapelli, M.L.; Faustino. R.C. A formação de pedagogos indígenas em alternância no Paraná: uma contribuição à interculturalidade e ao bilinguismo. Revista Brasileira de Educação do Campo, Tocantinópolis. v 4, p.22-48, jun/dez. 2019.

Grupioni, L. D. B. Olhar longe, porque o futuro é longe. Cultura, escola e professores indígenas no Brasil. 2008. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

Paladino, C. I. Vida Indígena no Paraná: memória, presença, horizontes. Curitiba: PROVOPAR, Paraná, 2012.

Silva, A.; Ferreira A. As afirmativas no ensino superior e povos indígenas no Brasil. Revista Educação Pública, Niteroi. v.24, n.8, p. 57- 75, jan/março.2017.


1Professora colaboradora da Universidade Estadual do Centro Oeste e doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Estadual do Centro Oeste.