O DIREITO DIREITO DE FAMÍLIA BRASILEIRO ANTERIOR À CONSTITUIÇÃO DE 1988

BRAZILIAN FAMILY LAW PRIOR TO THE 1988 CONSTITUTION

REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.10501120


Danilo Sanchez Pacheco


RESUMO

O presente estudo tem por objeto a análise do direito de família brasileiro anterior à Constituição de 1988. Com o intuito de compreender o passado do Direito de Família para melhor se compreender o seu presente, a pesquisa conclui que o Direito de Família brasileiro anterior à Constituição de 1988 era marcado fortemente pelas tradições religiosas e pelo contexto patriarcal, tradições estas que foram perdendo força paulatinamente durante o século XX diante de novos costumes e valores sociais. Foi justamente esta alteração de valores que deu causa à reforma do Direito de Família brasileiro e, no limite, à construção de um novo Direito de Família, baseado em novos fundamentos que não mais a religião, a moral e costumes patriarcais, mas, sobretudo, no afeto.

Palavras-chave: Direito de Família; História do Direito de Família Brasileiro; Casamento; Constituição de 1988.

ABSTRACT

The present study aims to analyze Brazilian family law prior to the 1988 Constitution. In order to understand the past of Family Law in order to better understand its present, the research concludes that Brazilian Family Law prior to the Constitution 1988 was strongly marked by religious traditions and the patriarchal context, traditions that gradually lost strength during the 20th century in the face of new customs and social values. It was precisely this change in values ​​that gave rise to the reform of Brazilian Family Law and, ultimately, the construction of a new Family Law, based on new foundations that no longer religion, morals and patriarchal customs, but, above all, in affection.

Keywords: Family Law; History of Brazilian Family Law; Marriage; Constitution of 1988.

1. INTRODUÇÃO

O Direito de Família no Brasil pode ser dividido em três períodos históricos: (1) do Brasil Colônia à época do Brasil Imperial, ou seja, de 1500 a 1889, tempo em que o Direito de Família era regido integralmente pelo direito canônico, religioso; (2) da Proclamação da República, em 1889, até a Constituição Federal de 1988, tempo em que houve mudanças gradativas e profundas no Direito de Família; (3) da Constituição de 1988 aos dias atuais, em que vige um Direito de Família plural, igualitário e solidário (LÔBO, p. 39, 2020).

Esta divisão histórica, esboçada pela doutrina, é, sem dúvida alguma, meramente didática. Com efeito, o pensamento e os valores jurídicos raramente mudam de um dia para o outro, de um ano para o outro, como faz parecer crer a sistematização histórica feita. Na verdade, o que ocorre, em regra, é a mudança gradual e constante dos valores sociais – que ocorrem naturalmente, eis que as sociedades humanas, seus valores e costumes não são estanques, mas mutáveis quando olhados numa perspectiva histórica – que acabam por influenciar o Direito. Em específico, a família e, consequentemente, o Direito de Família, são “realidade em movimento”, nas palavras de Ricardo Calderón:

É inegável que a família é antes de tudo uma manifestação sociológica, cultural e social, preexistindo a qualquer categoria jurídica. Estas expressões sociais em dada coletividade são as que são captadas pelo Direito para definir seus conceitos. Tanto é verdade que outras ciências constroem suas definições relacionadas aos agrupamentos familiares diretamente a partir desta realidade fática, o que se dará com a sociologia, antropologia, psicologia, psiquiatria etc. A leitura jurídica retrata apenas um recorte específico desta realidade pelo Direito, em um dado momento e local, para procurar atender à sua finalidade.

O que se ressalta na análise da família é a percepção de que ela está em movimento constante, amoldando-se de acordo com o contínuo caminhar social. Muito mais do que instituto jurídico, família é realidade em movimento. Exemplo disso se dá com a presença da afetividade nos relacionamentos familiares, que, de anteriormente irrelevante, cada vez mais se evidencia, e com intensidade de tal ordem que não permite mais que seja ignorada pelo Direito (CALDERÓN, 2017, p. 38).

Tendo isto em vista, a divisão histórica feita doutrinariamente, sendo meramente didática, não deve ser compreendida ao pé da letra. O Direito de Família não se alterou do dia para noite, por exemplo, com a Proclamação da República, em 1889, nem com a promulgação do Código Civil de 1916, etc. Justamente por isso, ressalva-se que a análise histórica do Direito de Família brasileiro procedida a seguir não se enquadra nas amarras históricas rígidas apontadas pela doutrina acima. Diversamente, propomos, para este trabalho, a divisão histórica do Direito de Família em dois: antes e depois da Constituição de 1988, com a ressalva de que toda divisão histórica é mais ou menos didática.  Nessa linha de pensamento, denominou-se o Direito de Família pré-Constituição de 1988 de Direito de Família anterior; ao Direito de Família pós-Constituição de 1988, chamou-se de Direito de Família atual.

Essa divisão se justifica porque facilita a compreensão do estado atual do Direito de Família no Brasil, que é marcado profundamente pelas novidades consagradas na Constituição de 1988 relativas ao Direito de Família. Quer-se, assim, compreender o passado do Direito de Família para melhor se compreender o seu presente – e não a elaboração de um trabalho sobre História do Direito de Família brasileiro. Com efeito, a visão histórica e evolutiva é imprescindível, pois só por ela se pode contextualizar e se compreender adequadamente os traços e características gerais do Direito de Família que atualmente vigora no Brasil e, mais especificamente, se compreender o estado atual do sistema jurídico brasileiro de filiação.

2. O DIREITO DE FAMÍLIA ANTERIOR À CONSTITUIÇÃO DE 1988

Até o final do século XIX, o Direito de Família brasileiro teve o direito canônico e o direito português como principais fontes históricas. As leis civis das Ordenações reproduziram várias regras do direito canônico, a exemplo do princípio da indissolubilidade do vínculo matrimonial, adotando-se o desquite como forma de dissolução da sociedade conjugal, e dos impedimentos matrimoniais. Em quase todos os institutos de Direito de Família da época percebe-se a influência do direito canônico. Desta maneira, a religião e a moral, ao influenciarem a formação dos costumes familiares, tiverem grande influência na formação da legislação que o Estado ditou para regular a constituição da família e as relações dela provenientes no Brasil. Em palavras conclusivas, diz Orlando Gomes que o Direito de Família brasileiro é “dominado realmente pelas concepções religiosas e éticas do catolicismo (…)” (GOMES, 1981, p. 11). Tal é a influência de fontes religiosas, morais e de costumes sobre o Direito de Família que Pontes de Miranda chega a afirmar que a interpretação das suas regras não se deve informar do mesmo modo que as outras regras do direito civil (MIRANDA, 2001, p. 81). Deste cenário, fica claro que a religião, a moral e os costumes foram as bases de todo o Direito de Família brasileiro até o final do século XIX e começo do século XX.

A partir destes valores e normas sociais, que de uma ou de outra maneira se tornaram normas jurídicas, justifica-se o fato de o Direito de Família brasileiro anterior ser profundamente diverso do Direito de Família pós-Constituição de 1988, atual. Com efeito, os valores sob os quais foi erigido o Direito de Família anterior (religião, moral e costumes da época) são distintos dos valores sob os que vêm sendo construído o Direito de Família atual.

Nesse sentido, diversamente do que ocorre na atualidade, o Direito de Família anterior esteve sempre centrado na instituição do casamento, que possuía importantes funções econômicas, políticas, religiosas e sociais. Do casamento ou de sua ausência surgiam diversas consequências jurídicas aos fatos sociais. Exemplo claro disso é que o matrimônio tornava as relações decorrentes – relações familiares – legítimas ou ilegítimas.

Com efeito, a ideia de família para o Direito brasileiro sempre foi a de que ela é constituída de pais e filhos unidos a partir de um casamento regulado pelo Estado (PEREIRA, 2020). Ao lermos os autores clássicos do Direito de Família brasileiro, é a esta a conclusão que se chega. Clóvis Beviláqua anota que “a base da família é o casamento” (BEVILÁQUA, 1977, p. 483) e que “a família constitui-se pelo casamento” (BEVILÁQUA, 1976, p. 23). Lafayette Rodrigues Pereira considerava o casamento como “fundamento legítimo da família” (PEREIRA, 2004, p. 21).

No mesmo sentido, as Constituições de 1937, 1946, 1967 e 1969 traziam em seu texto o casamento indissolúvel como a única forma de se constituir uma família (PEREIRA, 2020, p. 15). E, por fim, nessa linha, Silvio Rodrigues escrevia, em 1975, que:

A família se apresenta, portanto, como instituição que surge e se desenvolve do conúbio entre o homem e a mulher e que vai merecer a mais deliberada proteção do Estado, que nela vê a célula básica de sua organização social (RODRIGUES, 1975, p. 6).

Em suma, o casamento era, então, a fonte da família legítima, base central do Direito de Família anterior, tanto antes como após a promulgação do Código Civil de 1916. Era a única forma legítima de família; fora daí, recebiam o selo da ilegitimidade, de família espúria que não merecia a proteção do Estado. Praticamente todo o regime jurídico de Direito de Família se baseava na família oriunda do casamento. Em outras palavras, a chamada família ilegítima não teve grande relevo no Código Civil de 1916, preferindo o legislador quase que ignorá-la, com poucas disposições referentes à família surgida à margem do casamento (PEREIRA, 2020, p. 8).

A importância dessa constatação histórica é que, como aponta Orlando Gomes, as regras do Código Civil de 1916 dirigiam-se à família legítima, que se constituía, unicamente, pelo casamento, que regulava as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, estabelecidas como efeitos jurídicos do matrimônio. A filiação, o parentesco e o pátrio-poder eram ordenados para a família legitimamente fundada (GOMES, 1981, p. 42). Ou seja, o regime jurídico do direito de família praticamente se restringia às relações provenientes do casamento.

Antecedente da união estável, o concubinato não era fonte de família legítima. Entendido como a união do homem e da mulher fora do casamento, de caráter estável, mais ou menos prologada, para o fim da satisfação sexual, assistência mútua e dos filhos comuns e que implica uma presumida fidelidade da mulher ao homem, raras eram as menções que o Código Civil de 1916 fazia ao concubinato (arts. 248, IV, 1.177, 1.719, III, etc.); e, quando o fazia, era apenas com o propósito de proteger a família legítima e nunca para reconhecer uma situação de fato merecedora de amparo (RODRIGUES, 1975, p. 241).

Não se falava, assim, em outras espécies de família que não a matrimonial, como a união estável e a família monoparental. Consequentemente, as relações jurídicas que advinham dessas relações sociais possuíam regime jurídico distinto – e, muitas vezes, discriminatório – quando comparadas às relações jurídicas advindas do casamento. Por exemplo, as relações de filiação eram marcadas por adjetivações discriminatórias em função da existência, ou não, de prévio casamento entre os genitores, o que será objeto de aprofundado no capítulo seguinte deste trabalho.

Outra grande influência da religião, da moral e dos costumes da época sobre o Direito de Família do final do século XIX e do começo do século XX pode ser visto na condição da mulher casada. Os avanços ocorridos nesta matéria ao longo do tempo é um ótimo exemplo de manifestação dos avanços históricos graduais do Direito de Família brasileiro anterior à Constituição de 1988.

  Com efeito, Lafayette Rodrigues Pereira, a partir das Ordenações Filipinas, ou seja, antes do advento do Código Civil de 1916, dizia que

O marido figura na cena jurídica debaixo de três caracteres: como chefe da sociedade conjugal; como sócio com direito seus; e finalmente, como representante da mulher em tudo que diz respeito aos direitos e interesses particulares dela. Ao marido, em virtude do poder marital, compete: 1º. O direito de exigir obediência da mulher, a qual é obrigada a moldar suas ações pela vontade dele em tudo que for honesto e justo; 2º. O direito de escolher e fixar o domicílio conjugal, no qual a mulher deve acompanha-lo; 3º. O direito de representar e defender a mulher nos atos judiciais e extrajudiciais; 4º. O direito de administrar os bens do casal, podendo dispor dos móveis livremente, dos imóveis com as restrições da lei. (…)

O direito de fixar o domicílio e de autorizar a profissão da mulher com a faculdade de residir fora do teto conjugal são consequências perfeitamente justificáveis e naturais da autoridade cometida ao marido. A mulher pode fazer os seus cursos, obter diplomas, formar-se em direito, medicina, engenharia, ser habilitada como industrial, comerciante, etc., mas para exercer qualquer dessas profissões terá de obter a autorização do marido. Do exercício de tais profissões resultam encargos, obrigações que só tem valor jurídico havendo o consentimento marital (PEREIRA, 2004, p. 107).

Com a posterior promulgação do Código Civil de 1916, percebe-se já que a condição jurídica da mulher casada começava avançar. De fato, o Código de Beviláqua trazia normas relativamente avançadas quando comparadas ao direito anterior das Ordenações, mostrando que a gradual emancipação da mulher, dentro do lar, já ocorria mesmo na época de promulgação do Diploma Civil de 1916 (BEVILÁQUA, 1977, p. 588). Nesse sentido, Silvio Rodrigues previa, de certa maneira, que “a posição de integral submissão da mulher casada no passado tende a se tornar de absoluta igualdade, pela substituição das regras que, de qualquer modo, a colocavam em situação inferior” (RODRIGUES, 1975, p. 144). 

Por exemplo, o artigo 240 do Código de 1916 declarava assumir a mulher, pelo casamento, os apelidos do marido e a condição de consorte e companheira – em situação de igualdade, pois, ao marido -, assim como o artigo 246 conferia direitos negados ao marido, a exemplo do direito de dispor livremente do produto de seu trabalho.

Não obstante os avanços consagrados pelo Código Civil de 1916 no tema da condição da mulher casada quando comparado ao direito anterior das Ordenações, é certo que remanescia no Diploma de Beviláqua grande discriminação quanto à mulher casada. Na realidade, pode-se dizer que o Código de 1916 já mostrava, de certa maneira, o caminho de “emancipação progressiva da mulher na legislação brasileira” (LÔBO, 2020, p. 67) que iria percorrer a condição da mulher casada no Direito de Família brasileiro, consistindo uma espécie de “meio termo” entre a situação jurídica anterior ao Código de 1916 (Ordenações) e a situação jurídica atual.

Como anota Silvio Rodrigues, o Código de 1916, talvez preso à tradição, talvez inspirado na crença de que a mulher ainda não contava com experiência igual à do homem, talvez com o exclusivo propósito de protegê-la ou de garantir a harmonia da vida conjugal – talvez por todos esses motivos, “contém considerável número de dispositivos que discriminavam contra a mulher”, sendo “a mais humilhante de todas essas regras era, decerto, a do artigo 6º, que arrolava a mulher casada entre os incapazes” (RODRIGUES, 1975, p. 143-144).

O artigo referido é o artigo 6º, inciso II, do Código, que estabelecia a incapacidade relativa da mulher casada durante a constância do casamento. Em seus comentários ao dispositivo legal, Clóvis Beviláqua demonstra o “meio termo” a que nos referimos:

(…) na realidade, essa incapacidade está muito reduzida, é quase meramente formal, como se poderá ver dos artigos 233 a 255. Efetivamente, se ao marido compete a representação legal da família, a administração dos bens comuns, e dos próprios da mulher, segundo o regime adotado; se ao homem, como chefe da sociedade conjugal, cabe o direito de fixar o domicílio da família e de autorizar a profissão da mulher; esta, por sua vez, goza de direitos extensos, no círculo das relações domésticas, e tem meios de conter e fiscalizar a ação do marido (BEVILÁQUA, 1977, p. 588).

Exemplo análogo pode ser visto no artigo 233 do Código Civil de 1916. O dispositivo legal, ao estabelecer o homem como chefe da sociedade conjugal, demonstra de plano a desigualdade entre os cônjuges ainda existente à época, mas, Clóvis Beviláqua, ao comentar a norma legal, anota que

desse direito do marido não se infere qualquer superioridade, porquanto não somente ao declarar quais os deveres comuns dos cônjuges (…), teve o legislador pátrio o cuidado de manter a mulher casada em situação jurídica igual à do marido, libertando-a de uma inferioridade, que não se compadecia mais a concepção atual da vida (BEVILÁQUA, 1977, p. 588).

Em síntese, conclui-se que o Código Civil de 1916 manteve a posição inferior da mulher casada em relação ao homem, considerado chefe de família, embora tenha previsto alguns avanços quando comparado ao direito das Ordenações.  Essa também é a conclusão de Paulo Lôbo:

O Código anterior [referindo-se ao Código de 1916], tão liberal no plano econômico, era extremamente opressor da mulher, no direito de família. Sem os exageros do período colonial, considerava a mulher relativamente incapaz – ao lado dos filhos, dos pródigos e dos silvícolas – e sujeita permanentemente ao poder marital. Não podia a mulher, sem autorização do marido, litigar em juízo cível ou criminal, salvo em alguns casos previstos em lei; ser tutora ou curadora; exercer qualquer profissão; contrair obrigações ou aceitar mandato. Era tida como auxiliar do marido (LÔBO, 2020, p. 67).

Avanços consideráveis no regime jurídico da mulher casada, no entanto, ocorreram posteriormente à promulgação do Código de 1916, ainda durante o Direito de Família anterior à Constituição de 1988, notadamente com a edição do Estatuto da Mulher Casada, Lei nº 4.121/1962, que, na opinião de Silvio Rodrigues,

(…) pôs termo à vigência de todas ou de quase todas as regras que, de qualquer modo, discriminavam contra a mulher. Aliás, foi mais adiante, pois aumentou as vantagens que a mulher tinha sobre o marido (…). De modo que hoje, dentro do campo jurídico, a situação da mulher e do homem casados é de igualdade e as diferenças eventuais, porventura remanescentes, ou a beneficiam, ou resultam de invencível imposição da natureza (RODRIGUES, 1975, p. 145).

Vê-se, assim, que a condição jurídica da mulher casada é bom exemplo dos avanços históricos graduais do Direito de Família brasileiro anterior à Constituição de 1988.

Além da condição da mulher casada, outras mudanças gradativas e profundas ocorreram no seio do Direito de Família brasileiro após a promulgação do Código Civil de 1916, já na segunda metade do século XX – mas antes da Constituição de 1988.

Orlando Gomes apontava em 1981 que o traço dominante da evolução da família é a sua tendência a se tornar um grupo cada vez menos organizado e hierarquizado e que cada vez mais se funda na afeição mútua. O direito de família moderno, segundo o autor, substitui os antigos princípios pelo princípio do fundamento do casamento e da vida conjugal, pelo princípio da paridade dos cônjuges e pelo princípio da igualdade de todos os filhos (GOMES, 1981, p. 23).

Já foi comentado sobre a disparidade dos cônjuges na vigência do direito pré-codificado (Ordenações) e do Código Civil de 1916, que foi sendo atenuada ao longo do tempo, notadamente após a edição do Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/62). A análise sobre a desigualdade dos filhos será feita no capítulo seguinte desta obra. Resta, então, comentar sobre o princípio do fundamento do casamento durante a vigência do Código Civil de 1916.

Como foi visto, todo o Direito de Família anterior à Constituição de 1988 era erigido basicamente sobre o matrimônio em razão dos valores religiosos e morais da época.  Entretanto, o fundamento, a ratio do casamento e da vida conjugal mudou foi se alterando gradativamente ao longo do tempo. O que surgiu de novo, sobretudo durante a segunda metade do século XX, foi a tendência para fazer a afetividade, a affectio, a ratio única do casamento. A partir desta nova perspectiva valorativa, a dissolução do vínculo matrimonial passou a ser admitida como um efeito do desaparecimento da sua ratio, com a introdução e admissibilidade do divórcio sempre que a comunhão espiritual e material de vida entre os cônjuges não pudesse ser mantida, ou reconstituída.

Assim, a família, entendida até então como um núcleo econômico e de reprodução (MADALENO, 2020, p. 5), passou a ser o espaço do amor e do afeto, o que abriu portas para a dessacralização do casamento, para o esmaecimento do contexto patriarcal e da ideia religiosa de indissolubilidade do vínculo conjugal (PEREIRA, 2020, p. 108).

A realização pessoal da afetividade, no ambiente de convivência e solidariedade, passou a ser a função básica da família. Suas antigas funções feneceram, desapareceram ou passaram a desempenhar papel secundário. Até mesmo a função procracional, com a secularização crescente do direito de família e a primazia atribuída ao afeto, deixou de ser sua finalidade precípua (LÔBO, 2020, p. 16).

Nesse cenário, a dissolução do vínculo matrimonial foi possibilitada pela Emenda Constitucional nº 9/77, vindo então a Lei nº 6.515/77 a alterar profundamente o sistema do Direito de Família da época que repousava na indissolubilidade do casamento. Dentre outras mudanças, a Lei nº 6.515/77 aboliu a palavra desquite e substituiu-a pela expressão separação judicial; determinou que o regime da comunhão parcial passasse a ser o regime legal; atribuiu igualdade no direito à herança aos filhos de qualquer condição, etc. Dessa forma, a separação legal (antigo desquite) passou a poder ser convertida em divórcio. A situação anormal a que conduzia o desquite levou o legislador, afinal, a transformá-lo num “prelúdio do divórcio”, com a obrigatoriedade da conversão (não podendo ser negado o pedido de conversão da separação em divórcio).

Então, como ensina Paulo Lôbo, a Lei nº 6.515/1977 rompeu com uma resistência secular capitaneada pela Igreja Católica, propiciando aos cônjuges, de modo igualitário, oportunidade de finalizarem o casamento e de constituição livre de nova família, além de promover outras alterações na legislação civil no sentido da igualdade conjugal, transformando em faculdade, por exemplo, a obrigação de a mulher acrescer aos seus o sobrenome do marido. Por outro lado, diz o autor, manteve a proeminência do marido na chefia da família estabelecido pelo Estatuto da Mulher Casada (LÔBO, 2020, p. 69).

3. CONCLUSÃO

Enfim, todas as anotações feitas mostram que as mudanças dos valores da sociedade, que ocorrem de forma gradual e constante, acabam influenciando a formação do Direito em geral e do Direito de Família em específico, não havendo que se falar, portanto, em marcos históricos rígidos para a compreensão do Direito de Família brasileiro. Além disso, as considerações feitas também mostram que o Direito de Família é fortemente marcado pelos costumes e pela cultura da sociedade, o que explica a sua grande mutabilidade quando visto em perspectiva histórica.

Em síntese, conclui-se que o Direito de Família brasileiro anterior à Constituição de 1988 era marcado fortemente pelas tradições religiosas e pelo contexto patriarcal, tradições estas que foram perdendo força paulatinamente durante o século XX diante de novos costumes e valores sociais. Foi justamente esta alteração de valores que deu causa à reforma do Direito de Família brasileiro e, no limite, à construção de um novo Direito de Família, baseado em novos fundamentos que não mais a religião, a moral e costumes patriarcais, mas, sobretudo, no afeto.

4. REFERÊNCIAS

BEVILÁQUA, Clóvis. Direito de Família. Ed. Histórica. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.

BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Edição histórica. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1977, v. 1.

LÔBO, Paulo. Direito civil: Famílias. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020, v. 5.

CALDERÓN, Ricardo. Princípio da afetividade no direito de família. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

GOMES, Orlando. Direito de Família. 4ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

MADALENO, Rolf. Direito de Família. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito de Família. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 2001, v. I.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de Família. Ed. Fac-similar. Brasília: Conselho Editorial do Senado, 2004.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Direito de Família. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 1975, v. 6.


ORCID: https://orcid.org/0009-0007-2017-7603
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, Brasil
E-mail: dspacheco.pessoal@gmail.com