UMA ANÁLISE CRÍTICA DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE A LUZ DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO DIREITO BRASILEIRO

A CRITICAL ANALYSIS OF THE APPLICATION OF THE “IN DUBIO PRO SOCIETATE” PRINCIPLE IN LIGHT OF THE CONSTITUTIONAL PRINCIPLE OF PRESUMPTION OF INNOCENCE IN BRAZILIAN LAW

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10263356


Flavia Barroso de Lima Almeida¹


RESUMO

Este artigo realiza uma análise crítica da aplicação do princípio “in dubio pro societate” à luz do princípio constitucional da presunção de inocência no contexto do direito brasileiro. O objetivo principal é conciliar esses dois princípios fundamentais, examinando especialmente a decisão de pronúncia como um ponto crucial no processo penal. A pesquisa utiliza uma abordagem bibliográfica e análise de conteúdo, explorando as origens históricas e legais da presunção de inocência e do princípio “in dubio pro societate”. Destaca-se a importância da decisão de pronúncia como um momento de convergência entre a proteção da sociedade e a presunção de inocência do acusado.

Palavras-chave:  Decisão de pronúncia. Direito brasileiro. In dubio pro societate. Presunção de inocência. Processo penal.

ABSTRACT

This article critically analyzes the application of the “in dubio pro societate” principle in light of the constitutional principle of the presumption of innocence in law. The main objective is to reconcile these two fundamental principles, focusing on the decision to indict as a crucial point in the criminal process. The research employs a bibliographical approach and content analysis, exploring the historical and legal origins of the presumption of innocence and the “in dubio pro societate” principle. Emphasis is placed on the significance of the indictment decision as a convergence between protecting society and the accused’s presumption of innocence.

Keywords: Criminal process. Indictment decision. In dubio pro societate. Presumption of innocence.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece, em seu artigo 5º, inciso LVII, o princípio da presunção de inocência, também conhecido como “in dubio pro reo“. Este princípio é um pilar fundamental do processo penal brasileiro, assegurando que nenhum indivíduo seja considerado culpado até que sua culpa seja comprovada de maneira irrefutável. Dessa forma, tal disposição reflete o compromisso do Estado com a proteção dos direitos fundamentais dos acusados e com a prevenção de condenações injustas.

Por outro lado, o princípio “in dubio pro societate” é uma diretriz jurídica que preconiza que, na incerteza, a decisão deve favorecer a sociedade e a ordem pública. Este princípio é aplicável nos casos em que não há provas suficientes para condenar ou absolver um acusado, mas é necessário garantir a ordem e a segurança pública. A tensão entre o “in dubio pro reo” e o “in dubio pro societate” no contexto do processo penal brasileiro gera questões cruciais que demandam análise aprofundada.

Consequentemente, é possível afirmar que a decisão de pronúncia, prevista no art. 413 do Código de Processo Penal (CPP), desempenha um papel preventivo, preparatório e de segurança, marcando a transição para a fase de julgamento final. Nesse momento, o juiz assume a responsabilidade de exercer uma função saneadora (AQUINO, 2004), cujo objetivo primordial é avaliar a verossimilhança das imputações formuladas na denúncia (MARQUES, 1963). Essa abordagem visa, antes de tudo, resguardar a presunção de inocência contra acusações infundadas, ao mesmo tempo em que evita que o aparato judiciário incorra em despesas e procedimentos fúteis decorrentes dessas acusações (ALMEIDA, 1973).

Diante dessa interseção entre o “in dubio pro societate” na decisão de pronúncia e a presunção de inocência, surge a problemática central desta pesquisa: como conciliar o princípio “in dubio pro reo” e o “in dubio pro societate” no contexto do processo penal brasileiro, ambos fundamentais no direito brasileiro? Para tanto, a presente investigação tem como objetivo analisar e descrever a (im)possibilidade de conciliar o princípio “in dubio pro reo” e o “in dubio pro societate” no contexto do processo penal brasileiro.

Com vistas a alcançar o objetivo da pesquisa, optou-se pelo uso da metodologia, utilizando meios do tipo bibliográfico e documental. Quanto aos fins, trata-se de uma pesquisa de cunho descritivo.

O artigo está estruturado em seções distintas. Inicialmente, são expostas as considerações iniciais, onde são delineados o problema, o objetivo e a metodologia da pesquisa. Posteriormente, é explorado o referencial teórico, que aborda o tema central desta investigação. Por fim, o estudo é encerrado com as considerações finais, seguidas pela lista de referências que fundamentaram a pesquisa.

2. A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO DIREITO BRASILEIRO: BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA E CONSOLIDAÇÃO COMO GARANTIA FUNDAMENTAL

A urgência em estabelecer limites ao exercício arbitrário do poder estatal e garantir a proteção dos interesses individuais no âmbito da persecução penal é um dos motores que conduziu, ao longo da história da humanidade, à consolidação do princípio da presunção de inocência. Este princípio se tornou fundamental para contrapor-se à aplicação precipitada e arbitrária de sanções, exigindo que a culpabilidade seja formalmente estabelecida por meio de decisão judicial. Como observado por Whitman (2016) em relação à necessidade de limitar o Estado em uma sociedade civilizada, pessoas em todo o mundo ocidental concordam com a mesma proposta fundamental: uma sociedade civilizada deve impor limites ao Estado na administração da justiça criminal.

A presunção de inocência representa o resultado de um intenso desenvolvimento conceitual e é hoje reconhecida como uma garantia universal do indivíduo e um princípio jurídico de caráter constitucional, derivado do princípio da dignidade humana. Qualquer violação à dimensão conhecida como “mínimo ético irredutível” constitui uma transgressão aos direitos humanos protegidos pelas modernas constituições e pelo direito internacional (PIOVESAN, 2008).

Atualmente, a presunção de inocência é compreendida como o princípio central do processo penal e, de maneira mais ampla, como o princípio essencial de todo o sistema penal (FENOLI, 2016). No entanto, essa concepção foi alcançada ao longo de um extenso processo histórico de construção, amadurecimento e efetivação, marcado pelo custo de inúmeras vidas que foram injustamente condenadas, como enfatizado por Pennington (2003, p. 124) em relação ao gradual amadurecimento da presunção de inocência: “A evolução da norma que afirma que toda pessoa é presumida inocente até que se prove a culpa é uma prova do longo processo através do qual os princípios do direito emergem, lentamente, hesitantemente, às vezes dolorosamente na jurisprudência”

No Brasil, ao longo da história das Constituições anteriores à de 1988, não havia menção expressa ao princípio da presunção de inocência. Embora essas constituições garantissem direitos e garantias individuais, a presunção de inocência passou a influenciar mais a jurisprudência brasileira a partir de 1948, com a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), mas ainda não estava explicitamente presente no ordenamento jurídico brasileiro. Somente com a Constituição Federal de 1988, o princípio da presunção de inocência ganhou status de norma constitucional, sendo inserido de forma expressa como um princípio estruturante no art. 5º, LVII. Essa disposição constitucional estabelece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (BRASIL, 1988), refletindo a opção do constituinte brasileiro pelo modelo acusatório no sistema penal do país.

A presunção de inocência, como princípio orientador fundamental do processo penal, implica que o indivíduo não pode ser considerado culpado até que todas as possibilidades de recurso e revisão legal tenham sido esgotadas, e a sentença condenatória tenha alcançado sua definitividade. Internacionalmente, este princípio é consagrado em diversos países e tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, incluindo a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica (1969). Este tratado, do qual o Brasil é signatário, assegura que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa” (art. 8, §2). Essa declaração reflete a preocupação da comunidade internacional em garantir que o indivíduo não seja tratado como culpado antes que sua culpabilidade seja devidamente comprovada em processo legal e justo.

Barbosa (1997, p. 41), advertiu sobre a importância de preservar a presunção de inocência como uma garantia comum a todos os réus até que a materialidade e autoria do delito fossem reconhecidas.

Não sigais os que argumentam com o grave das acusações, para se armarem de suspeita e execração contra os acusados; como se, pelo contrário, quanto mais odiosa a acusação, não houvesse o juiz de se precaver mais contra os acusadores, e menos perder de vista a presunção de inocência, comum a todos os réus, enquanto não liquidada a prova e reconhecido o delito.

Em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) adotou uma interpretação mais abrangente do princípio da presunção de inocência por meio do julgamento do HC 84.078/MG. Nessa decisão, o STF estabeleceu que recursos excepcionais têm o poder de suspender a execução imediata da pena até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, representando uma mudança significativa em seu entendimento sobre a matéria.

3. O CONFLITO DIALÉTICO ENTRE ‘IN DUBIO PRO REO’ E ‘IN DUBIO PRO SOCIETATE’: ANÁLISE DOS PRINCÍPIOS NO CONTEXTO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO

No contexto da dúvida razoável, que se refere às incertezas sobre a culpa do acusado, o princípio do in dubio pro reo estabelece que a falta de evidências conclusivas que atribuam plenamente a responsabilidade pelo crime ao acusado deve levar à sua absolvição. Esse princípio assegura que, em situações de incerteza quanto à culpabilidade, a presunção de inocência seja protegida como um dos fundamentos essenciais do sistema jurídico. Isso impede que qualquer pessoa seja tratada como culpada na ausência de evidências sólidas e conclusivas de sua responsabilidade pelo delito, refletindo o compromisso do Estado em proteger os direitos individuais e garantir um processo penal justo e equitativo. Além disso, o in dubio pro reo exige que o juiz mantenha uma atitude negativa em relação ao acusado, mas também adote uma postura positiva, não o considerando culpado e, principalmente, tratando-o efetivamente como inocente (JÚNIOR, 2011).

Conforme estabelecido no inciso LVII do art. 5º, que afirma que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (BRASIL, 1988), torna-se fundamental que, em situações de dúvida, a decisão seja favorecida em prol do acusado. Isso ocorre porque um veredicto de culpa deve se basear em um mínimo de certeza substancial. Nessa perspectiva, decorrem duas regras do princípio da presunção de inocência em relação ao acusado: uma regra de tratamento e outra de natureza probatória (OLIVEIRA, 2008).

De acordo com a primeira regra derivada do princípio da presunção de inocência, o acusado não pode sofrer qualquer restrição pessoal com base na mera possibilidade de condenação (OLIVEIRA, 2008). Como ressalta Nicolitt (2010, p. 61), “mesmo que haja suspeitas de envolvimento em atividades criminosas, o acusado deve ser tratado como inocente durante todo o processo, sem que sua posição social, moral ou física seja prejudicada em relação a outros cidadãos que não estão enfrentando um processo legal”.

O princípio do “in dubio pro reo” estabelece que, na ausência de provas suficientes tanto em relação aos elementos subjetivos quanto objetivos de um crime, não é possível aplicar uma pena, garantindo assim a presunção de inocência do acusado. Isso implica que o ônus da prova, concernente ao fato criminoso e à sua autoria, recai exclusivamente sobre a acusação, enquanto à defesa cabe demonstrar excludentes de ilicitude e culpabilidade, caso alegue tais circunstâncias (OLIVEIRA, 2008).

No contexto do julgamento, se persistir qualquer dúvida razoável sobre a existência do fato ou sua autoria na mente do juiz, o princípio do “in dubio pro reo” deve ser aplicado para favorecer o acusado, evitando assim erros judiciais (TOVO, 2008). A convicção do juiz, entendida como “a crença de que a verdade foi alcançada”, é crucial para a condenação do acusado no tribunal singular (TOVO, 2008, p. 93). Para o autor, se, após a análise de todas as provas disponíveis, persistir qualquer dúvida na mente do juiz, a única alternativa é aplicar o princípio do “in dubio pro reo” para evitar condenações injustas.

Para Badaró (2008) em um Estado Democrático de Direito que adota um sistema penal acusatório, o princípio do “in dubio pro reo” é uma consequência necessária para garantir a justiça e proteger os direitos do acusado. A justificação para o “in dubio pro reo” varia na doutrina, mas uma ideia subjacente que percorre o pensamento ético-jurídico é que é preferível absorver um culpado do que condenar um inocente (MONTEIRO, 1997). Dessa forma, o princípio do “in dubio pro reo” atua como um alicerce fundamental para assegurar um processo penal justo e equitativo, preservando a presunção de inocência do acusado ao longo de todo o processo (NICOLITT, 2010).

Lado outro, no momento processual da (im)pronúncia, é defendido pelos juristas, como Avena (2009), que deve prevalecer o princípio “in dubio pro societate“. Isso significa que qualquer incerteza sobre a ocorrência das situações mencionadas deve resultar na pronúncia. Muccio (2011) também ressalta que, na pronúncia, aplica-se o princípio “in dubio pro societate” (em caso de dúvida, decide-se a favor da sociedade) em vez do “in dubio pro reo” (em caso de dúvida, decide-se a favor do réu). Quando surgem dúvidas sobre a autoria do crime, a pronúncia torna-se inevitável, permitindo que o juiz natural tome conhecimento e decida o caso.

É fundamental destacar que o princípio “in dubio pro societate” não possui qualquer base constitucional, conforme observado por Lopes Jr (2011). Em sua obra, ele argumenta que esse princípio não pode ser estendido a ponto de negar a presunção constitucional de inocência. A soberania do Júri refere-se à competência e aos limites do poder de revisão das decisões do Júri, mas não está relacionada à carga probatória. Rangel (2009, p. 171) também concorda com essa visão, afirmando que:

[…] se há dúvida, é porque o Ministério Público não logrou êxito na acusação que formulou em sua denúncia, sob o aspecto da autoria e materialidade, não sendo admissível que sua falência funcional seja resolvida em desfavor do acusado, mandando-o a júri, onde o sistema que impera, lamentavelmente, é o da íntima convicção.

Compreendendo o “in dubio pro societate” como um princípio sem previsão legal ou constitucional, existem posicionamentos quanto à sua aplicação em despachos judiciais, recebimento e/ou rejeição de denúncias, pronúncia e/ou impronúncia do réu. É importante salientar que esse princípio não pode ser utilizado para ignorar a presunção de inocência do réu ou inverter o ônus da prova. Nesse sentido, Rangel (2002) afirma que o princípio do “in dubio pro societate” não é compatível com o Estado Democrático de Direito, onde a dúvida não pode autorizar uma acusação, colocando uma pessoa no banco dos réus, e não pode, com base na dúvida, manchar a dignidade da pessoa humana e ameaçar a liberdade de locomoção com uma acusação penal.

Ainda, sobre o tema Machado, (2014) chama atenção ao fato de que no processo penal, mesmo que a defesa não tenha produzido prova acerca da alegada inocência do réu, este não será automaticamente condenado. Em matéria penal, devido ao princípio do “in dubio pro reo” e da inocência presumida, se a acusação não produzir prova cabal sobre a responsabilidade criminal do denunciado, o caso será de absolvição.

Para Marques (2009), o princípio “in dubio pro societate“, embora não tenha uma base normativa sólida, é reconhecido por parte da doutrina. A justificativa para sua validade geralmente gira em torno da preservação da competência do tribunal do júri para julgar casos de dúvida. No entanto, essa justificativa é considerada pouco convincente, pois mascara a necessidade de uma análise efetiva da admissibilidade da acusação, conforme exigido pela legislação processual. Dessa forma, o “in dubio pro societate” não deve ser utilizado como uma fórmula mágica que torna a avaliação da admissibilidade da acusação meramente burocrática, ignorando sua função fundamental (MARQUES, 2009).

Porto (2007) argumenta que a alegação de que o júri, por ser uma garantia fundamental para o réu, é a melhor instância para tomar decisões é enganosa, pois vai contra a lógica do sistema. A legislação estabelece um procedimento bifásico e critérios mais rigorosos para a admissibilidade da acusação, justamente para evitar decisões infundadas. Badaró (2003) também enfatiza que a ideia de que o “in dubio pro societate” protege a competência do júri é inadequada, pois essa fase de admissibilidade tem sua razão de ser e não pode ser subjugada pela supremacia do júri.

Assim, o “in dubio pro societate” é, no máximo, uma explicação incorreta e imprecisa do julgamento de admissibilidade realizado na pronúncia. Mostra-se insatisfatório ao distorcer o resultado da valoração das provas na fase da acusação e obscurecer a carga probatória que recai sobre o órgão acusatório nesse estágio do processo (MARQUES, 2009; PORTO, 2007; BADARÓ, 2003).

Para Lucchesi (2019), a pronúncia deve ser determinada com base na presença de seus requisitos e não por regras de julgamento que desfavoreçam o acusado em caso de dúvida. Se houver dúvida quanto à presença de qualquer um dos requisitos, a decisão adequada é a impronúncia. A carga probatória imposta ao órgão acusatório é dinâmica, não exigindo uma comprovação completa da culpa do acusado no início do processo; pelo contrário, o princípio que deve ser aplicado desde o início é o “in dubio pro reo” (LUCCHESI, 2019).

 De acordo com Rangel (2002), existem divergências na doutrina e jurisprudência quanto à constitucionalidade do “in dubio pro societate“. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu critérios para limitar o uso desse princípio. Em um acórdão de 1996 (HC 73512), a corte considerou que qualquer dúvida deveria resultar na pronúncia do réu. No entanto, em 2002, no julgamento do Habeas Corpus nº 81.646, o STF esclareceu que o “in dubio pro societate” nunca vigorou quanto à existência do próprio crime e que a acusação deve ser acompanhada de justa causa. A partir desse ponto, o STF passou a usar o “in dubio pro societate” como base para pronunciar o acusado apenas quando há certeza da materialidade e indícios suficientes de autoria. Qualquer dúvida razoável quanto à autoria deve ser resolvida pelo Tribunal do Júri para cumprir a competência constitucional do plenário.

É importante observar que, de acordo com a legislação processual penal, não é necessário ter certeza da autoria para submeter o réu ao júri. No entanto, é fundamental que haja elementos que permitam ao juiz concluir que o réu é o autor do delito (LOPES JUNIOR, 2017). Todavia, há de se observar que em um julgamento datado de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu Habeas Corpus (HC 180.144) para restabelecer uma sentença de impronúncia proferida pelo juiz de primeira instância. Nesse contexto, a corte afirmou que a invocação equivocada do “in dubio pro societate” é inconstitucional e desvirtua o sistema bifásico do procedimento do júri brasileiro.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todas as questões discutidas, algumas considerações cruciais emergem sobre o “in dubio pro societate” e sua aplicação no sistema jurídico. Primeiramente, é evidente que a presunção de inocência representa um princípio fundamental no ordenamento jurídico, manifestando-se em várias ramificações, incluindo o “in dubio pro reo”. No entanto, a noção de “in dubio pro societate” carece de uma base normativa sólida e, quando mal interpretada, pode comprometer os direitos do acusado.

A fragilidade mais significativa surge quando se interpreta o “in dubio pro societate” como uma “fórmula mágica” capaz de reduzir o exame de admissibilidade da pronúncia a uma etapa meramente burocrática. Essa interpretação é equivocada e contrapõe-se à lógica do sistema jurídico, que estabelece um procedimento bifásico e critérios rigorosos para a admissibilidade da acusação, precisamente para evitar decisões infundadas no Tribunal do Júri.

Assim, a aplicação generalizada do “in dubio pro societate” perpetua a incompreensão dos requisitos formais da pronúncia e desconsidera a carga probatória que incumbe ao órgão acusatório nessa fase do processo. Esse princípio não deve servir como uma regra de julgamento que prejudica o réu em caso de dúvida; pelo contrário, a decisão de pronúncia deve fundamentar-se na presença de todos os requisitos necessários. Se houver dúvida quanto à presença de qualquer um desses requisitos, a decisão adequada é a impronúncia.

Assim, pelo exposto é possível considerar, portanto, que a aplicação disseminada e inadequada do “in dubio pro societate” é, essencialmente, inconstitucional. É imperativo reconhecer a ausência de uma base normativa sólida que sustente sua utilização rotineira no sistema jurídico. O respeito aos direitos e garantias do réu, em total harmonia com o princípio da presunção de inocência, deve ser mantido como o alicerce fundamental do ordenamento jurídico brasileiro.

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¹Graduanda em Direito no Centro Universitário de Belo Horizonte- UniBH. Endereço eletrônico: flaviabarroso07@gmail.com