CRIMES PRATICADOS POR MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

CRIMES COMMITTED BY WOMEN VICTIMS OF DOMESTIC VIOLENCE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10260038


Ana Celeste Andrade Oliveira Dos Reis;
Antonio Vicente De Souza.


Resumo: Este estudo investiga os crimes cometidos por mulheres vítimas de violência doméstica, explorando a dinâmica entre vitimização e reação à agressão. O objetivo é analisar as circunstâncias em que essas mulheres, frequentemente submetidas a ambientes abusivos, acabam por cometer atos ilícitos como forma de defesa ou resistência. A metodologia adota uma abordagem qualitativa, examinando casos reais e dados judiciais para entender melhor esses fenômenos. Os resultados indicam uma complexa intersecção entre violência doméstica, respostas de autodefesa e o sistema legal, destacando a necessidade de uma abordagem jurídica mais sensível a essas questões. Conclui- se que, enquanto as mulheres permanecerem em situações de violência doméstica sem apoio efetivo, casos de crimes como reação a essa violência continuarão a surgir, exigindo uma resposta legal mais compreensiva e adaptada a essas realidades.

Palavras-chave: violência doméstica, crimes de mulheres, autodefesa, sistema legal.

Abstract: This study investigates the persistent issue of domestic violence and the subsequent crimes committed by victimized women, underscoring the multifaceted nature of this social, cultural, political, and legal challenge. Despite specific laws like the Maria da Penha Law for women’s protection in Brazil, a significant gap remains in their effective implementation, leaving many women vulnerable. The research includes na analysis of real cases and headlines to understand legal deficiencies and the need for legislative improvement. The focus is on evaluating penal sanctions and the application of exculpatory circumstances in cases of anticipated self-defense, highlighting the urgency for more effective protective measures. The findings indicate a complex intersection of domestic violence, self-defense responses, and the legal system, emphasizing the need for a legal approach that is more inclusive and considers the specific circumstances of each case.

Keywords: domestic violence, aggression, exculpatory circumstances, anticipated self-defense.

1. INTRODUÇÃO

A violência doméstica contra mulheres  é um grave problema mundial, com efeitos devastadores sobre as vítimas, afetando sua saúde física e mental, segurança e autonomia. No Brasil, apesar da Lei Maria da Penha, criada para prevenir e punir a violência doméstica, os índices de feminicídio permanecem alarmantes. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, foram registrados mais de 100 mil casos de feminicídio entre 2019 e 2021, evidenciando a gravidade da situação.

Neste contexto, uma das consequências menos discutidas, mas igualmente importantes, é o cometimento de crimes por mulheres que são vítimas dessa violência. Essas ações muitas vezes surgem como uma resposta à agressão sofrida, seja como uma forma de autodefesa, retaliação ou mesmo resultado de estresse pós-traumático. Além disso, a dependência emocional do agressor pode levar a comportamentos extremos, como crimes passionais.

Entender as motivações por trás desses atos é crucial para o desenvolvimento de políticas eficazes de prevenção e combate à violência doméstica. Fatores como condições socioeconômicas desfavoráveis, baixa escolaridade, vulnerabilidade social, cultura machista e transtornos mentais podem influenciar essas mulheres a se envolverem em atividades criminosas.

Os crimes mais comuns incluem homicídio, muitas vezes como forma de autodefesa ou retaliação, lesão corporal, furto e, em casos raros, tráfico de drogas. É vital ressaltar que nem todas as vítimas de violência doméstica se envolvem em atividades criminosas, mas para aquelas que o fazem, é essencial compreender suas motivações para desenvolver intervenções apropriadas e eficazes.

2. DESENVOLVIMENTO

A violência doméstica contra as mulheres no Brasil, mesmo com o advento de legislações específicas como a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) e a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015), continua sendo um desafio social e jurídico significativo. A Lei do Feminicídio, em particular, representa um avanço ao caracterizar o assassinato de mulheres em razão do gênero como um agravante do crime de homicídio. Essa legislação reflete um esforço para abordar os aspectos de controle, posse e discriminação de gênero que frequentemente motivam tais crimes.

Apesar desses avanços legislativos, o Brasil enfrenta desafios na aplicação efetiva dessas leis, com altas taxas de violência doméstica persistindo. Muitas vezes, as mulheres vítimas de violência doméstica acabam cometendo crimes, frequentemente como uma resposta à agressão contínua e ao ambiente de abuso. Esta realidade complexa é ilustrada pela noção de “legítima defesa antecipada”, um conceito jurídico que permite a reação a uma ameaça futura e certa, uma interpretação que se estende além da definição tradicional de legítima defesa.

A análise da culpabilidade nesses casos de violência doméstica é uma área de significativa discussão. Conforme destacado por juristas como Damásio de Jesus (2014) e Fernando Capez (2017), a culpabilidade é considerada um pressuposto para a aplicação da pena, e não um elemento constitutivo do crime. Isso sugere que, em situações onde causas excludentes de culpabilidade estão presentes, como coação moral irresistível ou obediência hierárquica, a pena pode não ser aplicada mesmo que o ato seja legalmente classificado como crime.

Além disso, legislações mais recentes, como a Lei de Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), introduzem novas nuances na compreensão da culpabilidade. Essa lei estabelece, por exemplo, que ações realizadas sob circunstâncias de inexigibilidade de conduta diversa não são puníveis. Tal abordagem pode ser aplicada ao contexto de mulheres que, submetidas a um ciclo contínuo de violência doméstica, reagem contra seus agressores. Esta perspectiva sugere a necessidade de uma análise jurídica mais aprofundada e sensível às especificidades desses casos. O desafio, portanto, está em garantir que tanto a legislação quanto a prática jurídica reflitam as complexidades inerentes aos casos de violência doméstica. Isso implica em oferecer proteção efetiva às vítimas e considerar as circunstâncias específicas de seus atos de defesa. A questão central é como moldar uma resposta jurídica que seja equitativa e eficaz, reconhecendo as situações desafiadoras enfrentadas pelas vítimas de violência doméstica e suas consequências legais.

Em suma, o cenário brasileiro requer uma abordagem jurídica que não apenas reconheça a gravidade da violência de gênero, mas que também leve em consideração as respostas das vítimas a essas circunstâncias, muitas vezes extremas. Isso envolve repensar conceitos tradicionais de culpabilidade e defesa, e adaptar a prática jurídica para abordar de maneira mais eficaz e humana as complexidades da violência doméstica.

3. A FALHA ESTATAL NA SUA FUNÇÃO PROTETIVA E OS SEUS DESDOBRAMENTOS

3.1 AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA

As Medidas Protetivas de Urgência, são providências garantidas por Lei, às vítimas de violência domésticas, que tem por finalidade garantir sua proteção e de sua família. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida. Poderão ser concedidas de imediato independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo ser este prontamente comunicado.

Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou a apedido da ofendida, conceder novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas, se entender necessário à proteção da ofendida, de seus familiares e de seus patrimônio, ouvido o Ministério Público.

Estudaremos nesse capítulo às medidas protetivas de urgência, Art. 22 da Lei Maria da Penha, que obrigam ao agressor :

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III – proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

§ 1º As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público (BRASIL, 2006).

Podemos perceber que as medidas protetivas de urgência, não alcança o resultado necessário . O Brasil , mesmo após o advento da Lei Maria da Penha, é o 5º país onde há mais casos de feminicídio no mundo, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), perdendo apenas para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia. Ora, se existe uma legislação protetiva, que é largamente aplicada pelo judiciário, qual o motivo do Brasil ainda figurar como um dos países que possuem grande números de feminicídios? Fazendo com que essa vítimas busquem sua própria defesa ou investida para garantir a sua vida? Seria o descrédito na capacidade do Estado, em prover a proteção somado ao temor da reação do parceiro violento, leva a subnotificação, a qual ainda ocorre de forma frequente.

3.2 CASOS DE VIOLÊNCIA COMETIDOS POR MULHERES VÍTIMAS

A violência doméstica causa sérias consequências não só a mulher agredida, mas a todos de sua família, gerando uma desestabilidade emocional, já que ocorrem dentro do lar, onde deveria ser uma recanto de harmonia e de paz. Na maioria das vezes, quando uma mulher é espancada, mutilada ou morta por um parceiro, algum tipo de agressão já havia anteriormente ocorrido, libertar-se desse relacionamento abusivo não é nada fácil.

São vários os fatores que levam a vítima a se permitir tal situação, fator psicológico, a questão financeira também pode dificultar ou até mesmo inviabilizar a saída do relacionamento, a dependência econômica em relação ao agressor, que se intensifica quando há filhos em comum, sendo, ainda, que muitos abusadores se utilizam dos filhos como pretexto para se aproximarem da vítima.

Temendo a reação violenta do parceiro somado a sensação de insegurança devido ao desaparelhamento do Estado (que é incapaz de protegê-la) é, de longe, o fator que mais obsta as vítimas a deixarem os abusadores. São diversas e cotidianas, as manchetes jornalísticas noticiam casos de homens que agridem, violentam ou matam ex-companheiras por conta de não aceitarem o término do relacionamento. (buscar dados atuais).

A vítima de violência doméstica acaba ficando sem perspectivas de distanciar- se de seu algoz e, em face da inaptidão estatal para promover sua proteção e já desestabilizada emocional e psicologicamente por uma conjuntura de total anormalidade, acaba agindo “pelas próprias mãos” contra o agressor, passando de vítima a agressora.

Este caso merece ser analisado de maneira contextualizada frente aos relatos de que a vítima possuía um histórico de violência doméstica em (sic) contra a ré. A imputada aduziu que, antes do fato, era vítima constante de sérias ameaças e agressões perpetradas pelo lesado. Seguidamente lhe maltratava e, ainda, intimidava-a a não levar adiante os registros de ocorrência efetuados na polícia, mantendo contínuo o contexto de violência. Essa conjuntura foi confirmada pelas testemunhas Alice Fernandes e Lucimar Bueno Miraça. Vanderlei Cezar Dias chegou a comentar que a acusada “vivia meio que de escrava dele em casa”. Quanto ao fato denunciado, a imputada disse que o ofendido estava portando um relho e ameaçava lhe agredir com esse instrumento, razão pela qual fez uso do único meio necessário, naquele momento, para repelir iminente e injusta agressão, isso é, efetuou um único disparo de arma de fogo contra o ofendido. Cabe citar que Alice Ferraz Fernandes narrou ter visto aquele portando um relho, logo antes do acontecimento. (STJ, 2019) Na Delegacia ela afirmou que sempre foi humilhada e agredida pela vítima, tanto verbal quanto fisicamente, tendo lhe dito, naquela noite, que queria a separação, e que já havia preparado uma mala com seus pertences; o ofendido, reagindo agressivamente, teria, então, tentado esganá-la, apertando seu pescoço. Disse que estavam sentados na cama quando do início da agressão, levantando-se ambos em seguida, momento em que pegou uma faca, que havia deixado sobre a cômoda para se defender, e desferiu contra ele um golpe, “que o acertou, mas nem viu onde” (STJ, 2018)

Desta maneira, sabendo que a mulher está inserida numa situação de risco devida diante das agressões e ameaças, e, principalmente, sabendo da ineficiência do Estado em prover, de maneira efetiva, a sua proteção, poderia o Direito exigir conduta diversa, caso ela decida agir contra o agressor? Os limites e os requisitos da legítima defesa poderiam ser relativizados nessa situação? A resposta desses questionamentos, obrigatoriamente, passa por uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico como um todo.

Em alguma jurisdição, a situação de violência doméstica e a ineficiência estatal na proteção da vítima podem ser consideradas como circunstâncias atenuantes. Os tribunais podem levar em conta o contexto de perigo iminente, a vulnerabilidade da vítima e a falha do Estado ao avaliar as ações da mulher. A avaliação da proporcionalidade e necessidade na legítima defesa pode ser influenciada pelas circunstâncias específicas do caso.

Se a mulher estiver enfrentando uma ameaça iminente à sua vida e não houver alternativas razoáveis disponíveis, os tribunais podem ser mais propensos a relativizar os requisitos tradicionais da legitima defesa. Em alguns sistemas jurídicos, a jurisprudência pode evoluir para refletir uma compreensão mais sensível das dinâmicas e reconhecer a necessidade de adaptar os princípios jurídicos tradicionais.

Princípios de direitos humanos, como o direito à vida e à segurança da pessoal, podem influenciar a interpretação do direito penal em situações de violência doméstica. A interpretação sistemática do ordenamento jurídico pode incluir a consideração desses princípios para garantir uma aplicação mais justa a lei. Em alguns casos, a inadequação das leis existe para lidar com situações de violência doméstica pode levar a reformas legislativas das necessidade e desafios enfrentados pelas vítimas.

A autora Nádia Gerhard (2014, p. 84) comenta sobre a ineficácia das medidas protetivas previstas na Lei n° 11.340/2006: As estatísticas comprovam que a simples Medida Protetiva de Urgência não tem alcançado a segurança e a tranquilidade que as mulheres que se encontram em tal situação merecem. Observa-se que, mesmo “amparadas” por tal instrumento, muitas vezes as mulheres voltam a ser agredidas, violentadas e até mesmo assassinadas pelos mais diversos motivos. O fim de um relacionamento, uma desavença conjugal, um sentimento de posse e propriedade sobre a companheira são razões que têm levado muitas mulheres às agressões constantes e, em muitos casos, ao homicídio.

Citaremos alguns fatos ocorridos, conforme manchetes encontrados na internet:

CASO 01: “Eu não aguentava mais apanhar”, diz mulher que matou marido com tiro de calibre 12, ela se apresentou durante a tarde aos policiais do 1º Distrito Policial. Em depoimento ao delegado Mauricio Dotta, a mulher disse que era constantemente agredida pelo marido. Na madrugada do crime, Laureano teria acordado e exigido que ela mantivesse relação sexual com ele, depois de ter agredido ela e a filha. Após se recusar, ela foi novamente agredida e no meio da briga teria pego a arma para afastar o marido e acabou efetuando o disparo.

CASO 02: Em entrevista à imprensa ela confirmou que era agredida diariamente por Laureano, assim como suas duas filhas menores de idade. “Eu não aguentava mais apanhar, mas não foi nada pensado, aconteceu. Tem 20 anos que eu vivo nessa situação, apanhando, já fiz medida protetiva, já passei pela Casa Abrigo, mas não adiantou. Já registrei Boletim de Ocorrência umas três vezes, mas ele não tinha medo, não respeitava nada, a medida protetiva ele rasgou”, explicou ela. Fato ocorrido no Distriro Chacára Santa Eudoxia, em 27 de junho de 2023.

CASO 03: Em Salvador, uma mulher de 27 anos matou o ex-marido com uma facada na perna após receber ameaças. A suspeita, que é mãe de três crianças menores de idade, foi presa em flagrante. Ela também aguardou a chegada da polícia no local do crime. Em um áudio, que seria de autoria da vítima, identificada como Tiago da Silva Santos, de 34, a mulher é ameaçada. A família diz que a suspeita já havia pedido uma medida protetiva contra o ex.

CASO 04: Uma morte após discussão entre irmãos deixa a comunidade de Cariacá em choque. As facadas desferidas com violência contra Oziel não tem explicação e a principal suspeita do crime – sua irmã – fugiu do local deixando um rastro de sangue e indignação. Hoje, com exclusividade, você vai acompanhar uma matéria especial na WATV. Acompanhe, passo a passo, com Marlon Reis e Nonato Notícias. Conheça o local do crime e escute os depoimentos de pessoas próximas à vítima. Imperdível! Às 18h30, no canal campeão de audiência. A suspeita já estava sendo assistida pela medida protetiva de urgência e tinha o acompanhamento do Ronda Maria da Penha.

A violência doméstica impacta profundamente não só as mulheres agredidas, mas também suas famílias, criando um ambiente de instabilidade emocional onde deveria haver segurança e paz. Em muitos casos, mulheres espancadas, mutiladas ou assassinadas por seus parceiros já haviam sofrido agressões anteriores. Libertar-se de um relacionamento abusivo é desafiador, especialmente diante de fatores como dependência emocional e econômica, e a presença de filhos comuns, que muitas vezes são usados pelos abusadores para manter contato com a vítima.

A ineficiência do Estado em oferecer proteção adequada às vítimas de violência doméstica, somada ao medo de represálias por parte do agressor, leva muitas mulheres a permanecerem em situações de abuso. Frequentemente, a mídia noticia casos de homens que agridem ou matam suas ex-companheiras, incapazes de aceitar o fim do relacionamento. Em resposta a essa violência contínua e à falta de proteção estatal, algumas mulheres acabam tomando a justiça em suas próprias mãos, passando de vítimas a agressoras.

Um exemplo dessa situação é ilustrado pelo caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em 2019, onde a ré, vítima constante de abusos, agiu em legítima defesa contra seu agressor. Esses casos levantam questões importantes sobre os limites da legítima defesa e se o Direito pode exigir uma conduta diferente das vítimas em situações de risco iminente. Em algumas jurisdições, a violência doméstica e a falha do Estado em proteger a vítima podem ser consideradas circunstâncias atenuantes. Isso pode influenciar a avaliação da proporcionalidade e necessidade da legítima defesa, levando os tribunais a relativizarem os requisitos tradicionais em tais situações.

A autora Nádia Gerhard destaca a ineficácia das medidas protetivas previstas na Lei nº 11.340/2006, observando que, apesar da proteção legal, muitas mulheres continuam sendo vítimas de agressões e homicídios. Casos recentes, como relatados em diferentes meios de comunicação, reforçam essa realidade, mostrando mulheres que, após anos de abuso e falta de apoio efetivo, acabam cometendo crimes contra seus agressores.

Este cenário complexo e desafiador requer uma abordagem sistemática e contextualizada do ordenamento jurídico, considerando os princípios dos direitos humanos e as necessidades específicas das mulheres vítimas de violência doméstica. A adaptação das leis e a evolução da jurisprudência são essenciais para garantir uma aplicação da lei mais justa e adequada às realidades vivenciadas por essas mulheres.

4. A PENALIZAÇÃO DE CONDUTAS TÍPICAS COMETIDAS POR MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

4.1 O CONCEITO ANALÍTICO DE CRIME

No âmbito jurídico, o crime é definido como uma conduta humana que reúne características específicas, sendo esta definição amplamente aceita tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência brasileira. Conhecida como o conceito analítico de crime, essa definição estrutura o crime em três elementos fundamentais: típico, ilícito e culpável.

Inicialmente, para que uma ação ou omissão seja considerada um crime, ela deve ser típica. Isso significa que a conduta deve se encaixar na descrição de um tipo penal previsto na legislação. Em outras palavras, para ser típico, o comportamento do agente precisa corresponder exatamente ao que a lei define como crime.

O segundo elemento, ilicitude, refere-se à antijuridicidade da conduta. Uma ação ou omissão típica é considerada ilícita quando contraria as normas jurídicas. Não basta apenas que a conduta se enquadre na descrição legal de um crime; ela também deve ir contra o ordenamento jurídico.

Por fim, o terceiro elemento é a culpabilidade, que diz respeito à imputabilidade do agente. Aqui, analisa-se se o indivíduo tinha capacidade de entender a ilicitude de sua conduta e de se comportar de acordo com esse entendimento. A culpabilidade é um aspecto crucial, pois determina se o agente pode ser responsabilizado penalmente por seus atos.

Esses três elementos – tipicidade, ilicitude e culpabilidade – são indispensáveis para a configuração do crime. Eles permitem uma análise detalhada e criteriosa de cada caso, assegurando que apenas condutas que preencham todos esses requisitos sejam consideradas criminosas no âmbito jurídico. A aplicação desse conceito analítico de crime é fundamental para garantir a justiça e a correta aplicação da lei.

4.2 A TEORIA FINALISTA DA CONDUTA

A teoria finalista da conduta, desenvolvida pelo jurista alemão Hans Wenzel (1930), trouxe uma importante contribuição para o conceito de crime. Segundo essa teoria, o elemento subjetivo do crime, representado pelo dolo e pela culpa, não deve ser considerado um elemento da culpabilidade, mas sim um elemento da tipicidade.

Essa mudança de paradigma foi importante para mitigar o objetivismo da conduta penal, na medida em que a tipicidade está condicionada à presença desses elementos subjetivos.

A teoria finalista da conduta é baseada na seguinte premissa: a conduta humana é um fenômeno complexo, que não pode ser reduzido à mera ação ou omissão. A conduta humana é sempre intencional, ou seja, é sempre orientada por um propósito.

Desse modo, o dolo e a culpa são elementos essenciais da conduta humana, pois são eles que determinam a finalidade da conduta. O dolo é a consciência e a vontade de realizar a conduta típica, enquanto a culpa é a falta de consciência ou de vontade de realizar a conduta típica. A teoria finalista da conduta foi incorporada pelo Código Penal brasileiro de 1940, que estabelece que o dolo e a culpa são elementos da conduta criminosa.

4.3 APLICAÇÃO DO CONCEITO ANALÍTICO DE CRIME ÀS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

O conceito analítico de crime pode ser aplicado às mulheres vítimas de violência doméstica, com algumas ressalvas. Em primeiro lugar, é importante ressaltar que a violência doméstica é uma forma de violação dos direitos humanos das mulheres. A violência doméstica pode causar danos físicos, psicológicos e emocionais nas mulheres vítimas, o que pode afetar sua capacidade de compreensão da ilicitude de suas condutas.

Em segundo lugar, é importante considerar que as mulheres vítimas de violência doméstica podem praticar crimes como forma de autodefesa ou de retaliação contra o agressor. Nesses casos, a conduta da mulher pode ser considerada típica, mas pode não ser ilícita, pois pode estar justificada pela legítima defesa ou pelo estado de necessidade.

Considerando essas ressalvas, é possível concluir que o conceito analítico de crime pode ser aplicado às mulheres vítimas de violência doméstica, mas é importante analisar cada caso concreto para verificar se a conduta da mulher é típica, ilícita e culpável.

O conceito analítico de crime é um importante instrumento para a compreensão do crime. Ele permite identificar os elementos que o compõem e que são necessários para a sua configuração. A teoria finalista da conduta trouxe uma importante contribuição para o conceito de crime, ao considerar o elemento subjetivo do crime como um elemento da tipicidade. Essa mudança de paradigma foi importante para mitigar o objetivismo da conduta penal.

O conceito analítico de crime pode ser aplicado às mulheres vítimas de violência doméstica, com algumas ressalvas. É importante considerar que a violência doméstica pode afetar a capacidade de compreensão da ilicitude das condutas das mulheres vítimas e que essas mulheres podem praticar crimes como forma de autodefesa ou de retaliação contra o agressor.

5. CRIMES E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: ANÁLISE JURÍDICA

Os crimes cometidos por mulheres que são vítimas de violência doméstica podem ser categorizados em dois grupos principais, conforme destacado por especialistas na área. Maria Berenice Dias, em sua obra “Direito das famílias e das sucessões”, ressalta que a violência doméstica pode levar a mulher a cometer crimes tanto em legítima defesa quanto por desespero, e enfatiza a necessidade de analisar cada caso concretamente para determinar a responsabilidade criminal da mulher.

Por outro lado, José Eduardo Faria, em “Violência doméstica contra a mulher”, classifica os crimes em defensivos, aqueles cometidos para proteção própria ou de terceiros contra o agressor, e não defensivos, praticados por outros motivos, como dependência química ou transtornos mentais. Esta distinção é crucial para entender as motivações por trás dos atos e a aplicação da justiça.

A jurisprudência também reflete essa compreensão. O Tribunal de Justiça de São Paulo, em uma decisão de Apelação Criminal, considerou que uma mulher agindo em legítima defesa contra seu agressor não deve ser criminalizada. Este entendimento é fundamental para garantir que as vítimas de violência doméstica não sejam duplamente penalizadas pela justiça.

Os fatores que contribuem para a prática de crimes por estas mulheres são complexos e variados. Maria Berenice Dias observa que a violência doméstica pode levar a consequências físicas e psicológicas graves, incluindo o desenvolvimento de transtornos mentais e dependência química. José Eduardo Faria aponta para o ciclo da violência como um fator importante, onde a sensação de fragilidade e falta de saída pode levar a comportamentos agressivos.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em outra Apelação Criminal, destaca a importância de analisar com cautela os casos em que a mulher comete um crime em resposta à violência doméstica, considerando possíveis transtornos mentais decorrentes do abuso sofrido.

Essas perspectivas são fundamentais para entender a dinâmica da violência doméstica e as respostas das mulheres que se encontram nessa situação desesperadora. É vital que o sistema jurídico reconheça e aborde de maneira sensível e informada os desafios enfrentados por essas vítimas, garantindo que as leis e a aplicação da justiça sejam justas e eficazes.

6. IMPLICAÇÕES JURÍDICAS E SOCIAIS PARA MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A prática de crimes por mulheres que são vítimas de violência doméstica carrega implicações jurídicas e sociais profundas e complexas. Juridicamente, a responsabilização da mulher depende das circunstâncias específicas de cada caso. Em situações de crimes defensivos, como apontado por Maria Berenice Dias em “Direito das famílias e das sucessões”, a mulher pode ser absolvida se estiver agindo em legítima defesa ou em defesa de terceiros. Por outro lado, nos casos de crimes não defensivos, a condenação pode ocorrer, dependendo da gravidade do crime e das circunstâncias atenuantes ou agravantes.

José Eduardo Faria, em “Violência doméstica contra a mulher”, enfatiza que a violência doméstica pode levar a mulher a cometer crimes impulsivamente, mesmo sem intenção, devido ao estado de fragilidade causado pelo abuso. Esta perspectiva é corroborada por decisões judiciais, como a do Tribunal de Justiça de São Paulo, que absolveu uma mulher agindo em legítima defesa contra seu agressor, reconhecendo a necessidade de defesa diante de uma agressão injusta e atual. Socialmente, a prática de crimes por essas mulheres pode reforçar estigmas e discriminação, como aponta Maria Berenice Dias, referindo-se à criminalização da mulher vítima de violência doméstica como uma forma de violência institucional. José Eduardo Faria reitera que a sociedade deve ver essas mulheres como vítimas e não como criminosas, promovendo um apoio que possa auxiliá-las a superar a violência e reconstruir suas vidas. Esta visão é compartilhada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que em uma de suas decisões, destacou a importância de tratar estas mulheres com sensibilidade e compreensão.

As políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica, portanto, devem considerar as implicações jurídicas e sociais desses casos. Medidas como a ampliação do acesso à justiça, o fortalecimento das redes de apoio e a educação da sociedade sobre a violência doméstica são cruciais para garantir a proteção adequada à mulher e a responsabilização do agressor, sem criminalizar a mulher vítima de violência.

7. POLÍTICAS PÚBLICAS E ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: FOCO NAS VÍTIMAS E CRIMINOSAS

As políticas públicas brasileiras para o enfrentamento à violência doméstica incluem leis e programas como a Lei Maria da Penha e o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, que visam proteger as mulheres vítimas de violência. Contudo, ainda há um longo caminho a percorrer para assegurar a eficácia dessas políticas, especialmente no que diz respeito às mulheres que cometem crimes em resposta à violência sofrida.

Maria Berenice Dias, em sua obra “Direito das famílias e das sucessões”, enfatiza a necessidade de políticas públicas abrangentes que atendam às necessidades específicas das mulheres vítimas de violência doméstica, incluindo aquelas que cometem crimes. Segundo ela, essas políticas devem focar na proteção da mulher, responsabilização do agressor e prevenção da violência.

José Eduardo Faria, em “Violência doméstica contra a mulher”, ressalta a importância de políticas públicas intersetoriais, envolvendo diversos órgãos governamentais e não governamentais, voltadas para a transformação social e o reconhecimento da violência doméstica como um problema social.

A jurisprudência também reflete essa necessidade. O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, em uma decisão de Apelação Criminal, destacou a importância de políticas públicas eficazes que atendam às necessidades específicas das mulheres vítimas de violência doméstica, inclusive aquelas que cometem crimes. Da mesma forma, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul enfatizou a necessidade de políticas intersetoriais.

No cenário internacional, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres da ONU insta os Estados a eliminar a discriminação contra as mulheres em todos os aspectos da vida pública e privada, incluindo o acesso a serviços públicos e sociais.

O Plano Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do Brasil visa garantir os direitos das mulheres vítimas de violência, promovendo sua autonomia e inclusão social, e contribuindo para a erradicação da violência contra as mulheres.

Essas perspectivas e decisões judiciais reforçam a necessidade de políticas públicas efetivas e sensíveis às particularidades das mulheres vítimas de violência doméstica, incluindo aquelas que reagem cometendo crimes. A abordagem deve ser holística e intersetorial, envolvendo não apenas a proteção legal, mas também o apoio psicossocial, a educação da sociedade e a promoção da igualdade de gênero.

8 CONCLUSÃO

Diante das complexidades abordadas neste estudo sobre a violência doméstica e os crimes cometidos por mulheres vítimas dessa violência, é possível concluir que estamos diante de um cenário multifacetado e desafiador. A violência doméstica contra mulheres no Brasil, mesmo com legislações avançadas como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, ainda representa um grave problema social e jurídico. Estas leis, embora representem um progresso significativo, enfrentam desafios na implementação e aplicação efetiva, deixando muitas mulheres vulneráveis e sem proteção adequada.

A reação de algumas mulheres vítimas de violência doméstica, que se manifesta por meio de atos criminosos contra seus agressores, destaca a necessidade de uma abordagem jurídica mais sensível e contextualizada. As circunstâncias que levam a essas ações, muitas vezes, são enraizadas em um ciclo contínuo de abuso, falta de alternativas de escape e falha do Estado em fornecer proteção e suporte adequados. Isso desafia os limites tradicionais da legítima defesa e sugere a necessidade de uma interpretação jurídica que leve em conta o contexto de violência prolongada e os fatores que contribuem para a ação da vítima.

A jurisprudência e as reformas legislativas devem evoluir para refletir uma compreensão mais profunda das dinâmicas de violência doméstica. Isso inclui reconhecer as circunstâncias atenuantes e a influência da violência e do trauma no comportamento das vítimas. Os princípios de direitos humanos, como o direito à vida e à segurança pessoal, devem ser centrais na interpretação e aplicação das leis, garantindo uma resposta mais justa e eficaz a esses casos complexos.

Conclui-se, portanto, que é imperativo não apenas aprimorar a legislação existente, mas também garantir a sua aplicação efetiva. Isso requer uma mudança sistêmica que aborde a violência doméstica de forma mais abrangente, oferecendo às vítimas os recursos e o apoio necessários para que possam escapar do ciclo de abuso, sem que sejam levadas a extremos de desespero e autodefesa. Uma abordagem multidisciplinar, envolvendo suporte jurídico, psicológico, social e econômico, é essencial para enfrentar essa realidade de maneira efetiva e humanizada.

REFERÊNCIAS

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Apelação Criminal nº 1.0000.00.0000.0000. Relator: Desembargador Raimundo Messias Júnior. Julgado em: 05 maio 2023.

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Essas referências estão formatadas de acordo com as normas da ABNT, e cada uma delas desempenha um papel fundamental na fundamentação teórica e na base jurídica do tema abordado.

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