A IDEOLOGIA POR TRÁS DE PRÁTICAS CRUÉIS ENTENDIDAS COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL VISANDO A MANUTENÇÃO DO STATUS QUO E UMA NÃO MUDANÇA DE PARADIGMA: O CASO DA VAQUEJADA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10255407


Taynara Santos Barreto1
Felipe Castilho de Lima2


RESUMO: o presente artigo busca demonstrar a relação entre a obra do autor Ovídio Baptista, intitulada “Processo e Ideologia”, e as discussões sociais e ações sobre casos de maus-tratos aos animais, a exemplo da Vaquejada, que assim foi entendida pelo Supremo Tribunal Federal, apenas para posteriormente ser entendida pelo Legislativo como manifestação cultural. A pesquisa foi desenvolvida a partir do método bibliográfico, uma vez que utiliza de livros, artigos, decisões e legislações vigentes para análise e discussão. Por fim, conclui-se que o entendimento do Supremo representou uma mudança de paradigma no que diz respeito ao Direito Animal, mas que o conservadorismo presente nas demais instituições ensejou na Emenda 96/17, que manteve o status quo a partir do dogma normativo. 

PALAVRAS-CHAVES: ideologia; maus-tratos; direito animal; processo; manifestação cultural. 

ABSTRACT: this article intends to show the relation between “Processo e Ideologia”, by Ovídio Baptista and social debates and legal actions about animal abuse, as Vaquejada, for example, which was correctly understood in an legal action at the Supremo Tribunal Federal, but later was considered a cultural manifestation by the Legislative Power. The research was developed with the bibliographic technique, using books, articles, legal decision and law to analize and discuss. Then, the conclusion is the understanding by Supremo Tribunal Federal changed the status quo to a new paradigm, but the conservatism that exists inside other institutions resulted on Emenda 96/17, that changed back to the same status by the dogma. 

KEY-WORDS: ideology; animal abuse; animal rights; prosecution; cultural manifestation. 

“Será porventura justa, aos olhos dos pósteros, a sociedade que ama os animais superiores, mas continua destruindo, inexoravelmente, a natureza para conservar seus privilégios ou assegurar a rentabilidade dos negócios?”

– Ovídio Baptista  

1 INTRODUÇÃO: 

Neste artigo, a autora discorre sobre a ideologia presente no processo de construção do Direito, que se julga ser imparcial, mas que segue conceitos conservadores como forma de manter o status quo de uma determinada sociedade, o que atrasa o desenvolvimento jurídico de acordo com o momento histórico e social, segundo o autor Ovídio Araújo Baptista. 

Como forma de demonstrar a essência contida na obra “Processo e Ideologia”, a autora faz um paralelo com o recente caso da Vaquejada, cuja lei que regulamentava tal prática no estado do Ceará foi entendida como inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em razão dos maus-tratos que eram ocasionados aos animais, não só físicos como também psíquicos, mas que posteriormente foi considerada manifestação cultural pelo Legislador mediante Emenda à Constituição. 

Deste modo, a sociedade brasileira vê perdida uma oportunidade de avançar no campo da ciência jurídica – em especial, no Direito Animal, ramo cada vez mais crescente – para conservar uma prática que teve sua importância em um momento histórico anterior, mas que atualmente resta ultrapassada e não condizente com os valores sociais que buscam ser desenvolvidos. 

A metodologia utilizada foi bibliográfica, uma vez que a autora faz um paralelo com a obra “Processo Ideologia” do Ovídio Baptista e análise do caso no Supremo Tribunal Federal a partir de artigos científicos e da legislação vigente até o presente momento. 

Por fim, conclui-se que houve uma possibilidade de mudança de paradigma com a decisão do Supremo Tribunal Federal – que tem dado preferência ao direito animal ao invés do abuso do paradigma antropocêntrico, vide a Farra do Boi e a Rinha de Galo, por exemplo – mas cujo avanço acompanhado do momento histórico foi vedado pelo Poder Legislativo em menos de um ano após a decisão em um Projeto de Emenda à Constituição que resultou na Emenda 96/17, em uma clara demonstração de conservadorismo.  

2 A IDEOLOGIA NO CAMPO DO DIREITO:

Na obra “Processo e Ideologia” escrita pelo Ovídio Baptista, o autor entende que o ser humano da modernidade não é capaz de relativizar a sua ciência e tampouco as suas bases culturais, de modo que seres humanos possuem a tendência de atribuir ao seu opositor a característica de ideológico, supondo que a sua própria verdade é a absoluta. 

Para o pensamento conservador, manter o status quo é o modo de não ser ideológico. Dessa forma, ao proferir uma sentença aparentemente declaratória, o juiz mantém sua consciência tranquila uma vez que é “escravo da lei” e só decide conforme aquilo que é imposto pelo legislador. 

Contudo, infelizmente, o pensamento moderno não alcança a autocompreensão de sua própria historicidade. As verdades aceitas hoje estão no último estágio da perfeição humana, de forma que uma real mudança de paradigma se torna impensável para os padrões mentais de uma determinada comunidade, uma vez que ela faz parte do sistema.

Mas o que seria uma real mudança de paradigma? E, antes disso, em que consiste a ideologia? Como saber se um determinado raciocínio e/ou uma determinada norma é ideológica? Ideológicas são as práticas que, tendo sido válidas para uma situação histórica passada, deveriam ser abandonadas, por não serem mais condizentes com as novas experiências políticas, sociais, econômicas e até filosóficas. Assim, a ideologia possui um viés conservador e mantém regras passadas no tempo presente. 

Uma real mudança de paradigma, portanto, consistiria em conseguir – apesar de fazer parte do sistema – romper com a ideologia ultrapassada vigente e efetivamente avançar a norma em consonância com a sociedade. Afinal, o Direito é uma ciência da cultura, que enseja compreensão, que evolui a partir de momentos históricos e não uma ciência exata. 

Entretanto, um empecilho às mudanças de paradigmas no campo do Direito é a influência do racionalismo, que buscou transformar o direito em uma ciência lógica, de modo que ele seria produzido exclusivamente pelo legislador, que seria capaz de prever todas as situações fáticas que poderiam acontecer, ao ponto de a hermenêutica se tornar desnecessária.

Ocorre que tal suposição não poderia ser mais equivocada. Primeiro, porque revela-se faticamente impossível que o legislador, abstratamente quando da elaboração da lei, preveja todas as variáveis e possíveis desdobramentos incidentes nas relações humanas, notadamente em uma sociedade dinâmica e em constante mudança. Segundo, porque o texto da lei não é inequívoco, sendo imprescindível que a atividade hermenêutica possibilite a criação da norma jurídica aplicável ao caso.

Exatamente por estas duas razões pode-se afirmar que o Império do Direito não pode ser exclusivamente Império da Lei, e que a atividade jurisdicional deve buscar a construção do Direito através da hermenêutica. Isso porque, ao criar a norma jurídica com base nos paradigmas então vigentes, o juiz não está tão somente “declarando a lei”, mas está, em verdade, declarando-a de acordo com a ideologia dominante.

Um paradigma, portanto, seria uma verdade indiscutível pela comunidade científica determinada época, ainda que, posteriormente, seja entendido como um erro grosseiro. Afinal, a ciência ocorre por meio de revoluções e não por evolução. A revolução científica se dá quando um determinado paradigma é quebrado por não atender mais aos problemas provocados pelas novas condições históricas e pelo próprio desenvolvimento da ciência. 

O objetivo do autor consiste, então, em demonstrar o paradigma racionalista (dentro da ciência do Direito) e como ele se infiltra sutilmente em diversas questões processuais, determinando sentidos e orientando suas consequências. 

Para tanto, observa que com a separação dos três poderes, os magistrados tornaram-se servos da lei e a produção do Direito se concentrou no Poder Legislativo, de modo a gerar segurança jurídica e impossibilitar atuação jurisdicional de forma verdadeiramente normativa. 

Além disso, acrescenta o fato de que as universidades ensinam as normas a serem aplicadas e não os fatos, ainda que estes últimos sejam o objeto da lide em si. 

“Se quisermos, no entanto, constituir o Direito como instrumento democrático, será indispensável discutir com os alunos os casos práticos, colhidos na jurisprudência, mostrando-lhes a problematicidade essencial ao fenômeno jurídico, de modo que o Direito abandone o dogmatismo, com todas as falsificações da realidade que lhe são inerentes, para lançá-lo na dimensão hermenêutica, reconhecendo-lhe a natureza de ciência da compreensão e, consequentemente, a legitimidade da criação jurisprudencial do Direito.” (grifo não consta no original

Sobre essa última observação, é interessante notar que as universidades de Direito no Brasil – até o presente momento – não possuem o Direito Animal enquanto matéria autônoma, limitando qualquer discussão animal a Lei de Crimes Contra Fauna dentro da disciplina de Direito Ambiental, de modo que o questionamento crítico resta prejudicado e a manutenção do status quo garantida. 

Esta é uma questão problemática porque o Direito Animal é um ramo crescente do Direito, mas a sociedade brasileira ainda diploma bacharéis que não conhecem conceitos básicos sobre esta área. Como pensar democrática e pluralmente sobre questões atuais se as estudarmos da mesma forma que 20 anos atrás? 

Inclusive, Ovídio entende que o papel das universidades têm sido apenas de produzir cientistas que servirão de instrumento ao sistema, mas que deveriam ensinar a pensar, não a conservar o passado. 

Contudo, as universidades continuam servindo-se de filosofias racionalistas para explicar o Direito como uma ciência exata, em um completo anacronismo. A título de exemplo, cita o ensino do Processo Civil, como a ciência do “medir, pesar e contar”, sem evoluir para além disso. 

A eliminação da retórica tanto da prática quanto da docência universitária esteve ligada à concepção de um Estado acentuadamente monárquico, uma vez que havia um temor que juízes fossem autorizados a “modificar” o direito (leia-se, interpretá-lo), pretendendo-se assim, mantê-lo servo do poder soberano. 

Entretanto, não é sobre excluir completamente a dogmática. Nenhum sistema jurídico pode sobreviver sem ela, porém ela deve coexistir com a impossibilidade de respostas objetivas sobre certos temas, como justiça, utilidade, certeza, prudência, legitimidade, etc. 

A questão é que as grandes transformações acontecem pela forma como os homens, através de um processo lento e imperceptível, compreendem o acervo cultural acumulado pelas épocas anteriores. As verdadeiras forças sociais estão representadas por grupos. Todavia, as instituições processuais permanecem tendo apenas o indivíduo enquanto protagonista. 

Isso acontece porque o autoritarismo – oculto pelo dogmatismo – foi o principal elemento na formação do Direito. A ciência jurídica não deveria ter como missão a transformação social, mas sim, uma função essencialmente conservadora que mantivesse o status quo e a ordem social. A formação do Direito, ao buscar segurança jurídica, objetivava fugir das incertezas do mundo real, que na verdade são inerentes à vida humana. 

Contudo, ao decretar as leis positivas, o legislador conserva os olhos fixados numa norma de validade universal, exemplar, coercitiva à sua própria vontade e a dos demais. A partir disso, abandona-se a ordem natural para substituí-la por uma ordem baseada no poder

Além disso, outro elemento base do dogmatismo seria o conceitualismo, ou seja, a ideia de que o Direito seria puro conceito. Ele se torna uma barreira para criação jurisprudencial do Direito, porque impede a hermenêutica, ao dividi-lo em o “mundo jurídico” e o “mundo dos fatos”. 

Esse é problema da ideologia que não é percebida, seja durante o processo legislativo para criação de uma lei, seja durante o julgamento de uma decisão relevante: o paradigma que reduz o direito à lei impede o jurista de operar com a realidade. Porque tudo que se afasta dos padrões paradigmáticos só possui duas opções: não é lido ou, quando lido, é recusado como ideológico, pois o pensamento dogmático gera, invariavelmente, o pensamento único, justamente por ser dogmático – ainda que seja o conflito que impulsione o desenvolvimento social. 

Assim, o juiz não possui autonomia para o pensar hermenêutico de acordo com as novas realidades sociais e históricas que vão sendo construídas. O exercício da jurisdição é reduzido a uma função meramente declaratória: o juiz ou aplica a lei ou é injusto em sua atuação. 

Daí a necessidade de eliminar o dogmatismo das universidades, de modo a abrir caminho para uma perspectiva crítica do direito, a partir da argumentação e da compreensão de fenômenos sociais, aproximando-o do momento histórico vivenciado. Assim, o intérprete atingiria a verdadeira vontade da lei, talvez até mais que o legislador, uma vez que, infelizmente, modernizamos cada vez mais o sistema, mas conservamos os mesmos problemas. 

 O pensamento conservador predominante não aceita opiniões diversas, não é a favor de uma sociedade pluralista, então, afasta aquilo que é novo. Em suma, o paradigma vigente limita-se ao seguinte questionamento: 

“qual a dose tolerável de injustiça capaz de ser suportada pela consciência ética da comunidade social na qual essa norma haverá de ser aplicada?” (p.289)

E assim segue até que a discrepância entre a norma positivada e a realidade social atinja um grau intolerável. Ideal seria se as normas jurídicas estivessem atreladas ao mesmo valor ético. O problema consiste no fato de que valores ensejam mensuração que não pode ser positivada.  

Contudo, para construir uma real democracia política é necessário ultrapassar o sistema e proporcionar formas em que o pensamento crítico possa nascer e ser mantido, de modo a permitir o desenvolvimento do direito de acordo com o momento histórico e social. O dogmatismo é a marca de um regime autoritário, mas a democracia tem como pilar a tolerância e o pluralismo jurídico. 

3 A ADI 4.983 – O CASO DA VAQUEJADA 

A vaquejada tem sua origem no Nordeste brasileiro, na época em que fazendas não possuíam cercas e/ou barreiras que impedissem a passagem dos animais para as propriedades vizinhas. Assim, para não perder o controle dos números, capturar os animais e trazê-los de volta ao seu lugar de pertencimento – não de origem, porque a origem de todos os animais é na natureza, livres da posse de seres humanos – e, posteriormente, separá-los entre os que seriam comercializados, ferrados e castrados, os vaqueiros se uniam para persegui-los e capturá-los, derrubando-os pela cauda. 

Com o passar do tempo, os vaqueiros do Ceará passaram a demonstrar seu poder de dominação nas chamadas “corridas do mourão”, competindo um com o outro, com o objetivo de entreter os fazendeiros, de modo que aquele que se destacasse ao puxar o boi, era reconhecido como melhor entre os seus e recebia uma premiação. 

Atualmente, contudo, o gado não é mais criado solto, de modo que a prática se tornou obsoleta e não possui mais seu objetivo original, reproduzindo no tempo presente um passado não mais necessário. 

Além disso, desvinculou-se da tradição nordestina, uma vez que é promovida por empresários interessados em lucro, tratando-se de um evento de alto poder econômico envolvido, com grandes shows de cantores locais e nacionais, exposições de animais, ingressos caríssimos sendo vendidos e premiações em quantias elevadas de dinheiro. 

Contudo, apesar disso, a prática segue acontecendo e, para marcação de pontos, é necessário que o boi desprenda as quatro patas no chão entre o puxão e a derrubada, em uma notória agressividade e demonstração de dominação do animal humano sobre o animal não humano.

É importante lembrar que esse puxar pode ensejar o deslocamento de vértebras, rupturas de ligamentos e de vasos sanguíneos, lesões traumáticas e comprometer até mesmo a medula espinhal, motivo pelo qual o evento é criticado pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária. 

Além do boi, ser senciente visto como objeto central da prática, existem também os cavalos nos quais montados pelo vaqueiro-puxador e pelo vaqueiro-esteireiro, que são submetidos a treinos desnecessariamente exaustivos para que possam acompanhar o boi no momento da perseguição e alcançá-lo. 

O art. 225, § 1º, VII da Constituição Federal veda quaisquer práticas que submetam as demais espécies a crueldade: 

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

Além disso, a Lei 9.605/98 que versa sobre Crimes Ambientais em seu art. 32 dispõe sobre a pena de detenção e multa para quem praticar ato de abuso, maus-tratos e mutilação de animais domesticados. 

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:        (Vide ADPF 640)

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.

Como uma atividade que deslocamentos, rupturas, lesões poderia não ser considerada maus-tratos? Existe uma medida que quantifique o sofrimento experienciado pelas demais espécies até um grau que seja tolerável para a nossa espécie? A ciência já demonstrou que animais são seres sencientes, capazes de sentir e interpretar o mundo à sua maneira, de modo que há de se falar no interesse do animal em não sofrer. A tolerância para o sofrimento, portanto, seria equivalente a zero. 

 O Ministro Marco Aurélio, em seu voto, reconheceu os maus-tratos aos quais os animais são submetidos e o Ministro Luís Roberto Barroso acrescentou que os maus-tratos são, inclusive, intrínsecos à prática (tracionar, torcer e derrubar o boi), de modo que nenhuma regulamentação conseguiria evitar a crueldade sem descaracterizá-la e, por serem os animais seres sencientes, as manifestações culturais que os submetessem a crueldade deveriam ser vedadas. 

A Ministra Rosa Weber, no mesmo sentido, acrescentou que não havia necessidade de morte e sangue para que uma determinada atividade fosse entendida como cruel, bastando os termos já trazidos pela Lei de Crimes Ambientais. Afinal, a vaquejada ocasiona dor, ferimentos internos e até mutilações aos animais envolvidos na prática. O Ministro Celso de Mello acrescentou a relação entre o sofrimento desnecessário aos animais e o padrão civilizatório contemporâneo, concluindo que eles não podem coexistir. 

O Ministro Ricardo Lewandowski argumentou a partir da “Carta da Terra”, reconhecendo que todo ser vivo possui valor, que todos estão interligados, votando a favor da vida, independente da espécie servir para uso humano ou não e a Ministra Carmem Lúcia entendeu que, ainda que o objetivo da Lei Cearense fosse regulamentar a prática de uma cultura enraizada, visando diminuir o sofrimento, a prática em si era cruel e que o processo civilizatório das sociedades não tolera mais o sofrimento animal como entretenimento. 

Afinal, consubstancia papel fundamental das Cortes Constitucionais a atribuição de sentido ao Direito, possibilitando-se, através da hermenêutica, a reconstrução da prática constitucional, de modo a indicar como ela deve desenvolver-se. Tal atuação, utilizando a terminologia adotada pelo Ministro Luís Roberto Barroso, refere-se aos papéis contramajoritário e iluminista das Cortes Constitucionais.

Assim, com 6 x 5 votos, em Outubro de 2016, o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 4.983 declarou inconstitucional a Lei 15.299/13 do Estado do Ceará que regulamentava a prática da Vaquejada, por considerar a existência intrínseca de crueldade para com os animais. 

Essa decisão representou – assim como a proibição da Farra do Boi e das Rinhas de Galo – uma mudança no paradigma antropocêntrico, baseado no racionalismo que busca justificar uma suposta “superioridade” humana sobre as demais espécies, para mais uma vitória do viés biocêntrico, no qual busca-se proteger a vida em si, independentemente de ser humana ou não. 

4 O PROCESSO IDEOLÓGICO

A racionalidade do ser humano foi – e por vezes ainda é – um dos principais argumentos utilizados para subjugação de outra vida – apenas por ser de uma espécie diferente da nossa – e fazê-la objeto de lucro. E é exatamente através do processo ideológico que o ser humano busca, sob o falso manto da racionalidade, a justificação de seus atos.

Nesse sentido a Emenda Constitucional nº 96/17 que burlou o alterou o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca do caso da vaquejada, sendo é apenas mais um exemplo da manutenção dos maus-tratos da nossa espécie para com os animais, demonstrando assim a ideologia presente no processo legislativo por trás da referida emenda. 

Ainda que o efeito backlash consista em legítima possibilidade de exercício de diálogos institucionais (na medida em que não há a sobreposição de um Poder Constituído sobre o outro, nos termos do Art. 2º da CF), o exercício, pelo Poder Legislativo, de reações políticas desproporcionalmente intensas acaba por esvaziar os papéis contramajoritário e iluminista das Cortes Constitucionais.

Isso porque o Supremo Tribunal Federal não admite a aplicação da Teoria das Normas Constitucionais Inconstitucionais3, sendo que o Poder Constituinte Derivado deve observância tão somente às cláusulas pétreas constantes no Art. 60, §4º, da CF/88. Como consequência, a promulgação de Emenda Constitucional  faz com que a mesma surja com presunção de constitucionalidade, ainda que contrária a entendimento preteritamente exarado pela Suprema Corte (ao contrário dos atos normativos infraconstitucionais).

A esse respeito cumpre salientar que, contrariamente às Emendas Constitucionais, eventuais atos legislativos infraconstitucionais produzidos pelo Poder Legislativo em sentido contrário a entendimento pretérito da Suprema Corte nascem com presunção de inconstitucionalidade. 

Desta feita é possível verificar que, no caso específico da Vaquejada, o efeito blacklash exercido pelo Legislativo constituiu foi verdadeira resposta política desproporcional – em especial, das bancadas ruralistas do Congresso Nacional – frente a uma mudança de paradigma promovida pelo Poder Judiciário, no exercício de seu papéis iluminista e contramajoritário, que modificaria o status quo de determinadas regiões .Tal desproporcionalidade da reação encontra respaldo, em grande medida, em aspectos econômicos, uma vez que afeta diretamente a forma de gerar lucro pelos envolvidos na atividade, pondo as normas da sociedade brasileira de acordo com o momento social e histórico vivido, sob um argumento bambo – para não dizer, insustentável – de suposta manifestação cultural. 

Ora, como pode ser cultural algo cujo objetivo essencial se perdeu com o passar do tempo, e cuja finalidade principal tornou-se tão somente a obtenção de lucro por empresários a partir do sofrimento físico e mental das demais espécies? 

 Além disso, o que é cultura? Até um passado bastante recente a escravidão, o patriarcado e outras formas de opressão eram culturais. Não será esse o momento de refletir sobre a opressão que a espécie humana impõe aos animais? Não será esse o momento de refletir sobre a cultura e padrões civilizatórios que a presente espécie humana pretende deixar para as futuras gerações? 

E por falar em reflexões sociais, é importante lembrar da Consulta Pública do Senado Federal na qual 63.391 pessoas votaram contra a Proposta de Emenda Constitucional e apenas 13.789 votaram a favor, o que se pode inferir que a maioria da população interessada no tema estava de acordo com o entendimento jurisprudencial do Supremo. 

Contudo, apesar disso, com o objetivo de findar um suposto “ativismo judicial”, o Congresso Nacional – em especial, a bancada ruralista que detém de grande influência e que certamente seria prejudicada com a mudança de paradigma – propôs e aprovou a proposta de emenda à Constituição, em um verdadeiro ativismo congressual, mas atribuindo ao outro o caráter ideológico. 

A Emenda Constitucional 96/17 que acrescentou o §7º ao art. 225 da Constituição Federal dispõe: 

§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos. (g/rifo não consta no original) 

Qual o conceito de bem-estar? Será que ele considera puxar o animal com tamanha força que o faça ser derrubado, tracionar e torcer a cauda do boi, lesões, luxações, traumas em órgãos internos, amputação da cauda em alguns casos, enfim, todas as consequências possíveis da prática da vaquejada? 

O fato é que a Constituição Federal veda práticas que submetam os animais à crueldade, e o Supremo Tribunal Federal, no legítimo exercício de sua atribuição de guardião da Magna Carta, decidiu por declarar a nulidade4 de legislações infraconstitucionais contrárias ao espírito5 do Constituinte Originário. 

Ocorre que, posteriormente, o legislador o Poder Constituinte Derivado acrescentou uma exceção às práticas cruéis quando fossem entendidas como manifestação cultural, exercendo, desta feita, reação política não apenas desproporcional, mas igualmente desarrazoada em face da hermenêutica constitucional da Suprema Corte.

Desproporcional porque rompe de maneira abrupta a Teoria dos Diálogos Institucionais, impondo, unilateralmente, determinada concepção em face de todos os Poderes Constituídos. Desarrazoada porque não encontra nem respaldo popular, uma vez que a consulta pública evidenciou o entendimento majoritariamente contrário da população, nem respaldo técnico, haja vista a nítida crueldade da prática.

Afinal, a mera promulgação da EC n. 97/2017 não tornou possível como se, de repente, que as lesões, fraturas, mutilações, etc desaparecessem. Não vão. Até porque o suposto “protetor de cauda” não protege o animal de lesões, uma vez que é ligado a ela. 

Contudo, justamente por ainda coadunar com a submissão de animais a práticas cruéis, a constitucionalidade da Emenda Constitucional 96/17 está sendo discutida em no Supremo Tribunal Federal em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5728), a qual ainda aguarda inclusão em pauta de julgamento. Tal ação constitucional visa, em última medida, visando garantir a proteção e efetividade do texto constitucional de acordo com o momento histórico da sociedade brasileira e sua perspectiva biocêntrica. 

Para tanto os principais apontamentos levantados para questionar a inconstitucionalidade da EC n. 96/2017 giram em torno da dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e a natureza de regra jurídica do Art. 225, §1º, VII, da CF. Isso porque, conforme mencionado anteriormente, em regra não se admite a declaração de inconstitucionalidade de normas constitucionais, uma vez que o Supremo Tribunal Federal atua como defensor do Poder Constituído, excepcionada a possibilidade de análise em face de violação de cláusulas pétreas.

Exatamente por  tal motivo busca a ADI 5.728 em aproximar a proteção animal do núcleo irredutível do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, resultando eventual violação à vida animal em verdadeira violação à dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana. Nas palavras do Ministro Barroso:

“O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação, independente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência. O desrespeito a esse princípio terá́ sido um dos estigmas do século que se encerrou e a luta por sua afirmação, um símbolo do novo tempo. Ele representa a superação da intolerância, da discriminação, da exclusão social, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar”. (grifo não consta no original)

Ademais, ressalta-se ainda que a norma constitucional que veda práticas que crueldade aos animais ostenta natureza jurídica de regra, e não de princípio, de modo que não estaria sujeita à ponderação, nem mesmo pelo Poder Constituinte.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A partir do exposto, pode-se inferir que há um crescente debate no que se refere ao Direito Animal e que o Supremo Tribunal Federal vem acompanhando essas discussões e alinhando o contexto histórico social em suas decisões, mantendo o entendimento de que o direito do animal de não ser submetido aos maus-tratos está acima do abuso sob o argumento de manifestação cultural. 

O antropocentrismo baseado no racionalismo que ensejou a dominação dos homens sobre as demais espécies vem sendo substituído pelo biocentrismo, no qual a vida – independente da espécie – está em evidência e, por esse motivo, a sociedade brasileira avança cada vez mais no que diz respeito a proteção dos animais. 

Contudo, como toda mudança de paradigma, há uma resistência frente a essa modificação. O caso da vaquejada é um exemplo dessa resistência, pois demonstra a ideologia dentro do processo legislativo que não alcança as modificações trazidas pela Corte Constitucional no exercício de seus papéis contramajoritário e iluminista, fazendo uso da norma para atrasar os possíveis avanços históricos e sociais. 

Por fim, ressalta-se que a despeito do incansável trabalho realizado pela comunidade e pelas entidades de proteção animal (como no caso da propositura da ADI 5.827 pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal), revela-se infelizmente de difícil alteração, ao menos por hora, o caso atinente à Vaquejada. Isso porque, além da desproporcional reação política, há na ADI 5.827 uma especificidade constitucional: a necessidade de eventual alteração do posicionamento do Supremo Tribunal Federal relativamente ao controle de Emendas Constitucionais.

Afinal, ao permitir-se uma interpretação extensiva do rol de cláusulas pétreas (como com a inclusão da proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado), abre-se uma porta à Corte Constitucional de análise ampliativa das Emendas Constitucionais e, ao fim, da própria atividade a ser exercida tipicamente pelo Poder Legislativo. 

Exatamente por tal razão haverá, sem sombra de dúvidas, grande exercício de poder político no sentido de garantir a continuidade da teoria de autoconteção do Poder Judiciário, evitando-se que a prerrogativa de dar “a palavra final” saia do controle do Congresso Nacional.

REFERÊNCIAS:

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3 ADI 815/DF de 28/03/1996
4 Importante salientar que o Supremo Tribunal Federal adota a Teoria da Nulidade da norma inconstitucional (afastando-se, portanto, da Teoria da Anulabilidade). Isso porque, ao declarar o ato nulo, os efeitos são produzidos retroativamente (ex tunc), de modo que a lei inconstitucional não pode produzir nenhum efeito pretérito, ainda que antes da declaração da nulidade, não se admitindo efeitos válidos à lei inconstitucional. Nas palavras do Ministro Luís Roberto Barroso: “Daí por que a inconstitucionalidade deve ser tida como uma forma de nulidade, conceito que denuncia o vício de origem e a impossibilidade de convalidação do ato”.
5 A função das Cortes Supremas não se limitam a declarar o texto constante na Lei Maior, mas, ao contrário, alcançar situações que não foram expressamente contempladas ou declaradas, em nítido exercício de seu papel construtivo. Exatamente por tal razão o intérprete deve se atentar ao espírito da Constituição, e não somente na letra da norma, razão pela qual a hermenêutica constitucional é dotada de princípios próprios.


1 Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da UCS – Universidade de Caxias do Sul (RS). Bolsista na modalidade I – PROSUC/CAPES, vinculada a linha de pesquisa “Direito Ambiental e Novos Direitos”, em regime de dedicação exclusiva. Pós-Graduada em Ciências Criminais pela PUC Minas – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2021). Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP (2020). Graduada em Direito pela Universidade Tiradentes – SE (2018).
2 Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Ex-Auditor Fiscal da Receita Estadual do Rio Grande do Sul. Ex-Auditor de Tributos Municipais da Prefeitura de Salvador. Mestrando em Direito Ambiental pelo Programa de Pós-Graduação da UCS – Universidade de Caxias do Sul-RS (UCS). Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Universidade Candido Mendes (2019). Pós-Graduado em Direito Tributário pela Universidade Candido Mendes (2017). Graduado em Direito pela USP – Universidade de São Paulo (2013).