O ESTUDO DO CARÁTER HUMANO NA HISTÓRIA DA PSICOLOGIA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10185656


Matheus de Camargo Mendes¹
Prof. Dr. Lademir Renato Petrich²


RESUMO

O presente trabalho tem como proposta principal a discussão sobre os estudos do caráter dentro da psicologia. Partiu-se de uma contextualização histórica sobre o tema, onde se resgatou o início dos debates acerca do assunto com as visões de homem surgidas na Grécia Antiga com as afirmações de Teofrasto, perpassou as linhas tradicionais de entendimento sobre o tema, influenciadas por filósofos como Kant, em seguida apresentou as visões de nomes importantes para o desenvolvimento da psicologia moderna como Freud e Allport, algumas das teorias de personalidade e caráter modernas como o Big Five e por fim algumas abordagens contemporâneas de psicologia do caráter fundamentadas na exploração da repercussão que as estruturas biológicas possuem sobre o indivíduo. Em seguida discutiu-se sobre a importante “localização” e esclarecimento do caráter em face da personalidade. Por fim, a discussão tomou a importante tarefa de adentrar em temas de pesquisa atuais da psicologia do caráter, como a evolução das perspectivas biológicas desse estudo e também as novas maneiras de estudo dessa realidade dentro da psicologia. A intenção destes estudos é mostrar a relevância de tais temas para uma melhor compreensão do ser humano, o que se presta a melhorar a maneira como este enfrenta seus problemas de qualquer ordem. A metodologia escolhida para este trabalho foi a de revisão bibliográfica para que seus dois papéis fundamentais fossem cumpridos, o de resgate histórico do tema e a atualização do debate.

Palavras-chave: Caráter, psicologia, estudo do caráter, psicologia da personalidade.  

ABSTRACT

This work aims to discuss the studies of character within psychology. It began with a historical contextualization of the topic, tracing back to the early debates in Ancient Greece with the views of individuals like Theophrastus. The exploration continued through traditional lines of understanding influenced by philosophers like Kant, followed by the perspectives of significant figures in the development of modern psychology such as Freud and Allport. It delved into contemporary theories of personality and character, including the BIG FIVE model, and concluded with recent approaches in character psychology grounded in exploring the impact of biological structures on individuals. The discussion then focused on the crucial clarification of character in relation to personality. Finally, it delved into current research topics in character psychology, including the evolution of biological perspectives and new methodologies in studying this realm within psychology. The intention of these studies is to highlight the relevance of such topics for a better understanding of the human being, contributing to improved ways of addressing various challenges. The chosen methodology for this work was a literature review, aiming to fulfill its two fundamental roles: the historical recovery of the theme and the updating of the debate.

KEYWORDS: Keywords: Character, psychology, character studies, personality psychology.

1.    INTRODUÇÃO

O estudo do caráter, ao longo dos vários séculos desde que surgiu até hoje, como diz Pasquali (2000, p.18), “dão a sensação de uma grande Babel” pela ampla diversidade de gêneses e autores que decidiram versar sobre este assunto. A realidade é que, certamente se poderá conseguir alguns pontos em que diversos autores entraram em consenso na sua produção de conhecimento e foram nestes pontos que a atual pesquisa se concentrou. No entanto, neste primeiro momento, a intenção deste trabalho é somente reunir algumas das linhas de pensamento que estão presentes.

Para contextualizar a questão do caráter na psicologia, é antes necessário discorrer sobre o conceito “caráter”. Antes que houvesse as diversas explicações sobre como se forma o caráter, o que ele representa no cenário das realidades psíquico-biológicas e quais os seus efeitos no comportamento, é necessário distinguir o seu significado dentro do contexto da psicologia, daquele seu outro significado ligado ao uso no senso comum. Dentro da psicologia, desde a suas linhas mais tradicionais, o caráter é entendido por grande parte dos autores e pesquisadores importantes, como uma estrutura inata, de origem material/física, que pode influenciar mais ou menos – isso varia de acordo com cada concepção antropológica – a instalação do ser humano no mundo, os seus comportamentos, o modo como lida com os fenômenos internos e externos (Allport, 1973).

Além disso, também se admitem alguns pensamentos sobre o caráter como sendo o resultado de uma interação entre o meio no qual se desenvolve uma criança, é algo de inato que cada indivíduo carrega consigo, como é o caso das teorias criadas sob a influência de Lev Vigotsky. Porém, quando se usa o termo caráter como é feito nos contextos de senso comum, seu significado se altera completamente, tomando a concepção de um certo repertório moral que se forma dentro da mente e que necessariamente se manifesta nas condutas desse sujeito no mundo. Nesta visão, se pode até ressaltar que há um caráter bom e outro mal, que ele pode ser melhor ou pior e que, portanto, deve ser reconhecido pelas esferas que o envolvem com um juízo de valor que torna mais ou menos aceitável o modo como isso se apresenta. Naturalmente, dentre as duas concepções pertinentes para o conceito caráter, a que se adotou até o fim desta pesquisa foi exatamente aquela que se enquadra dentro dos estudos psico-biológicos citados anteriormente (Allport, 1973).

Um dos primeiros povos a investigar estes conceitos foram os gregos antigos, que através da sua produção filosófica, esta que ecoa seus ensinamentos até os dias atuais, investigaram grande parte dos conhecimentos humanos que os sucederam e várias das discussões de que trata o homem no séc. XXI na sua produção intelectual, incluso neste conhecimento, a psicologia, e mais especificamente o caráter.

A própria origem da palavra caráter, em sua etimologia, revela um caminho de exploração deste tema, apontando para um de seus significados mais tradicionais e portanto tem muito a contribuir com a presente investigação: caráter, no grego kharakter, significa marca gravada/sulcada. Metaforicamente, se pode assumir este significado como uma marca, uma impressão que está na própria estrutura do homem, o que, em sua função mais pura, o inclina a certas ações e reações diante do mundo, é o seu modo de ser “mais cru”, sem lapidações e aperfeiçoamentos feitos pelas virtudes desenvolvidas, bem como, pelos vícios contraídos (Baumgarten, 1954).

Mais atualmente, se apresenta como uma linha de pensamento sobre o caráter humano e a sua formação, a doutrina vigotskiana, que concebe o caráter humano como uma grande interação entre certa porção inata de características e de predisposições, somada a uma outra porção produzida pela interação do sujeito com o meio em que vive. Vigotski toma como característica essencial do caráter uma certa “unidade e estabilidade” (VIGOTSKI, 2006) sobre a qual se desenvolvem os atributos da pessoa ao longo da vida.

2.    DESENVOLVIMENTO

2.1 A história do estudo do caráter

A história do estudo sobre o caráter na psicologia é uma narrativa complexa e parte de tradições filosóficas antigas, passa por teorias psicanalíticas, descobertas empíricas e visões humanistas. A evolução desse conceito reflete não apenas em avanços teóricos, mas também em mudanças culturais e sociais ao longo do tempo. Ao explorar esse percurso histórico de desenvolvimento sobre o tema, é possível notar uma apreciação mais profunda da complexidade e relevância contínua do estudo do caráter humano para a psicologia moderna (OLIVEIRA E SILVA, 2001).

Algumas definições que este termo encontra, como afirma Oliveira e Silva (2001), se referem exatamente à raiz etimológica da palavra, que alude à uma marca, um cunho ou uma impressão que distingue um ente ou objeto de outros de sua espécie. Nesta definição pode ser verificada a premissa de que o caráter, em sua definição mais básica, deve ser entendido como aquilo de subjetivo e único que cada indivíduo possui, aquilo que caracteriza a sua individualidade perante o conjunto de seres da mesma espécie. Essa noção de distinção perante outros indivíduos dá lugar a um dos pressupostos mais importantes adotados pela psicologia moderna e contemporânea por ser a matéria prima de seu trabalho, da sua pesquisa, da sua investigação mais fundamental, que é a subjetividade do indivíduo (2001).

Quando se investiga a origem etimológica da palavra no contexto em que foi criada, o ponto a que se retorna na história é a Grécia antiga, onde alguns nomes foram pioneiros ao iniciar investigações filosóficas sobre o caráter. Teofrasto, discípulo de Aristóteles, apresentou análises inovadoras para a sua época sobre as características inatas e distintivas que moldam o comportamento humano. Em suas obras, delineou um arcabouço inicial para entender o caráter como uma construção intrínseca e duradoura da psique. Seus estudos se basearam em um método tradicional de observação científica, chamado de “método investigativo empírico” (Brito et Pereira, 2020).

Seu método contribuiu amplamente para o desenvolvimento sobre este conhecimento, já que todos os autores seguintes foram, em alguma medida, adeptos de seus ensinamentos anteriores sobre o assunto. Teofrasto baseou suas descrições em observações diretas da sociedade, dos indivíduos e dos seus comportamentos, analisando as pessoas em diferentes contextos sociais e situações para entender as nuances de seus caracteres. Cada personagem em sua obra representa um “ethos” particular, que pode ser compreendido como uma faceta da manifestação do caráter, do modo de vida ou do hábito moral de determinado sujeito. Exemplos incluem o “Homem Ridículo”, o “Homem Frugal”, o “Homem Dado à Ira”, entre outros (Oliveira e Silva, 2001). 

Ainda discorrendo sobre a origem das definições de caráter na Grécia Antiga, encontram-se em Heráclito algumas explicações sobre o tema, cunhando a “doutrina do temperamento, com descrição e agrupamento dos tipos físicos e seus temperamentos, conforme a predominância de um dos quatro humores sobre os outros: fleuma, sangue, bílis e atrabílis” (OLIVEIRA E SILVA, 2001 p. 20). Em sequência, Aristóteles também continuou estas investigações sobre os fluídos, propostas por Hipócrates, mas nunca se aprofundando em discussões estritamente correlatas com aquilo que tradicionalmente se entendia por caráter, apenas pela semelhança e proximidade que o tema dos temperamentos – um conhecimento de menor abrangência e profundidade – possui com a investigação mais ampla e profunda como a investigação do caráter. 

Já decorridos vários séculos, encontra-se nas investigações antropológicas de Kant, ideias relacionadas com aquilo que hoje e na maior parte do desenvolvimento histórico se entende por caráter: uma distinção entre aquilo que se entende por inato e o que se entende por mutável dentro da estrutura mais ampla da personalidade do homem. Abbagnano (1982 p. 110), comentando sobre os escritos deste autor, revela que “…o caráter físico, que é o sinal distintivo do homem como ser natural, e o caráter moral, que é o sinal do homem como ser racional, provido de liberdade. O caráter físico diz ‘o que se pode fazer do homem, o caráter moral diz o que o homem é capaz de fazer de si mesmo”, ou seja, que o homem possui dentro da sua constituição caracterológica uma dualidade na formação da sua compleição, tendo uma parte que é inata, natural e mais ou menos fixa, e outra que se constitui ao longo da existência, que é mutável e portanto, como que  “inacabada”. Em resumo, no pensamento de Kant sobre o caráter, nota-se que estas duas concepções, se tornam posteriormente as duas principais linhas de ideias a que se apegam os teóricos deste tema (Oliveira e Silva, 2001). 

Dentro das linhas de psicologia moderna, Sigmund Freud, o fundador da psicanálise, trouxe novas ideias para  compreensão do caráter no final do século XIX. Ele dividiu a personalidade em inconsciente, consciente e pré-consciente, ressaltando a complexidade das forças internas que moldam o comportamento. A estas nomenclaturas, Freud acrescentou uma nova teoria, também usada amplamente pelos estudiosos do tema, que fala respectivamente de estruturas psíquicas semelhantes, chamadas de “Id”, “Ego” e “superego”. Esta perspectiva psicanalítica influencia até a atualidade, uma série de pesquisas sobre a dinâmica do caráter e seu papel nas interações humanas. Quando o assunto é o caráter e a sua manifestação cotidiana,  Freud introduz e explora vários mecanismos de defesa psicológica. Alguns como a repressão e a negação, desempenham um papel crucial na formação e na expressão do caráter (Bernardes, 2005).

Alguns outros temas são abordados por Freud neste contexto, como a interpretação dos sonhos, que influencia diretamente na sua compreensão de caráter, já que abarca a compreensão do autor sobre o inconsciente, peça fundamental na antropologia freudiana; bem como o princípio da repetição e do alguns aspectos do trauma, ambos temas que são completamente fundamentais para a compreensão adequada daquilo que Freud compreendeu por Caráter (BERNARDES, 2005).

Quando se avança um pouco nos estudos, na década de 30, um pesquisador importante e ainda relevante para os trabalhos atuais da psicologia, surge o nome de Gordon W. Allport. Allport desenvolveu a sua teoria com ênfase na singularidade que cada indivíduo possui; acreditava que as características específicas de cada pessoa deveriam ser a busca principal no entendimento do caráter, ao invés de buscar, em um primeiro momento, por traços universais. Baseado em tais ideias, introduziu o conceito de “traços centrais”, que são características subjetivas e fundamentais, definidoras da individualidade de uma pessoa. Considerava ainda, a existência de alguns traços secundários, sobre os quais, aqueles têm um lugar de primazia (Allport, 1973). 

Allport optou por estabelecer uma estrutura com hierarquia própria no estudo sobre o caráter e a personalidade. Nestes níveis hierárquicos, o autor percebe a existência de três deles: os traços chamados secundários, que correspondem a alguns padrões de comportamento mais específicos. Estes, podem ter a sua manifestação dependente do ambiente, das relações e portanto são mais abstratos, mais flexíveis. Um exemplo destes traços secundários, é a maneira como uma pessoa se comporta no ambiente de trabalho, sendo neste círculo de convivência, um pouco mais extrovertida e com maior facilidade de se sentir à vontade e “no controle da situação” (Silva e Nakano, 2011).

Além dos traços secundários, Allport (1973) acrescentou sobre traços centrais, os quais considerava como sendo mais abrangentes, estáveis e consistentes, manifestando-se com consistência ao longo do tempo, e em diversas situações. Neste aspecto, são diferentes dos traços secundários, que têm manifestações muito específicas para cada contexto. Os traços centrais, segundo esta teoria de Allport, podem influenciar de maneira muito significativa no comportamento de uma pessoa, dando forma para uma série de reações do indivíduo de maneira muito clara. Neste assunto, se pode traçar um paralelo estreito com os temperamentos, que são como uma predisposição que cada indivíduo tem para reagir e se manifestar no mundo e diferentes situações e contextos. 

Por fim, no terceiro nível da hierarquia estabelecida por Allport (1973) em seus estudos, encontram-se os traços cardinais. Estes traços têm uma importância central na formação do indivíduo e da sua personalidade, já que, segundo o autor, a sua influência abrange situações extremamente amplas e com grande profundidade na vida do sujeito. Allport evidencia que estes traços de caráter são raros e dominantes, afirmando que nem todos os indivíduos possuem tais traços. Na teoria de Allport, os traços cardinais são como uma força motriz, que tem uma força poderosíssima, capaz de moldar todos os aspectos da vida de uma pessoa, o que torna estes casos um tanto raros. O pesquisador exemplifica a possibilidade da existência de tais traços, com o caso de determinada pessoa que tem uma busca implacável por poder, que enxerga todas as relações e situações da vida por essa ótica; ou então pessoas extremamente dedicadas à caridade ou à busca do conhecimento. 

A metade do século assistiu ao surgimento das teorias dos traços, como a Teoria dos Cinco Grandes Fatores (Big Five), que identifica dimensões-chave da personalidade, enxergando o caráter (aqui nomeado como “personalidade”) por um viés psicométrico, com medidas objetivas da sua manifestação. Traços como extroversão, neuroticismo, abertura à experiência, amabilidade e conscienciosidade moldam a base do caráter, proporcionando uma estrutura mais objetiva para análise. As teorias do Big Five, conhecidas como o modelo dos Cinco Grandes Fatores de Personalidade, são uma abordagem amplamente aceita na psicologia moderna e atual para descrever e avaliar a personalidade humana, bem como os traços de caráter que compõem cada indivíduo. Esta teoria foi criada por Lewis Goldberg e Robert McCrae e Paul Costa que construíram e refinaram a teoria nos anos 1980 e 1990 (Silva e Nakano, 2011).

Os cinco fatores, Abertura, Conscienciosidade, Extroversão, Amabilidade e Neuroticismo, frequentemente abreviados como OCEAN têm uma profunda relação com a formação do caráter, devido à sua abrangência e capacidade de capturar as principais dimensões da variação da personalidade, inclusive para contextos de pesquisa sobre o caráter e a personalidade humana, bem como na compreensão de alguns fenômenos psicológicos. Por fim, esta teoria dos traços aborda a questão do caráter como “algo estável, porém mutável na maneira de pensar, sentir e atuar com as pessoas, caracterizando, contudo, possibilidades de mudanças, como produto das interações das pessoas com seu meio social” (Silva e Nakano, 2011 p. 52). 

A pesquisa sobre o caráter não deixa de evoluir atualmente, contando com uma série de estudos neurocientíficos que ampliam o conhecimento sobre bases biológicas e físicas do caráter, enquanto abordagens interdisciplinares discorrem de maneira conjunta diversos conhecimentos da genética, psicologia e sociologia. Os estudos de Hipócrates, citados anteriormente, foram base para uma série de abordagens comportamentais sobre o estudo do caráter, como em Pavlov, e que posteriormente culminaram nas abordagens neurocientíficas contemporâneas, que desenvolvem explicações baseadas na análise dos neurotransmissores, nos processos genéticos, bioquímicos e nervosos (Zuckerman, 1991).

2.2 Quais são as reais influências do caráter na personalidade 

Com base em todas as correntes de estudo sobre o caráter que foram abordadas anteriormente,  pretende-se agora, abordar o assunto do caráter em face de uma outra perspectiva do fenômeno humano, a da personalidade, que de acordo com um grande consenso de autores, abrange de modo muito mais amplo aquilo que se entende pela totalidade da pessoa. 

Um consenso há entre grande parte dos autores que discorreram sobre o tema do caráter e da personalidade, que é a ideia que a totalidade daquilo que se compreende pelo ser humano ultrapassa amplamente os limites da mera determinação inata de um ser humano. O fenômeno da pessoa humana não pode ser acorrentado às disposições individuais que estão dadas quando uma pessoa nasce ou que se formam nos primeiros anos de sua existência. Este acontecimento extraordinário chamado “humanidade” tem uma série de faculdades, potências e forças que atuam em conjunto para produzir aquilo que podemos testemunhar no homem (Allport, 1973). 

Não de um modo acabado, mas de uma perspectiva mais ou menos estável, a somatória desses fatores produz aquilo que se pode compreender pela totalidade do ser humano, e é isso o que pode ser chamado de personalidade. A personalidade, de acordo com Allport (1937, p. 48), é “a organização dinâmica dos sistemas psicofísicos dentro do indivíduo que determinam sua adaptação pessoal ao respectivo ambiente”. Com isso, o autor quer dizer que mais do que aquelas disposições e tendências com que se nasce, mais do que aqueles comportamentos observáveis, a personalidade é resultado de fatores numerosos, que confluem em uma trama articulada e complexa de potências e modos de atuação próprias.

As principais linhas que discutem sobre este tema, comumente adotam a concepção de liberdade para justificar aquela principal operação atribuída à personalidade. Dentro desta visão o caráter se apresenta analogicamente como uma espécie de substrato no qual se desenvolve a personalidade. Esta, por sua vez, está sujeita à influência de diversos fatores como: as interações com o meio, a educação que recebe desde que nasce, a cultura que molda os pensamentos e a visão de mundo, as relações que são estabelecidas ao longo da vida e as próprias escolhas (exercício da liberdade) que são feitas ao longo do curso natural da vida. O caráter se apresenta aqui, não com vieses de determinismo duro e irrevogável, mas simplesmente como uma sistematização de certas inclinações ou tendências que todos os seres humanos possuem, como a predisposição para ser mais irritado ou então mais pacífico, ser mais atento ou mais distraído. Contudo, a realidade que se apresenta, como mencionado por Friedman e Schustack (2011), é outra, podendo cada um testemunhar que no fundo, o que determina a manifestação dessa personalidade são mais as escolhas do que as inclinações para ser sábio ou ignorante, generoso ou mesquinho.

Face a isto, nota-se que diante do sistema complexo e extenso que define o conceito de personalidade, o caráter possui uma contribuição relevante no modo como cada pessoa se manifesta para o mundo, no modo como interage com as pessoas, nos gostos que possui, nos seus padrões de comportamento e de relações. A grande questão do caráter, na presente discussão, é a de que ele não é a totalidade dos acontecimentos que envolvem o fenômeno humano, mas apenas uma parte desta somatória de causas e princípios. Assim sendo, segundo cada linha de abordagem psicológica e cada uma das linhas teóricas de antropologia têm a sua visão sobre como o caráter influencia na totalidade. O que cada uma destas linhas teóricas propõe, não é o intuito de aprofundamento, mas sim, apenas a apresentação de tais ideias (Friedman e Schustack, 2011).

2.3 Caráter na atualidade

Por fim, as pesquisas mais recentes que existem quando se trata do tema do caráter, inevitavelmente se parte para o campo da biologia, onde os fatores genéticos, as análises por meio de exames de imagem, da investigação de neurotransmissores, avaliação das estruturas cerebrais e a testagem hormonal dos indivíduos tem liderado os estudos sobre este tema, já que, segundo Friedman e Schustack (2011) a investigação sobre a personalidade só tende a ganhar quando a evolução da ciência contribui para tantas e tão minuciosas investigações biológicas e físicas.

Na atualidade, as principais forças de pesquisa se enveredam pela investigação do cérebro humano e pela observação do seu modo de atuar, já que, como diz Kandel, Schwartz e Jessell (1997)

A tarefa da ciência neural é a de fornecer explicações do comportamento em termos da atividade cerebral, de explicar como milhões de células neurais individuais, no cérebro, atuam para produzir o comportamento e como, por sua vez, elas são influenciadas pelo ambiente, inclusive pelo comportamento de outras pessoas. 

Com base nisto, a questão central que se apresenta neste momento atual da história, é uma grande revolução no modo de enxergar a psicologia, o estudo do caráter e a personalidade. Há poucas décadas os horizontes eram extremamente estreitos diante dos olhos dos pesquisadores e filósofos que investigaram este tema da personalidade e do caráter, quando as possibilidades que possuíam as pesquisas se limitavam à precária tecnologia disponível, os pesquisadores tinham pouco material prévio a partir do qual iriam se projetar e o interesse das pessoas ainda era pequeno por tais assuntos.

Uma vertente importante dos estudos atuais sobre o caráter que foi e ainda é desenvolvida adentra a biologia com as pesquisas sobre o genoma humano, e a testagem de níveis de influência que esta realidade possui de fato ou não sobre o comportamento humano. Um exemplo disso são os confrontos entre a manifestação comportamental a partir de estudos com gêmeos, para observar quanto de influência poderia provir dos genes, da parte biológica do indivíduo, e quanto advinha da educação do outro indivíduo. Além disso, estudos sobre emoções e a área da genética conseguem afirmar com certa razoabilidade que três das principais emoções presentes na vida de todo ser humano tem base genética, e são elas o amor, o medo e a raiva (Friedman e Schustack 2011).

Um ponto importante para ser destacado, segundo Friedman e Schustack (2011) é que com a modernização das pesquisas sobre a biologia humana do caráter, e o aprimoramento das observações realizadas sobre este tema, pôde-se chegar a conclusões que antes não pareciam tão óbvias. Um exemplo disso é a realidade de que as questões ambientais em torno do indivíduo não são capazes de explicar toda a complexidade dos comportamentos humanos, isso quer dizer que a velha equação estímulo-resposta não é a principal e muito menos a única explicação para aquilo que o ser humano faz no mundo e se torna. 

Seguindo linhas ainda mais recentes de pesquisa, pode-se encontrar até mesmo alguns estudos interdisciplinares importantes sendo desenvolvidos. Um exemplo disso é a convergência de estudos correlacionando a área da neurociência com a psicologia, a medicina de imagem e outras áreas próximas e importantes. Um exemplo disso são os estudos de Jung e Haier (2007), que mostram através de exames de imagem muito detalhados, como e onde a inteligência se manifesta no cérebro, como o tamanho do cérebro humano e relação com o de outros animais é relevante sim para o tamanho da inteligência que possui o ser humano e expandindo assim, mais uma vez as fronteiras destas investigações e tornando evidente a grande evolução da compreensão do caráter como aquela estrutura que predispõe cada ser humano a alguns padrões de mais ou menos estáveis de comportamento, de gostos, de emoções e outras realidades inerentes a todos.

Por fim, faz-se notar que, como exposto anteriormente, a tendência dos estudos é que cada vez mais sejam desenvolvidos sob a perspectiva de uma ampla interdisciplinaridade, tecnologias cada vez mais avançadas e cada vez mais confiáveis para que os resultados também apresentem mais fidedignidade. Deste modo toda a produção acadêmica, intelectual e prática (do consultório ou quaisquer outras áreas da psicologia) ganham novos e sólidos avanços, baseados na grande cooperação e intensidade dos estudos promovidos atualmente (Friedman e Schustack (2011).

3.    METODOLOGIA

A metodologia escolhida para este trabalho foi o desenvolvimento de revisão bibliográfica da literatura, na qual, a principal intenção é a de coletar dados de  bibliografia especializada no assunto e delimitar o tema segundo os objetivos da pesquisa. Com o intuito de absorver direcionadamente o conteúdo referente ao tema da pesquisa, a metodologia de revisão bibliográfica possui dois papéis importantes e interligados, segundo Moreira (2000). O primeiro deles é o de reunir dados sobre o desenvolvimento histórico da ciência a ser pesquisada, coletando informações passadas sobre o tema, com a intenção de remontar as origens do pensamento em determinada área. O segundo dos papéis da presente metodologia é o de atualizar os conhecimentos obtidos nas fontes históricas, relacionando estes com pesquisas correntes e atuais da literatura disponível, cumprindo assim a função de colar na atualidade o assunto a ser pesquisado. 

Assim sendo, a pesquisa presente se propôs a iniciar no primeiro momento, com um breve contexto histórico da concepção do termo caráter desde que foi cunhado na grécia antiga, passando pelo desenvolvimento na modernidade, e em várias linhas de pensamento que, divergentes entre si, moldaram toda a estrutura das concepções presentes atualmente. A investigação se seguiu pela explanação do conceito em face de outro que tem total pertinência no assunto do caráter (a personalidade), à medida que são termos que se interseccionam em algum momento e que precisam de clareza quando são colocados dentro de alguma pesquisa. Por fim, a intenção deste trabalho foi de abordar alguns dos estudos mais recentes e evoluídos quando o assunto é o estudo do caráter humano. Neste ponto, a intenção foi ressaltar a natureza multidisciplinar dos estudos mais recentes na área, fazendo com que a autoridade e a penetração das pesquisas sejam cada vez mais robustas e relevantes (Moreira, 2004).

4.    RESULTADOS E DISCUSSÕES

Alguns dos principais resultados que foram obtidos com a presente pesquisa são uma breve reconstrução histórica do estudo sobre o caráter, a consideração sobre a sua influência nos comportamentos humanos e por fim  a discussão sobre este tema dentro das pesquisas atuais da grande área da psicologia.

Uma das mais relevantes conclusões que pode tirar do desenvolvimento histórico deste tema, é que, há muito tempo este é um assunto que ocupa e preocupa diversos pensadores dentro de vários campos dos conhecimentos humanos, como a psicologia, a filosofia e a antropologia. Estas preocupações remontam a milênios e se desenvolvem por mais de 20 séculos dentro da cabeça de grandes homens que se esforçaram para obter avanços na pesquisa. Anteriormente, mais ligada à filosofia, a discussão sobre o tema era quase que puramente intelectual, permeada somente por pesquisas e observações intelectuais. 

Com o passar do tempo as pesquisas foram se desenvolvendo e aquilo que antes era estritamente uma questão intelectual “fria”, ganhou novos ares de pesquisa, adentrando algumas observações mais complexas como as pesquisas com o caráter e sua influência no comportamento de animais, apresentadas por (psi personalidade). O desenvolvimento deste assunto nunca parou de acontecer desde que foi criado, mas somente se aprofundou e teve a sua relevância aumentada com o passar do tempo, já que as pesquisas proporcionadas pela evolução da tecnologia e da precisão em experimentos e novas maneiras de testes científicos ganharam espaço com o passar dos anos.

Um dos principais apontamentos a serem feitos neste momento, são as evoluções que o assunto do caráter e da personalidade receberam diante das pesquisas científicas modernas. A evolução da ciência foi muito acelerada e importante dentro das últimas décadas, fazendo com que o entendimento sobre assuntos antes sequer imaginados fossem hoje dominados pelo homem contemporâneo. Diversos estudos que buscam compreender estes inúmeros fatores que compõem e influenciam a vida humana são realizados com a intenção de exploração, de aumento do conhecimento sobre as realidades que cercam a todos. No entanto, é inegável que estes avanços contribuem para a vida prática do homem, proporcionando uma série de elementos a partir dos quais o entendimento se modifica, e portanto as ações que são tomadas a partir dele também. 

5.    CONSIDERAÇÕES FINAIS

Maior compreensão acerca das realidades humanas, mais eficiência nas decisões que devem ser tomadas, e mais certeza das ações que devem ser propostas são o resultado final de todo o aprofundamento neste tema, já que todo o pano de fundo nesta discussão é a melhora da raça humana como um todo. A evolução nunca deve ser tomada apenas com o sentido de adaptação e sobrevivência, senão, principalmente como um crescimento e elevação das motivações mais profundas. 

A grande discussão sobre o caráter e sobre a personalidade desde as origens até a sua relevância para a psicologia atual, se fundamentam em um ponto principal: o conhecimento sobre o ser humano, sobre “as peças que o compõe” e sobre o seu “funcionamento”, para evocar aqui a conotação inventada por John Milton, são a principal chave para descobrir, ou ao menos investigar aquilo que o homem tem de sentido para a sua existência, a sua principal motivação e aquilo que pode realizá-lo, considerando as suas causas e efeitos no mundo. 

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1 Aluno de Psicologia (UNIVEL) (2023)
2 Orientador – Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora