SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR E O NOVO PROGRAMA DO GOVERNO FEDERAL “DESENROLA BRASIL”

CONSUMER OVER-INDEBT AND THE NEW FEDERAL GOVERNMENT PROGRAM “DESENROLA BRASIL”

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10155364


Arielle Rêgo Barbosa1


Resumo

O trabalho objetiva analisar o instituto do superendividamento do consumidor, regulamentado no Código de Defesa do Consumidor, pela Lei federal nº 14.181/2021 e, através dessa contextualização inicial, busca demonstrar a efetividade do novo programa do governo federal “Desenrola Brasil” como instrumento complementar e concretizador dos objetivos legais. Para tanto, usou o método indutivo, com observação das técnicas e fenômenos disponibilizados pelo programa governamental, passando à descoberta da relação comparativa entre a adesão dos consumidores e a concretização dos objetivos legais de combate ao superendividamento até chegar às generalizações metodológicas que permitam concluir pela efetividade do programa e sua importância nacional, em observância aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

Palavras-chave: Superendividamento. Consumidor. Crédito. Dívidas. Desenrola.

1. INTRODUÇÃO

            Em países capitalistas, como o Brasil e no contexto de um mundo globalizado, com altos estímulos a hábitos consumistas, ganhou destaque um fenômeno chamado de “superendividamento”, consistente na aquisição de dívidas ou obtenção de financiamentos e linhas de crédito em um patamar incompatível com a possibilidade de, posteriormente, serem pagas pelo consumidor, gerando risco ao aumento de sua vulnerabilidade ao tentar “limpar” o seu nome e sair da exclusão social comum a esses devedores, seja pelas restrições legais de crédito, seja pelo costume popular de excluir pessoas com “má-fama” no mercado. Assim, nessa tentativa de sair desse ciclo, o consumidor acaba por comprometer despesas consideradas básicas para viver com um mínimo de dignidade, como alimentação, vestuário, moradia, lazer, educação, saúde, dentre outras.

            Ciente dessa nova prioridade legal de prevenção e tratamento ao superendividamento do consumidor e, ainda, levando em conta o histórico de endividamentos gerados pelos impactos econômicos gerados pela pandemia do Covid-19, o Governo Federal brasileiro lançou, em 2023, um programa de renegociação de créditos inadimplidos, intitulado “Desenrola Brasil”, objetivando recuperar as condições de crédito de devedores negativados e assegurar a um público específico a dignidade da pessoa humana, fundamento da República federativa do Brasil (Art. 1ª, III CF/88) e os objetivos fundamentais de garantir o desenvolvimento nacional (Art. 3º, II CF/88) e de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (Art. 3º, III, CF/88).

            Nessa via, o presente artigo busca analisar detalhadamente o funcionamento desse Programa e, sob o método indutivo, traçar uma relação entre ele e os fundamentos e diretrizes legais de prevenção e tratamento ao superendividamento para obter conclusões generalizadas sob o potencial de efetividade do “Desenrola Brasil” para a retomada do crescimento econômico do País de forma sustentável, assegurando a proteção dos consumidores mais vulneráveis, sua qualidade de vida minimamente digna e sua realocação na sociedade.

2.SUPERENDIVIDAMENTO E O PROGRAMA “DESENROLA BRASIL”
2.1. Noções gerais sobre o superendividamento

            Nos termos do Art. 54-A, §1º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), introduzido pela Lei nº 14.181/2021, o superendividamento consiste na “impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação” (BRASIL, 1990).

            Nesse contexto, a doutrina e jurisprudência pátrias atribuem diferentes facetas ao que se considera “mínimo existencial”. Segundo Cláudia Lima Marques (2021), é possível fazer uma divisão em três concepções diferentes: o mínimo existencial constitucional, próprio do direito público, atrelado à versão geral de dignidade da pessoa humana; o mínimo existencial do direito privado, relacionado à impenhorabilidade do patrimônio mínimo do devedor; e o mínimo existencial específico do direito do consumidor, por ela denominado “mínimo existencial substancial de consumo”. Levando em conta essas variáveis conceituais, o legislador preferiu por não especificar o que se considera mínimo existencial para fins de concessão de crédito e repactuação de dívidas, em tentativa de não engessar o conceito, que evolui com o tempo e as dinâmicas de consumo da sociedade, respeitando, pois, a necessidade de modernização do CDC em conjunto com o princípio da vedação ao retrocesso.

            Por conseguinte, a lei federal mencionada deixou clara a necessidade não só de tratamento do superendividamento quando existente, mas também de prevenção à sua ocorrência, conforme se depreende da própria nomenclatura dada ao Capítulo VI-A inserido no Código “Da prevenção e do tratamento do superendividamento”.

            Merece destaque o disposto nos parágrafos 2º e 3º do Art. 54-A, que esclarecem que as dívidas relacionadas no conceito de superendividamento “englobam quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada” (§2º) e, em respeito à cláusula geral de boa-fé, como norma-princípio integradora, interpretativa e criadora de deveres anexos de conduta, o tratamento legal do superendividamento “não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé”, independentemente se contraídas por contratos celebrados dolosamente, com o intuito deliberado de indadimplência, ou cujo objeto englobe produtos e serviços de luxo de alto valor.

            Nesse diapasão, o CDC passou a contar com três novos incisos em seu Art. 6º, incluídos pela Lei nº 14.181/2021, assegurando serem direitos básicos do consumidor “a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas” (BRASIL, 1990, destaque acrescido), bem como “a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito” (BRASIL, 1990) e “a informação acerca dos preços dos produtos por unidade de medida, tal como por quilo, por litro, por metro ou por outra unidade, conforme o caso” (BRASIL, 1990).

            Assim, a Lei introduziu importante interpretação aos pressupostos de prevenção ao superendividamento, advinda, também, da boa-fé objetiva: a necessidade de cooperação dos fornecedores de crédito, e de bens de consumo em geral, através do necessário dever de informação e avaliação prévios da capacidade de pagamento das dívidas por parte dos consumidores, que são presumidamente vulneráveis, ainda mais se estiverem no grupo dos considerados “hipervulneráveis”, como idosos, pessoas com deficiência, crianças e adolescentes.

2.2 O Programa “Desenrola Brasil”

            O Governo Federal, em atenção ao comando constitucional de necessidade da compatibilização da ordem econômica com os ditames da justiça social e, em especial, o princípio da defesa do consumidor, lançou, em 5 de junho de 2023, por meio da Medida Provisória nº 1.176/2023, um programa emergencial para regularizar a situação de devedores inadimplentes, através da concessão de descontos nas renegociações de dívidas daqueles que aderirem ao programa.

            Posteriormente, a Medida Provisória foi convertida na Lei nº 14.690, de 3 de outubro de 2023 que em seu Art. 1º estabeleceu a instituição do “Programa Emergencial de Renegociação de Dívidas de Pessoas Físicas Inadimplentes – Desenrola Brasil”, mencionando expressamente o objetivo de “incentivar a renegociação de dívidas de natureza privada de pessoas físicas inscritas em cadastros de inadimplentes para reduzir seu endividamento e facilitar a retomada do acesso ao mercado de crédito” (BRASIL, 2023). Ademais, o parágrafo único do mesmo artigo estabelece que o programa só terá duração até 31 de dezembro de 2023.

            Contudo, tendo em vista a diversidade e amplitude da população brasileira, bem como a finitude dos recursos públicos e os princípios orçamentários da legalidade e do equilíbrio entre receitas e despesas, o Programa foi dividido pela lei em duas faixas de abrangência: Faixa 1 e Faixa 2, ambas destinadas a dívidas privadas de devedores que tenham sido inseridos em cadastros de inadimplentes até 31 de dezembro de 2022 e com registro ativo em 28 de junho de 2023. Por sua vez, cada faixa possui peculiaridades próprias e algumas limitações que aqui serão classificadas em: subjetivas, temporais e qualitativas.

            Nesse ínterim, iniciando pela Faixa 1, a limitação subjetiva consiste na destinação a um público específico de consumidores devedores, que precisam preencher dois requisitos: ser consumidor pessoa física e possuir renda bruta mensal de até 2 (dois) salários-mínimos ou estar inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), verificados de acordo com critérios e parâmetros estabelecidos em regulamento.

            Quanto à limitação temporal, somente podem ser objeto do programa dívidas negativadas entre os anos de 2019 a 2022.

            A limitação qualitativa, envolve as características e a natureza das dívidas. Para o Desenrola Brasil – Faixa 1, o Art. 6º, §2º excluiu do programa dívidas com garantia real ou relacionadas a crédito rural, financiamento imobiliário, operações com funding ou risco de terceiros, salvo operações cedidas a companhias securitizadoras, fundos titulares de créditos de pessoas físicas, fundos de investimentos em direitos creditórios e quaisquer outros cessionários de créditos. Trata-se de rol exemplificativo, pois a alínea “d” do inciso II prevê a possibilidade de não estarem abrangidas outras operações definidas em regulamento.

            Já em relação ao Desenrola Brasil – Faixa 2, a lei buscou amparar também devedores inadimplentes com um maior poder aquisitivo, que, apesar disso, também estão sujeitos ao superendividamento. Assim essa Faixa possui um diferencial relevante na limitação subjetiva. Nessa via, podem participar da Faixa 2 devedores com renda mensal igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais), apurada pelos agentes financeiros.

            Como limitações temporais, estabeleceu que a data de contratação da operação de crédito deve ser até 31 de dezembro de 2023 e deve ser respeitado o prazo mínimo de 12 (doze) meses para pagamento das operações, salvo, nesse último caso, se houver solicitação do devedor devidamente comprovada para renegociação por prazo inferior.

            Por fim, quanto às limitações qualitativas da Faixa 2, também foram excluídas, assim como na Faixa 1, dívidas de crédito rural; ainda, não abrange dívidas com garantia da União ou de entidade pública; que não tenham o risco de crédito integralmente assumido pelos agentes financeiros; que tenham qualquer tipo de previsão de aporte de recursos públicos ou qualquer equalização de taxa de juros por parte da União.

            Apesar da divisão nessas duas faixas, o Art. 35 da lei dispôs que as dívidas não enquadradas em nenhuma das duas faixas poderão ser objeto de quitação por meio da plataforma digital do Programa, também até 31 de dezembro de 2023, na forma a ser estabelecida em regulamento.

            Nessa via, as limitações subjetivas, temporais e qualitativas constituem pressupostos cumulativos para a adesão ao programa. Finalizada essa fase e preenchidos todos os pressupostos, o consumidor poderá proceder à renegociação de forma online (em meio digital) e gratuita, bastando acessar o sítio eletrônico oficial do governo federal com login na conta “gov.br”. Feito o login, já existe uma plataforma específica exclusiva com o nome do programa onde o devedor poderá visualizar a lista de dívidas passíveis de negociação, a situação em que se encontram (o quantum devido, por exemplo) e o desconto ofertado por cada Credor.

            Por conseguinte, é nítido que o programa Desenrola Brasil constitui importante avanço no diálogo entre o poder público, a iniciativa privada e instituições financeiras em geral, já que somente com a intervenção do governo foi possível atrair os credores a ofertar esses descontos. Cumpre mencionar que a seleção desses credores foi feita respeitando a obrigatoriedade constitucional de procedimento licitatório (Art. 37, XXI CF/88), bem como os princípios da competitividade, imparcialidade e isonomia. Assim, o Art. 15 da lei nº 14.690/2023 previu processo competitivo na modalidade leilão eletrônico com o critério de maior desconto. Ainda, reforçando a isonomia, previu, expressamente o seguinte:

            Art. 15. (…)

            II – em conformidade com o princípio da isonomia, formação de lotes específicos de dívidas para:

            a) estimular a competição entre dívidas que possuam perfis semelhantes quanto à natureza da

obrigação, à idade da dívida e ao setor principal de atuação do credor, tal como o de instituições financeiras, o de prestadores de serviços públicos e de utilidade pública, o de comércio varejista e o de prestadores de serviço em geral;

            b) segmentar lotes para microempreendedores individuais, microempresas e empresas de pequeno porte de que trata a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, considerada a receita bruta auferida no ano-calendário de 2022; (destaques acrescidos)

            Dessa forma, a lei nº 14.690/2023, assim como disciplina os devedores participantes esclarece, em seu Art. 2º, quem pode participar do programa na condição de credores e de agentes financeiros (BRASIL,2023):

            Art. 2ºPoderão participar do Desenrola Brasil:

         I – na condição de devedores: pessoas físicas inscritas em cadastros de inadimplentes;

            II – na condição de credores: pessoas jurídicas de direito privado responsáveis pela inscrição de devedores em cadastros de inadimplentes, tais como instituições financeiras, prestadores de serviços públicos e de utilidade pública, empresas varejistas e prestadores de serviço em geral, inclusive microempreendedores individuais, microempresas e empresas de pequeno porte de que trata a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006;

            III – na condição de agentes financeiros: instituições financeiras criadas por lei própria ou autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil que detenham autorização para realizar operações de crédito.

            § 1º Para os fins do inciso II do caput deste artigo, as companhias securitizadoras, os fundos titulares de créditos de pessoas físicas, os fundos de investimentos em direitos creditórios e quaisquer outros cessionários de créditos são considerados credores.

            § 2º Os demais requisitos e condições para participação de devedores, credores e agentes financeiros no Desenrola Brasil serão estabelecidos em regulamento.

            Por fim, a título informativo, cumpre mencionar que, desde o período prévio à implementação da Faixa 1, a Lei previu diversas medidas a serem tomadas pelo Governo Federal relacionadas aos meios operacionais e tecnológicos necessários, como a comunicação de dados, estritamente necessários à operacionalização (em respeito ao direito fundamental constitucional à proteção de dados), a consolidação das plataformas digitais específicas para cada grupo de participantes (credores, devedores e agentes financeiros), atendimento e suporte aos devedores quanto à adesão e negociações no âmbito do programa, dentre outros.

            Portanto, esses procedimentos prévios demonstram organização e confirmam a informação constante do sítio eletrônico oficial do Governo de que esse procedimento é rápido e seguro e não possui complexidades técnicas, sendo uma navegação intuitiva. Ademais, contém alerta preventivo de fraudes e tentativas de golpes, informando aos consumidores que o único meio de renegociação é pela plataforma oficial, não sendo enviados emails, mensagens de textos ou outros sites de terceiros.

3.METODOLOGIA

            Em primeiro lugar, foi analisado o instituto do superendividamento para compreensão de algumas noções básicas sobre o tema, a ser posteriormente retomado quando da comparação com o Programa “Desenrola Brasil”.

            No segundo subtópico foi analisado em detalhes como funciona o novo programa introduzido pelo governo federal em 2023, as condições de sua operacionalização e quem dele pode participar.

            Após, juntando as concepções dos referenciais teóricos dos dois primeiros tópicos, foi feita a discussão e análise dos dispositivos e seus fundamentos para gerar, por fim, as conclusões pretendidas pelo trabalho, conforme destacado na introdução.

4. PREVENÇÃO E RESOLUÇÃO DO SUPERENDIVIDAMENTO

            A um primeiro momento poderiam surgir críticas sob o fundamento de que o “Desenrola Brasil” não seria uma prevenção ao superendividamento, já que o Art. 3º, parágrafo único da lei 14.690/2023 estabelece que o mínimo existencial previsto no CDC não impedirá a contratação de operação de crédito no âmbito do referido Programa.

            Primeiramente, é preciso recordar a necessidade de interpretação sistemática e unitária das leis no ordenamento jurídico brasileiro, não sendo possível reduzir o seu escopo a um só dispositivo ou possível interpretação que se queira dar a ele. Nessa via, a mesma lei mencionada supra prevê em seu Art. 24 e seguintes, disposições sobre a recuperação da inadimplência, demonstrando atenção e prevenção a possibilidades futuras de inadimplemento de contratos celebrados no âmbito do Desenrola Brasil.

            Segundo o dispositivo mencionado, os agentes financeiros vão cobrar a dívida em nome próprio, em conformidade com as suas políticas de crédito, mas devem utilizar os “melhores esforços e adoção dos procedimentos necessários para a recuperação dos créditos das operações do Programa” (BRASIL, 2023). Ademais, o programa será supervisionado pelo Banco Central do Brasil.

            Contudo, a parte mais relevante da lei do “Desenrola Brasil” para o debate com os dispositivos do CDC relacionados ao superendividamento são os seus artigos 27 e 28, inseridos no Capítulo VII “Prevenção ao Inadimplemento”.

            Primeiramente, o caput do Art. 27 da Lei nº 14.690/23 estabelece, de forma similar à Lei 14.181/21, a obrigação de serem adotadas, incentivadas e implementadas medidas de educação financeira aos consumidores. Inclusive, o Art. 27 faz menção expressa ao superendividamento, conforme se segue (BRASIL, 2023):

             Art. 27.As instituições criadas por lei própria ou autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil e outras instituições que ofereçam crédito deverão adotar medidas de educação financeira direcionadas aos seus consumidores para prevenção ao inadimplemento de operações e ao superendividamento de pessoas físicas. (destaque acrescido)

Além disso, como forma de garantir a efetividade e aplicação prática desse dever de informação e do dever de cooperação dos agentes financeiros, o § 1º confere o direito aos consumidores à  portabilidade do saldo devedor da fatura de cartão de crédito e de demais instrumentos de pagamento pós-pagos para qualquer instituição financeira ou instituição autorizada a funcionar pelo Banco Central do Brasil e veda, no § 2º, a cobrança pela instituição credora original de custos relacionados à troca de informações e à efetivação da portabilidade.

Já o Art. 28 e parágrafos trazem disposições quanto ao icentivo e atuação do Conselho Monetário Nacional para, por intermédio do Banco Central, estimular a adoção de práticas de crédito responsáveis e a redução de taxas de juros em financiamento de saldo devedor.

Por sua vez, as alterações no Código de Defesa do Consumidor (CDC – Lei nº 8.078/1990) pela lei nº 14.181/2021 trazem uma disciplina mais específica ao superendividamento em sua fase preventiva e repressiva, além de possuir mais dispositivos regulando o tema. Contém, portanto, maior esclarecimento quanto às informações que o fornecedor ou o intermediário devem dar ao consumidor no momento da oferta de linhas de crédito ou vendas a prazo; vedações a determinadas condutas nas ofertas de créditos, sejam elas publicizadas ou não, dentre outras.

Segundo o Art. 54-B, devem ser informados ao consumidor, dentre outros, o custo efetivo total do crédito fornecido e a descrição dos elementos que o compõem — portanto todo o valor que ele deverá pagar ao final, após a inclusão de juros — além  da taxa efetiva mensal de juros, a taxa dos juros de mora e o total de encargos, de qualquer natureza, previstos para o atraso no pagamento. Esclarece, ainda, em seus parágrafos, que essas informações devem ser claras e visíveis no próprio contrato ou fatura, de fácil acesso ao consumidor.

Em atenção à prática comum que vinha sendo adotada de forma lesiva aos consumidores, o Art. 54-C expressamente vedou que na oferta do crédito seja indicado (de forma expressa ou implícita) que a operação poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor. Ademais, é vedado ocultar ou dificultar a compreensão do consumidor sobre os ônus e os riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo, bem como assediar ou pressionar o consumidor para contratar o serviço, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio e, ainda, não é permitido condicionar a obtenção do crédito ou suas tratativas à renúncia ou à desistência de demandas judiciais, ao pagamento de honorários advocatícios ou a depósitos judiciais.

Tratam-se, pois, de previsões destinadas a evitar o acontecimento do superendividamento.  Nessa fase, o Art. 104-C prevê também uma competência facultativa e concorrente ao Sistema Nacional de Defesa do Consumidor para atuar na prevenção.

Porém, uma vez ocorrido, os Arts. 104-A a 104-C dispõem sobre a utilização da conciliação no superendividamento. Nesse sentido o próprio consumidor superendividado (pessoa natural) irá requerer ao juiz a instauração do processo de repactuação de dívidas, sem que isso importe em declaração de insolvência civil. Nesse processo, apresentará, em audiência de conciliação, uma proposta de plano de pagamento em até cinco anos, desde que preservado o mínimo existencial, conforme regulamento, bem como as garantias e formas de pagamento pactuadas originariamente.

Assim como visto na Lei do “Desenrola Brasil”, o CDC também exclui do processo  judicial de repactuação, mesmo que provenientes de relações de consumo, as dívidas com garantia real, de crédito rural e de financiamentos imobiliários.

Caso haja sucesso na conciliação com algum credor, a sentença judicial que homologar o acordo descreverá o plano de pagamento da dívida e terá eficácia de título executivo e força de coisa julgada. Após a homologação do plano, é possível eventual repactuação; todavia, um novo pedido de repactuação conciliatório inicial só poderá ser repetido após dois anos da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado.

Entretanto, se não obtida a conciliação com qualquer credor, o Art. 104-B permite que o consumidor peça ao juiz a instauração de processo por superendividamento para o revisão e integração dos contratos. Ademais, pode pedir processo para repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório. Nesses casos, são citados todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado. O procedimento é descrito nos seguintes parágrafos (BRASIL, 1990):

            Art. 104-B (…)

            § 2º No prazo de 15 (quinze) dias, os credores citados juntarão documentos e as razões da negativa de aceder ao plano voluntário ou de renegociar.

            § 3º O juiz poderá nomear administrador, desde que isso não onere as partes, o qual, no prazo de até 30 (trinta) dias, após cumpridas as diligências eventualmente necessárias, apresentará plano de pagamento que contemple medidas de temporização ou de atenuação dos encargos.

            § 4º O plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual previsto no art. 104-A deste Código, em, no máximo, 5 (cinco) anos, sendo que a primeira parcela será devida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado de sua homologação judicial, e o restante do saldo será devido em parcelas mensais iguais e sucessivas.’

Por fim, cumpre mencionar que também é possível ocorrer conciliação administrativa para previnir o superendividamento da pessoa natural. Nesse sentido, o Art. 104-C atribui competência facultativa e concorrente ao Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e menciona, inclusive, que o processo pode ser regulado por convênios específicos celebrados entre seus órgãos e as instituições credoras ou suas associações, no que couber.

Caso se proceda a essa conciliação administrativa, o §1º prevê que “os órgãos públicos poderão promover, nas reclamações individuais, audiência global de conciliação com todos os credores” (BRASIL, 1990) e, ainda, prevê possibilidade de cooperação em todos demais casos, como, por exemplo facilitando a elaboração de plano de pagamento, preservado sempre o mínimo existencial “…sem prejuízo das demais atividades de reeducação financeira cabíveis” (BRASIL, 1990).

Pelo último trecho do parágrafo mencionado, é possível visualizar que a utilização dos mecanismos legais da lei que trouxe os marcos positivados do superendividamento da pessoa natural não são exclusivos e podem ser utilizados também outros meios, como o programa “Desenrola Brasil”.

5.CONCLUSÃO

Dessa forma, restou nítido que ambos os instrumentos legais são relevantes para o combate ao inadimplemento de credores, constituindo duplo mecanismo preventivo e resolutivo ao superendividamento. Contudo, as alterações promovidas no CDC pela Lei nº 14.181/2021 são mais densas e específicas, ao passo que a Lei nº 14.690/23 trata de um programa específico e provisório, de caráter emergencial. Apesar disso, ambas não se excluem, mas se complementam. Se adotadas juntas, podem resultar em impacto significativo para a recuperação econômica dos brasileiros, especialmente os consumidores mais vulneráveis.

Ainda, para assegurar a máxima efetividade da dignidade da pessoa humana e da garantia do mínimo existencial, o programa Desenrola Brasil pode ser utilizado para situações mais críticas e realmente emergenciais, como é, inclusive, o próprio escopo de sua criação; já as disposições gerais do CDC, especialmente relativas à conciliação administrativa e aos planos de renegociações judiciais podem ser utilizados para casos que exijam melhor elucidação, envolvendo créditos controvertidos ou práticas abusivas à relação de consumo praticados pelos credores, ou quando for o caso de credores que não aderiram ao “Desenrola Brasil” ou devedores que não preencheram os pressupostos temporais, subjetivos e qualitativos do Programa. Assim, com essa sistemática, será possível combater o superendividamento em todas as suas frontes, respeitado sempre o mínimo existencial e as disposições legais e constitucionais.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Acessado em 08 de novembro de 2023.

_______. Lei Nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8078.htm>. Acesso em: 06 novembro de 2023.

_______. Lei Nº. 14.181, de 1º de julho de 2021. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14181.htm#art1>. Acesso em: 07 novembro de 2023.

_______. Lei Nº. 14.690, de 3 de outubro de 2023. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14690.htm#:~:text=As%20d%C3%ADvidas%20de%20pessoas%20f%C3%ADsicas,na%20forma%20estabelecida%20em%20regulamento>. Acesso em: 07 novembro de 2023. MARQUES, Cláudia Lima. Nota sobre a atualização do CDC em matéria de superendividamento Lei 14.181/2021: a noção de mínimo existencial e sua aplicação imediata. Estudos de direito do consumidor, v. 2, nº 1, 2021, p. 3-28


Arielle Rêgo Barbosa – Graduada no Curso Superior de Bacharelado em Direito da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Campus Ministro Petrônio1