O TRABALHO INTERMITENTE DOS BARQUEIROS DO RIO MADEIRA: ASPECTOS LEGAIS E PRÁTICOS

THE INTERMITTENT WORK OF BOATMANS ON THE MADEIRA RIVER: LEGAL AND PRACTICAL ASPECTS:

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10083017


Lucileyde Feitosa Sousa1
Fernando Augusto Torres dos Santos2


RESUMO

Este artigo tem por objetivo promover a reflexão sobre o trabalho intermitente, destacando os seus aspectos legais, conceituais e práticos em um contexto de trabalho dos profissionais da navegação (barqueiros) do rio Madeira, nos estados de Rondônia e Amazonas. A atividade de pesquisa envolveu levantamento bibliográfico de autores que trabalham com a temática trabalhista e legislação, bem como autores regionais, no sentido de mostrar análises e reflexões para entendimento dessa modalidade de trabalho no espaço da navegação escolhida. Os resultados dessas reflexões sinalizam que o trabalho intermitente ainda não garante dignidade ao trabalhador que almeja sair da informalidade, ao ponto de manter essa relação de dependência, espera de ser convocado, precarização em relação à segurança e invisibilidade do trabalho dos profissionais da navegação na Amazônia. 

Palavras-chave: Amazônia. Trabalho intermitente. Barqueiros. Rio Madeira

ABSTRACT

This article aims to promote reflection on intermittent work, highlighting its legal, conceptual and practical aspects in a work context of navigation professionals (boatmen) on the Madeira River, in the states of Rondônia and Amazonas. The research activity involved a bibliographic survey of authors who work on labor and legislation issues, as well as regional authors, in order to show analyzes and reflections to understand this type of work in the chosen navigation space. The results of these reflections indicate that intermittent work still does not guarantee dignity to workers who want to leave informality, to the point of maintaining this relationship of dependence, waiting to be called up, precariousness in relation to safety and invisibility of the work of navigation professionals in the Amazon.

Keywords: Amazon. Intermittent work. Boatmen. Madeira River.

1 INTRODUÇÃO

Este texto trata de reflexão sobre o trabalho intermitente, regularizado a partir da Lei nº 13.467/2017 (BRASIL, 2017), oportuniza avaliar os aspectos legais que fundamentaram a Reforma Trabalhista, assim como a compreensão dessa modalidade contratual no contexto dos profissionais da navegação no rio Madeira, no estado de Rondônia.

Nesse sentido, o estudo da modalidade do contrato de trabalho intermitente cuja prestação de serviço é descontínua, existindo períodos de inatividade quanto à prestação de serviço tornou-se desafiador pensar esse trabalho na Amazônia, em um contexto específico da navegação, a partir dos trabalhos de Nogueira (1999), Rocha (2016) e Sousa (2014).

Tais autores destacam os trabalhos dos profissionais envolvidos na dinâmica do transporte fluvial de passageiros e cargas na Amazônia, possibilitando o entendimento à luz do direito trabalhista. 

Situando Krusche e Busnello (2021) nessa reflexão, os quais mostram que a ideia da regulamentação do trabalho intermitente justificava-se pela normatização do chamado “bico” para que não ocorresse a exclusão da informalidade. Mas, será que o trabalho intermitente conseguiu de fato amenizar tal informalidade, oportunizando ao trabalhador mais segurança trabalhista?

A partir da Reforma Trabalhista, reconheceu-se essa prestação de serviço de forma subordinada e não contínua, ocorrendo de acordo com Krusche e Busnello (2021) a alternância de períodos na prestação de serviço e inatividade, independente do tipo de atividade do empregado ou empregador.

Sendo assim, não basta apenas contextualizar a parte jurídica, mas tentar dialogar com uma realidade pouco estudada e registrada por pesquisadores da própria Amazônia ao falar da modalidade do trabalho intermitente no contexto do transporte de passageiros e cargas na região, especialmente em Rondônia. 

É de fundamental importância compreender essa modalidade de trabalho, considerando a invisibilidade dos barqueiros do rio Madeira diante das políticas públicas empreendidas na região amazônica, os quais exercem um trabalho árduo, perigoso e muitas vezes insalubre, inseguro, em razão de serem responsáveis pela vida dos passageiros, sendo essenciais na garantia da mobilidade no interior da Amazônia.

A proposta da pesquisa teve como objetivo analisar o trabalho intermitente, destacando os seus aspectos legais, conceituais e práticos na compreensão dessa modalidade contratual no âmbito da navegação no rio Madeira, no estado de Rondônia. Partiu-se apenas dos trabalhos publicados por autores regionais, focalizando o contexto do profissional barqueiro do rio Madeira em um questionamento formulado nesse percurso: O trabalho intermitente garante dignidade ao trabalhador que se encontra em condições tão adversas de perigos e informalidade? A resposta a esse questionamento oferecerá subsídios para entendimento do trabalho realizado pelos barqueiros do rio Madeira, considerando suas lutas e dificuldades enfrentadas diariamente na Amazônia.

Tais profissionais que atuam no segmento de transporte cargas e passageiros convivem com as pressões sociais, condições desiguais do desenvolvimento geográfico, sendo cerceadas de seus direitos trabalhistas, o que leva a uma condição permanente de insegurança, exclusões, medo e precarização da prestação de serviço, a qual essencial na garantia da mobilidade das populações ribeirinhas. (SOUSA, 2014).

Para melhor contextualização do tema e compreensão desse tipo de trabalho, recorreu-se à legislação e doutrina acerca do objeto de estudo, abordando aspectos gerais em relação aos tipos de trabalho, com ênfase ao trabalho intermitente, no sentido de verificar os subsídios legais com o propósito de mostrar as condições desfavoráveis, incertas e baixos rendimentos.

Escolheu-se trabalhar com a pesquisa exploratória, baseada em levantamento bibliográfico, doutrina e legislação. A pesquisa bibliográfica segundo Gil (2010) fornece fundamentação teórica ao trabalho, possibilitando analisar posições diversas em relação ao assunto escolhido, a qual favorece revisitar contextos históricos e buscar o maior número de dados indispensáveis numa investigação.

A pesquisa assume uma relação dialógica entre os autores estudados, sendo essencial para a compreensão do tema, das características desse trabalho e sua compreensão no universo da navegação. A partir dessas considerações, o texto é constituído de três tópicos. O primeiro destaca o material e método de estudo situando suas especificidades; no segundo, ressalta-se o trabalho dos profissionais da navegação no Transporte de Passageiros e Cargas no rio Madeira, Rondônia e Amazonas.

E, por fim, o último tópico de estudo se refere ao Direito do Trabalho, permitindo o entendimento do trabalho intermitente, como seus aspectos legais e à sua compreensão no universo da navegação, a partir dos estudos de pesquisadores da própria região amazônica.

2 MATERIAL E MÉTODO

A pesquisa está situada na abordagem qualitativa, a qual segundo Alami (2010) depende de seu contexto de utilização, objetivos e a questão a ser tratada. Com base nessas características, a pertinência dessa abordagem explora o fenômeno social do trabalho intermitente e suas práticas.

O processo de desenvolvimento da abordagem qualitativa mostra de acordo com Alami (2010) a ambivalência das realidades sociais, significando evidenciar os sentidos de um trabalho, a diversidade de interesses e suas características.

Nesse percurso, a pesquisa apresenta essa natureza de caráter aplicado por possibilitar refletir sobre essas dinâmicas sociais, não no aspecto de denunciar ou criticar, mas entender a lógica social do trabalho intermitente, como forma de refletir na situação particular do trabalho dos barqueiros do rio Madeira.

Esse olhar sobre o mundo social interessa à ciência jurídica, corroborando para a interpretação das dinâmicas do universo profissional e questionamentos com base na análise dos fenômenos observados.

Na prática da pesquisa qualitativa, a abordagem é indutiva, construída por meio da exploração da realidade, não necessariamente objetiva confirmar ou refutar hipóteses. A estratégia é explorar, analisar, fazer recortes particulares do ambiente social (ALAMI, 2010).

Em outras palavras, não se procura compreender toda uma realidade social, mas a partir dos recortes feitos buscar destacar um ponto de vista em função da escala de observação escolhida, nesse caso a dinâmica do trabalho dos barqueiros do rio Madeira.

Optou-se pela pesquisa exploratória, a busca por informações sendo executada por meio da pesquisa bibliográfica. A esse respeito, Gil (2010, p. 27) destaca que “As pesquisas exploratórias têm como propósito maior familiaridade com o problema, com vista a torna-lo mais explícito ou a construir hipóteses”.

Esse tipo de pesquisa é realizada num ambiente flexível e sua coleta pode ser feita de diversas maneiras, sendo optado para este trabalho a pesquisa exploratória por meio do levantamento bibliográfico e a análise de exemplos a partir dos estudos de Nogueira (1999), Rocha (2016) e Sousa (2014) para a compreensão do trabalho dos barqueiros do rio Madeira.

De acordo com Gil (2010, p. 30) “ a principal vantagem da pesquisa bibliográfica reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente”. Está explícito o quanto esta pesquisa proporciona analisar posições diversas em relação ao assunto escolhido, sendo um trabalho de descobertas e que propicia base teórica ao pesquisador para auxiliar no exercício reflexivo e crítico sobre o tema em estudo (GIL, 2010).

Dessa maneira, realizou-se leituras e fichamentos de autores da área jurídica e de autores regionais com objetivo de identificar pesquisas bibliográficas ligadas ao objeto de estudo, sendo efetivada por meio dos seguintes documentos: Constituição Federal de 1988, CLT, além de artigos científicos, teses etc.

Do ponto de vista de Rampazzo (2005) a pesquisa bibliográfica colabora na explicação de um problema a partir das referências teóricas, exigindo o levantamento da situação da questão e a melhor visão do problema. Tanto Gil (2010) quanto Rampazzo (2005) destacam a importância da pesquisa bibliográfica na formação universitária, na maturação do pensamento, na busca por fontes de pesquisa visando o levantamento sistemático de todos os documentos publicados.

A análise e interpretação dos dados coletados implicaram na articulação das fontes diversas, no dialogismo dos autores, buscando organizar essa rede de sentidos em face da dinâmica do trabalho dos barqueiros do rio Madeira.

3. ESPECIFICIDADES DE UMA INVISIBILIDADE TRABALHISTA NA NAVEGAÇÃO NO RIO MADEIRA

A “indústria do transporte” envolve a mobilidade de pessoas de um lugar para outro e a circulação de mercadorias no interior da Amazônia. E para a prestação dessa atividade de transporte temos o trabalho dos profissionais da navegação no rio Madeira que é de fundamental importância para atividade econômica e a garantia da mobilidade fluvial.

Nogueira (1999) ao estudar o transporte fluvial no estado do Amazonas destacou três segmentos básicos: transporte de passageiros e cargas regionais (barcos recreios), o de derivados de petróleo e o de carga em comboio integrado denominado empurradores.

Ainda para esse autor, o transporte de passageiros é tido como o de baixa renda, visto que os usuários são em grande parte camponeses/ribeirinhos, os quais são construídos de madeira em diferentes estaleiros artesanais. (NOGUEIRA, 1999).

O barco faz parte da visualidade e vida amazônica e os rios possuem um valor simbólico que interligam de acordo com Rocha (2016, p. 152) “os mais diferentes e longínquos povoamentos favorecendo as trocas comerciais”. Em uma região repleta de rios, o trabalho dos profissionais da navegação é essencial do ponto de vista comercial, mas da sustentabilidade de comunidades ribeirinhas em razão de sua sobrevivência e transporte.

São nas viagens de barco que se podem fazer observações a respeito do trabalho dos barqueiros e viver ribeirinho, conhecer suas formas de organização, estratégias de sobrevivência e importância histórica e social. As viagens de barco levam em consideração o percurso a ser navegado, a potência do motor, a quantidade de cargas e a época (inverno ou vazante). (SOUSA, 2014)

De Porto Velho saem algumas embarcações construídas de madeira e de ferro para as mais diversas comunidades e cidades ribeirinhas, chegando até Manaus. A compreensão do espaço ribeirinho inicia com uma viagem de barco, de preferência onde se tem a oportunidade de viajar numa rede, respeitando a geografia do rio e a potência do motor da embarcação. (SOUSA, 2014)

De tudo se leva a bordo de um barco de madeira ou de ferro, desde variadas cargas, passageiros com diversas faixas etárias até automóveis. O que chama atenção é a quantidade de mercadoria transportada para abastecimento dos pequenos comércios e/ou mesmo os ranchos dos moradores para o mês todo. É preciso indagar porque o custo de vida chega a ser tão alto na área rural. E a passagem de barco é cara, evidenciando que nem todos têm a oportunidade de conhecer a área urbana de sua própria cidade. (SOUSA, 2014)

Os passageiros dividem espaço com as cargas que vão no convés, sendo uma combinação que requer atenção para o aspecto da segurança dos passageiros. Não se pode deixar de mencionar o papel social dos barcos, os quais exercem funções relevantes para a população ribeirinha, especialmente a mobilidade dos moradores no interior da Amazônia. 

E nessa dinâmica no interior da Amazônia se encontra o profissional barqueiro que exerce sua função a bordo da embarcação, muitas vezes com pouca escolaridade. Sua atividade profissional, além de garantir a mobilidade no interior da região amazônica, ajuda na orientação dos passageiros que passam por dificuldades, tais como acesso às políticas públicas. Os profissionais ajudam de toda a forma um passageiro, desde transportando suas mercadorias, como auxiliando no deslocamento até a subida de algum barranco.(SOUZA, 2014),       

Ao mesmo tempo, Sousa (2014) identificou os principais obstáculos enfrentados pelos barqueiros ao longo de seu trabalho no rio Madeira, tais como: 

a) pedrais (afloramento rochosos), paliteiros, mudança de canal, intempéries da natureza;

b) a força dos banzeiros: os banzeiros são ocasionados pela passagem dos ventos, temporais e ultrapassagem de embarcações. Um banzeiro poderá ameaçar a estabilidade de uma embarcação pequena, assim como o temporal poderá ameaçar a estabilidade de uma grande embarcação. 

c) Temporal: corresponde a chuvas repentinas, pancadas d´água que chegam a assustar quem está a bordo de uma embarcação. Se o temporal surgir à noite, o susto acaba sendo maior. 

Todos esses fatores atrelados aos próprios animais existentes, tais como: jacarés, arraias, cobras, candirus, produzem as sensações de medo entre os passageiros que viajam nas embarcações quanto para os profissionais da navegação que precisam estar atentos aos desafios que enfrentam diariamente em sua jornada de trabalho que chega até 42 horas por semana. (SOUSA, 2014)

O contrato com esses profissionais ocorre de forma verbal, costumam fazer duas viagens por semana, sendo cerca de no máximo 30 horas de viagem descendo o rio Madeira e subindo leva mais tempo navegando. Ao longo de cada viagem trabalham por turno, descansam no período seguinte e retornam no período matutino. Tanto o barqueiro comandante quanto os demais tripulantes vivenciam uma jornada intensa de trabalho diário. (SOUSA, 2014)

Quando a viagem é Porto Velho-RO a Manicoré-AM, a jornada de um trabalhador é dividida em dois momentos: do meio dia às 18 horas, depois o barqueiro retorna meia noite e sai seis horas da manhã, sendo cinco dias de viagem (ida e volta) e totaliza 42 horas de trabalho nesse percurso trabalhado. (SOUSA, 2014)

Quando a viagem é do Terminal Hidroviário do Cainágua ao Distrito de Calama, no próprio município de Porto Velho, são plantões variados entre  quatro em quatro horas, totalizando dois dias de viagem até o destino  final. Do Cainágua a Calama em torno de 9 a 10 horas de jornada de trabalho, assim como Calama ao Cainágua dura em torno de até 14 horas navegando. E esses horários podem ser dobrados a partir do momento da ocorrência de algum incidente durante o percurso navegado, podendo ocorrer algum problema mecânico, quebra da hélice, intempéries da natureza, entre outros. (SOUSA, 2014)

4 ASPECTOS JURÍDICOS DO TRABALHO INTERMITENTE: ALGUMAS DISCUSSÕES

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, traz em seu bojo, no art. 1º, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, ressaltando a melhoria da condição social do trabalhador, a sua proteção e condições mínimas de trabalho. Os direitos trabalhistas foram incluídos no Capítulo II, “Dos Direitos Sociais”, do Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, sendo que nas Constituições anteriores os direitos trabalhistas estavam inseridos no âmbito da ordem econômica e social. (MARTINS, 2007).

Ao elegermos o trabalho intermitente como objeto de estudo, não se pode deixar inicialmente de falar nos princípios e institutos próprios, os quais são abordados no Direito Constitucional e aplicados à trabalhista. Dentre os principais princípios destacados por Renzetti (2021) são da dignidade da pessoa humana, o da boa-fé e o da razoabilidade. 

A propósito, Rezentti (2021) destaca o Princípio da Proteção como essencial para equilibrar a relação existente entre o trabalhador e empregador, conferindo ao empregado hipossuficiente “uma superioridade jurídica capaz de lhe garantir mecanismos destinados a tutelar os direitos mínimos estampados na legislação trabalhista”. (REZENTTI, 2021, p. 6).

 Logo, esse princípio protetor cria medidas em prol do equilíbrio contratual entre os desiguais, servindo para contrabalançar as relações materialmente desiguais ou desequilibradas. 

O princípio da Proteção é dividido em três vertentes: princípio do in dúbio pro misero, princípio da norma mais favorável e princípio da condição mais benéfica. Quanto ao princípio in dubio pro misero é voltado à interpretação da norma que deve, na existência de duas ou mais possíveis interpretações, optar pela mais favorável ao trabalhador (RENZETTI, 2021). 

No tocante ao princípio da norma mais favorável, trata-se da aplicação da norma mais favorável ao trabalhador, independentemente de ser ela hierarquicamente superior a outra.

Tal princípio é aplicável em caso de omissão ou obscuridade na norma a ser aplicada (RENZETTI, 2021). Ocorre uma situação na qual esse princípio não deve ser aplicado quando existirem normas de ordem pública ou de caráter punitivo, a exemplo de prazo prescricional, por isso não é absoluto.

O terceiro princípio trata da condição mais benéfica (cláusula mais vantajosa) cujas “condições mais benéficas estabelecidas no contrato de trabalho ou no regulamento da empresa serão incorporadas definitivamente no contrato de trabalho” (RENZETTI, 2021, p. 9).

Tais princípios nos levam a reflexão acerca do que seja relação de trabalho, emprego e prestação de serviço, a qual é tutelada pelo Direito Civil e pactuada por meio de contrato de prestação de serviços, sendo observado o produto final, resultado almejado.

 As relações de trabalho são disciplinadas pelo Direito do Trabalho e acordadas por meio dos contratos de trabalho pautados no labor do trabalhador propriamente dito. Para melhor contextualização do tema, a Reforma Trabalhista inseriu na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), uma nova modalidade de contrato chamada de Trabalho Intermitente, constante no Artigo 443a, no § 3º, sendo conceituado como:

Art. 443, da CLT. Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria.

A Reforma Trabalhista acrescentou essa nova modalidade de contrato de trabalho: a prestação de trabalho intermitente, sendo uma prestação de serviço de forma descontínua, alternando períodos em dia e hora, cabendo ao empregado o recebimento das horas efetivamente trabalhadas.

Ressalta Rezentti (2021) que de acordo com a CLT,  o contrato de trabalho intermitente deve ser celebrado por escrito e conter o valor da hora de trabalho, não podendo ser inferior ao valor-horário do salário mínimo.

De acordo com Krusche e Busnello ( 2021) a não continuidade é a principal característica desse modelo de contrato de trabalho, onde o trabalhador pode ficar por períodos sem ser convocado, podendo haver interrupções ou suspensões.

Portanto, o trabalho intermitente é composto por atividades remuneradas, exercidas por determinada pessoa em intervalos de tempo não regulares e descontínuos. (KRUSCHE E BUSNELLO,  2021).

A terminologia “intermitente” significa de acordo com o Dicionário de Aulete (2009, p. 460) “que se interrompe e recomeça a intervalos”, sendo entendido como o trabalho que cessa, recomeça alterando a prestação de serviço. Configura-se na própria CLT, em seu artigo 443 como um contrato individual de trabalho que poderá ser acordado de forma tácita ou expressa, verbalmente ou por escrito, por prazo determinado ou indeterminado, ou para prestação de trabalho intermitente. Segundo  Alves (2019, p. 6 ) 

O problema é que o conceito do legislador, fixado no parágrafo 3º do artigo 443 da CLT é ininteligível do ponto de vista justrabalhista. Dizer que intermitente é o contrato que alterna períodos de prestação de serviços e períodos de inatividade é não dizer absolutamente nada. Em tese todo e qualquer trabalho empregatício,

A esse respeito, o trabalho empregatício é intermitente, variando entre períodos de atividade e inatividade, não havendo um consenso em termo de fixação do conceito técnico jurídico claro e coerente com o sistema justrabalhista brasileiro se o parâmetro for somente a alternância entre períodos de trabalho e de inatividade. (ALVES, 2019).

A CLT, por sua vez, evidencia os requisitos e as características do contrato de trabalho intermitente:

Art. 452-A. O Contrato de Trabalho intermitente deve ser celebrado por escrito e deve conter especificamente o valor da hora de trabalho, que não pode ser inferior ao valor horário do salário mínimo ou àquele devido aos demais empregados do estabelecimento que exerçam a mesma função em contrato intermitente ou não

Como se nota, a forma escrita é o requisito formal para a validação desse tipo de contrato, bem como sua assinatura na CTPS de acordo com Krusche e Busnello (2021).

 A lei é clara quanto à prestação desse serviço, sendo necessária a convocação do trabalhador com a informação da jornada.

 § 1º O empregador convocará, por qualquer meio de comunicação eficaz, para a prestação de serviços, informando qual será a jornada, com, pelo menos, três dias corridos de antecedência.

A convocação do trabalhador deve ser realizada com 3 (três) dias de antecedência e caso não seja convocado não precisa trabalhar. Ou seja, não existe uma quantidade mínima de carga horária para o trabalho, podendo o empregado ser chamado para prestar serviço por três, quatro horas por semana, devendo a remuneração ser calculada por hora ou dia de trabalho. (KRUSCHE E BUSNELLO, 2021).

Para Rezentti (2021) essa modalidade de trabalho pode ser descontínua para atendimento das demandas específicas de determinados setores. Em se tratando do trabalho no transporte fluvial de passageiros e cargas, não existem viagens todos os dias e sim dias alternados por conta do tempo de viagem, considerando a descida e subida do rio, os horários não são os mesmos havendo essa alteração no tempo de viagem, caso não haja alguma situação desfavorável advindo de riscos ambientais ou problemas mecânicos da embarcação.

Outro aspecto a ser considerado é o período da inatividade, ou seja, quando não presta serviços ou nem está à disposição do dono do barco, o barqueiro poderá prestar serviços a outros contratantes, não havendo exclusividade nesta prestação de serviços. Isto é, nesse período não será considerado tempo à disposição do empregador de acordo com o art. 452-A, § 5º da CLT – O período de inatividade não será considerado tempo à disposição do empregador, podendo o trabalhador prestar serviços a outros contratantes.

Tem-se basicamente de acordo com Krusche e Busnello ( 2021) que esse período de inatividade do empregado não é tido como tempo  à disposição do empregador, uma vez que mesmo esteja aguardando o chamado do empregador, não recebe qualquer tipo de contraprestação.

A lei assegura que no período de inatividade, o empregado poderá prestar serviços de qualquer natureza a outros tomadores de serviços, que exerçam ou não a mesma atividade econômica.

§ 6º Ao final de cada período de prestação de serviço, o empregado receberá o pagamento imediato das seguintes parcelas: 

I – remuneração; 

II – Férias proporcionais com acréscimo de um terço; 

III – décimo terceiro salário proporcional; 

IV – repouso semanal remunerado; e 

V – adicionais legais

A lei prevê que o trabalhador Intermitente deve receber os valores referentes ao período de férias e ao 13º salário quando terminar a prestação dos serviços. Ao contrário, dos demais empregados que recebem os valores referentes às férias no momento de seu gozo durante o período concessivo. 

Logo, o pagamento do 13º salário deve ocorrer de modo diverso dos demais empregados, que recebem em duas parcelas, conforme determina a Lei 4.749 de 12 de agosto de 1965, sendo que no trabalho intermitente, o valor será pago ao final da prestação de serviços e de forma proporcional.

Para Krusche e Busnello (2021) o pagamento proporcional diário do 13º salário (direito constitucionalmente assegurado no art. 7.º, VIII), assim como das férias e do adicional de 1/3 (asseguradas no art. 7.º, XVII), máscara a baixa remuneração diária do contrato intermitente e torna inócuo o seu pagamento, chegando a violar  na prática direitos garantidos na Constituição Federal/1988. 

Para Leite (2019) essa modalidade de trabalho intermitente é inconstitucional, em razão do trabalhador só receber remuneração quando for convocado pelo empregador, o deixando em stand by, podendo ser descartado como mercadoria, o que viola princípios da dignidade da pessoa humana, do valor social do trabalho, entre outros, tendo em vista que a remuneração acaba sendo fracionada.

Conforme Delgado (2018), o trabalho intermitente  é  anunciado como uma forma de promover a  modernização  da  relação  empregatícia, a qual geraria novos postos de  trabalho,  contribuindo para o avanço  econômico  e  social. Tal discurso ganhou ressonância e  abordagem  na  Lei  n. 13.467/2017, denominada de Lei da Reforma Trabalhista.

Na realidade brasileira, para Delgado (2018) essa modalidade de trabalho contribui para acentuar a precariedade nas relações trabalhistas, sem diversas proteções e vantagens ao trabalhador.

Nessa direção, percebem Krusche e Busnello (2021) o aspecto da instabilidade financeira na vida do trabalhador, considerando a inexistência da determinação da quantidade de horas ou dias no qual deverá efetivamente trabalhar o empregado.

Por sua vez, Alves (2019) reconhece o problema do contrato intermitente, reforçando a falta de garantia do pagamento de nenhum valor ao final de um mês, sendo um contrato de salário zero ou contrato zero hora no qual o empregador poderá ficar sem demandar trabalho ao empregado, assim como o empregador aguardar ser chamado sem receber salário.

Apesar de ter sido considerado um avanço no Direito do Trabalho, os autores supracitados evidenciam as fragilidades existentes sobre o trabalho intermitente, sobretudo não sendo respeitados os direitos sociais mínimos previstos na Constituição Federal. Nesse sentido, Krusche e Busnello (2021, p. 27) se posicionam:

Não se pode considerar o trabalho intermitente como solução para o problema da operacionalização do direito trabalhista no Brasil, pois fica claro que ao mesmo tempo em que o legislador cria alternativas e retrai custos significativos, elimina direitos que levaram décadas para serem conquistados pelos trabalhadores brasileiros.

É necessário que os direitos sociais mínimos previstos na Constituição Federal sejam respeitados e não se resumem a meras obrigações pecuniárias. Por exemplo, falta previsão na lei sobre os períodos mínimos ou máximos de trabalho que deverá prestar cada trabalhador, gerando uma certa insegurança quanto à remuneração que deveria de fato receber.

De acordo com a legislação vigente, o contrato de trabalho deve ser celebrado por escrito e conter especificamente o valor da hora de trabalho, que não pode ser inferior ao valor-horário do salário mínimo ou àquele devido aos demais empregados do estabelecimento que exerçam a mesma função em contrato intermitente ou não. Além disso, a comunicação deverá ser eficaz no qual o empregador convocará o empregado informando sua jornada com, pelo menos, três dias corridos de antecedência. (REZENTTI, 2021)

Quando o empregado receber a comunicação terá o prazo de um dia útil para responder ao chamado. Se ocorrer a recusa da oferta não descaracteriza para Rezentti (2021) a subordinação para fins do contrato de trabalho intermitente.

Ainda o mesmo autor discorre, “Havendo a aceitação pelo empregado para o comparecimento ao trabalho, a parte que descumprir, sem justo motivo, pagará à outra parte, no prazo de 30 dias, multa de 50% da remuneração que seria devida, permitida a compensação em igual prazo”3

Esta nova modalidade contratual visa autorizar, segundo Renzetti (2021) a jornada móvel variada e o trabalho variável, imprevisível da prestação de serviços. Um posicionamento do mesmo autor quanto ao contrato intermitente é que “pretende repassar ao trabalhador os riscos inerentes ao empreendimento, o que não é possível na relação de emprego”4

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O entendimento da modalidade do trabalho intermitente continua sendo um desafio, especialmente porque a sociedade no seu dinamismo vai evoluindo e demanda novas discussões e respostas aos diversos problemas ligados à questão trabalhista.

Verifica-se a existência de lacunas existentes, por exemplo a incerteza de quantas horas o trabalhador deve trabalhar por semana ou mês, ficando à mercê da convocação para prestar o serviço.

Apesar do trabalho intermitente ser promotor da modernização da relação  empregatícia, na perspectiva de gerar novas frentes de trabalho, a partir da Lei da Reforma Trabalhista, nota-se pelo levantamento e análise entre os pesquisadores que essa modalidade viola princípios constitucionais, deixa o trabalho sempre na espera de ser convocado e a remuneração acaba sendo fracionada.

Ocorre que o discurso da modernização da relação trabalhista cede lugar para a redução da remuneração, precariza o valor do trabalhador e gera fragilidade na prestação do serviço, de modo especial no contexto da navegação na Amazônia.  

Nesta perspectiva, o trabalho intermitente ainda não garante dignidade ao trabalhador que almeja sair da informalidade, ao ponto de manter essa relação de dependência, espera de ser convocado e invisibilidade do trabalho dos barqueiros do rio Madeira, parecendo que essa modalidade não alcança a realidade encontrada. 

Além da invisibilidade junta-se à precarização em relação à segurança, trabalho muito perigoso em termos de saúde física e emocional, considerando os perigos já elencados ao longo da jornada de prestação de serviço a bordo da embarcação que varia desde a incidentes como intempéries da natureza. E nesse modelo, encontra-se o empregador desobrigado de promover essa proteção com a saúde física e emocional em relação ao contrato formal.

No bojo desses aspectos, se perpetua a incerteza do momento exato da necessidade do trabalho, a insegurança já presente na prática cotidiana dos profissionais da navegação e que se propagam na relação trabalhista, levando o trabalhador a viver em situação de vulnerabilidade social, medo, espera e incerteza. 

O diálogo entre os autores estudados evidenciou fragilizados presentes na legislação, lacunas que conferem insegurança na atividade laboral de um trabalhador, o que aponta para a condição de invisibilidade, violação da dignidade humana e precarização do trabalho intermitente, o qual deveria romper com anonimatos dos sujeitos trabalhadores. 

REFERÊNCIAS

ALAMI, Sophie. (Org). Os métodos qualitativos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

AULETE, Caldas. Minidicionário contemporâneo da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2009.

ALVES, Amauri Cesar. Trabalho intermitente e os desafios da conceituação Jurídica.  Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/150638/2019_alves_amauri_trabalho_intermitente.pdf. 2019. V. 8. Acesso em: 12 jun. 2023.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 05 out. 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em:  2 de out. 2023.

BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Diário Oficial da União, Brasília, 2017. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13467.htm. Acesso em:  18 jun. 2023.

BRASIL. Vade mecum. 17. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020.

DELGADO, Gabriela Neves. Pedido de ingresso do grupo de pesquisa como amicus curae na ADI 5836. Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília. nº 15. Brasília: 2018. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/redunb. Acesso em 30 set. 2023.

GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2010.

KRUSCHE, Paulo Cezar; BUSNELLO, Ronaldo. Trabalho intermitente: contrato sem garantias e sem obrigações. Disponível em: https://www.periodicos.unb.br/index.php/redunb/article/view/32192 Acesso em:  20 jul. 2023.

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito do Trabalho. 11. ed. São Paulo: Saraiva Educacional. 2019.

MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2007.

MANUS, Pedro Paulo Teixeira. Direito do Trabalho. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2011. 

NOGUEIRA, Ricardo José Batista. Amazonas: um Estado Ribeirinho. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1999.

RAMPAZZO, Lino. Metodologia Científica: para alunos dos cursos de graduação e pós-graduação.  3. ed.  São Paulo: Edições Loyola, 2005.

REZENTTI, Rogério. Manual de Direito do Trabalho. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

Rocha Silva, Jefferson Gil da. Saberes e práticas tradicionais: as condições do trabalho nos estaleiros navais à beira-rio da cidade de Manaus.  Manaus: UFAM, 2016.

SOUSA, Lucileyde. Espaços dialógicos dos barqueiros na Amazônia: uma relação humanista com o rio. Porto Velho: Temática, 2014.


3REZENTTI, Rogério. Manual de Direito do Trabalho. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 196.
4Op. cit.


1 Acadêmica do Curso de Direito-FIMCA. E-mail: lucileydefeitosa@gmail.com. Artigo apresentado ao Centro Universitário Aparício Carvalho, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito, Porto Velho/RO, 2023.
2 Professor Orientador. Professor do curso de Direito do Centro Universitário Universitário Aparício Carvalho. E-mail: fernando.torres@fimca.com.br